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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Pois bem. O leitor tem diante de si uma homenagem de fã a Robert Ervin


Howard. Escrevi um breve conto do personagem Conan, tentando mimetizar
aspectos da linguagem howardiana, ainda que em português.

O conto é breve e se apega muito mais nas questões geopolíticas da Era


Hiboriana e do Reino de Shem do que nos aspectos da Espada e Feitiçaria,
com seu horror lovecraftiano, o que pode ser considerado um defeito
antecipado aos leitores, mas que foi impossível de ser solucionado após o
término da escrita.

De qualquer forma, como existem narrativas howardianas com esse viés


mais geopolítico, decidi manter o teor do conto, ainda que nas narrativas
howardianas de Conan, o fantástico esteja presente (afinal, o personagem
era publicado na pulp Weird Tales).

Decidi que grande parte do conto se passaria em uma cidade importante de


Shem e usei a nomenclatura do nome da cidade, Askalon, descrita brevemente
por Howard em “A Rainha da Costa Negra”. Muitos autores depois chamaram
esta cidade de Asgalun, mas preferi usar no conto a forma como foi chamada
pelo criador do bárbaro cimério e da Era Hiboriana.

Muitos nomes citados no conto eu retirei de termos reais, tanto de rios,


como de cidades, vilas e diversos lugares da antiga Mesopotâmia e/ou da
Palestina, em uma breve mimetização superficial do que fazia Howard ao
usar de nomes históricos em seus contos (ainda que ele fizesse pesquisas
minuciosas e profundas sobre tais nomes, algo que procurei não realizar aqui).

Não tenho nenhuma pretensão, com esse conto, de me colocar como um


coautor de Conan, tal como fizeram alguns escritores do porte de Lyon
Sprague De Camp. Trata-se apenas de uma homenagem despretensiosa e
entenderei os fãs e adoradores do personagem em geral, caso não gostem
das linhas que se seguem ou mesmo caso não encontrem qualquer traço de
Howard no texto.

Como fã e estudioso do corpus narrativo howardiano, considero que não


existem escritores que consigam mimetizar a contento a forma de escrita do
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texano no que concerne a seus personagens incríveis e rústicos, o mesmo


valendo para sua forma de concepção do subgênero literário da Espada e
Feitiçaria e até mesmo de Ficção Histórica (nesse último caso, talvez Bernard
Cornwell seja o mais próximo). O exercício aqui é apenas um movimento
apologético e, claro, uma satisfação pessoal.

Marco Antonio Correa Collares


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Askalon da Pedra Antiga e da Pedra Rara

Filha da fronteira Oeste

Próxima ao Mar Profundo

Onde outrora foi uma grandiosa princesa

É hoje herdeira do submundo

Cântico de Rinaldo sobre Askalon de Shem


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O PRISIONEIRO AUDAZ

O jovem Abdal esperou no pórtico de Askalon pela volta da estranha comitiva.


Desobedecendo seus progenitores, ele escapou logo após o desjejum matinal,
ao primeiro raiar da aurora, se esgueirando para longe dos olhos do pai e se
arrastando pelos becos sujos semi-abandonados que nos tempos de outrora
receberam renomados mercadores.

Abdal e Askalon tinham pelo menos uma coisa em comum. Ambos pareciam
meras sombras de algo aparentemente incoerente. O rapaz, apesar de muito
jovem, parecia um adulto de meia idade com cabelos desgrenhados e pele
ressecada ao sol por conta do extenuante trabalho na oficina do pai, vestindo
comumente uma capa surrada por cima da túnica. A cidade, apesar de suas
colunas imponentes de pedra maciça, seus altos minaretes sinuosos, castelos
rígidos e altares exuberantes de cobre, obsidiana e marfim parecia muito mais
uma ruína abandonada do que a pretensa capital do oeste do reino de Shem.

“Vale a pena a surra que irei levar do pai”, pensou Abdal. Não tinha como
mudar seu ímpeto e curiosidade. Isso porque ele tinha sido conquistado
pela visão dos membros da comitiva de mercenários, principalmente a bela
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guerreira loira vinda do norte, Alexia. Além disso, o rapaz estava curioso
com a difícil demanda do grupo.

Ele ficou sabendo, como quase todos na cidade, que o rei Samir iria pagar
uma quantia vultosa para qualquer caçador de recompensas que capturasse
um guerreiro famoso, um homem que havia liderado os nômades zuagires
em outros tempos. Abdal tinha como personalidade a latente curiosidade
de sua raça, mas os acontecimentos em torno da caça ao homem não saiam
de sua cabeça desde que vislumbrou a comitiva. Seria a oportunidade de
ver a queda do bárbaro conhecido pela alcunha de Amra.

Nas frequentadas tavernas e esquinas sinuosas da cidade, muitos homens


comentavam sobre a pretensão do rei no episódio. Fazia tempos que a realeza
de Askalon pretendia uma união com os senhores das cidades-Estado do
leste, principalmente com a poderosa Susham. A boca pequena dizia que
Samir pretendia iniciar negociações com seus irmãos nobiliarios mediante
um prêmio: o prisioneiro famoso ainda vivo, um homem deveras procurado
pelas constantes pilhagens bem-sucedidas no leste.

O certo é que Abdal esperou por todo o dia para ter notícias da caçada, em
uma espera um tanto nervosa e angustiante. Ao cair da noite, finalmente
a comitiva retornou, quase como uma procissão macabra de assassinos e
rufiões. Ao saírem à caça, eles contabilizavam em torno de vinte homens de
armas arrogantes e bem equipados com ferro e aço. No retorno, eram apenas
oito, dois dos quais bastante feridos e com ares de empáfia visualmente
combalidos.

Lá estava o líder mercenário, o nemédio Marcius a cavalo, munido de placas


de aço sobre o peito largo e um elmo imponente dourado com um penacho
vermelho por cima. Ao lado dele, o brutal kushita-aquilônio, Raxorianus,
vergando sua longa lança negra, da mesma cor da pele grossa, no entorno
de um conjunto hermético de músculos sólidos. Logo atrás se encontrava
um dos filhos mais conhecidos de Askalon, o guerreiro Harlan, com sua
barba negra azulada, cabelos longos presos na nuca e sua cimitarra famosa,
“corta cabeças”.

Do lado oposto a eles, apenas Alexia. O jovem Abdal não conseguia desviar
os olhos de sua figura desde que a garota chegou à cidade junto à comitiva.
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Ele nunca vira mulher tão formosa e selvagem ao mesmo tempo, ainda mais
em se tratando de uma criatura civilizada vinda do pequeno reino hiboriano
da Britúnia, localizado mais a nordeste do continente.

Diziam os mais velhos, aliás, que a mistura de diversas raças fazia das
britunianas as mulheres mais exóticas e lindas do continente, com curvas
voluptuosas e rostos aquilinos, olhos levemente puxados lilás ou azulados,
pele morena e cabelos loiros como novelos divinos de seda.

De um lado desta mistura exótica, a raça dos antigos pastores zhemris, do


pequeno reino de Zamora, com indivíduos de coloração mais escura e olhos
negros misteriosos e penetrantes, do outro, a hiboriana, raça hegemônica
do oeste continental, com indivíduos com cabelos cinzentos ou claros,
pele clara e altura elevada, sem falar no elemento aesir que fazia parte da
miscigenação, de bárbaros arredios do extremo norte, com pele branca como
a neve, cabelos e olhos extremamente cristalinos.

Certamente que Abdal não sabia nada das outras mulheres daquela raça
híbrida, mas tinha certeza que Alexia era exatamente assim, ainda que ela
vergasse uma couraça de malha de anéis de aço de proteção, tendo como
outras características seu ar estoico, gestos imponentes e uma bela espada
cravejada de jóias esmeraldinas no punho.

Sem dúvida nenhuma que Alexia era a figura mais exuberante entre os
guerreiros ali e o rapaz não duvidava que ela venceria quase todos em
combate, desde que de forma honrada e sem subterfúgios. Por um momento,
a beleza e a grandeza de espírito da mulher reteve o olhar do jovem, até que
ele finalmente vislumbrou Amra.

Cercado pelos mercenários estava o bárbaro, na carroça, preso a grilhões


pelos pulsos em um poste de madeira ao centro. Apesar dos ferimentos pelo
corpo, o homem estava acordado, vislumbrando a multidão em volta com
olhar selvagem de pantera, como se aquele azul cristalino dos olhos fosse
a imensidão do ermo em meio a um céu límpido de gerações de bárbaros
ensandecidos em suas vagas de ferro e fogo.

Amra, a exceção da ilharga protegida por panos, estava nu, com ferimentos
que incomodariam a maior parte dos homens civilizados. Seus músculos eram
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uma massa contraída definida e riscada que externava o quanto as melhores


estátuas de mármore de deuses eram meros reflexos de divindades. A pele
bronzeada dava uma conotação ainda mais selvagem, ilustrando cicatrizes
grossas no tronco poderoso e no rosto felino. Acima da fronte marcada e
da testa larga, uma juba negra completava a imponente figura, como a de
uma besta imemorial pronta para o bote final sobre suas presas.

Era nítido o quanto sua figura roubou o olhar de todos em Askalon. Ninguém
dizia qualquer palavra, apenas olhava-se com estupefação diante daquela
figura central semidivina, cercada pelos mortais mercenários. Ficava evidente
também que, a exceção de Alexia, os outros guerreiros se mantinham
afastados da carroça do bárbaro, como se tivessem um temor inconsciente
em suas almas.

Foi exatamente esse o sentimento de Abdal quando a comitiva passou por ele,
parado numa esquina, rosto boquiaberto como um espectador do destino de
deuses estrangeiros. Seguindo os caçadores e sua presa pelas ruas de pedra
fosca da cidade, o jovem logo se viu diante do muro da casa que servia de
abrigo para os integrantes da comitiva.

