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ESCOLA DE CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Mestrado de Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural


Ano Letivo 2016 / 2017

Seminário de Modelos, Paradigmas e Itinerários Monumentais

Ficha de Leitura:
«Viagens em Portugal», James Murphy

Docente: Professor Doutor Manuel Patrocínio

Discente: Ana Rita Santos Mateus, n.º 36911

Évora, abril de 2017


Arquiteto, desenhador e escritor, James Cavanah Murphy nasceu em 1760, na
província de Blackrock, situada no interior da cidade irlandesa de Cork. Desde muito cedo
que mostrou interesse pelo desenho, visto ter ingressado, com apenas quinze anos, na
Escola de Desenho da Sociedade, em Dublin, onde trabalhou miniaturas giz e lápis de
cor. Em 1786 foi um dos sete arquitetos consultados no âmbito das obras de remodelação
da Câmara dos Comuns e participou na realização e execução do projeto concebido por
James Gandon para o mesmo edifício.
Dois anos depois, em resposta à solicitação do também irlandês e seu tutor William
Burton Conyngham, visita Portugal empenhado em produzir uma série de desenhos do
Mosteiro da Batalha. No final de 1790, Murphy regressa a Dublin e, depois de uma
viagem por Inglaterra, muda-se para Cádiz, cidade onde durante cerca de sete anos exerce
funções diplomáticas e simultaneamente estuda arquitetura árabe e mourisca. Finalmente
estabelecido em Inglaterra (1813), James Murphy ocupa-se da promoção de um método
de conservação de madeira e inicia a publicação das suas descrições sobre o património
árabe. Falece no dia 12 de setembro de 1814, em Londres.
O seu trabalho como escritor tornou-se fundamental e, em muitos casos, constitui o
principal testemunho das artes e rotinas da sociedade de finais do século XVIII. Das várias
obras que escrevera destacam-se «Planos, altitudes, secções e vistas da Igreja da
Batalha… A que é prefixado um discurso introdutório sobre os princípios da arquitetura
gótica» (1795), «Vista Geral do Estado de Portugal» (1798), «Antiguidades Árabes de
Espanha» (1813) e «Viagens em Portugal» (Londres - 1795), cujos dados mais relevantes
esta nota de leitura procura registar.
Traduzida para português e prefaciada por Castelo Branco Chaves, a obra originária
de James Murphy foi publicada no nosso país em 1998 numa edição da editora Livros
Horizonte. Logo no preâmbulo percebemos o grande objetivo do livro: «Murphy veio
aqui encarregado de estudar e desenhar os nossos monumentos e preciosidades
arqueológicas pelo seu protetor, the Right Honourable William Burton Conyngham que,
anos antes visitara Portugal em viagem de recreio e ficara, então, maravilhado com a
igreja e Convento da Batalha. (…) Tendo gostado da terra e simpatizado com a
sociabilidade da gente portuguesa, ganhou interesse pelos nossos costumes, monumentos
e antiqualhas e como se sentia bem, foi ficando (…) percorreu o País de norte a sul entre
os anos de 1788 e 1790».1
Refira-se que o século XVIII ficou marcado pelo fenómeno iniciado em Inglaterra,
conhecido por «Grand Tour», no qual os jovens aristocratas partiam à descoberta do
património cultural do continente europeu num processo de aprendizagem pessoal. Ao
mesmo tempo, floresciam na Europa movimentos como o Romantismo e o Revivalismo
Gótico que levam o homem a manifestar um certo culto pela natureza, bem como pelas
relíquias e curiosidades do período medieval, sobretudo no que toca à história da arte.
Todavia, é provável que esta visita de James Murphy não se inclua totalmente neste
espírito intelectual tão característico do Renascimento, visto que se realizou com um
propósito meramente profissional e sob proteção tutorial, encabeçada pela londrina Royal
Society of Antiquaries. Por outro lado, como Castelo Branco Chaves faz questão de frisar
no prefácio, o arquiteto «parece não ter vindo a Portugal movido por espontâneo
interesse nem contagiado pela curiosidade e simpatia que o terramoto de 1755 despertou
pelo nosso país nos súbditos de Sua Graciosa Magestade».2 Atente-se ao facto de esta

