ilustração Ivone Ralha Em maio, propus-me fazer uma visita abundam fetos e musgos, vi orquídeas bro- à Ilha de São Tomé. Não tinha um objetivo tando de lugares surpreendentes. O meu específico determinado, antes o desejo e receio era a cobra preta. Numa ou outra a fruição de uma paisagem que todos di- clareira vi palmeiras, coqueiros, bana- ziam paradisíaca e inolvidável. neiras, cacaueiros e caféeiros. Uma vege- Confesso a minha aversão por adjecti- tação abundante e prodigiosa. vos demasiadamente superlativos e vulga- Chegados à cascata, pela hora do res. A verdade é que, dias mais tarde, já meio-dia, o sol a pique espreitando oca- me encontrava no interior de uma aeronave sionalmente entre neblinas corridas que que faz a rota entre Lisboa e a cidade de fazem recordar as vertentes da Serra de São Tomé, num lugar da classe económica Sintra em dias de nevoeiro, tinha a ca- um pouco mais confortável do que os que misa de caqui alagada e o suor escorria- normalmente os passageiros enfrentam nas -me pelo rosto em bátegas idênticas às da empresa aéreas talvez mais preocupadas em chuva. Refresquei-me sob o jorro daquela saber dos resultados financeiros do que água cristalina e fresca como os miúdos em apurar se poderão vir a ser processa- traquinas saltitando de rocha em rocha a das por danos colaterais visíveis causa- prepararem o mergulho profundo. Duas ho- dos na coluna verbretal, nas articulações ras mais tarde, regressámos ao caminho. e na circulação sanguínea. Teríamos ainda três horas de luz do dia Depois de um voo de cerca de seis pela frente, tempo suficiente para não horas, cheguei às cinco e vinte da manhã perdermos o colectivo no retorno à cidade. à ilha e instalei-me num hotel frontei- Cruzámo-nos com um homem que arran- ro ao mar com um pontão sobre as pedras cava agriões no rebordo de uma levada e de basalto donde se fruía um horizonte, pareciam tão frescos como as goiabas que por vezes, cor de cinza, outras tão azul amontoara mais adiante. quanto o céu límpido e suave. Fotografei imenso. Apetecia-me co- Tinha planeado uma visita à cascata lher imagens de toda a paisagem verde en- S. Nicolau em Monte Café, mas escolhi um volvente e imobilizei-me a tentar a adi- roteiro menos conhecido e o guia pediu-me vinhar o porte de uma acácia gigantesca. que levasse um cantil de água e proteges- “Conheço uma maior do que esta, se- se os pés. Entendi perfeitamente o reca- nhor”, disse-me o guia. E falou-me da pro- do e pusemo-nos a caminho, primeiro, num priedade, que era “já ali”, de um velho chapa, depois a pé, através de uma picada branco, resmungão, que dava a camisa a que nos levaria até à cascata. Havia no quem a pedisse. Mas resmungão. Contou que final da estrada de alcatrão trabalhos ele se zangava frequentemente porque não de infraestruturas num depósito da cap- gostava que o vissem de calções e recebia tação de águas para a cidade e o caminho as visitas vestido de paletó branco, um acentuava-se a partir dali com rebordos par de calças de caqui e botas de cabedal irregulares, sujeito a trilhos menos es- de caneleiras entrelaçadas com atacadores cavados ou mais acentuados mediante as que se cruzavam simetricamente como um linhas de água das chuvas que o recorta- par de bailarinos numa pista de dança. vam amiúde. O guia afastou-se para falar com o [3] A coberto da floresta cerrada, onde homem que arrancava os pés de agrião. Perguntei-lhe se o conhecia. Disse-me que massem - falou muito mais sobre o filho do era o filho do dono da propriedade. Per- que dele próprio. Todas as vezes que usou cebeu a minha admiração. a palavra “filho” indicava o homem que vi “Filho adoptivo”, acrescentou. a apanhar os agriões na berma da picada. Qual a diferença? Era filho e nada “Anda sempre com o chapéu de palha na ca- mais. Aí o guia sorriu. Retardámos o pas- beça ou entre as mãos”, acrescentou, mas so. Havia que dar tempo ao filho para che- não disse porquê. gar à quinta antes de nós e avisar o pai. “Somos pai e filho, porque