Os mercenários foram descendo de suas montarias na entrada da residência,


cercados pelos curiosos que se mantinham por perto, sem quaisquer
preocupações em esconder suas latentes curiosidades. Marcius, sem se
preocupar com a população em volta foi o primeiro a descer da montaria,
na iminência de adentrar no portão que dava para o jardim em frente a casa,
seguido por seus companheiros mercenários mais próximos, Roxarianus e
Harlan, que também desceram das montarias com seus pertences, armas e
provisões.

- Vamos rápido, seus abutres. Algum de vocês envie uma mensagem ao


rei e diga que capturamos o bárbaro - Falou o nemédio Március, líder do
grupo, de modo geral, deixando entender que algum dos presentes deveria
obedecer de pronto às suas ordens um tanto displicentes.

- Não há necessidade, meu caro. Eu irei pessoalmente avisar vossa alteza


do êxito de sua jornada - Ao lado do muro da casa, parado em pé próximo
do pórtico de entrada, uma figura esguia, com traços de hiena respondeu
subitamente, surpreendendo a todos e saindo das sombras logo depois que
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parte do grupo de mercenários adentrou o jardim. Ele era um shemita do


leste, comumente chamado de Muhalahin, o Esguio, sendo o principal
homem de confiança do rei local.

- Ah, é você conselheiro. Escondido da vista como um rato - Respondeu


Alexia, descendo também de seu alazão de forma abrupta e igualmente
adentrando no pórtico de entrada, com uma altivez incomum para uma
mulher brituniana, pelo menos de acordo com o senso comum.

- Bem, eu estava aguardando suas chegadas a mando de meu senhor. Vou


até ele imediatamente e pela manhã retorno com a remuneração prometida e
com as ordens a serem obedecidas - Respondeu Muhalahin em um cochicho,
olhos fixos na moça e um estranho sorriso malicioso nos lábios.

- Que seja - respondeu Marcius - Até lá, o homem chamado Amra estará
sob nossa autoridade.

- Pelo que vejo, ele foi uma caça insossa, visto o baixo número de
sobreviventes. - Indagou Muhalahin novamente, com ar de ironia.

- Fomos mais do que suficientes, hiena do deserto - Interpelou o kushita


Haxorianus, irritado pelo comentário sobre seus bravos companheiros mortos
em batalha.

- Isso era esperado emissário. O bárbaro é conhecido por sua valentia e


aptidão no manejo da espada. Ele eliminou doze dos nossos antes de ser
subjugado por nossas habilidades superiores - A resposta de Marcius foi
aparentemente dirigida ao shemita, mas seu olhar se fixou no homem chamado
Amra, numa auto afirmação desconcertante. O bárbaro sorriu levemente de
volta, sem desviar o olhar.

- Habilidades superiores. Sei. Eu servindo de isca e o kushita, ao lado de


uns dez arqueiros shemitas usando venenos de lótus nas flechas e lanças
para subjugar um homem já ferido. Mesmo assim, esse mesmo homem
eliminou sozinho quase todos no grupo antes de cair em torpor - Ironizou
Alexia, sorriso voltado para Marcius, sem qualquer subterfúgio.

- Que seja. Volte ao seu rei, Muhalahin e informe do sucesso da caçada.


Amanhã esperamos nossa recompensa - Essa foi a resposta de Marcius para
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o emissário, adentrando a casa rapidamente, enquanto os demais mercenários


levaram o prisioneiro do átrio central até o interior de uma tenda no pátio
de modo a abrigar sua presa.

Abdal conseguiu entrar pelo muro do lado esquerdo da casa, escondendo-


se sob alguns ramos de ervas nativas a oeste do pátio central. O bárbaro
Amra foi levado até a tal tenda próxima do abrigo dos demais mercenários
da comitiva. Lá, cercado por diversos e temerosos escravos da casa, ele foi
colocado em outro poste de madeira, com os braços para trás do corpo, presos
pelos pulsos, de modo a não ter mobilidade. O jovem shemita esperou o cair
da noite, até que os feridos da comitiva e seus companheiros se retiraram
para seus descansos.

A única luminosidade do ambiente vinha de um dos quartos principais da


moradia de alvenaria, onde se abrigava Marcius e seu principal séquito de
guerreiros. Lá, Abdal podia ouvir vozes, sendo a de Alexia aquela que mais
lhe chamava a atenção, por motivos óbvios.

- Não sei o que pretendes Marcius, mas pela manhã dividiremos os espólios
da empreitada de forma igual, como combinado - Dizia a garota, bebendo
o líquido de uma taça de vinho sobre a mesa.

Sentado em uma pequena cadeira atrás da mesa e com os pés sobre a mesma,
Marcius igualmente bebericava do vinho viscoso de uma taça prateada, sendo
ladeado pelos outros dois companheiros, o kushita, Raxorianus, escorado
a parede ao lado da porta e o shemita Harlan, próximo ao fogo da lareira,
num canto, fumando um cachimbo que emanava odor alecrim.

- Sem dúvida que a parte dos mortos não será dividida de forma igual.
Existem custos que não devem e não podem ser preteridos - Sussurrou
Marcius

- Não tenho nada a ver com isso. O combinado foi a divisão igual entre os
sobreviventes e pelo que sei, as cem coroas serão poucas para todos - Alexia
respondeu em tom impositivo, logo após sorver o resto da taça em um único
gole. Ela limpou a boca com a manga do antebraço e terminou dizendo:

- A menos que os valores combinados com o rei sejam outros e você esteja
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diminuindo as cifras para tirar algum proveito disso.

- Cuidado, mulher, não pense que o fato de eu ter lhe oferecido minha cama
e uma aliança próspera entre nós dois irá me fazer aceitar palavras insolentes
de tua parte - Respondeu Marcius, de forma arrogante, levantando-se.

- Como já disse ontem nemédio, sua cama e sua aliança não me interessam,
apenas a divisão dos espólios pela captura do bárbaro. Guarde sua raiva para
seus dois cães. Está para nascer homem ou mulher que me levem a temer
a dizer aquilo que penso - Alexia se retirou do quarto, deixando um atônito
líder mercenário indignado. O kushita e o shemita, seus dois companheiros
restantes mal continham sorrisos irônicos nos lábios e até certa admiração
pela coragem e honestidade da guerreira. Marcius, após a saída de Alexia,
tagarelou em tom ameno:

- Amanhã iremos reter parte do butim pelo bárbaro e dividir com essa
cadela apenas um quarto do montante total. Depois, meus caros, uma nova
empreitada nos aguarda.
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II

O homem conhecido como Amra tinha sede. O nome em questão fora


adotado pelo cimério Conan em épocas de pirataria pelos mares do oeste
da costa negra até Kush, sendo comum que ele ainda fosse chamado desta
forma na parte oeste do continente hiboriano, incluindo Shem. Amarrado
junto ao poste no interior de uma tenda, Conan praguejou por sua captura
e observou atentamente o local com seus sentidos lupinos.

O cimério estivera em fuga constante durante muitos dias antes da captura,


ainda que ele não conseguisse precisar com exatidão a passagem do tempo
em meio a sua fuga pelo ermo. Preso pelos pulsos a grilhões junto ao
poste no interior da cabana, Conan desistira de escapar por ora, visto que
tinha perdido certa quantidade de sangue em razão de alguns ferimentos
contraídos, além do fato de que precisava planejar seus próximos passos.
De certa forma, a escuridão na tenda e o silêncio total do lado de fora eram
reconfortantes para sua mente febril, apesar da situação.
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Suas lembranças e divagações o levaram de volta ao início da fuga, nos


arredores da cidade de Shusham, muitos dias atrás, quando tropas do exército
turaniano, aliados dos senhores shemitas locais rastrearam sua trilha logo
após ele entrar em contato com dois ex-colegas zuagires em um promontório
próximo ao Vale de Ebla.

Como era de se esperar, os turanianos o atacaram impiedosamente e ele teve


que abrir caminho pela espada, em uma fuga frenética pelo ermo dos desertos
do leste. O cimério decidiu se abrigar no oeste do reino, onde as tropas
turanianas, mal vistas pelos senhores da região, dificilmente continuariam
tal perseguição. Ledo engano.

De certa forma, seu caminho em fuga foi marcado a ferro e sangue, algo
que para o bárbaro era um modo de vida. Primeiramente ele foi cercado
nas cordilheiras arenosas e fragmentadas entre Zamboula e Ebla, quando
o cimério abateu quatro arqueiros que interrompiam seu caminho pelo
Estreito de Hormuz.

Meia tarde depois do primeiro embate, uma nova batalha sangrenta ocorreu
entre Conan e alguns soldados das tropas turanianas, quando parte dos
perseguidores o cercaram entre as margens do rio Prat-Firat, obrigando o
cimério a lutar ferozmente contra sete adversários munidos de cimitarras e
falciones. Na luta encarniçada que se seguiu, o cimério obteve dois ferimentos
superficiais, um no antebraço e outro no tronco, matando seus adversários
a golpes encolerizados e escapando por pouco a cavalo antes da chegada
de reforços.

Seguindo seu caminho pelo ermo, o bárbaro ficou uma noite abrigado em
uma caverna do Planalto Arilano, tratando dos ferimentos pelo corpo. Logo
cedo, antes do primeiro raiar da aurora seguinte, ele meio que virou a partida,
pelo menos por um breve instante, nos paredões arenosos de Uruk-Sah. Foi
a vez dele emboscar seus perseguidores, usando de sua agilidade felina
para saltar sobre seus oponentes logo abaixo, decepando dois turanianos
sem hesitar. Mais tropas vinham em seu encalço e Conan decidiu fugir
novamente, sendo alvejado por uma flecha no ombro esquerdo.

