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l.. CÂMARA LEGISlATIVA DO DISTRITO FEDERAl SUPLEMENTO CULTURAL Ano I nD3janeirode 1993

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DF-Letras Página-Hl -

que se comia nas minas se- COMIDA, MElO AMBIENTE,

O t""entistas do sertão brasi-


leiro?
A crer-se numa carta que de
Éco-Bistória: CULTURA
Aos poucos, na mesologia do
cerrado, ia brotar uma culinária
Traíras (GO) escreveu um pe, própria adaptada, esbibada em
Manuel Caetano, no ano do pri-
meiro descobrimento das minas
do Alto Tocantins (1736), e que
o Padre, pela enonne carestia,
COlDeres Antigos idiossincrasias de um meio am-
biente, que sob muitos aspectos,
era novo ao colonizador e que o
encaminharia ao consumo de
esmiuça em itens, ficamos sa- alimentos cuja produção
bendo sobre a ração mínima do
"Os alimentos são produtos ambientais e seu uso observa certas interações
adaptava-se à,região. E talvez a
colonizador em um caso Iimíte_ históricas, sugere o autor do artigo, ao examinar algumas tradições culinárias do metabolizar diferente, comer
Primeiríssimo a ser lembrado, cerrado" diferente, face ao clima, ao ca-
o milho, tanto para os animais lor, à ausência de iodo e sais ra-
quanto para o sustento humano. ros nos ares e na água. Assim os
Farinha, sem esclarecer-se se PAULO BERTRAN
doces antigos foram muito do-
de milho, mandioca ou, impro- Academia de Letras e Anes do Planalto ces, o café abusivo e melado, a
vável, de biga. Feijão, carissi- Câmara Legislativa do DF. gordura e os óleos besuntados,
mo. Toucinho de porco, vendi- caracteristicas que entre muitas
do quando muito por libra de outras, podem obscuramente
peso. Galinha. Frango_ Ovos. Com Li honrosa menção e ex- professor de latim em Meia Pon- acharia em bebedeiras com o vi- explicar-se pela adaptação an-
De vaca tudo se comia: cabeça, cessão ao palmito de guariroba, te, lembra-se de uma festa em !,lho que em Vila Boa produzia o trópica.
língua, miúdos, carne seca, car- quiçá ao piqui esporádico, a cu- Corumbá de Goiás, onde pelo Cirurgião- Mor Neiva, e que De Goiás exportou-se algu-
ne verde, e como é sabido, o linária inicial era sonhadamente finzinho do século andou co- pela latitude e clima, devia le- mas modas para a culinária do
berro, Mas não era a vianda carnívora, se temos em conta mendo leitões mal assados, uns var à morte certa. Triãngulo Mineiro. Pertenceu a
preferida, como tambéin enten- que o milho e as farinhas fazem pães de arroz "mal amassados" Aguardente desde sempre região ao bispado de Vila Boa
de o mineiro Eduardo Frieira, figuras complementares. Do ar- houve no sertão. Um dos fabri- por dois séculos, e os padres
Dos frutos de coleta natural da roz. no entanto, não há qual- cantes que vejo citado nos pri- goianos, pastores dos vilarejos
terra, o primeiro lembrado é o quer menção. Viria mais para o surgenles, por certo sugeriram
palmito de "guariroba", tão fim do Século 18, quando já se às matronas preocupadas Il"n
substancioso que dava-se aos cultivava em escala no sul de obsequiar os pobres curas "'-""LJ
doentes, verdadeira salvação Minas. Curiosamente - Suza- sertão, o gostinho, a forma de
nos ermos. Aliás foi o que deu
fôlego à primeira entrada do
descobridor de Goiás, o Anhan-
guera, como lembrou-se de re-
gistrar o seu cronista Silva Bra-
ga.
A caça mais lembrada é a do
veado. E a pesca era de qual-
• quer peixe, de que parece não
havia grande população naque- fazer acepipes que os lembras-
las alturas do Tocantins. Devia sem do lar remoto. E ademais lá
de haver também consumO de é Cerrado puro, de mesetas, di-
antas, capivaras, latus, mas UA'U I'~ ferente do resto das Gerais,
ajustando-se então caçarola e
tampa.
É deste século, porém, a per-

