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Trazer um tempo vivido intensa e ativamente, de forma um tanto frenética, pois tudo
nos parecia urgente de ser realizado, sem cair em uma espécie de saudosismo
conservador, é um desafio. Desafio que aceito enfrentar ao tentar trazer alguns
fragmentos de uma história que nunca será somente minha, mas de uma geração que
generosamente sonhou, ousou, correu riscos e, como a peste, foi massacrada e
exterminada. Uma geração que, nos anos 60 e 70, apaixonadamente tentou marcar suas
vidas não pela “mesmice”, pelo instituído, pela naturalização, mas ao contrário, pela
resistência, pela desmistificação, pela criação de novos espaços.
Fiz parte de uma geração de jovens estudantes e intelectuais que viveu intensamente o
alegre e descontraído início da década de 60.Naqueleperíodo fortaleceram-se diferentes
movimentos sociais que se voltavam para a “conscientização popular”. Anos marcados
pelos debates em torno do “engajamento” e da “eficácia revolucionária”, onde a tônica
era a formação de uma “vanguarda” e seu trabalho de “conscientizar as massas” para
que pudessem participar do “processo revolucionário”. A efervescência política, o
intenso clima de mobilização e os avanços na modernização, industrialização e
urbanização que configuravam aquele período traziam, necessariamente, as
preocupações com a participação popular.
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Cecília Maria Bouças Coimbra, brasileira, casada, nascida em 16 de março de 1941, no hoje estado do
Rio de Janeiro, psicóloga, professora aposentada da Universidade Federal Fluminense, moradora à Praia
de Botafogo, 22, aptº 502 - Botafogo, RJ, CEP: 22250-040, identidade nº 01731703-3 (IFP/RJ), vem
prestar informações a estas Comissões da Verdade sobre sua prisão arbitrária e sobre as torturas sofridas
nos meses em que esteve detida no DOPS/RJ e no DOI-COIDI/RJ, onde foi torturada por agentes do
Estado brasileiro, no período de 26 de agosto a 11 de novembro de 1970.
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Ressoavam muito próximos de nós os ecos da vitoriosa Revolução Cubana, que passou
a embalar toda uma juventude e grande parte da intelectualidade latino-americana, como
o sonho que poderia se tornar realidade.
E, veio o golpe civil-militar (1964)1 e o golpe dentro do golpe (AI-5, em 1969), quando
a ditadura consolidou a sua forma mais brutal de atuação através de uma série de
medidas como o fortalecimento do aparato repressivo com base na Doutrina de
Segurança Nacional. Silenciava-se e massacrava-se toda e qualquer pessoa e/ou
movimento que ousasse levantar a voz: era o terrorismo de Estado fortalecendo-se.
Através de uma denúncia anônima, vinda do CENIMAR, minha casa esteve monitorada
por cerca de um mês, em julho/agosto de 1970, sem que eu sequer desconfiasse.
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Em 01 de abril de 1964, no CACO (Centro Acadêmico Cândido de Oliveira) da Faculdade Nacional de
Direito, da atual UFRJ, cerca de 200 estudantes universitários concentravam-se para resistir ao golpe.
Foram cercados e atacados pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), grupo paramilitar que, com
rajadas de metralhadora e bombas de gás lacrimogêneo, gritavam que iriam matá-los. Eu estava neste
grupo e fomos salvos pelo Capitão de Cavalaria do Exército, Ivan Cavalcanti Proença que logo depois foi
preso e expulso do Exército.
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meu marido José Novaes, pelo inspetor Jair Gonçalves da Mota - que parecia chefiar a
operação-para a Sede do DOPS/RJ, à Rua da Relação.
Fui separada de meu marido, sendo levada para uma sala – naquele 2º andar - onde dois
homens que não consegui identificar (um deles era alto, forte, mulato, com cabelos
pretos, curtos e bem encaracolados) – revezavam-se no interrogatório. Queriam que eu
escrevesse sobre minhas atividades “subversivas” e informasse a origem de um dos
documentos encontrado em minha residência. Fiquei sob interrogatório, sendo agredida
verbalmente, ininterruptamente, por toda aquela noite e parte do dia seguinte.