é assim “Vai ver a maior acácia deste mundo”, que o destino nos quer. Eu branco e tu afirmou. A verdade é que fomos recebidos negro. Eu teu senhor e amo, teu pai e teu com imensa cordialidade e o velho branco, avô. Tu meu filho, meu contratado, meu de olhos azuis, fez questão que pernoi- neto e moço de recados, percebeste?” tássemos na fazenda. “Eu e tu somos uma família”, o ve- “Tenho dois quartos vazios”, disse- lho repetiria amiudadamente ao longo do -nos mais tarde. jantar. “Uma família, percebeste?” Por- Na propriedade havia árvores de fru- que não havia mais família nenhuma para ta-pão e lá estava a acácia gigante na ele e não pensava sequer em regressar à ravina, em frente da casa, e os pinhei- sua terra natal. Se o fizesse, seria como ros de São Tomé mais um bananal rente aos Ulisses no regresso a Ítaca antes de Pe- relvados que a circundam e uma plantação nélope o reconhecer. Ou nem sequer isso. de matabala, à mistura com mandioca e “Uma família com pai, mãe e filho, batata-doce. As orquídeas e as rosas de percebeste?” porcelana dominavam o arranjo do jardim Na única estante do salão, havia meia atapetado com uma relva robusta e bri- dúzia de autores clássicos. O meu olhar lhante. Um rebanho de cabritos recebeu- fixou-se naquelas obras literárias e ele, -nos no caminho de acesso. com um sorriso largo, disse-me: “Aqui não O velho branco alojou-nos então nos há internet, nem telefone fixo, nem rede dois quartos disponíveis no piso superior para telemóveis. Quem quiser mandar men- e, antes do jantar, serviu-nos sumo de sagem ou recados, faça o favor de gritar”. limão e vinho de palma e provámos gomos Depois, gerou-se um silêncio breve e de carambolas. Depois, mandou assar uma o velho branco, apoiando-se no aparador galinha no forno acompanhada de fatias encostado à parede de fundo verde, prepa- cozidas e palitos fritos de fruta-pão. rou-se com solenidade para uma declaração Antes do cair da noite ainda teve tempo circunstancial. de nos mostrar a pequena horta que ladeia “Vou dizer-lhe o seguinte: detalhei o alpendre e onde se cultivam abóboras, a minha morte. Morrerei em breve. E o meu rábanos, couves, cebola, tomate, pimentos filho só terá de seguir à risca os pro- e batata. Dois limoeiros davam sombra à cedimentos que escrevi num caderno que hortinha. A norte, espalhavam-se os ca- deverá ser aberto no instante da minha caueiros, encosta abaixo, à mistura com partida. Trata-se de uma lista de tarefas outras espécies. que inclui a obrigação de me vestir uma Naquela noite, ao serão, o velho bran- camisa branca com o terno creme, completo, [4] co - era assim que ele gostava que o cha- de linho, que se encontra no guarda-fato do meu quarto, mais a gravata branca, os vai ser de nós sem casa e sem vida”. sapatos castanhos e malhados de branco de O homem aproximou-se e compôs os dois que gosto muito, meias brancas e, em vez castiçais que ladeavam a cabeceira do ataú- do rosário, deverei portar entre as mãos, de. A seguir, caminhou na minha direcção. o panamá creme que me servirá para sau- “Muito obrigado, senhor, por ter dar, apoiado numa vénia, o barqueiro de vindo”. Caronte e as almas do outro mundo”. “Não precisa de agradecer”. “Vou casar-me com a morte”, disse “Pode vê-lo”, anuiu. ainda. Só não tenho a certeza se conse- O rosto aparentava serenidade. Soube guirei a anuência do cabo corneteiro do da morte do velho branco por um mensagei- quartel na colina fronteira à baía para ro que correu ao hotel a comunicar-mo. A duas berlaitadas no instante em que o meu mulher haveria de o velar durante toda a corpo baixar à terra. Deixarei isso ao noite, mas, reparei, quando ela saiu da critério do meu “filho” e haverei de o capela, que as faces haviam perdido bri- testar apartir da minha imaterialidade, lho e o seu olhar deixara de ter aquela se ele será ou não capaz de se desenven- forma amendoada e viva. E repetia até à cilhar de uma tarefa tão simples”. exaustão “o que vai ser de mim, o que vai Apercebi-me que ele