~-,
petuação da culinária goiana
em seu formato atual.
A exemplo de BrilJat - S~
rin, deve-se a três intelectUiír.
~, goianos de primeiro plano, a fi-
0, xação, muitas vezes a reinven.
ção, das tradições culinárias de
~dois séculos volvidos.
Primeiro, anos de 1960 e

i;; .
1970, Ana Lins dos Guimarães
Peixoto Bretas, a fortissima p0e-
ta e doceira Cora Coralina.
Quando D. Cora voltou a Vila
Boa depois de meia vida no es-
foram citl!dos, como o fo- tr!lngeiro de São Paulo, trazia
ram moluscos, insetos inhames um vasto conhecimento de pa-
l
diversos que faziam ~arte da ~, deira e quituteira e realizou
dieta indígena. O Padre de
Traíras não se lembrou, mas sal, 00/ grande ' releitura de velhas re-
ceitas goianas, dividindo os re-
açúcar, rapadura, melaço e mel
s~riam habituais à dieta do colo-
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~' sultados com outras meslras da
Cidade de Goiás. A mistura de
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nizador. ... '•• \,!- ....


poesia e culinária produziu efei.
Na verdade o grande deses- tos devastadores - e Cora sou-
, ".-
pero do padre quanto à fome be tão bem misturá-los que •
era a escassez de produtos de . ""
~meirissimos tempos é certo Ma- partir daí surgiu uma fonoa
origem animal, carne sobretu- ~ noel Gomes que deixou seu no- goiana de exaltação poética do
do. Vá comparar-se com as civi· me ao córrego que faz barra de-comer.
lizações herbívoras do oriente! ne Chantal conta - pela mes- e um "azedo e sujo aluá", que é com o Rio Vermelho em Vila Nos anos 70 veio a lum";el-
O português colonizador - e o ma época já o arroz com feíjão é um refresco de cascas de frutas Boa. Ademais, pela virada do plêndido "Cozinha Goiana" de
africano - e o índio - prato muito apreciado em todas ácidas, sohretudo o abacaxi, co- século, pululavam pelas minas Bariaoi Ortêncio, de que nunca
encontraram-se sem conDito na as classes, em Portugal. mo a tudo informa Bariani Or- engenbocas e engenhos de ca- dispus de exemplar fixo, posto
semelhança pelo gosto de pro- Meio século depois, passadas têncio, em seu "Dicionário do na e de farinha, como lê-se na que a cada casamento e desca-
teína na alimentação, o mala- as fomes, e os ouros, com a terra Brasil Cenlral". Cordovil po- uNotícia Ceral" e na memória . sarnento, em toda minha vasta
fome às custas da mais próxima mais ancha do de comer, o poe- rém. nessa época, era um velh& estatistica do Padre Silva e Sou- livraria foi sempre o que as con-
fonte animal. ta árcade Bartolomeu Cordovil, te frustrado que só consolo za. sortes levaram.
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Já nos anos 1980 surgiu o risonho c festivo, esteiado em lho, poluído de mereuno ao quenos calados. À boca peque· Drumond. Por ele passou o de-
prof. Aldair da Silveira Aires, • sólido paiol cheio de milho até o tempo. E hoje de novo, mais e na deveriam chamá·lo "gover- comer, quase que o de-viver,
ilustre poeta e literato, funda- teto, grandeza e porvir de um mais. nador dos livros", se bem inter- quase que o Abilio ínteiro, des-
dor em Goiânia e Brasilia dos viver humilde e aldeião. Peixe seco, por certo, cuja preto a malicia cabocla. de o ameio da roça até ti scva
restaurantes "Forno de Barro", Escrevia D. Cora, já muito farinha compõc bem no famel Frutas plantadas sim, de pro- dos porcos. Abílio auto-suficien-
que definitivamente divulgaram velhinha, e que em dias de Poe- sertanejo. Em começos do sécu- cedências diversas. E nesse caso te, subsistente, pobre. Feliz tal-
a culinária goiDna em seus as- tar, perambulava pela vastidão lo XX, Euridice Natal já informa convido o leitor a ir comigo à vez? Ou isso é termo que não se
pectos mais exóticos: peixe na de sua casa em ruínas sobre a de matança de peixes a bomba, tapera onde roram as casas de lembra quando faz-se, é?
telha, guariroba na manteiga e ponte do TeUes, bebendo Co- no inexaurivel Araguaia. Abilio Drumond, morto em Sigamos para o pomar. Duas
outros. ca-Cola com analgésicos em Porém, se não o peixe, por 1928 e inventariado em 1931, ou três limeiras anciãs que dão
ORIGENS REMOTAS comprimido: certo a pescaria foi e é um com seus quintais abandonados hoje umas poucas limas minús-
A culinária goiana e a mineira " O que me planta não levan- esporte apreciado no sertão, em um canto do meu sítio do culas, messe degenerada das ve-
divergem em detalhes e em al- ta comércio nem avantaja di- motivo de longos causas de con- Assombrado, município de Co- lhas árvores.
ternativas combinantes, nheiro. versa li toa. calzinho, Goiós. E o quintal de goiabeiras. Há
