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Acerca do Bom Despacho

texto Francisco Duarte Azevedo


ilustração Ivone Ralha
Em maio, propus-me fazer uma visita abundam fetos e musgos, vi orquídeas bro-
à Ilha de São Tomé. Não tinha um objetivo tando de lugares surpreendentes. O meu
específico determinado, antes o desejo e receio era a cobra preta. Numa ou outra
a fruição de uma paisagem que todos di- clareira vi palmeiras, coqueiros, bana-
ziam paradisíaca e inolvidável. neiras, cacaueiros e caféeiros. Uma vege-
Confesso a minha aversão por adjecti- tação abundante e prodigiosa.
vos demasiadamente superlativos e vulga- Chegados à cascata, pela hora do
res. A verdade é que, dias mais tarde, já meio-dia, o sol a pique espreitando oca-
me encontrava no interior de uma aeronave sionalmente entre neblinas corridas que
que faz a rota entre Lisboa e a cidade de fazem recordar as vertentes da Serra de
São Tomé, num lugar da classe económica Sintra em dias de nevoeiro, tinha a ca-
um pouco mais confortável do que os que misa de caqui alagada e o suor escorria-
normalmente os passageiros enfrentam nas -me pelo rosto em bátegas idênticas às da
empresa aéreas talvez mais preocupadas em chuva. Refresquei-me sob o jorro daquela
saber dos resultados financeiros do que água cristalina e fresca como os miúdos
em apurar se poderão vir a ser processa- traquinas saltitando de rocha em rocha a
das por danos colaterais visíveis causa- prepararem o mergulho profundo. Duas ho-
dos na coluna verbretal, nas articulações ras mais tarde, regressámos ao caminho.
e na circulação sanguínea. Teríamos ainda três horas de luz do dia
Depois de um voo de cerca de seis pela frente, tempo suficiente para não
horas, cheguei às cinco e vinte da manhã perdermos o colectivo no retorno à cidade.
à ilha e instalei-me num hotel frontei- Cruzámo-nos com um homem que arran-
ro ao mar com um pontão sobre as pedras cava agriões no rebordo de uma levada e
de basalto donde se fruía um horizonte, pareciam tão frescos como as goiabas que
por vezes, cor de cinza, outras tão azul amontoara mais adiante.
quanto o céu límpido e suave. Fotografei imenso. Apetecia-me co-
Tinha planeado uma visita à cascata lher imagens de toda a paisagem verde en-
S. Nicolau em Monte Café, mas escolhi um volvente e imobilizei-me a tentar a adi-
roteiro menos conhecido e o guia pediu-me vinhar o porte de uma acácia gigantesca.
que levasse um cantil de água e proteges- “Conheço uma maior do que esta, se-
se os pés. Entendi perfeitamente o reca- nhor”, disse-me o guia. E falou-me da pro-
do e pusemo-nos a caminho, primeiro, num priedade, que era “já ali”, de um velho
chapa, depois a pé, através de uma picada branco, resmungão, que dava a camisa a
que nos levaria até à cascata. Havia no quem a pedisse. Mas resmungão. Contou que
final da estrada de alcatrão trabalhos ele se zangava frequentemente porque não
de infraestruturas num depósito da cap- gostava que o vissem de calções e recebia
tação de águas para a cidade e o caminho as visitas vestido de paletó branco, um
acentuava-se a partir dali com rebordos par de calças de caqui e botas de cabedal
irregulares, sujeito a trilhos menos es- de caneleiras entrelaçadas com atacadores
cavados ou mais acentuados mediante as que se cruzavam simetricamente como um
linhas de água das chuvas que o recorta- par de bailarinos numa pista de dança.
vam amiúde. O guia afastou-se para falar com o
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A coberto da floresta cerrada, onde homem que arrancava os pés de agrião.
Perguntei-lhe se o conhecia. Disse-me que massem - falou muito mais sobre o filho do
era o filho do dono da propriedade. Per- que dele próprio. Todas as vezes que usou
cebeu a minha admiração. a palavra “filho” indicava o homem que vi
“Filho adoptivo”, acrescentou. a apanhar os agriões na berma da picada.