tinha sobre os ser de nós sem casa e sem vida”. mistérios da vida no além, a firme con- Imaginei a casa rosada mergulhada num vicção de que os mortos retornavam pela silêncio enxuto e cinzento. A cor verde hora mais profunda da noite para repeti- das paredes no piso térreo não se asseme- rem o caminho de partida até que tivessem lharia à interrupção dos ruídos que es- os seus “encargos” expiados. tancam por um instante no coração da noi- Dois meses depois, pelas nove da ma- te quando alguém parte do mundo dos vivos nhã de um dia radiante, sentei-me na amu- para o dos mortos e o choro das mulheres rada que barra o mar em frente da capela se desata como a torrente dum rio agita- da Nossa Senhora do Bom Despacho e tes- do pela precipitação e pelo vento. Terá temunhei a chegada do homem que andava sido de certeza um silêncio diferente. sempre com o seu chapéu de palha na ca- Um zunido de vozes oriundas de uma longa beça, isto é, o seu filho. Trazia vestida jornada a farejarem a guerra do mato, a uma camisa branca colada ao corpo como se guerra com que o homem, que andava sempre tivesse acabado de emergir das águas na com um chapéu de palha na cabeça ou en- praia. Prendendo-se-lhe nas mãos um mo- tre mãos, o “filho”, cismava, pensei. E lho de chaves, rodou a fechadura da porta recordei as coisas que o velho me dissera principal do pequeno templo deixando que na noite em que pernoitei na propriedade. toda a luz do sol penetrasse de rompante Que o filho, desde que lhe narrou, pela contra o esquife. primeira vez, as estórias da guerra do A silhueta da mulher aquietada na ca- mato, guerras antigas de muitos séculos, deira de assento raso, também se encheu nunca mais retirou as palavras da boca de luz. Ela estava num pranto invariável e usava-as para quase tudo o que fosse e persistente semelhante ao das carpidei- preocupação difícil de resolver. ras encartadas e entremeada de palavras “Ele morreu deitado no colchão de es- [5] gaguejantes, “o que vai ser de mim, o que puma e um dia antes da data prevista”, disse-me o homem e o seu chapéu de palha. tes de a abandonar e velaria o corpo no Mas, por ordem de não sei quem, o dia seguinte. A mulher, de pano na cabeça, recheio da casa havia sido previamente como as baianas de Yemanjá, acompanhou o retirado e ninguém deveria lá permanecer ataúde, ao lado do condutor que se esfor- depois dos actos fúnebres e das chuvas çou por manter lento o passo da máquina terminadas. Só com a abertura do testa- prestes a morrer de cansaço, como o dono. mento no cartório do notário se estabe- “Não morrerei de nenhuma doença, ape- leceriam os termos de entrega das chaves nas de cansaço”, recordo-me de ele mo ter da propriedade aos futuros herdeiros. E dito ao serão, naquela noite, como um onde estavam? Ele seria verdadeiramente presságio. um deles? Aparentemente, apenas da alma. Só no momento em que se me acercou, em O espírito do velho pertencia-lhe por di- frente da capela, reparei que um sentimen- reito próprio, de usucapião e o que se to de orfandade invadira o filho, porque avizinhava no horizonte era aquilo para o seu dono e senhor tinha sido para ele o que se preparara desde a meninice: a guer- pai que nunca teve - e não se recorda de ra do mato. Não seria legalmente possível ter tido mais nenhum senão aquele - que que uma pessoa tivesse, a partir daque- lhe transmitiu por saber, por memória e le momento, acesso ao interior da casa, tradição as estórias sobre a origem dos à cozinha, ao salão, aos banheiros, aos seus antepassados, que provinham dum lu- quartos, ao varandim que percorria o piso gar tão sereno e verdejante como os jar- superior e desenhava um rectângulo rendi- dins do Éden, chamado Rios de Quelimane. lhado, de cor branca tal como as portadas E isso era no fim do mundo onde nunca ha- e as janelas por onde penetrava a luz do veria de chegar. dia e através das quais provinha, durante “Sabe o que é a guerra do mato, se- a noite, a chama do petromax tremelican- nhor?”, perguntou-me