parecendo-me que devem pou- Sou apenas a fartura generosa e Frutas. Comeu-se e come-se Meio ambiente em movimen- dois velhos e enormes pés que
co às tradições africanas e pou- despreocupada dos paióis. do que dá a seara dos cerrados. to, antrópico e depois anantrá- desde o tempo do Abilio prague-
co às indigenas. Sou o cocho abastecido donde E importou-se de tudo, do pico, uma lição prática de Eco- jaram terra abaixo, e de que se
Provêm ambas de uma raiz rumina o gado. mundo inteiro. Em 1801 o go- história. conta hoje geração de umas 200
exótica no norte de Portugal. Sou o canto festivo dos galos na vernador João Manuel de !\Ie- Sobrou, por exemplo, (que ou 300 goiabeiras-filhas, tudo
Segundo Oliveira Marques, pa- glória do dia que amanhece. nezes lançou os fundamentos de não é fruta, mas madeira) a cruz de espontúnea brotação . no
ra ali chegaram, em algum mo- Sou o cacarejo alegre das poe- um Horto Botânico em Vila de pau dOarco lavrado, marcan- abandono do quintal.
mento dos anos 1500, sementes deiras à ,'alta dos seus ninhos. Boa, para onde trouxe prove- do, li vista das ruínas, o local , ·U algures, em 'algum roman-
de milho provenientes da Amé- Sou a pobreza vegetal agrade- nientes da índia, mudas de ca- onde enterrou-se o Drumond. A ce de, Agripa Vasconcelos, exis-
rica. Adaptou-se extraordinaria- cida a vós. Senhor, que me fi- nela e sementes de manga, madeira acinzentou, adquiriu tir em' lugares de antigas tape-
mente o milho entre Douro e zestes necessário e humilde. acondicionadas em caixas com uma te,xtura pétrea c nesses 60 ras junto ao Rio de São Francis-
Minho e nos anos 1600 suplan- Sou o milho. areia. Trouxe mais consigo de anos a chuva c o sol vão fazendo co \'erdadeiras matas de goia-
taria o plantio imemorial de ce- PEIXES E FRUTEIRAS LI',DO:', por determinação Real, seu serviço, justo corroendo no beiras.
vada e: aveia e lançaria os fun- Quanto a peixes, aqui no ser- de um livro, cha- entalhe do braço, obra humana E João Francisco Neto, ilus-
damentos para uma nova civili- tão, o consumo, ainda que sem "O Fazendeiro do Bra- contra as leis da gravidade. tre consultor sobre coisas am-
z.ação culinária euro- ,i1::A ••llrn ser vendido em Goiás. Mais adiante há o entulho da hientais, garante ter topado nas
""ericana. Importada e amal- 1 9 !5""ilahotmso"i levem ter fica- <'asa. Pedaços carcomidos de brenhas setecentistas de Trairas
gamada na Lusitânia e então madeira, a cebola de um esteio, e Ni'luelândia, malinhas de li-
reexportada para o junto algum barro do que um dia fo- mão galego vencendo o sarobüo
das capoeiras.
Da goiaba não estou certo
quanto à origem, mas eis que
em menos de três séculos, fru-
teiras de odgem asiática, como
o limoeiro e a laranjeira, por
excelência ndaptalivu, sobrevi-
veram em muito aos homens
com o português collonial (Iue riS plantaram .
oha, vindo para as minas brasi· E por (lue abandonou·se u
leiras no sêculo XVIII. É aqui casa e o quintal de Abílio Dru-
novamente readaptada, ou mais mond, de raça ciguna, c de sua
provavelmente reencontrada e mul"er li Teodora Coelho de
aglutinada na cozinha e na alco- Filnu,in,;. esta de imernorial as-
va do glutão lusitano pelas ma- paulista. posto que
triarcas paulistas com quem (luutrOl'cntollu?
usualmente se casavam. Uma ci· ~ Lepra. Que, diziam antiga-
vilização do milho? Por quê? • mente, vinha de cume r peh:e.
~ Por que resulta num delirio • Docnç»s antigas. meio am-
protéico fundado no trinônio biente novo ~mtr()J1izado, ali-
vegetal e inocente do milho, fei- I "':' ~entos nonfS. dielus estranhas
jão, e abóbora, como até a pou.tó <10 colonizador. O humem, cu-
CDS anos se comia e se plantava ~ mo a n\ca, (diria Ann Prima\'esi)
nas roças de coivara de todo 0J / ~ o que come c bebe?
Brqsil Central) , E antigamente () (11W se comia
E que com o milho cria-se o O: só dali saía, da natureza geoM-
suíno que fornece carne, touci- gica l'omplc:m dos solus de cer-
nho e banha. Com milho cria-se " 'I·âdo. afetando seus frutos de
o galináceo prolífico, e atrús it- comer, afetando genoma'i.
dele vem a mesa abundante de ~ apressando a e\'oluçào, uheran.
frangos, de ovos. Com o milho • do fisicamente c psicnlogil-a-
os fornos c panelas cnchcm·sc mente o imigrante, su i.l prole e n
de bolos, de broas, curu,us, pa- prole de outr" prole.
monhas, pipocas. Jacy Siqueira Até irem udquirindo a cor
denuncia o exugero de as famí- pálid" do solo, " prosc;di" local.
lias goianas fazerem até ~ pa- os costumcs, e a fonna de fazer
monhadas gigantes na brc\'c es- o de-cmner. A culinária, suh-
tação em que () milho é \'crdc. E produçllO du meio mnhiente in-
o indio, conhecia (I milho. mas