1 P. 9
2 Idem

2
catástrofe ter inspirado uma vasta literatura em grande parte da Europa, de que é exemplo
o poema de Voltaire intitulado «Le Désastre de Lisbonne» (1756).3
James Murphy saiu do porto de Dublin do dia 27 de dezembro de 1788 a bordo de
um barco da Marinha Mercante e desembarcou na cidade do Porto ao oitavo dia do mês
de janeiro do ano seguinte. Fora já nesta povoação portuguesa que obtivera, por parte de
um comerciante inglês residente no Porto, a carta de apresentação a entregar ao Prior da
Batalha, vila para a qual seguiu viagem no dia 23 de janeiro. Após sete dias de uma
jornada repleta de peripécias, o arquiteto irlandês chega finalmente perto do Real
Mosteiro da Batalha, cuja visita, realça, «só por ela, compensa largamente uma grande
viagem, mesmo que ela fosse menos agradável que aquela que eu acabo de fazer».4
Aqui se manteve por treze semanas, e acolhido pelos frades Dominicanos que então
habitavam o mosteiro, dedicou-se por inteiro a estudar, a desenhar e até a medir todo o
edifício: «a extensão desde a entrada pelo lado oeste até à extremidade este, é de
quatrocentos e dezasseies pés. De norte a sul, incluindo o mosteiro, mede quinhentos e
quarenta e um pés. Tudo, com exceção dos compartimentos inferiores e dormitórios, é
construído com mármores da região, não muito diferentes, em cor, dos de Carrara».5
Este monumento, construído sob o modelo que Murphy denomina por «Gótico
Normando Moderno» é, aos seus olhos, «um dos mais perfeitos e belos espécimes
existentes desse estilo»6, pelo que as páginas que lhe dedica podem considerar-se um
inventário bastante minucioso de cada uma das divisões deste espaço, bem como dos
monarcas que reinaram durante o período de construção deste edifício que serviu para
memorar a vitória portuguesa sobre os espanhóis, na famosa Batalha de Aljubarrota.
O itinerário de James Murphy por terras lusas prossegue em direção ao sul do país.
Na Marinha Grande, o autor descreve o método de trabalho dos apicultores de então e em
Alcobaça, a paragem que faz no mosteiro desta cidade permite-lhe uma observação mais
atenta aos túmulos de Inês de Castro e de Dom Pedro, cuja trágica história de amor é por
si relatada e comparada com outros textos que inspiraram os mais variados escritores,
sobretudo franceses e ingleses. Seguiu-se Lisboa, cidade onde se demorara mais - cerca
de dez meses. Tempo mais que suficiente para Murphy investigar as particularidades
desta cidade, a origem do seu nome e visitar os seus principais monumentos e estátuas,
embora assuma não existirem «notícias suficientes sobre as artes, educação e edifícios
públicos desta capital».7 Um dos capítulos onde mais se alonga prende-se com os usos e
costumes da população, que considera estar dividida em quatro classes: a dos Nobres, a
dos Eclesiásticos, a dos Comerciantes e a dos Lavradores, e elabora, para cada uma delas
uma clara distinção entre o comportamento, vestuário, ocupações e responsabilidades.
Ainda em Lisboa, James Murphy ocupa-se da análise ao tratado de Methewen,
produz observações sobre as leis de Portugal, dando destaque à que estava em vigor desde
1211, aquando do reinado de D. Afonso II e evoca a presença dos Judeus no território
nacional após esses serem afastados de Espanha, reforçando o cruel tratamento que os
oficias ao serviço do rei lhes concebiam e forma atribulada como alguns deles foram
expulsos do território nacional por se recusarem a abraçar a fé cristã. Para além disto, o
arquiteto não esquece de visitar o Convento Irlandês, ou Colégio da Ordem Dominicana,
erguido em 1655 pela rainha D. Luísa de Gusmão e totalmente arrasado pelo terramoto
de 1755. Anos mais tarde, fora reconstruído pelos frades que então habitavam o imóvel
graças à preciosa ajuda de «algumas famílias irlandesas de categoria fizeram doações