A perseguição durou ininterruptamente por mais um dia e Conan conseguiu


enganar uma parte de seus perseguidores na pequena vila de Jendet-Nasr, logo
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escapando a galope pelas planícies da região de Pelisthia. Conan aproveitou


mais um breve momento de sossego no ermo, talvez por uma tarde inteira,
para tratar do ferimento da flecha, conseguindo enganar novamente seus
captores nos arredores do Oásis das Feras, comumente usado por nômades
da região.

Quando seus implacáveis perseguidores turanianos encontraram novamente


seu rastro, Conan saiu a galope em direção ao oeste, em uma perseguição que
durou das primeiras horas do dia seguinte até o meio da tarde. Infelizmente,
outra parte da tropa turaniana ficou sabendo de sua possível direção e se
adiantou até a região do planalto que circunda o Prat-Firat, localizado um
dia após a fronteira entre leste e oeste de Shem.

Na referida região, Conan foi emboscado por mais quinze inimigos ainda
antes do cair da noite, abrindo caminho a ferros e matando mais da metade
deles, recebendo mais ferimentos pelo corpo, um no lado esquerdo do tronco,
outros dois nos antebraços, além de um corte transversal nas costas, não tão
profundo como pensara a primeira vista. Isso, claro, sem deixar de rachar
o crânio da maioria de seus perseguidores.

Após essa nova empreitada sangrenta, seguiu-se mais uma fuga desesperada
pelos ermos, algo que durou a noite toda seguinte e varando a madrugada
enevoada do outono do oeste continental, até que o cimério conseguiu
novamente despistar seus perseguidores.

Já no oeste, ao passar pela cidade de Askalon, Conan conseguiu uma boa


vantagem e ali descansou e tratou de seus ferimentos por todo o dia seguinte,
aproveitando as instalações de uma taverna local chamada, Fagulhas de
Fogo. Ali, ele ficou sabendo de um prêmio por sua cabeça entre os senhores
da cidade. O mais estranho de tudo é que ele tinha observado de longe o
líder dos mercenários ali acampados, seus caçadores no final, ao lado das
mesmas tropas turanianas que haviam lhe perseguido desde a cidade shemita
de Shusham.

Após se retirar do núcleo urbano a pleno galope, ainda antes do cair da noite,
Conan parou a beira de um dos muitos afluentes do Khorotas, que deságua
no Mar do Oeste, próximo a Península de Zing. Não demorou muito para
o bárbaro perceber que seus perseguidores turanianos se retiraram para o
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leste e então ele decidiu acampar para continuar o tratamento improvisado


de seus ferimentos ainda abertos pelo titânico corpo de bronze.

Instantes depois, ele foi surpreendido enquanto descansava da longa


perseguição a que fora submetido. Uma bela mulher loira de couraça de
anéis de placas tinha aparecido diante dele a cavalo, pedindo abrigo e um
lugar para pernoitar. Seu nome era Alexia e Conan estranhou o fato de ser
uma guerreira de origem brituniana, algo que ainda não tinha vislumbrado
em suas jornadas pelos reinos hiborianos civilizados.

Mesmo ferido, seu instinto o avisou das incoerências dos argumentos sem
sentido da garota, mas quando decidiu questioná-la sobre os mesmos, ele
se viu cercado pelos companheiros mercenários dela, fossem eles arqueiros
e lanceiros. Foi um dos raros momentos em que Conan praguejou consigo
mesmo e contra Crom, divindade que ele jamais pedira auxílio, exatamente
pela sabedoria entre os cimérios de que isso seria completamente estúpido
e inútil.

Conan abriu passagem a ferros novamente e sua espada cortou nervos e


músculos com uma rapidez incomum para um homem com tantos ferimentos
ainda abertos. O descampado onde foi decidida sua sorte se viu tomado por
corpos mutilados e por valentes guerreiros munidos de redes e espadas de
aço, alguns a cavalo rodeando uma fera aparentemente enjaulada.

Cercado e sangrando cada vez mais devido ao conjunto de ferimentos


acumulados no corpo, quase em estado de cólera bestial a estraçalhar
quem se aproximava, Conan logo veio a tombar, não por qualquer ataque
de espadas e sabres inimigos, mas pelo veneno de lótus contido em suas
pontas de flechas e lanças.

- Malditos civilizados e seus subterfúgios - Praguejou sozinho na tenda,


enquanto ansiava pela jarra com água a frente, sem conseguir sequer segurá-
la para sorver o precioso líquido. Por um breve instante, o cimério ouviu
um ruído na escuridão e seus sentidos bárbaros o alertaram para alguma
presença escondida. Como não tinha nada a perder, Conan decidiu inquirir
quem ali estivesse.

- Quem quer que seja, podes sair de trás destes entulhos. Sei que estás aí.
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O jovem Abdal saiu de um canto de trás de algumas caixas com provisões, um


tanto temeroso diante daquela fera poderosa, ainda que ferida e aprisionada.
Era como se o magnetismo de Conan o forçasse a parlamentar com o
guerreiro. De certa forma, o rapaz tinha sido atraído pela figura de alguém
que ele apenas imaginava existir em contos sobre heróis e semi-deuses.

- Peço perdão, Amra. Eu achei que passaria despercebido - Falou o jovem,


depois de hesitar por alguns instantes. Conan sempre se surpreendia com
a força do nome Amra e normalmente ele não fez questão de dizer seu
verdadeiro nome para aqueles que lhe chamavam daquela forma. Ele gostava
de tal designação.

- Isso é difícil para um bárbaro. Normalmente percebemos o que acontece


em nossa volta. Bom, pelo menos eu achava que funcionava assim - Ironizou
o cimério, visto que tinha sido capturado em um raro momento de confusão
em sua percepção de ave de rapina.

- Sou Abdal - Respondeu o jovem diante do olhar inquiridor de Conan.

- Sei, um shemita. És escravo desses cães mercenários?

- Não, sou apenas um curioso invasor da casa. Vim aqui para ver a garota
e também o que fariam com o prisioneiro.

- Ah, a brituniana. Bem, certamente que é um bom motivo para entrar de


forma sorrateira em uma morada cheia de homens de arcos e espadas.
Apesar de ser tolice fazer isso sem quaisquer armas em mãos - As palavras
de Conan mal contiveram a ironia em seu olhar e expressão.

- Verdade - Respondeu o constrangido rapaz - Mesmo assim entrei e me


esgueirei pela casa. Até pude ouvir a conversa dos seus captores no quarto
principal. Fiquei debaixo da janela do líder até que Alexia se retirou, irritada
pela discussão com os outros mercenários.

- Discussão? Sobre o que? - Perguntou o cimério.

- Pelo que entendi, ela desconfia do líder mercenário e do valor do butim


por sua captura - Respondeu o jovem, como se conhecesse um segredo
imemorial de reis ou magos poderosos.
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- Ora, isso pode ser proveitoso para a minha situação. Se me fizeres algo eu
posso te pagar quando me livrar dessa corja que me capturou. O que achas?

- Não sei. Sou péssimo com uma espada.

- Decida logo. Caso não queiras, pelo menos me alcance aquele jarro de água
em frente - Conan mal escondeu a impaciência com a indecisão de Abdal.
Em silêncio, o jovem refletiu e chegou a conclusão de que esperava a fuga
do bárbaro, apesar de não entender os motivos. Logo, ele se viu levando a
jarra até o cimério, ajudando-o a beber do pouco que continha ali. Por fim,
veio a pergunta.

- O que posso fazer, afinal?

- Bom, poderias me conseguir as chaves destes grilhões, mas como morrerias


se tentasse, melhor encontrar sua musa guerreira e trazê-la até aqui para
falar comigo.

- Ela vai querer vir? Perguntou o jovem, com ar incrédulo diante da certeza
aparente do cimério.

- Ora, diga que é do interesse dela. Que talvez ela tenha a ganhar mais comigo
do que com homens pouco confiáveis. Vamos ver como ela responde a isso.

Como uma sombra esguia, Abdal se retirou da tenda de Conan sem ser visto
no meio das sombras. Temeroso, o jovem shemita se dirigiu novamente até
a casa central da propriedade, torcendo para encontrar Alexia em algum dos
quartos do primeiro andar. Definitivamente, pensou consigo mesmo, ele
levaria uma bela surra do pai quando, e se, chegasse em casa.
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III

As noites de Askalon são conhecidas pelo silêncio e pela escuridão que


encobre os prédios e as ruas bruxuleantes da cidade, muito em razão da
neblina constante que desce pelos vales no entorno ao rio Prat-Virat, um
dos muitos afluentes do Khorothas, que deságua no Mar do Oeste. Na casa
de alvenaria dos captores do homem conhecido como Amra, uma figura
feminina subiu soturnamente as escadas até o segundo andar, onde se
encontrava o quarto do nemédio Marcius.

Alexia, claro, tinha tirado a barulhenta armadura de placas, vestindo agora


uma túnica leve que mal encobria as curvas do corpo escultural. As coxas
grossas e o quadril largo eram encimados por uma cintura estreita, formando
com os seios médios uma forma quase perfeita do ser feminino.

Certamente que Alexia era cobiçada por muitos homens, incluindo príncipes,
nobres e magistrados, mas ela tinha escolhido vencer na vida pela espada e
não por qualquer casamento arranjado, tão comuns entre as jovens de sua
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cultura. Ela jurou, ainda muito cedo, que jamais seria uma mera consorte
ou esposa de algum nobre rechonchudo e inútil de um palacete de fronteira.

Se fosse para seguir os costumes britunianos a risca, provavelmente ela


acabaria aprisionada em uma sala com tapeçarias rústicas a tecer para o
marido e para sua prole por toda uma vida, algo usual entre as mulheres
daquela raça, muitas vezes tidas como perfeitas para se casar ou flertar, como
se fossem meros objetos passivos da lascívia masculina. O que, aliás, levava
à perseguições constantes da parte dos mercadores de escravos nemédios
e zamorianos, deixando um vazio extremo nas famílias britunianas que
perdiam suas filhas para o comércio de cativos.