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somhí\'cI e da cultura humana
não suas consequências alimen- Possi\·el .
tares Ilfotéicas. Quem sabe se de l·~ilctll(Js in-
Até há poucos unos utrás vi- grande expressão, s6 encorpou conscientes de uma alquimia
am-se pro\'cctos fazcndeiros do com o advento das geladeiras, do hasbaques ao verem canuas ambiental?
neste século. Não obstante, en- r.ml pan.·des. Telhas nüo, se é
ccrrado medindo com semblan- com Ih-ros na importante frota
contro referências a pescadures que hu\ in. Telhas reutilizam-se
tcs l·arrcgados as cstripulins do
tempo sohre as bonecus de mi- no Araguaia desde os remotos que trouxe o gO\'cnludor, via- em qllOl Í!!,qucr <.'in.'llJlstiim:Í<ls, e
*PAUlO 8ERTAAN escritor e editor
gem custosa e perigo_lia, desde nas pobrezas do !tertào. deste Suplemento_
lho. Ano de pouco milho, ano de tempos de D. José de Almeida Endereço para correspondênd a. SON
Vasconcelos, em 1774. Existem Belém do Pará. Rio Aruguaia E n fogão de pedra. Único 316 Bloco I. Apt' 504 CEP: 70.775.090
carcstiu, poucos leitões, poucos acima até o cais do Rio \'ennc-
dh'ersos .)cdidos feitos à Câma- vestígiu reconhecível de 'Irtcfa- - Brasília-DF, O presente 8rtiQo cons-
ciscantes. lho em Goiás quc. pas- to, talvl'z () mais importante da titui-se de excetos do livro inedito "A
E ano de espigas bojudas, dei- .ra de Vila Boa para instalar Ilustração no Sertão. Fim de seculo na
tando farta cabeleira loira, anu "Paris de Pesca" no Rio ,"enne- mem, já foi nu\ egá\'cl paru pe- humilde existência de Abilio Capitania de GOlas,"

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