À tarde desse segundo dia, 27/08, fui levada para o Depósito de Presas São Judas
Tadeu, que ficava no andar térreo do prédio do DOPS. Lá, dormi, na noite de 27 para
28/08, em uma pequena cela – separada das demais presas que eram comuns. Nesta
pequena cela encontravam-se algumas presas políticas, entre elasGermana Figueiredo e
Maria Auxiliadora Lara Barcelos2.
À tarde do dia 28/08, fui colocada em uma viatura oficial da polícia civil, junto com
José Novaes e uma amiga, também presa, Arlete de Freitas. Antes disso, ao sair do
presídio e ser levada novamente para o 2º andar, em uma sala, fui interrogada pelo
agente do DOPS, Humberto Quintas. Soube do nome, pois esta pessoa havia sido
vizinha de Arlete, minha amiga, que já estava presa no DOPS. Na ocasião, vi, em uma
dessas salas, um colega da FNFi, Abel Silva e Sônia, sua mulher à época, na condição
de presos.
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Falar daqueles três meses em que fiquei detida incomunicável sem um único banho de
sol ou qualquer outro tipo de exercício é falar de uma viagem ao inferno: dos suplícios
físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, solidão, medo, pânico, abandono,
desespero; é falar da “separação entre corpo e mente”, como afirmava Hélio Pellegrino.
A tortura não quer “fazer” falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível
situação: através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em
coisa, em objeto. Resistir a isso é um enorme e gigantesco esforço para não perdermos a
lucidez, para não permitir que o torturador penetre em nossa alma, em nosso espírito,
em nossa inteligência.
Novamente encapuzada, levaram-me para o andar superior (subi dois lances de escada).
Fiquei em uma cela e, após retirarem-me o capuz, entrou um homem que, sem dizer o
nome, identificou-se como médico, tirou minha pressão e perguntou-me se era cardíaca.
Não possuía qualquer identificação, embora estivesse uniformizado. Mais tarde, ao
esquecer um receituário em minha cela, soube tratar-se de Amílcar Lobo, conhecido
como Dr. Carneiro, médico e aspirante a psicanalista.
Poucos minutos depois, fui levada encapuzada para o andar térreo, para uma sala que
ficava à direita, no final de um corredor: a sala de torturas, conhecida como “sala roxa”.
De capuz, tive minhas roupas arrancadas e meu corpo molhado. Fios foram colocados e
senti os choques elétricos: no bico dos seios, vagina, boca, orelha e por todo o corpo.
Gritavam palavrões e impropérios, chutavam-me. Já haviam identificado o documento
encontrado em minha residência: era do MR-8 e daALN, quando do sequestro do
embaixador norte-americano, no ano anterior. Naquele mês de agosto, havia sido
sequestrado o embaixador alemão e os serviços de informação pouco sabiam a respeito.
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Acharam que por ter em mãos aquele documento, eu teria alguma informação sobre o
sequestro do embaixador alemão. Exigiam-me, através das torturas, que eu falasse o que
não sabia! Em dado momento, não sei precisar quanto tempo decorreu (encontrava-me
sem controle da bexiga e do ânus), tiraram-me o capuz e vi vários homens.Mais tarde,
identifiquei alguns, como sendo o major da PM RiscalaCorbaje, conhecido como Dr.
Nagib, o agente da polícia civil Luiz Timótheo de Lima, conhecido como Padre e Jair
Gonçalves da Mota, o mesmo que havia participado das buscas em minha residência
com a equipe do DOPS/RJ. Havia ainda, um sargento do Exército – o único que usava
farda – baixo, gordo, negro, que não consegui saber quem era. Extremamente
agressivo, chutava-me, empurrava-me e esmurrava-me.
Fui levada de volta para a cela por um cabo do Exército – usava uniforme, era bem
moreno, altura mediana, de porte médio tendendo para magro, cabelos lisos e pretos,
parecendo nordestino – era chamado de cabo Gil e, frequentemente, cantava quando
vinha, balançando as chaves, nos levar para algum interrogatório e/ou tortura: “Receba
as flores que eu te dou / Em cada flor um beijo meu (...)”.