Qual a diferença? Era filho e nada “Anda sempre com o chapéu de palha na ca-
mais. Aí o guia sorriu. Retardámos o pas- beça ou entre as mãos”, acrescentou, mas
so. Havia que dar tempo ao filho para che- não disse porquê.
gar à quinta antes de nós e avisar o pai. “Somos pai e filho, porque é assim
“Vai ver a maior acácia deste mundo”, que o destino nos quer. Eu branco e tu
afirmou. A verdade é que fomos recebidos negro. Eu teu senhor e amo, teu pai e teu
com imensa cordialidade e o velho branco, avô. Tu meu filho, meu contratado, meu
de olhos azuis, fez questão que pernoi- neto e moço de recados, percebeste?”
tássemos na fazenda. “Eu e tu somos uma família”, o ve-
“Tenho dois quartos vazios”, disse- lho repetiria amiudadamente ao longo do
-nos mais tarde. jantar. “Uma família, percebeste?” Por-
Na propriedade havia árvores de fru- que não havia mais família nenhuma para
ta-pão e lá estava a acácia gigante na ele e não pensava sequer em regressar à
ravina, em frente da casa, e os pinhei- sua terra natal. Se o fizesse, seria como
ros de São Tomé mais um bananal rente aos Ulisses no regresso a Ítaca antes de Pe-
relvados que a circundam e uma plantação nélope o reconhecer. Ou nem sequer isso.
de matabala, à mistura com mandioca e “Uma família com pai, mãe e filho,
batata-doce. As orquídeas e as rosas de percebeste?”
porcelana dominavam o arranjo do jardim Na única estante do salão, havia meia
atapetado com uma relva robusta e bri- dúzia de autores clássicos. O meu olhar
lhante. Um rebanho de cabritos recebeu- fixou-se naquelas obras literárias e ele,
-nos no caminho de acesso. com um sorriso largo, disse-me: “Aqui não
O velho branco alojou-nos então nos há internet, nem telefone fixo, nem rede
dois quartos disponíveis no piso superior para telemóveis. Quem quiser mandar men-
e, antes do jantar, serviu-nos sumo de sagem ou recados, faça o favor de gritar”.
limão e vinho de palma e provámos gomos Depois, gerou-se um silêncio breve e
de carambolas. Depois, mandou assar uma o velho branco, apoiando-se no aparador
galinha no forno acompanhada de fatias encostado à parede de fundo verde, prepa-
cozidas e palitos fritos de fruta-pão. rou-se com solenidade para uma declaração
Antes do cair da noite ainda teve tempo circunstancial.
de nos mostrar a pequena horta que ladeia “Vou dizer-lhe o seguinte: detalhei
o alpendre e onde se cultivam abóboras, a minha morte. Morrerei em breve. E o meu
rábanos, couves, cebola, tomate, pimentos filho só terá de seguir à risca os pro-
e batata. Dois limoeiros davam sombra à cedimentos que escrevi num caderno que
hortinha. A norte, espalhavam-se os ca- deverá ser aberto no instante da minha
caueiros, encosta abaixo, à mistura com partida. Trata-se de uma lista de tarefas
outras espécies. que inclui a obrigação de me vestir uma
Naquela noite, ao serão, o velho bran- camisa branca com o terno creme, completo,
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co - era assim que ele gostava que o cha- de linho, que se encontra no guarda-fato
do meu quarto, mais a gravata branca, os vai ser de nós sem casa e sem vida”.
sapatos castanhos e malhados de branco de O homem aproximou-se e compôs os dois
que gosto muito, meias brancas e, em vez castiçais que ladeavam a cabeceira do ataú-
do rosário, deverei portar entre as mãos, de. A seguir, caminhou na minha direcção.
o panamá creme que me servirá para sau- “Muito obrigado, senhor, por ter
dar, apoiado numa vénia, o barqueiro de vindo”.
Caronte e as almas do outro mundo”. “Não precisa de agradecer”.
“Vou casar-me com a morte”, disse “Pode vê-lo”, anuiu.
ainda. Só não tenho a certeza se conse- O rosto aparentava serenidade. Soube
guirei a anuência do cabo corneteiro do da morte do velho branco por um mensagei-
quartel na colina fronteira à baía para ro que correu ao hotel a comunicar-mo. A
duas berlaitadas no instante em que o meu mulher haveria de o velar durante toda a
corpo baixar à terra. Deixarei isso ao noite, mas, reparei, quando ela saiu da
critério do meu “filho” e haverei de o capela, que as faces haviam perdido bri-
testar apartir da minha imaterialidade, lho e o seu olhar deixara de ter aquela
se ele será ou não capaz de se desenven- forma amendoada e viva. E repetia até à
cilhar de uma tarefa tão simples”. exaustão “o que vai ser de mim, o que vai
Apercebi-me que ele tinha sobre os ser de nós sem casa e sem vida”.