Ao entrar no quarto do líder mercenário, Aléxia ouviu sua respiração forte em


meio ao torpor do sono e ficou em completo silêncio na escuridão, tateando o
lugar para encontrar as pistas que viera buscar. Na escrivaninha que Marcius
comumente utilizava para escrever bilhetes e cartas com informações ou
avisos, ela encontrou muitos papéis revirados e bagunçados. Sem ao menos
ver exatamente do que se tratavam, em razão da escuridão total ali presente,
ela levou um punhado daqueles papéis ao corredor.

Entrando em outro cômodo qualquer, depois de averiguar que estava


vazio, Alexia fechou a porta de madeira a acendeu uma tocha, sentando
em um pequeno divã de madeira com panos rústicos por cima, colocados
ali para o descanso dos convivas. Ela procurou e leu várias anotações do
líder mercenário e fez tal percurso ao quarto e à escrivaninha de Marcius
mais quatro vezes, até que por fim, encontrou as provas que viera buscar.
Realmente, o dia seguinte seria muito perigoso e a garota ficou eufórica
diante de tal possibilidade.
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IV

A comitiva contava agora com mais pessoas do que no dia anterior, quando
adentrou na cidade com seu prisioneiro imponente. Além dos mercenários
sobreviventes, estavam o Rei Samir, o emissário Mahalahin, além de oito
integrantes da tropa de elite do séquito real.

Conan vestia uma túnica e um manto de proteção para o deserto e estava


agora montado a cavalo, ainda que com os pulsos bem amarrados atrás do
torso. Pelo menos, isso era o que afirmara Alexia, que havia se colocado
como responsável por levar o bárbaro até sua montaria.

Além dos viajantes, havia uma carroça com provisões, mais barracas e tendas
para o conforto da comitiva. O responsável por levar o rei de Askalon até o
leste, de modo a que fosse arquitetado o acordo com os senhores de Shusham,
era o capitão Akbar, conhecido por suas táticas precisas, discernimento
singular, habilidade com a espada e retidão nas palavras.

Podia se dizer que Samir, Akbar ou mesmo Mahalahin representavam seus


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respectivos estereótipos, funções sociais e posições. O monarca era um jovem


pomposo com uma barba rala enegrecida no queixo redondo, estando um
pouco acima do peso e ricamente tapado com tecidos finos de seda azulada,
encimados por um manto branco com detalhes prateados e púrpuras.

O capitão da guarda, por sua vez, era um homem alto, com feições rústicas,
olhos negros honestos, nariz adunco e barba encaracolada negro-azulada,
vestindo mantos simples amarronzados por cima de uma armadura de couro
batido simples com o brasão da monarquia local, uma lua nova sob nuvens
sombreadas.

Já Mahalahin, comumente chamado de “O Esguio” era um típico conselheiro


de corte, com traços finos, túnicas alaranjadas macias e esvoaçantes, jóias
espalhafatosas e um chapéu de feltro tipicamente shemita, cortado em forma
de cone e acoplado na cabeça raspada. Uma ponta de barba pontiaguda fina
pendia do queixo proeminente, tendo ele um sorriso de pura lascívia e ironia
que jamais esconderia qualquer ensejo de maledicência.

Era comentado na corte, aliás, o quanto ele era iniciado nas artes da feitiçaria,
com magias de mimetismo e de controle ou confusão da mente, além da
enorme influência política que exercia junto ao rei Samir, talvez perdendo
apenas para Akbar nesse quesito. Certa vez, um dos primos do rei ousou
questionar a presença do conselheiro junto ao monarca e o fato de que seria
ele quem realmente dirigia os negócios de Estado da cidade.

Repentinamente, na mesma noite em que tais acusações contra o Esguio


foram levantadas, o acusador começou a ter espasmos alucinatórios, falando
em fim de todas as coisas e de um novo cataclisma destruidor de proporções
ainda maiores do que os anteriores. Nunca mais se viu ou ouviu falar do
sujeito na cidade, o que foi motivo de grandes suspeitas veiculadas de boca
em boca, chegando comumente aos ouvidos do capitão Akbar.

Marcius tinha dividido os espólios recebidos pela captura do bárbaro logo


na primeira hora da manhã, ainda que a quantia fosse menor do que a
prometida por ele, o que confirmou para Alexia aquilo que Conan tinha lhe
dito na madrugada, logo após o jovem Abdal ter levado a moça a presença
do cimério. O jovem shemita, aliás, estava escondido na carroça, debaixo
de mantos que serviam de proteção para as provisões da comitiva.
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Quando conversou com o cimério, conhecido como Arma na tenda, Alexia


se impressionou ainda mais com sua figura, algo que já havia acontecido
no momento em que se conheceram a beira do afluente do Khorothas.
Não era apenas a força primal bárbara de Amra que deslumbrava a
guerreira brituniana, nem mesmo sua resistência sobrenatural diante de
seus ferimentos pelo torso poderosos e pelos braços altivos.

O que realmente a impressionava era a forma reta e honesta de cada


palavra proferida pelo cimério. Em outros termos, Alexia via no bárbaro
mais honestidade e retidão de caráter do que na maioria dos homens
civilizados que conhecera ao longo de sua jornada, muitos deles sedentos
por poder e ávidos por prazeres imediatos, abusivos e ilimitados.

Conan olhava para Alexia como qualquer homem o fazia, com desejo,
mas ao mesmo tempo ele a olhava nos olhos, sem quaisquer subterfúgios
nas palavras proferidas, vendo nela a valentia e a habilidade guerreira que
tanto a garota tinha lutado para serem reconhecidas. Ele a respeitava como
uma igual na arte da esgrima e isso era, para Alexia, a certeza absoluta
de que valia a pena ajudar tal homem contra seus atuais companheiros.

E isso, principalmente após ela encontrar documentos e cartas com ordens


dos senhores do leste para o nemédio Marcius. Evidências a desvelar que
ele deveria se aliar às forças estrangeiras turanianas que perambulavam
pelo reino shemita, configurando uma traição ao senhor de Askalon,
o empregador da comitiva de mercenários da qual Aléxia fazia parte.
Além, disso claro, havia o fato de Marcius não dividir o butim de forma
equânime entre os sobreviventes do grupo, tal como prometido por ele.

A comitiva se retirou da cidade sob os olhares desconfiados dos súditos


do rei Samir, muitos dos quais igualmente impressionados e estupefatos
com a coragem de seu monarca em viajar para o leste com tão poucas
defesas. Era quase um consenso entre o povo miúdo que a tentativa do
rei de conseguir um acordo no leste era apenas uma visão inocente e
idealizada de um jovem inexperiente, algo que provavelmente jamais
vingaria.

- Ouvi falar de suas aventuras, Amra. Se metade do que me disseram for


realmente verdade, devo ressaltar que o respeito, apesar de agora seres
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nosso prisioneiro - Falou Samir, logo que seu cavalo ficou ao lado do
de Conan, igualmente ladeado por Alexia.

- Bem, de minha parte eu trocaria seu respeito por uma faca e uma espada.
A primeira para cortar essas cordas que me prendem e a segunda para cortar
as cabeças de todos os meus captores - Respondeu Conan, com a seriedade
de quem não fazia bravatas aos ventos.

- Há. Muito bom bárbaro. Você é exatamente como dizem ser os homens do
norte da Aquilônia, sejam eles vanires ou aesires - Respondeu o monarca,
de forma espalhafatosa.

Conan, aliás, sentia dificuldades em diferenciar os homens civilizados,


mesmo sabendo da variedade de suas raças, culturas e nações. Isso porque,
o cimério achava que eles se vestiam de forma semelhante, normalmente
com tecidos finos, roupas coloridas demais para seu gosto, joias caras e
brilhantes nos dedos e nos pescoços, além do cheiro de mirra e incenso
forte que emanava de seus corpos franzinos ou gordos, algo para disfarçar
o fedor de suas corruptíveis ambições.

- Cimério. Sou do norte, mas não sou nem vanir e nem aesir - Respondeu
Conan, de forma soturna e direta, sem rodeios.

- Entendo. E Amra é como te chamam em sua terra - Sussurrou o rei, não


como uma pergunta, mas como uma confirmação para si mesmo.

- Não. É só um nome que tenho nessa região mais próxima ao Mar do Oeste
- Respondeu Conan, lacônico - Claro que devias estar mais preocupado
com outras coisas. Como por exemplo, o fato de tropas turanianas estarem
transitando por Shem, com o apoio dos monarcas do leste, fora o fato de
seu mercenário chefe contratado ser um provável aliado dessas tropas.

- Ora, mas que coincidência tal relato, cimério, visto que a comitiva de
Marcius, antes de eu me unir a ela veio de Turan - Aproveitou Alexia para
complementar a fala do cimério, de modo a fomentar desconfianças no
capitão Akbar e no próprio Samir;

Diante dessas palavras de Conan e de Alexia, o senhor de Askalon apresentou


uma leve dúvida e até preocupação na face, enquanto Marcius se aproximou
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a cavalo, ao lado do emissário real com fisionomia de hiena, Mahalahin.


Alexia não conseguiu conter uma risada irônica alta, meio que confirmando
a plausibilidade das suspeitas ali proferida pelo cimério e por ela mesma.
Bem, ela sabia que tinha as provas daquela traição e esperava o momento
certo para mostrá-las.

- Cale-se bárbaro. Não coloque bobagens na cabeça dos outros para escapar
do cativeiro - Március se adiantou em sobressalto, demonstrando certo
descontrole ante palavras tão perigosas em torno de um possível complô
contra o rei Samir.