ali mesmo, diante do do, nervosa e frágil senão pelos poderes caixão. “O meu pai contou-me tudo o que chancelados numa folha de papel. Voltaria sabia sobre a guerra do mato. Está para então à condição de pária, liberto mas não rebentar. Vão querer a quinta”. livre. Guerra do mato. Via-se bem que gosta- A mulher, pelo contrário, acalentaria va do som daquelas três palavras ligadas alguma esperança apesar do vento a contra- como o cordão umbilical de um ser a outro. riar. O vento e a chuva. Depois da inten- Cheiravam-lhe a batidela de metais, espa- sa chuvada na tarde do passamento e que dachins, pólvora, corpos suados pela luta, interrompeu subitamente a gravana, tinha prenhes de feitiços e exorcismos oriundos jorrado do chão e das encostas invisíveis da infância. E para entender tudo isso, cobertas pela densa vegetação, uma penum- as estórias contadas pelo velho, criara bra leitosa envolvendo árvores e ravinas. uma tábua de sonhos onde todas as coisas E o canto dos pássaros suspendeu-se para encaixavam na perfeição. dar lugar à chiadeira da charrete treme- Percebi ainda que ele, ao ver o ve- licando no caminho sobre a pendente do lho branco estendido no centro da habi- terreno escorregadio e traiçoeiro. tação, isento do hálito dos coqueiros e Ele, o homem, o “filho” ficaria para da frescura da cascata, sentiu também uma [6] trás. Deveria verificar a propriedade an- espécie de remorso bíblico por não o ter acompanhado e escutado mais vezes. Ele, mesmas duas velas em Neves ou Guadalupe. o velho, que outrora fora tão ágil, des- Não lhe faltaram palavrões para rogar, cendo e subindo as ladeiras de Monte Café não fosse a proximidade do templo tê-lo até à cidade, envolvendo de doçura e con- inibido, transformando-os em palavras re- versa fiada as lavadeiras de rabo alçado lacionadas com resignação e paciência e, que cruzavam a estrada numa ânsia de se- ainda por cima, silêncio. Dos vivos e dos dução, narrava-lhe aos pedaços, como um mortos. Afixou as velas nos castiçais va- pano feito de retalhos, as estórias de um zios e pôs-se a observar a simetria das tempo jamais por ele vivido, entrelaçadas quatro chamas tremelicando, tímidas sob a de rios e nomes e de seres que nunca en- forte luminosidade da manhã. xergara na ilha. Nelas residiria a razão “Diabos o levem”, disse. da distância do seu olhar desconfiado e A frase terá despoletado os aconteci- resistente por nunca ter tido a certeza mentos que se seguiram. Pois no instante de nada. em que pronunciou aquela frase, um vento Voltei a sentar-me na amurada deixan- arrepiante levantou-se da banda do mar e do que o meu olhar se perdesse no hori- uma tromba de ar penetrou no centro da zonte marinho da baía. Ao fundo, velado capela fazendo rodar o caixão uns bons pela névoa, o ilhéu das Cabras parecia noventa graus. A mulher não teve dúvidas afastar-se definitivamente da ilha mãe. em declarar que houve por ali braço forte E o homem que andava sempre com o chapéu dos espíritos. E ele, o homem que usava de palha na cabeça seguiu na direcção da sempre um chapéu de palha na cabeça ou quadrícula miniaturizada do casario, no entre as mãos, o filho, afastou-se como centro da cidade. se o velório não lhe dissesse respeito e Soube mais tarde que entrou na mer- o falecido fosse um estranho. cearia onde outrora um colono português Correu até à mercearia de Abubak’r mercava os produtos chegados no barco da para exigir o retorno de, pelo menos, meta- carreira e a mulher, eivada da compaixão de das dobras que havia pago, quando viu a cristã pelas almas do outro mundo, pas- multidão de populares à entrada da loja e a sava o ano inteiro a preparar-se para a ambulância dos bombeiros ali estacionada. procissão da Senhora de Belém que partia, Não se surpreendeu. Aquilo para ele todos os anos em Setembro, da catedral seria castigo divino. O árabe colara-se para a capela do Bom Despacho. Agora, por pela nuca à gaveta da caixa registadora detrás do mesmo balcão, o árabe Abubak’r e o rosto afocinhara