mistérios da vida no além, a firme con- Imaginei a casa rosada mergulhada num
vicção de que os mortos retornavam pela silêncio enxuto e cinzento. A cor verde
hora mais profunda da noite para repeti- das paredes no piso térreo não se asseme-
rem o caminho de partida até que tivessem lharia à interrupção dos ruídos que es-
os seus “encargos” expiados. tancam por um instante no coração da noi-
Dois meses depois, pelas nove da ma- te quando alguém parte do mundo dos vivos
nhã de um dia radiante, sentei-me na amu- para o dos mortos e o choro das mulheres
rada que barra o mar em frente da capela se desata como a torrente dum rio agita-
da Nossa Senhora do Bom Despacho e tes- do pela precipitação e pelo vento. Terá
temunhei a chegada do homem que andava sido de certeza um silêncio diferente.
sempre com o seu chapéu de palha na ca- Um zunido de vozes oriundas de uma longa
beça, isto é, o seu filho. Trazia vestida jornada a farejarem a guerra do mato, a
uma camisa branca colada ao corpo como se guerra com que o homem, que andava sempre
tivesse acabado de emergir das águas na com um chapéu de palha na cabeça ou en-
praia. Prendendo-se-lhe nas mãos um mo- tre mãos, o “filho”, cismava, pensei. E
lho de chaves, rodou a fechadura da porta recordei as coisas que o velho me dissera
principal do pequeno templo deixando que na noite em que pernoitei na propriedade.
toda a luz do sol penetrasse de rompante Que o filho, desde que lhe narrou, pela
contra o esquife. primeira vez, as estórias da guerra do
A silhueta da mulher aquietada na ca- mato, guerras antigas de muitos séculos,
deira de assento raso, também se encheu nunca mais retirou as palavras da boca
de luz. Ela estava num pranto invariável e usava-as para quase tudo o que fosse
e persistente semelhante ao das carpidei- preocupação difícil de resolver.
ras encartadas e entremeada de palavras “Ele morreu deitado no colchão de es-
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gaguejantes, “o que vai ser de mim, o que puma e um dia antes da data prevista”,
disse-me o homem e o seu chapéu de palha. tes de a abandonar e velaria o corpo no
Mas, por ordem de não sei quem, o dia seguinte. A mulher, de pano na cabeça,
recheio da casa havia sido previamente como as baianas de Yemanjá, acompanhou o
retirado e ninguém deveria lá permanecer ataúde, ao lado do condutor que se esfor-
depois dos actos fúnebres e das chuvas çou por manter lento o passo da máquina
terminadas. Só com a abertura do testa- prestes a morrer de cansaço, como o dono.
mento no cartório do notário se estabe- “Não morrerei de nenhuma doença, ape-
leceriam os termos de entrega das chaves nas de cansaço”, recordo-me de ele mo ter
da propriedade aos futuros herdeiros. E dito ao serão, naquela noite, como um
onde estavam? Ele seria verdadeiramente presságio.
um deles? Aparentemente, apenas da alma. Só no momento em que se me acercou, em
O espírito do velho pertencia-lhe por di- frente da capela, reparei que um sentimen-
reito próprio, de usucapião e o que se to de orfandade invadira o filho, porque
avizinhava no horizonte era aquilo para o seu dono e senhor tinha sido para ele o
que se preparara desde a meninice: a guer- pai que nunca teve - e não se recorda de
ra do mato. Não seria legalmente possível ter tido mais nenhum senão aquele - que
que uma pessoa tivesse, a partir daque- lhe transmitiu por saber, por memória e
le momento, acesso ao interior da casa, tradição as estórias sobre a origem dos
à cozinha, ao salão, aos banheiros, aos seus antepassados, que provinham dum lu-
quartos, ao varandim que percorria o piso gar tão sereno e verdejante como os jar-
superior e desenhava um rectângulo rendi- dins do Éden, chamado Rios de Quelimane.
lhado, de cor branca tal como as portadas E isso era no fim do mundo onde nunca ha-
e as janelas por onde penetrava a luz do veria de chegar.
dia e através das quais provinha, durante “Sabe o que é a guerra do mato, se-
a noite, a chama do petromax tremelican- nhor?”, perguntou-me ali mesmo, diante do
do, nervosa e frágil senão pelos poderes caixão. “O meu pai contou-me tudo o que
chancelados numa folha de papel. Voltaria sabia sobre a guerra do mato. Está para
então à condição de pária, liberto mas não rebentar. Vão querer a quinta”.
