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Aquela era uma noite incomum. Em um dia qualquer de maio, não estávamos como de
costume na frente da tela de uma televisão assistindo a tradicional novela das oito. Mas, não
por decisão própria, acontece que naquele dia, a luz tinha acabado por um acidente com um
caminhão e o poste na esquina da minha casa. O calor dentro de casa nos fez sentar nas
cadeiras de praia na varanda, e na falta de algo melhor para fazer, conversar entre nós.
As conversas eram muitas, falamos sobre a escola, minha avó contava como os primos de fora
eram cuidadosos e generosos, minha mãe falava sobre os problemas no trabalho, minha irmã
sentada mexendo nas unhas e meu pai tentava sintonizar um radinho de pilhas para escutar o
resultado do jogo do São Gabriel F.C que na ocasião estava jogando contra o Guarani de Bagé.
Esses momentos não eram muito rotineiros, mas lembro que sempre apreciei muito quando
aconteciam, mas isso só era possível quando o sexto membro da família se calava, a TV.
Já fazia 4 horas sem luz quando ela finalmente voltou. A tagarela incansável voltou
rapidamente a falar. – Espera a luz voltar direito, guria, vai queimar a TV desse jeito! – disse a
vó para minha Irmã, mas ela já estava sintonizada e falando novamente. As três mulheres da
casa se juntaram no sofá novamente, e eu, naquele dia, resolvi ficar sentado com o pai na
varanda. Ele não estava prestando muita atenção em mim, apenas quando precisava comentar
algum lance errado que o deixava furioso – bando de perna de pau, parece que estão jogando
amarrados! – disse ele enquanto me olhava e tirava o rádio do ouvido.
- Amarrados? – Pensei. – Mas se estão amarrados, por que não se soltam? Perguntei
direcionando minha pergunta a ele. E ele mais do que rapidamente me respondeu – Para,
guri, isso é jeito de falar! Estão jogando sem vontade, sem gana, como se não quisessem
ganhar! – Acho que compreendi, mas a palavra “amarrados” não saía da minha cabeça. Foi só
então que eu comecei a pensar sobre as tais cordas que amarravam esses jogadores.
Primeiro, pensei em cordas mesmo, daquelas que via nos desenhos nos quais o gato fazia
armadilhas para o rato ou o coiote tentava pegar o papa-léguas e sempre acabava amarrado a
uma penca de dinamites. Depois, pensei em cordas invisíveis como as lançadas por varinhas
mágicas em uma das histórias do Harry Potter. E, motivado pelas cordas invisíveis, lembrei de
um texto que havia lido há anos para a escola e que trazia a seguinte frase: O essencial é
invisível aos olhos, e só se pode ver bem com o coração. Uma frase maravilhosa da obra
clássica “O pequeno príncipe”, então tudo começou a fazer sentido.
Naquele jogo de futebol, as cordas estavam invisíveis aos olhos, mas não ao coração. Percebi,
então, que precisava olhar para elas com o coração e não com os olhos. Meu pai olhava com
os olhos, e pelo desejo da vitória do São Gabriel, não conseguia ver as cordas do nervosismo,
do medo, da preocupação e tantas outras que amarravam aqueles jogadores naquele
momento. Eles realmente estavam amarrados por cordas invisíveis, e tudo isso fazia muito
sentido agora, e mesmo que estivesse triste pela derrota que se aproximava a cada minuto,
sentia pena dos jogadores que estavam sendo vaiados em campo.