- Tenho certeza que suas palavras não passam de invenções, cimério, mesmo
com as divagações da mercenária. Os senhores shemitas têm muito com
o que se preocupar diante dos avanços de Koth ou da Estígia para colocar
lobos turanianos defendendo suas cidades-Estado - Respondeu abruptamente
Samir. - Além do mais, meu emissário pessoal garantiu essa empreitada após
parlamentar com o rei Yin-Allal, de Shusham. Você será uma amostra de
minha generosidade para que possamos estabelecer uma união em benefício
de Shem - Terminou o senhor de Askalon, mais para se auto convencer do
que ao cimério.

- Então, me diga. Como fui ferido por soldados turanianos na vinda para
Askalon? Mais ainda. Como explicas que seu emissário convenceu seu rei
e senhor a ir até a cidade de um adversário da nobreza shemita ao invés de
marcar um encontro em algum lugar neutro, como é de costume em situações
dessa envergadura? E por fim, me explique. De quem foi a ideia estúpida
de uma comitiva real com tão poucos guerreiros?

Conan definitivamente não gostava das artimanhas dos homens civilizados


e sabia que a melhor forma de escapar do cativeiro e de solucionar seus
problemas imediatos estaria, como de costume, no manejo da espada e de
suas habilidades inatas de guerreiro. Mesmo assim, ele plantou uma pequena
chama de dúvida na mente do senhor de Askalon.

A intenção de Conan, no entanto, era plantar ou melhor, aumentar a


desconfiança em Akbar, visto que o oficial tinha como objetivo proteger a
vida do rei Samir a todo custo. Isso significava defender seu senhor e livrá-
lo de quaisquer possíveis ameaças, independentemente de onde viessem.
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Até porque, o capitão já estava desconfiado com a decisão do rei e de seu


emissário em dispor de tão poucos guerreiros na viagem, algo considerado
por ele como uma estupidez tal e qual Amra expôs em suas sábias palavras.

Próximo a um oásis, em meio a algumas árvores nativas, o grupo estacionou


e começou a organizar seu acampamento ainda antes do final da tarde. Era
o último recanto seguro do oeste antes de adentrarem nos desertos orientais
de Shem, o ermo que levaria a grande Imperial Shushan, e onde imperava
o desconhecido e tantos possíveis perigos.

Caravanas de mercadores costumavam usar o local como paradouro, para dar


de beber aos cavalos, estocar água e descansar antes de se deslocarem para
as luxuosas cidades-Estado shemitas, levando e trazendo artigos variados
do porte de vinho, mirra, jóias, seda, carne seca, roupas, artigos variados
de vidro, entre outros tantos.

A comitiva organizou a tenda real e Samir recebeu visitas e vivas de seus


muitos súditos que passavam pelo local. Marcius estava mais afastado,
parlamentando com Mahalahin, quase que em um cochicho suspeito,
aumentando as suspeitas da parte de Alexia e, principalmente, do capitão
Akbar. Conan, por sua vez, se mantinha amarrado pelos pulsos, alocado
próximo a carroça de suprimentos, com uma calma incomum para alguém
em situação de cativeiro, ainda mais em se tratando de quem era, um bárbaro,
e de onde viera, da distante ciméria.

Em algum momento antes da chegada da noite rubra, Alexia conversou


com Akbar e Conan pôde vislumbrar de longe o capitão concordando com
a cabeça diante das palavras da garota, ainda que ela não tenha passado
às mãos do capitão shemita as provas contra Marcius nesse momento. A
semente da discórdia já estava plantada e tinha um solo compatível para
prosperar, apesar da ação a seguir ser deveras perigosa.

Logo após tal encontro, Aléxia se dirigiu a tenda do rei. Antes de entrar,
ela não deixou de olhar rapidamente para Conan, como em um pedido de
aprovação para o que deveria ser feito. O plano, finalmente seria colocado em
prática. Em alguns instantes depois, o rei Samir era sumariamente retirado
bruscamente da tenda real, com a guerreira brituniana atrás dele, segurando
uma adaga afiada em seu pescoço.
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Os soldados de elite do rei se aproximaram rapidamente, desembainhando


suas respectivas cimitarras enquanto Akbar formava, propositalmente,
um cerco em volta da brituniana, que agora tinha Samir como refém.
Marcius, por sua vez, mais Raxoranius e Harlan igualmente se eriçaram
diante da batalha iminente, ainda que o primeiro tenha focado em Conan
de modo a não perdê-lo de vista.

Tarde demais. Conan estava livre, “provavelmente sempre esteve”,


pensou o líder mercenário. Além disso, o jovem Abdal apareceu de seu
esconderijo improvisado na carroça e rapidamente jogou uma espada aos
pés do cimério, o que igualmente surpreendeu a todos. O plano estava
em movimento e os dados foram lançados.

- Traição - Gritou Marcius, abruptamente, sacando sua espada e se dirigindo


a Conan. O cimério calmamente se aproximou, enquanto os guardas se
deslocavam diante de sua passagem.

-Não de minha parte, que nunca jurei fidelidade ou efetuei qualquer


acordo com o senhor de Askalon - Respondeu Conan, apontando para
sua esquerda, onde mais ao longe, Mahalahin montava em seu cavalo,
pronto para alguma ação evasiva

- Aliás, acho que um traidor está logo ali, pronto para fugir a galope -
As palavras do cimério criaram uma aura de desespero irracional em
Malahalin, que partiu abruptamente, muito em razão do olhar de suspeitas
de Akbar em sua direção. Alguns guardas shemitas, talvez orientados
previamente pelo capitão, até tentaram impedir o avanço do emissário,
mas o olhar hipnótico do Esguio fez com que os mesmos ficassem em
situação de letargia. De certo mesmo, é que a fuga confirmava uma culpa
que podia ser, quem sabe, facilmente questionada.

- O que significa isso? - Gritou Samir, completamente confuso diante da


situação inesperada.

- Olhe e escute bem. - Foi a resposta de Alexia, apertando a faca junto ao


pescoço do rei, tirando um filete de sangue.

- Vocês três, peguem os cavalos e capturem Mahalahin. Quero saber


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porque esse arremedo de feiticeiro foge como um bisão vislumbrando


uma pantera. - Falou Akbar, apontando para três de seus soldados de elite
mais próximos, que prontamente montaram em seus esguios alazões e
saíram em perseguição ao emissário fugitivo.

- Eu posso explicar tudo, capitão. Mas antes disso, se me permitir, vou


mandar para o inferno um outro traidor - Foi a resposta de Conan, se
colocando à frente de Marcius, ambos cercados pelos guardas shemitas.

Roxarianus e Harlan fizeram movimentos de ataque e Alexia, de pronto


os dissuadiu a não se intrometerem na contenda entre Marcius e Conan,
prometendo cortar a garganta do rei caso isso acontecesse. O capitão
apenas olhou rispidamente para ambos, sacando sua espada e já deixando
claro que deveriam obedecer as ordens da guerreira. Suas suspeitas contra
o bando de Március o fazia apenas averiguar onde as ações de todos ali
iriam levá-los.

- Então você estava solto desde ontem e armou este ardil com Alexia.
E ainda me chama de traidor, cão bárbaro. - Gritou Marcius, espada em
punho e em posição de ataque.

- No final, tudo será esclarecido para os shemitas, mercenário. Tu não


estarás aqui para ouvir.

Foi a resposta de Conan, muito racional em tal situação extrema e também


em posição de combate, em parte com o musculoso corpo titânico contraído
tal e qual um felino de grande porte diante da presa. A presença do cimério
com uma espada em punho era mais do que suficiente para causar temor
nos soldados shemitas ali presentes. Alexia sorriu levemente diante da
cena e teve a mais pura certeza de que o combate entre Conan e Marcius
já estava decidido, mesmo antes do choque das espadas em sua dança
frenética.

Marcius tinha a aparente vantagem da couraça peitoral, logo avançando


e sendo bloqueado por Conan, um movimento seguido de mais outros
dois idênticos, até que por fim, um ataque da esquerda para a direita da
parte do mercenário passou no vazio, enquanto Conan recuava o tronco
para não ser trespassado pela espada inimiga.
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No movimento logo em seguida, Conan, com uma habilidade quase


sobrenatural desferiu um golpe de cima para baixo com sua lâmina, acertando
em cheio o crânio do líder mercenário, partindo-o como uma abóbora podre
bolorenta. Antes mesmo do corpo cair ao solo, Conan chutou o tronco do
inimigo morto, jogando-o há uns dois metros a frente, de modo a livrar sua
espada para esperar mais algum ataque inimigo.

Raxorianos e Harlan avançaram logo em seguida, desobedecendo as ordens


de Akbar. Este gritou para que seus homens não interferissem novamente
e todos obedeceram de imediato, tal como filhos leais ao senhor. O cerco
continuava.

O guerreiro kushita avançou com sua lança negra e Conan desviou seu próprio
corpo, colocando-se habilmente nas costas do homem e usando a própria
lança do atacante em um enforcamento, logo após largar a espada ao chão.
O shemita, por sua vez, parou seu movimento de ataque quando percebeu
que Alexia tinha deixado o rei e se interposto entre ele e Conan, espada em
punho, sorriso nos lábios e uma felicidade latente por trocar golpes com o
mercenário, talvez o mais habilidoso da companhia.

- Não interfira, mascote shemita. Tua luta é comigo. - Foram os dizeres da


garota, olhos nos olhos do adversário, enquanto o capitão Akbar socorria
seu senhor.

Na luta entre Conan e Raxorianus, a força seria o divisor de águas, tanto para
a vitória de um como para a derrota do outro. O cimério apertava o pescoço
do kushita pelas costas com a lança e esse segurava a mesma de modo a
impedir seu próprio sufocamento. O mais vigoroso entre eles certamente
venceria a disputa, a menos que a lança se rompesse com a brutalidade
inata dos titãs em luta. Raxorianus tentou empurrar o cimério com suas
costas, mas Conan era um colosso imóvel, quase enraizado ao solo arenoso.