Ao chegar à cela, deparei-me com Arlete de Freitas que ficou ali presa comigo por
alguns dias. No dia seguinte, não sei precisar bem, fui novamente levada para a sala de
tortura, no andar térreo, e lá vi parte da tortura que meu marido sofria: choques elétricos
em todo o seu corpo. Seus gritos acompanharam-me durante anos.
Era muito comum esta tática quando algum casal era preso, além de se tentar jogar um
contra o outro em função de informações que pseudamente algum teria passado para os
torturadores... “Será mesmo que ele falou isso?”... Era necessário um esforço muito
grande para não sucumbirmos...”Se falou está louco!”... era o meu argumento, repetido
à exaustão.
Continuavam querendo saber sobre o sequestro do embaixador alemão. Fui novamente
despida, e colocada numa sala que ficava ao lado da de torturas. Fui amarrada numa
cadeira e colocaram um filhote de jacaré sobre meu corpo. Desmaiei.
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Queriam também saber sobre alguns postais encontrados em nossa casa, enviados por
amigos que estavam exilados na França. Acusavam-nos de fazer parte do grupo que
encaminhava denúncias sobre a ditadura para o exterior.
O barulho aterrorizante das chaves nas mãos de algum soldado que vinha abrir alguma
cela... “Quem será dessa vez”... Quando passava por nossa cela e ia adiante
respirávamos aliviadas. Alívio parcial, pois pensávamos: “quem estará indo para a “sala
roxa” dessa vez”? Esse farfalhar de chaves me acompanhoupor muitos anos.
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Este tinha 16 anos e foi acordado com uma metralhadora no peito sendo interrogado se o pequeno
laboratório de fotografia que tinha em casa era para tirar documentos falsos. Queriam os negativos das
fotos.
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Às 18 horas faziam o “confere” em cada uma das celas: alguns soldados, um oficial –
um deles orgulhosamente exibia um anel com uma caveira em cima de duas tíbias,
símbolo do famigerado Esquadrão da Morte – e um enorme cão policial nos farejava.
De madrugada, sistematicamente, abriam violenta e estrondosamente as celas e
lançavam fortes luzes em nossos olhos, ordenando-nos, aos gritos, que nos
levantássemos, pois um novo “confere” iria ser feito... De novo, o cão policial nos
farejava...
Em outro momento, ainda em final de agosto, não sei precisar o dia, à noite, fui
colocada algemada e encapuzada em um carro de passeio. Quando saltei do carro, sem
capuz e algemas, reconheci o prédio, em Copacabana, onde moravam meus amigos
Marlene Paiva e Marcos Franco, já falecidos. Subimos no elevador e, diante da porta do
apartamento, os homens- eram quatro, os que me levavam-, sacaram suas metralhadoras
e tocaram a campainha. Quando Marcos atendeu, empurraram-me para dentro.
Vistoriaram a casa e os levaram presos comigo para o DOI-CODI/RJ. Anteriormente
vinculados ao PCB, naquela época não tinham militância política. Voltei no carro sem
capuz e reconheci o local onde estava presa: a PE da Rua Barão de Mesquita.
Chegando lá, algum tempo depois, fui levada para “assistir” Marlene e
Marcosseparadamente, serem torturados. Reconheci entreseus torturadores o Dr. Nagib
(RiscalaCorbaje) e aquele que chamavam de Padre (Luiz Timótheo de Lima).
Nos dias que se seguiram, toda vez que vinham buscar-me na cela para novo
interrogatório, encapuzavam-me e as sevícias e abusos sexuais aconteciam por parte dos
soldados que me levavam. Num desses dias, ainda em final de agosto, vi e falei com
uma amiga, que não sabia tinha sido presa também, Maria Helena do Nascimento
Barbosa.
Nas noites em que não tinham “trabalho” para ser feito, algumas equipes de torturadores
para “passar o tempo” nos chamavam, apenas as mulheres. Nunca sabíamos se era para
novas sessões de tortura, para alguma acareação ou para um “bate papo”, como eles
denominavam essas “conversas”. Nelas, alguns deles tentavam nos convencer de que as
torturas eram necessárias e nos perguntavam: “vocês falariam alguma coisa se não
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houvesse essas “pressões”?”... Nesses “bate-papos” tentavam ainda nos jogar umas
contra as outras ao insinuarem sobre alguma de nós: “mas vocês têm certeza da
militância dela? Vocês confiam mesmo nela?”...