livre. Guerra do mato. Via-se bem que gosta-
A mulher, pelo contrário, acalentaria va do som daquelas três palavras ligadas
alguma esperança apesar do vento a contra- como o cordão umbilical de um ser a outro.
riar. O vento e a chuva. Depois da inten- Cheiravam-lhe a batidela de metais, espa-
sa chuvada na tarde do passamento e que dachins, pólvora, corpos suados pela luta,
interrompeu subitamente a gravana, tinha prenhes de feitiços e exorcismos oriundos
jorrado do chão e das encostas invisíveis da infância. E para entender tudo isso,
cobertas pela densa vegetação, uma penum- as estórias contadas pelo velho, criara
bra leitosa envolvendo árvores e ravinas. uma tábua de sonhos onde todas as coisas
E o canto dos pássaros suspendeu-se para encaixavam na perfeição.
dar lugar à chiadeira da charrete treme- Percebi ainda que ele, ao ver o ve-
licando no caminho sobre a pendente do lho branco estendido no centro da habi-
terreno escorregadio e traiçoeiro. tação, isento do hálito dos coqueiros e
Ele, o homem, o “filho” ficaria para da frescura da cascata, sentiu também uma
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trás. Deveria verificar a propriedade an- espécie de remorso bíblico por não o ter
acompanhado e escutado mais vezes. Ele, mesmas duas velas em Neves ou Guadalupe.
o velho, que outrora fora tão ágil, des- Não lhe faltaram palavrões para rogar,
cendo e subindo as ladeiras de Monte Café não fosse a proximidade do templo tê-lo
até à cidade, envolvendo de doçura e con- inibido, transformando-os em palavras re-
versa fiada as lavadeiras de rabo alçado lacionadas com resignação e paciência e,
que cruzavam a estrada numa ânsia de se- ainda por cima, silêncio. Dos vivos e dos
dução, narrava-lhe aos pedaços, como um mortos. Afixou as velas nos castiçais va-
pano feito de retalhos, as estórias de um zios e pôs-se a observar a simetria das
tempo jamais por ele vivido, entrelaçadas quatro chamas tremelicando, tímidas sob a
de rios e nomes e de seres que nunca en- forte luminosidade da manhã.
xergara na ilha. Nelas residiria a razão “Diabos o levem”, disse.
da distância do seu olhar desconfiado e A frase terá despoletado os aconteci-
resistente por nunca ter tido a certeza mentos que se seguiram. Pois no instante
de nada. em que pronunciou aquela frase, um vento
Voltei a sentar-me na amurada deixan- arrepiante levantou-se da banda do mar e
do que o meu olhar se perdesse no hori- uma tromba de ar penetrou no centro da
zonte marinho da baía. Ao fundo, velado capela fazendo rodar o caixão uns bons
pela névoa, o ilhéu das Cabras parecia noventa graus. A mulher não teve dúvidas
afastar-se definitivamente da ilha mãe. em declarar que houve por ali braço forte
E o homem que andava sempre com o chapéu dos espíritos. E ele, o homem que usava
de palha na cabeça seguiu na direcção da sempre um chapéu de palha na cabeça ou
quadrícula miniaturizada do casario, no entre as mãos, o filho, afastou-se como
centro da cidade. se o velório não lhe dissesse respeito e
Soube mais tarde que entrou na mer- o falecido fosse um estranho.
cearia onde outrora um colono português Correu até à mercearia de Abubak’r
mercava os produtos chegados no barco da para exigir o retorno de, pelo menos, meta-
carreira e a mulher, eivada da compaixão de das dobras que havia pago, quando viu a
cristã pelas almas do outro mundo, pas- multidão de populares à entrada da loja e a
sava o ano inteiro a preparar-se para a ambulância dos bombeiros ali estacionada.
procissão da Senhora de Belém que partia, Não se surpreendeu. Aquilo para ele
todos os anos em Setembro, da catedral seria castigo divino. O árabe colara-se
para a capela do Bom Despacho. Agora, por pela nuca à gaveta da caixa registadora
detrás do mesmo balcão, o árabe Abubak’r e o rosto afocinhara sobre o montão das
vendia os mesmos sonhos e ilusões, me- dobras. Dizem que o viram tombar do es-
lodiado por uma voz de serpente suave e cadote em voo picado de pássaro marinho.
cantante, capaz de levar às lágrimas uma O sangue misturara-se com o dinheiro. E
asfixia consentida. alguma coisa fez gritar o homem e o seu
“Duas velas. Venho da Igreja do Bom chapéu de palha.