Quando menos esperado, Conan deu um passo para trás e jogou o kushita
longe, em direção contrária com a força do impulso dele mesmo. Enquanto
tal movimento acontecia, a lança se partiu ao meio, ficando suas duas partes
quebradas em cada uma das mãos do cimério. O kushita se virou rapidamente,
pegando a espada de Conan ao chão, mas antes que percebesse, o cimério o
golpeou com uma das partes da lança quebrada no olho esquerdo do homem,
31

jorrando sangue e miolos para os lados, enquanto a haste penetrava fundo na


cabeça, matando-o irremediavelmente antes mesmo dele desfalecer ao solo.

Ao mesmo tempo em que tal contenda acontecia, Harlan se preparou em


seu movimento de ataque, intencionando efetuar seu golpe padrão de corte
transversal com sua “corta cabeças”, um golpe que usualmente encerrava
qualquer disputa. Ele sorriu de forma exagerada, talvez pela adrenalina do
combate e Alexia aproveitou o momento para efetuar uma guarda clássica,
segurando sua espada verticalmente em frente ao corpo.

- Uma pena que eu tenha que matá-la, linda Alexia. - Falou o shemita,
aparentemente seguro de si, tal como a maioria dos homens diante das
mulheres.

- Não sinto o mesmo, shemita. - Foi a única resposta de Alexia.

O homem avançou com uma rapidez surreal, convicto da vitória em um


único golpe. Alexia fez o mesmo e ambos os combatentes passaram um
pelo outro, com movimentos de ataque deveras semelhantes, ambos num
ângulo de dentro para fora e nas direções dos respectivos pescoços inimigos.
Alexia permaneceu em pé, enquanto Harlan desfaleceu em um jorro de
sangue da jugular, sua cabeça voando do corpo tal como uma rolha retirada
abruptamente da garrafa.

Num último momento, Conan avançou sobre os outros mercenários restantes,


quase catatônicos diante do embate, pegando no mesmo movimento sua
espada ao chão. Antes mesmo que eles pudessem reagir, o cimério acertou
os dois primeiros, no torso e no ombro, respectivamente, enquanto os dois
guerreiros mais atrás, já feridos desde a captura do cimério, largaram suas
espadas com temor desconcertante, colocando as mãos para cima em clara
rendição.

Logo adiante, três soldados shemitas voltavam de mãos vazias após tentar,
em vão, capturar o arredio comissário, Mahalahin. Ficava evidente que o
nome Esguio não fora escolhido sem motivo. O rei Samir, ao lado do capitão
Akbar, estava protegido pelos seus e eles ainda não acreditavam na cena que
presenciaram. De certa forma, o senhor de Askalon e seu principal oficial
finalmente entenderam que as aventuras e habilidades guerreiras contadas
32

sobre Amra eram eminentemente verídicas.

A sua frente, um bárbaro sorria para sua companheira guerreira, como se


ambos fossem dois parceiros de uma matilha que havia acabado de abater
um conjunto faminto de lobos adversários. Certamente que perguntas
deveriam ser respondidas.
33

Normalmente, é difícil ao homem comum compreender a complexidade das


ações e de toda e rede de acontecimentos à sua volta, sejam estes simples
ou complexos. Isso é ainda mais evidente em uma situação de guerra ou de
conflitos entre grupos, cidades ou Nações. Se havia um homem que poderia
compreender o desenrolar dos acontecimentos e fatos ali no pequeno e idílico
oásis do oeste de Shem, esse homem era o capitão Akbar, conhecido por
sua sagacidade nos quesitos da tática e da estratégia.

- Pelo que entendi, esses mercenários estavam nos levando para uma
armadilha. Não é isso, Amra?

- Exato. Pelo menos foi o que depreendi dos acontecimentos dos últimos
dias. - Respondeu Conan de forma breve e honesta.

- Explique.

- Fui perseguido por vários dias por uma tropa de turanianos do leste de
34

Shem até Askalon e, em algum momento da fuga, vislumbrei o tal Marcius


falando com o líder da tropa. - Iniciou o cimério. - Quando fui capturado
pelos mercenários e vi que eles iriam escoltar o rei de Askalon até o leste,
vinculei uma coisa com a outra. Não considero irreal, aliás, que os turanianos
estejam esperando a comitiva em algum lugar apropriado.

- Ainda acho estranho que a mercenária tenha traído seus companheiros sem
saber do plano urdido por seu líder, mesmo que a conversa que tive com ela
antes do ocorrido me levem a crer na veracidade disso tudo - Falou Akbar,
olhando para Alexia, ainda desconfiado.

- Como lhe disse antes, capitão, eu me juntei ao grupo na entrada da cidade e


o fiz porque me foi prometido parte dos espólios pela captura de um fugitivo
da realeza. Bem, pelo menos foi o que me disseram, antes de encontrar
provas de que o nemédio estava trabalhando com forças turanianas pelo reino
shemita, tal como pode ser visto nesses papéis que encontrei na escrivaninha
de meu ex-líder - Respondeu Alexia, entregando a Akbar os papéis com as
ordens dos reis do leste para Marcius, sem jamais desviar o olhar diante da
inquirição desconfiada do capitão shemita. Akbar, claro, pegou de pronto e
olhou tais papéis com suspeitas, logo entendendo do que se tratavam.

- Esperem um pouco. Como sabem que Mahalahin estava nesta trama? -


Perguntou o rei Samir, olhando para os lados, como se procurasse a figura
do emissário suspeito.

- Ora, mesmo sem as provas nas mãos do capitão, bastaria juntar os fatos. Os
turanianos me perseguem até o oeste e eu escapo ferido. Logo, descubro que
existe um preço por minha captura em Askalon, sem nem mesmo alguém na
cidade saber que eu estaria pela região. Ao mesmo tempo, a realeza daqui
contrata os tais mercenários para me capturar e alguém tem a ideia estúpida
de armar um encontro com os monarcas shemitas de Shusham, tendo, por
coincidência, a mim aprisionado como prêmio, exatamente o homem que
está sendo perseguido pelos aliados turanianos dos reis do leste - Iniciou o
bárbaro, olhando seriamente para o monarca. Logo, Conan apontou para o
ermo do leste, terminando:

- Era preciso ter esse tal “alguém” junto ao rei de Askalon, para que ele
aceitasse a ideia de união com o leste mediante minha cabeça numa bandeja.
35

- Terminou Conan, quase como um pai explicando o óbvio ao filho.

- Desculpe meu senhor, mas os documentos que peguei com a mercenária


são explicativos das ordens de Marcius para levar a comitiva real a uma
armadilha liderada por forças de Turan. Sabes muito bem, também, o quanto
sempre desconfiei das ações do conselheiro Mahalahin, apesar de respeitar
a vontade de seu pai quando o indicou para tal cargo - Interpelou Akbar,
com a mão no ombro do jovem monarca.

- Certamente capitão. Entendo isso e acato sua palavra, ainda mais diante
dessas provas em mãos. E faz certo sentido o relato do cimério. Mahalahin
veio com tal ideia de união há algum tempo. Uns dois dias atrás, ele me
disse que poderíamos capturar o bárbaro chamado Amra, visto que, segundo
sua sabedoria arcana, o guerreiro estaria foragido pela região. Ele pode ter
sido avisado pelos turanianos que lhe perseguiram, Amra. - Falou o senhor
de Askalon, como em um breve surto de epifania.

- E provavelmente o mercenário Marcius chegou à cidade para efetuar uma


parte do plano. - Terminou Akbar, complementando o raciocínio do rei.

- Faz sentido. Ele levaria o rei Samir e sua comitiva para uma emboscada,
sendo que os senhores do leste teriam como prisioneiros, em um único
movimento, o antigo líder dos zuagires e o rei de Askalon. - Desta vez, foi
Alexia quem completou o raciocínio.

- Eu aposto todas as coroas pagas para Marcius que uma tropa turaniana
está a espreita em um paredão de pedra há uns dois ou três dias de viagem
em direção a leste, um lugar em que eu mesmo utilizei para emboscar meus
perseguidores. Melhor ainda, aposto minha espada que trata-se do restolho
da mesma tropa que sobrou de meus perseguidores e que agora espera
pacientemente para capturar sua presa real, quando a comitiva de poucos
guerreiro e de mercenários traidores passarem pelo vale de pedra. - Foi a vez
de Conan explicar a todos o que certamente era uma verdade inquestionável.

- Quantos são, afinal, Amra? - Perguntou o capitão.

- Provavelmente o dobro de suas tropas aqui. Me livrei de muitos deles pelo


caminho, mas sobraram o suficiente para tal empreitada. Tenho certeza que
36

não ganharam reforços, visto que não daria tempo dos mesmos chegarem
ao local da emboscada. - Foi a resposta de Conan.

- E o que fazemos agora? - Perguntou o senhor de Askalon, como se ele


fosse um mero empregado e não o responsável por tomar as decisões.

- Ora, se me conseguires o que pagarias a Marcius, posso me juntar a Akbar


e a seus homens. Vamos até o paredão, fingimos que estamos caindo na
armadilha e matamos os cães antes mesmo que percebam que a caça é, na
verdade, um lobo disfarçado de cordeiro - Respondeu Conan, novamente
com um breve sorriso nos lábios, transparecendo que nem estava ferido
depois de todo o episódio.

- Eu ficaria feliz em me juntar a essa nova comitiva, se me permitirem. - Foi


a vez de Alexia intervir, olhando para Conan como uma aliada de velhos
tempos.

- Bem, dependendo do papel de Malahalin nessa trama toda, pode ser que
ele avise os turanianos de que o ardil deles foi desmascarado, acabando
com a surpresa de nossa própria artimanha - Foi a resposta de Akbar diante
do plano de enganar os turanianos em sua própria emboscada, como bom
estrategista que era.