A partir de setembro, fui transferida para uma cela maior - conhecida como Maracanã –
onde estive com várias presas: Dulce Pandolfi, CarmelaPezzuti, Tânia, Glória Márcia
Percinotto, três moças ligadas à JOC (Juventude Operária Católica) de Volta Redonda e
Maria do Carmo Menezes (grávida de cinco meses)4, dentre outras.
Numa madrugada fui retirada da cela, levada para o pátio, amarrada, algemada e
encapuzada... Aos gritos diziam que ia ser executada e levada para ser “desovada” como
em um “trabalho” do Esquadrão da Morte... Acreditei... Naquele momento morri um
pouco... Em silêncio, aterrorizada, me urinei... Aos berros, riram e me levaram de volta
à cela... Parece que, naquela noite, não tinham muito “trabalho” a fazer ... Precisavam se
ocupar...
Noutra ocasião, fui levada encapuzada para uma sala que ficava no andar térreo, mas do
lado oposto ao da sala de torturas. Parecia o gabinete de alguma autoridade. Lá, um
oficial doExército – estava de farda, mas sem qualquer identificação, como todos os
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Esta ex-presa política recebia, em nossa cela, um soro intravenoso, dado pessoalmente pelo ex-médico
Amilcar Lobo. Logo depois descia para ser torturada com choques elétricos. Ao chegar em nossa cela,
Maria do Carmo estava com o rosto totalmente deformado.
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demais–louro, alto, robusto, que, posteriormente, identifiquei como sendo Alfredo
Magalhães, me interrogou sobre o sequestro do embaixador alemão. Nesta sala havia
um quadro com a caveira e as tíbias cruzadas e as iniciais EM,símbolo do Esquadrão da
Morte.
Além das pessoas presas já mencionadas, algumas outras foram vistas por mim no DOI-
CODI/RJ: Alberto José Barros da Graça, Luiz Sérgio Dias, já falecido, (amigos e
companheiros do PCB e da FNFi), Jorge Leal Gonçalves e Eduardo Leite, o Bacuri.
Este último, já quase não andava de tão torturado. Era carregado por dois soldados5.
Jorge Leal Gonçalves é desaparecido político. Foi visto por mim, em outubro de 1970,
não sei precisar o dia, quando era levado para ser torturado. Eu saia da “sala roxa” e ele
estava entrando. Muito magro, bastante machucado com marcas roxas no rosto e nos
braços. Cruzamos na entrada da sala de torturas; nos olhamos... Seu olhar me
acompanhou por muitos anos...
Parece que foi ontem... Esta e muitas outras histórias continuam em nós marcadas a
ferro e fogo... Fazem parte de nossas vidas... Falar delas é ainda duro e difícil... Parece
realmente que foi ontem, hoje, agora... Envolvemo-nos, desde então, direta e/ou
indiretamente naluta contra a ditadura. Foi sem dúvida a experiência – não só a da
tortura, mas a da militância naqueles anos – mais visceral de toda a minha vida e que me
marcou para sempre. Nós mulheres que atuamos – na vanguarda ou na retaguarda, não
importa – naquele intenso e terrível período, derrubamos muitos tabus, vivemos
visceralmente a presença assustadora da morte, a ousadia de desafiar e enfrentar um
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Foi assassinado em São Paulo, em dezembro de 1970, após 109 dias de prisão e tortura.
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Estado de terror, a coragem de sonhar e querer transformar esse sonho em realidade.
Acreditávamos... Sim, queríamos um outro mundo, outras relações, outras
possibilidades... e queremos hoje.
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11) Francisco Demiurgo Santos Cardoso, conhecido como “major Demiurgo”. Era
Major na Infantaria do Exército, lotado no DOI-CODI/RJ em 1969 e 1970. Nos
anos 70 foi transferido para o Comando Militar da VIª RM de Salvador (Bahia).
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