3 «O Terramoto de Lisboa (1755), disponível em: http://historia-portugal.blogspot.pt/2008/02/o-terramoto-de-lisboa-


1755.html, visualizado em 19 de abril de 2017
4 P. 47
5 P. 48
6 P. 48
7 P. 113

3
para esse fim, mas a maior parte das despesas foram pagas pelo generoso povo
português».8
Antes de continuar a sua jornada em direção ao sul James Murphy efetua ainda duas
pequenas paragens, a primeira em Sinta, onde se mostra perplexo com a arquitetura do
Mosteiro de S. Jerónimo (fundado pelo rei D. Manuel no século XVI), particularmente
por uma sala retangular que «se supõe ser um balneário mourisco, com cinquenta pés de
comprimento por dezassete de largura»9, bem como pelo palácio de residência da família
real durante o verão, na altura abandonado desde a morte de D. Afonso VI; e a segunda
em Mafra, onde está erguido o imponente convento fundado por D. João V, que o autor
considera «o Escorial de Portugal, cuja estrutura o seu real fundador quis imitar».10
No dia 10 de outubro de 1790, o irlandês alcança Setúbal e dai prossegue para os
seus dois últimos destinos: Beja e Évora. Em ambas as cidades, Murphy faz um extenso
levantamento arqueológico do espólio que recentemente havia sido descoberto no âmbito
de escavações, como ânforas, monumentos em mármore, um lacrimário, um ossário, entre
outros. No caso particular de Évora, o arquiteto visita e desenha o aqueduto de São
Sertório, a Capelo dos Ossos e o Templo de Diana, o qual estava na altura convertido em
matadouro, embora Murphy, que teve conhecimento da construção por parte do
Intendente Geral de Lisboa, D. Inácio Manique, reconheça que «em antiguidade e
elegância é o edifício mais valiosos que existe em Portugal».11 Aqui em Évora, o irlandês
deixa nove gravuras de pedras com inscrições que vão sendo encontradas «de tempos a
tempos» na cidade e arredores, sendo uma delas em epigrafia árabe.
O testemunho de James Murphy torna-se uma leitura indispensável para todos
aqueles que queiram conhecer a situação de Portugal em finais do século XVIII, assim
como para os que, depois de Murphy, desejem estudar as particularidades do nosso
património cultural. O autor demonstra conhecer a história de Portugal, visto que relata
com grande exaustão os momentos mais marcantes do País, bem como a literatura
nacional, pois é recorrente encontrar momentos em que Murphy transcreve, por exemplo,
excertos do famoso poema «Os Lusíadas», de Luís de Camões, como acontece quando
chega à cidade de Coimbra. Sobre alguns monumentos, particularmente o Mosteiro da
Batalha, esta publicação apresenta-se como uma espécie de inventário artístico e
arquitetónico das artes em Portugal, ou não fosse essa a intenção do autor.
Todavia, em certas passagens do livro, deparamo-nos com descrições divertidas e,
por vezes, algo irónicas, como se vê nas circunstâncias das estdias nas estalagens e
pousadas que fizera no decorrer na sua jornada pelo país, ou logo no momento da sua
chegada a Portugal, quando se vê no meio de uma tempestade em pleno Rio Douro. Seja
como for, «Viagens em Portugal» constitui uma espécie de «Inventário Artístico de
Portugal», mas também um importante documento acerca dos costumes e das tradições,
das profissões ou da gastronomia portuguesa. Refira-se que James Murphy não se
deslocou ao Algarve, talvez por esta não ser uma região tão avulta em património e que
merecesse uma visita do arquiteto irlandês.

8 P. 154
9 P. 205
10 P. 239
11 P. 264

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