- Nesse caso, vamos ter apenas mais trabalho, mas com o mesmo final. -
Sorriu Conan. - Eu conheço bem a região e usei o paredão de pedra onde eles
se encontram agora para embosca-los e enviar alguns deles para o inferno.
Se corrermos e utilizarmos alguns atalhos que conheço, chegaremos lá antes
mesmo do tal emissário. Eles não irão nem saber o que os atingiu - Finalizou
Conan, seguro de si e satisfeito pela empreitada que teriam pela frente.

Abdal não deixava de se impressionar com todos aqueles guerreiros ali


confabulando. Em sua memória dos fatos daquele episódio e da própria
conversa que ouviu no oásis shemita, ficou a plena certeza de que as
narrativas nemédias e outras tantas de mesmo escopo não exageravam
quando descreviam sobre valentes guerreiros imponentes que se colocavam
à frente de tropas indestrutíveis.

Ele se lembraria exemplarmente de todo o episódio, mesmo muitos anos


37

depois de encerrados os fatos da aventura. Lembraria que foi designado


pelo capitão Akbar de ir junto até Askalon, agora em companhia do rei
Samir, disfarçado na ocasião de mercador, o que era uma forma efetiva de
não levantar quaisquer ameaças além das já existentes.

Claro que os fatos sobre o final da epopéia seriam dirimidos na mente do


shemita apenas muito tempo depois do ocorrido, para que se tornassem
claros e ao mesmo tempo grandiosos e épicos. Algo deveras usual nos relatos
existentes sobre o poderoso bárbaro conhecido como Amra.
38

VI

vale pedregoso de Uruk-Sah tinha o contorno perfeito para uma emboscada.


O
A rocha bruta formava dois paredões de dez metros de altura de um lado e
mais de doze metros de altura do outro, ambos contornando uma estreita
passagem sinuosa. Essa passagem deveria ter uns cinco metros de espessura
e era contornada por esses dois paredões quase que verticais, com sacadas
naturais, cavernas e buracos múltiplos em suas paredes rochosas.

O estreito seguia do oeste para o leste e tinha mais ou menos uns dois
quilômetros de comprimento, obrigando muitas caravanas comerciais a
fazerem a volta para não serem atacadas pelos ladrões e nômades do deserto
que costumavam se esconder e se abrigar em suas múltiplas cavernas.

Na parte de trás do rochedo mais elevado, havia uma breve inclinação na


própria formação rochosa, permitindo uma escalada relativamente fácil
até mais da metade de sua altura. Se pela frente era quase impossível subir
no paredão vertical, na parte de trás havia uma espécie de rota espiralada,
39

como que uma escada natural na pedra crua que terminava exatamente na
maior entrada de caverna ali existente.

Dali de cima, em uma das maiores sacadas em frente a uma grande caverna,
o turaniano Branaric vislumbrava ansioso a longa planície de gramíneas
esverdeadas que se abria a oeste de Shem, para além do paredão de pedra,
um tanto impaciente pela longa espera da comitiva real de Askalon.

Fazia alguns dias que ele e seus comandados tinham desistido da perseguição
ao bárbaro Conan, conhecido no oeste do reino shemita pela alcunha de
Amra. A desistência tinha sido ordenada por um dos muitos espiões do rei
Yin-Allal, estando tal espião atuando há muito tempo nas cidades do oeste,
a mando do senhor de Shusham.

ranaric sabia apenas que crumpriu seu dever em avisar seus superiores
B
sobre a longa perseguição ao bárbaro até Askalon. Ele recebera com certa
insatisfação, no entanto, algumas ordens insossas vindas do leste. Para
deixar imediatamente a cidade e a perseguição ao bárbaro de modo a que
os mercenários do homem conhecido como Marcius terminassem o serviço
que ele e seus bravos soldados tinham exemplarmente iniciado.

Ora, pensava Branaric, por mais de uma vez, ele e seus intrépidos turanianos
emboscaram o ex-líder zuagir no ermo, ferindo-o, ainda que superficialmente,
em muitas dessas ocasiões. Por conta disso, o turaniano não concordava
com as ordens recebidas.

Em sua opinião, suas tropas tinham perdido muitos soldados pelo fio afiado
e sanguinário da espada selvagem de Conan, considerando o plano da
emboscada ali uma tarefa deveras complexa para ter algum êxito, com
muitas variantes possíveis que minavam sua eficácia. Não era do feitio dos
turanianos, segundo sua própria perspectiva, de colocar a arte da guerra
nas mãos de espiões ou pretensos feiticeiros, ainda mais nas de um sujeito
conhecido pela alcunha de “Esguio”.

m meio a seus esparsos devaneios, Branaric finalmente vislumbrou uma


E
movimentação vinda da estrada de pedras que passava entre o vale. Ele
estranhou que tratava-se de apenas um cavaleiro a galope e não da comitiva
real de Askalon, com seus esparsos guerreiros mais o bando mercenário de
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Marcius, até então cúmplices da pequena conspiração contra o rei shemita


do oeste. O turaniano não gostou nem um pouco, aliás, do fato de tratar-se
de um único homem a cavalo, sendo possível que fosse o próprio Conan,
talvez um dos guerreiros mais perigosos das terras continentais.

o se aproximar dos dois paredões de pedra de arenito enegrecido, o cavaleiro


A
gritou algo, mãos para cima em algum tipo de prece desesperada, parecendo
tratar-se de um aliado pedindo abrigo. Logo, Branaric percebeu de quem se
tratava e imediatamente ordenou a seus homens que deixassem o Esguio
passar de modo a escalar o promontório, sem o receio de ter qualquer flecha
perdida em direção ao coração.

- Por Ishtar! - Exclamou Muhalahin, após uma difícil subida pela rocha
bruta, ofegante e com muita sede depois de dois dias de intensa correria.

- Calma homem. Beba um pouco de água e diga-me o que aconteceu. Onde


está a comitiva de Askalon?

- Falhamos. O bárbaro escapou com a ajuda de uma contratada do bando


de Marcius. Provavelmente estão todos mortos e eu só não estou entre os
cadáveres por conta das minhas aptidões místicas. - Respondeu o emissário,
rosto contorcido pelo cansaço e pelo pânico diante do vislumbre da cena de
matança no oásis a oeste.

- Não há como efetivarmos a emboscada então? - Perguntou Branaric, com


a certeza da resposta negativa da parte do outro, mais para confirmar suas
suspeitas.

- Provavelmente não. As tropas de Akbar devem retornar a Askalon,


diferentemente de mim, que tive que abandonar meu disfarce. Quando vi
aquele bárbaro solto, espada em punho e fazendo acusações sobre uma
possível aliança de Marcius com vocês turanianos, tive a certeza de que
tudo se foi pelos ares. Até porque, a mercenária que traiu Március parecia ter
provas escritas em mãos. Malditos cães ardilosos. Já estava difícil enganar
aquele porco do rei diante das constantes suspeitas de Akbar. Agora todo o
meu esforço junto a seu falecido pai se perdeu - Divagou Malahalin, mais
para si mesmo do que para seu interlocutor, deixando entendido para ele o
seu papel na corte de Askalon.
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- Bem. Quem se serve de artimanhas como você, está fadado a fracassar nesse
mesmo terreno. De qualquer forma, não há tempo para questionamentos.
Anoitece rápido nessas terras e devemos levantar acampamento e retornar
a Shusham de modo a avisar que nossas presas escaparam.

O chefe turaniano começou a ordenar a seus homens na caverna a levantarem


acampamento. Lentamente, os soldados foram saindo de suas posições de
espera e descanso, arrumando pertences e organizando a viagem para o
leste. Mahalahin serviu-se de água e sentou-se em um canto para algum
tipo de meditação arcana.

Branaric, por sua vez, foi até os vigias agachados fora da caverna, em uma
parte superior da sacada em frente, de modo a ordenar que se eles retirassem
de suas respectivas posições. Tarde demais. Os dois homens estavam mortos,
com perfurações de espadas nos torsos ensanguentados.

Um grito logo foi ouvido do interior da caverna e Branaric correu


imediatamente para averiguar do que se tratava. Ao chegar de volta a grande
câmara, a cena que presenciou foi de pura surpresa e selvageria. Seus soldados
estavam cercados por tropas de Askalon, lideradas pelo cimério Conan, ao
lado de uma mulher guerreira vergando uma imponente armadura de anéis
de aço, tipicamente hiboriana.

O pensamento do chefe turaniano divagou rapidamente pela lógica daquilo


tudo e logo ele entendeu que o grupo, liderado pelo bárbaro, tinha pego
algum tipo de atalho para chegar ainda antes do espião shemita, emboscando
todos eles juntos, tanto as tropas turanianas como seu comparsa arredio.
Conan e seus aliados haviam virado o jogo contra todos eles e utilizado de
seu próprio veneno para surpreendê-los.

O turbilhão de espadas e lâminas varou o interior da caverna e o acampamento


se transformou em uma chacina rubra, com soldados turanianos sendo
pegos de surpresa pelos invasores shemitas munidos de afiadas cimitarras
de lâminas curvas. O capitão da tropa, Akbar, além de Conan e Alexia se
destacava no encarniçado combate, decepando membros e varando corpos
como se os defensores turanianos ali fossem meros cordeiros recém-nascidos
em um matadouro.
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Branaric socorreu um dos seus soldados caídos e logo se viu em frente ao


próprio guerreiro cimério, com sua longa espada reta em punho. O turaniano
não podia deixar a responsabilidade de tentar conter aquele a quem julgava
ser o mais perigoso dos atacantes.

Sua cimitarra curva avançou em direção ao bárbaro e trespassou o ar mais


de uma vez até que ela foi bloqueada pela lâmina habilidosa de Conan.
Ao olhar nos olhos de seu adversário, o turaniano vislumbrou uma chama
primordial, como se o homem representasse alguma raça esquecida no
tempo e no espaço, talvez pré-cataclísmica.