sobre o montão das vendia os mesmos sonhos e ilusões, me- dobras. Dizem que o viram tombar do es- lodiado por uma voz de serpente suave e cadote em voo picado de pássaro marinho. cantante, capaz de levar às lágrimas uma O sangue misturara-se com o dinheiro. E asfixia consentida. alguma coisa fez gritar o homem e o seu “Duas velas. Venho da Igreja do Bom chapéu de palha. Despacho”. “Matei-o”. E o árabe entregou-lhe as velas e o Os miúdos riram. O povo riu. Ninguém homem as dobras. Já tinha alcançado a mar- o levou a sério. O homem que usava sempre ginal quando se apercebeu que lhe pagara um chapéu de palha na cabeça ou entre as [7] duas vezes o preço que teria pago pelas mãos, entregou-se à polícia, mas não lhe fizeram caso. “O pai morreu e ele perdeu negras, engrossara o caudal e as pessoas o juízo”. sorriam e prometiam o que antes nunca ti- “Diabos me levem”, gritou. E nem os nham prometido. A cidade inundara-se de diabos o levaram. alegria e havia festa nas ruas. E o ho- Saiu dali vergado pelas vozes dos ga- mem que usava sempre um chapéu de palha rotos que lhe repetiam à ilharga, “dia- na cabeça ou entre as mãos, vencido pelo bos me levem, diabos me levem” e riam-se, cansaço, consentiu que o seu corpo se aco- riam-se tanto que o atordoaram. modasse no terreiro da catedral caindo num Uma súbita comoção o tomou, retirou- sono profundo. Mais tarde, quando o encon- -lhe o tino e o sentido das coisas. Ao trei e lhe disse “andam à tua procura”, voltar a si estava de borco sobre a mesa ele respondeu: de um bar, entre garrafas de cerveja va- “Vou entregar-me”. zias e soletrava frases ininteligíveis. Mas não era por isso. Ele nem se aper- Enfiaram-no à força num carro que o largou cebeu dos pés estacados e plantados à sua no caminho para a cachoeira. frente sem o mínimo receio ou medo pela Assustado com a presença de um pás- noite escorrida no centro da floresta. saro perdido e o restolhar da folhagem, Era um homem vestido com um fato creme, de ele que nunca teve medo de nada, contaria, solenidade e curvou-se ligeiramente, numa muito tempo depois, ter escutado um zum- saudação reverencial. bido intenso e incómodo que o impediu de “Parabéns, a casa é tua”. identificar o lugar onde se encontrava. Depois, o homem caminhou na direcção Bem gritou por auxílio no centro de uma da baía e desapareceu. noite sem lua nem estrelas. Ninguém apare- O filho, compondo-se, jurou que des- ceu em seu socorro. E a voz dos espíritos ta vez subiria à colina e pediria ao cabo ocupou-lhe os medos. O do velho branco e corneteiro que o ajudasse a cumprir o úl- o do árabe. Ambos se tinham unido para o timo pedido do falecido. E o cabo, olhan- afligir. Jamais tivera um pavor tão gran- do-o e enfrentando os quatro camaradas que de. Mas só poderiam ter sido eles a salvá- estavam com ele na instrução dos toques, -lo da mordidela da cobra preta, porque a achou melhor e, a título excepcional, que viu esfacelada como se a tivessem quebrado as berlaitadas fossem tocadas, leve leve, em pedaços e arrancado a pele. em frente do cemitério ou junto da campa Ao voltar a si, voltou também à estra- rasa que acamou o corpo do velho branco. da principal, vindo a refugiar-se junto Ouviu-se então um longo e finíssimo da porta da Senhora do Bom Despacho. Aí som e, por três vezes, o cabo tocou a si- se acocorou pela madrugada e aguardou que lêncio porque foi a única forma de apelar o espírito do pai o socorresse. O velho ao mundo para respeitarem, por alguns mo- branco não tinha sido o seu verdadeiro mentos, o recolhimento. pai? Tarde percebeu que tudo havia termi- E a voz do homem que usava sempre um nado e o corpo já não estava ali para o chapéu de palha na cabeça ou entre as mãos velar. Nem a mulher. acabou desfazendo-se em pranto cerrado. Nesse dia, uma agitação invulgar en- Nesse instante, ele teve a certeza de que volveu a cidade e até o Água Grande que havia perdido um ente querido. [8] a mim me parecera um mero canal de águas “Pai, afinal somos uma família”.