Despacho”. “Matei-o”.
E o árabe entregou-lhe as velas e o Os miúdos riram. O povo riu. Ninguém
homem as dobras. Já tinha alcançado a mar- o levou a sério. O homem que usava sempre
ginal quando se apercebeu que lhe pagara um chapéu de palha na cabeça ou entre as
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duas vezes o preço que teria pago pelas mãos, entregou-se à polícia, mas não lhe
fizeram caso. “O pai morreu e ele perdeu negras, engrossara o caudal e as pessoas
o juízo”. sorriam e prometiam o que antes nunca ti-
“Diabos me levem”, gritou. E nem os nham prometido. A cidade inundara-se de
diabos o levaram. alegria e havia festa nas ruas. E o ho-
Saiu dali vergado pelas vozes dos ga- mem que usava sempre um chapéu de palha
rotos que lhe repetiam à ilharga, “dia- na cabeça ou entre as mãos, vencido pelo
bos me levem, diabos me levem” e riam-se, cansaço, consentiu que o seu corpo se aco-
riam-se tanto que o atordoaram. modasse no terreiro da catedral caindo num
Uma súbita comoção o tomou, retirou- sono profundo. Mais tarde, quando o encon-
-lhe o tino e o sentido das coisas. Ao trei e lhe disse “andam à tua procura”,
voltar a si estava de borco sobre a mesa ele respondeu:
de um bar, entre garrafas de cerveja va- “Vou entregar-me”.
zias e soletrava frases ininteligíveis. Mas não era por isso. Ele nem se aper-
Enfiaram-no à força num carro que o largou cebeu dos pés estacados e plantados à sua
no caminho para a cachoeira. frente sem o mínimo receio ou medo pela
Assustado com a presença de um pás- noite escorrida no centro da floresta.
saro perdido e o restolhar da folhagem, Era um homem vestido com um fato creme, de
ele que nunca teve medo de nada, contaria, solenidade e curvou-se ligeiramente, numa
muito tempo depois, ter escutado um zum- saudação reverencial.
bido intenso e incómodo que o impediu de “Parabéns, a casa é tua”.
identificar o lugar onde se encontrava. Depois, o homem caminhou na direcção
Bem gritou por auxílio no centro de uma da baía e desapareceu.
noite sem lua nem estrelas. Ninguém apare- O filho, compondo-se, jurou que des-
ceu em seu socorro. E a voz dos espíritos ta vez subiria à colina e pediria ao cabo
ocupou-lhe os medos. O do velho branco e corneteiro que o ajudasse a cumprir o úl-
o do árabe. Ambos se tinham unido para o timo pedido do falecido. E o cabo, olhan-
afligir. Jamais tivera um pavor tão gran- do-o e enfrentando os quatro camaradas que
de. Mas só poderiam ter sido eles a salvá- estavam com ele na instrução dos toques,
-lo da mordidela da cobra preta, porque a achou melhor e, a título excepcional, que
viu esfacelada como se a tivessem quebrado as berlaitadas fossem tocadas, leve leve,
em pedaços e arrancado a pele. em frente do cemitério ou junto da campa
Ao voltar a si, voltou também à estra- rasa que acamou o corpo do velho branco.
da principal, vindo a refugiar-se junto Ouviu-se então um longo e finíssimo
da porta da Senhora do Bom Despacho. Aí som e, por três vezes, o cabo tocou a si-
se acocorou pela madrugada e aguardou que lêncio porque foi a única forma de apelar
o espírito do pai o socorresse. O velho ao mundo para respeitarem, por alguns mo-
branco não tinha sido o seu verdadeiro mentos, o recolhimento.
pai? Tarde percebeu que tudo havia termi- E a voz do homem que usava sempre um
nado e o corpo já não estava ali para o chapéu de palha na cabeça ou entre as mãos
velar. Nem a mulher. acabou desfazendo-se em pranto cerrado.
Nesse dia, uma agitação invulgar en- Nesse instante, ele teve a certeza de que
volveu a cidade e até o Água Grande que havia perdido um ente querido.
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a mim me parecera um mero canal de águas “Pai, afinal somos uma família”.

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