Diante da temerária figura de Conan com arma em riste, o pavor tomou conta
do espírito de Branaric, mesmo ele acostumado a tantas lutas encarniçadas
de vida e morte em sua longa carreira militar pelo império turaniano. Quanto
mais ele temia a selvageria inata do cimério, mais ele recuava até a sacada
em frente a boca da entrada da caverna.

Quando finalmente percebeu, era ele quem estava defendendo-se dos golpes
poderosos do bárbaro, acuado como uma lebre em frente a um leopardo
assassino. Não havia dúvidas quanto a força do barbarismo latente naqueles
golpes direcionados a seu torso, sumariamente mortais a qualquer instante
da contenda.

Conan atacava com a selvageria ancestral de seres acostumados a eras


inteiras de combates pelos ermos do oeste continental, seja contra poderosas
raças simiescas lá existentes, seja contra os selvagens pictos, que desde o
cataclismo, perambulavam em suas vagas tribais de selvageria, lanças de
sílex e ódio. Conan percebeu o temor de sua presa e fez questão de externar
ao turaniano em palavras.

- Sua vida acaba aqui, cão turaniano. Pode-se dizer que minha emboscada
será finalizada esta noite.

O golpe foi rápido e Branaric mal percebeu quando a espada reta do cimério
perfurou seu peito desprotegido, um movimento executado com precisão
e bem antes dele mesmo tentar uma manobra de ataque. Em outros dois
movimentos certeiros e rápidos, Conan retirou a espada do corpo do turaniano
e logo trespassou a jugular do homem, que ainda recuou dois passos antes
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de ter sua vida ceifada bruscamente por aquele a quem um dia perseguiu
pelos ermos dos desertos e das planícies de Shem.

Mahalahin mal teve tempo de vislumbrar a carnificina na grande câmara da


caverna e saiu em correria desenfreada diante do ataque das tropas shemitas
de Akbar. Quando deu por si, estava em alguma outra câmara subterrânea
esquecida, provavelmente lateral e após outra passagem semi-oculta.

Escorado em uma parede rochosa nas sombras da pequena gruta viscosa e


úmida, o Esguio logo notou a silhueta de um homem aproximando-se com
espada em riste. Ele logo reconheceu a sinistra figura do capitão shemita,
Akbar, que há muito tempo ansiava por desmascarar o conselheiro real de
Askalon, guiando-o ao inferno com sua ligeira e precisa cimitarra.

- Suas artimanhas acabam aqui, Mahalahin. Espero muito por esse momento
e certamente que amanhã acordarei certo de que cumpri meu dever de
protetor da coroa de Askalon.

- Se afaste, capitão!! Você não pode me ferir! Não pode… Sua mente me
pertence, sua sanidade se perderá no breu do futuro devastador que lhe
revelarei… Se afaste, agora! Tema diante do destino sombrio das civilizações
humanas!

O próprio temor inscrito no fundo da alma do emissário traidor o fez se valer


novamente de seus poderes arcanos de mimetismo e de entorpecimento da
mente alheia, quase como uma contração muscular, algo que ele já havia
realizado com os guardas shemitas quando escapou do oasis dois dias
atrás. Mahalahin olhou nos olhos de seu caçador e tal ato levou o capitão
shemita a sentir um forte espasmo, seguido de um esgar horripilante e de
uma imagem quase fantasmagórica que se incrustou na mente dele como
um parasita profano.

Akbar vislumbrou um futuro macabro de vagas de bárbaros destruindo


as civilizações hiborianas e não-hiborianas. Corpos de homens de pele e
ossos expostos eram empilhados em gigantescas valas putrefatas, deixando
um odor fétido da carne apodrecida a invadir seu ser, como se ele mesmo
estivesse em uma daquelas valas coletivas, entre condenados, moribundos
e mutilados. O desespero tomou conta de sua mente e de seu corpo, agora
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imobilizado e trêmulo diante da sinistra imagem implantada no espírito.

Malahalin então se retirou correndo da câmara, acreditando em mais uma


fuga bem-sucedida. Não seria desta vez. A sua frente, Conan se interpôs
pelo caminho, segurando sua espada ensanguentada. Seus olhos eram faíscas
incandescentes de pura temeridade e objetividade e Mahalahin acreditou,
por um breve instante, que somente sua arte arcana poderia livrá-lo de ser
trespassado pela lâmina ensanguentada do titã de bronze.

Ele tentou o mesmo artifício que usara em Akbar. O de implantar aquela


imagem distópica na mente de Conan. Um futuro de morte e selvageria
instintiva e genuína, quase natural e profética. Ele chegou até mesmo a
acreditar no êxito de sua ação por um pequeno instante em que o cimério
recuou e baixou de relance seu olhar assassino. Logo, o Esguio percebeu
que o recuo do bárbaro fora proposital, com o intuito de desferir um golpe
contra seu tronco.

Malahalin finalmente percebeu o fim de todas as suas artimanhas e


manipulações pelo aço retilíneo daquele homem, sem sequer entender o
que dera errado com sua magia mental. Ao cair aos pés de cimério, o shemita
apenas lamentou pela própria vida ceifada, logo por um daqueles homens
bárbaros que, segundo suas visões proféticas e distópicas, um dia iriam ditar
o futuro das civilizações hiborianas e não-hiborianas.

Conan, após terminar com o emissário sorrateiro, se aproximou de Akbar,


ainda imobilizado, ajudando-o a se reerguer. Dirigindo-se até a câmara
maior da entrada da caverna, ambos puderam vislumbrar a vitória final dos
soldados shemitas sobre as abaladas e confusas forças turanianas.

Alexia, claro, tinha sobrevivido ao lado de outros quatro soldados shemitas


e seu rosto alegre estampava o gosto por duelos de lutas de espadas. Akbar
sentou-se em um pedregulho e respirou fundo, lenta e pesarosamente. Por
fim, após instantes de contemplação ao vazio, ele finalmente falou ao cimério.

- Aquela hiena me fez ver algo que me abalou intensamente. Não conseguia
mover meu corpo diante daquela imagem de morte de toda uma civilização,
nossa civilização como um todo. Que afortunado tu és por aquele feiticeiro
não fazer o mesmo contigo, cimério.
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- Ora, ele fez. Mas eu sou um bárbaro. Para homens como eu, a barbárie
triunfa sobre a civilização com seu esgar de dor e morte, sendo uma
engrenagem impossível de ser detida depois que as vagas bárbaras iniciam
suas marchas. Tal imagem seria impossível de conceber para um homem
civilizado como tu, capitão, mas para um bárbaro como eu, bem, aquilo foi
apenas a emanação do futuro de todas as raças que perambulam pelo mundo
em sua breve jornada rumo ao final.

Conan sorriu após tais palavras pretensamente filosóficas e certamente que


suas digressões fizeram todo o sentido para o capitão shemita, que presenciou
no rosto do cimério e antes disso, no do próprio Mahalahin, uma verdade
transcendental que muito se delineou em sua alma. Era o momento de todos
voltarem para Askalon. Melhor dizendo, pensou Akbar, de voltarem para a
proteção transitória e ilusória da civilização.
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VII

O jovem Abdal ficou sabendo um tempo depois, que o homem chamado


Amra, mais Alexia e as tropas do capitão Akbar emboscaram exemplarmente
os turanianos no paredão de pedra conhecido como Uruk-Sah, dizimando o
grupo sem qualquer piedade, em uma sinfonia de desespero, decapitações
e morte.

Todos na cidade relataram na época que o bárbaro e a brituniana chegaram


juntos com os sobreviventes do corpo de elite das tropas reais de Samir e
que todos foram muito bem recebidos pela própria realeza local, com toda
a dignidade da pompa civilizada. O homem chamado Amra, que tinha
adentrado na cidade dois dias atrás como um verdadeiro animal amarrado,
ferido e combalido, agora era o herói audaz que salvou o pescoço do rei do
oeste de uma emboscada perpetrada pelos turanianos, aliados dos traidores
shemitas das cidades-Estado do leste. Farsa essa que levaria a outras tantas
disputas entre as cidades shemitas, não somente de caráter diplomático,
mas igualmente, militar.
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Após o ocorrido, o jovem Abdal finalmente voltou para casa e por


recomendação do próprio senhor de Askalon, ele foi considerado aprendiz
do novo emissário da corte, o que impediu a surra que levaria do pai por se
ausentar de seus afazeres profissionais na oficina da família.

A lembrança mais premente que ficou na mente do jovem shemita, porém,


foi exatamente a da última vez em que viu e ouviu os dois guerreiros que
tanto lhe impressionaram na ocasião: Amra e Alexia. O bárbaro, conhecido
por todos como Amra, disse que seu nome real era Conan. Ele, inclusive,
pagou em moedas o prometido pela ajuda que Abdal lhe dera na tenda e
no oásis do oeste, onde seu destino foi decidido pelo manuseio da espada
e pela astúcia. O jovem shemita, aliás, jamais esqueceu do diálogo entre
o bárbaro e a brituniana logo pela manhã do dia seguinte, quando ambos
saíam da cidade a cavalo para algum lugar desconhecido dos ermos do leste.

- Espero, Amra, que não me perguntes se quero compartilhar sua cama.

- Ora mulher, não podes esperar que eu não tente isso, mas também não irei
implorar ou usar de bobagens civilizadas para te convencer. De qualquer
forma, faço questão de dividirmos algum espólio no leste, onde existe muito
ouro, boa comida e bebida e uma quantidade considerável de bons serviços
para quem souber empunhar uma espada.

- Bem, nesses termos bárbaro, acho que temos um bom acordo. E não vou
mentir que não estou considerando seriamente em dividir contigo uma noite
em algum oásis próximo com um belo luar ao horizonte.

- Certamente que isso seria mais do que adequado. Afinal, temos muitos
dias e muitas noites de viagem até os ermos do leste de Shem e da distante
Hirkânia.

FIM

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