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México - Conquista e Evangelização.

Cosmovisão Asteca e Sincretismo Religioso

Maria Teresa Toribio Brittes Lemos

Segundo Ortega y Gasset, "un hombre se define más por lo que cree que por lo que piensa" 1
No confronto entre os invasores europeus e as sociedades indígenas, espanhóis e astecas
lutaram para impor seus deuses e crenças. Desse embate resultou uma sociedade indígena,
mestiça e criolla, extremamente religiosa e fanática. E as crenças religiosas se
interpenetraram, produzindo dois sincretismos: o católico espanhol e a cosmovisão mexica.
A esse respeito Jacques Lafaye escreveu que:

[…]o primero marcado por su coexistencia de siglos con el Islam, religión de cruzada y de fin de
mundo; el segundo también religión militante de pueblo elegido...ambos nascen en el mundo
prehispánico y son reelaborados en el siglo XVI por espíritus en los que el naciente pensamiento
moderno se mezcla con la tradición medieva […]2.

Tanto no Novo Mundo como na Europa as religiões incluíam crenças exógenas, devido às
questões pluriculturais que cercavam aquelas sociedades. A cosmovisão mexica
compreendia cultos e ritos dos povos indígenas submetidos à Tenochtitlán e ao deus
Huitzilopochtli , assim como, na Península Ibérica, fortes traços do Islamismo e Judaísmo
alteraram a ortodoxia cristã.

O inevitável confronto entre esses dois povos produziu novos padrões religiosos,
alterando as crenças e o sagrado. Vencidos pela violência dos estrangeiros e
abandonados pelos povos submetidos à Montezuma , os astecas não conseguiram escapar
da sanha dominadora dos espanhóis.

O avanço dos conquistadores se estendeu sobre todo o espaço indígena, submetendo


vencidos e aliados às crenças e ao poder da Espanha. A racionalidade pela sobrevivência
mascarou as relações entre esses dois povos e novas representações culturais e religiosas
moldaram a nova sociedade México-hispânica, sincrética e plural.

Para Barros (1993) ,o sincretismo assentou-se precisamente na rejeição dessa polaridade


e se [...] no pressuposto de um mundo povoado de deuses e, sempre que possível,
cooptados. Com esse objetivo, o senso comum admitiu certas incongruências, bem como a
superficialidade de determinadas interpretações, apelando, por vezes, para identificações
mais ou menos óbvias, fornecidas pela lógica das qualidades sensíveis[...]3.

O sincretismo possibilitou a vinculação entre diferentes identidades e reduziu “ a


complexidade real de um universo marcado pela heterogeneidade religiosa e social, deu
margem à incorporação, embora parcial e restritiva, do Outro, na exata medida em que
1
-Ortega y Gasset, Jose – Historia como sistema. 1962 p.21
2
-- Lafaye, J. - Quetzalcóatl y Guadalupe. México, Fondo e Cultura Económica, 1991p.12:13
3
- Barros, Jose Flavio, A Galinha d’Angola, Rio de Janeiro, Pallas . 1993, p.167

1
abriu mão do requisito de “pureza” 4. Indígenas e espanhóis, sociedades com culturas
diferentes,eram [...] hombres de diversas estirpes, que profesan diversas religiones y hablan
en diversos idiomas. Han tornado la extraña resolución de ser razonables.Han resuelto
olvidar sus diferencias y acentuar sus afinidades […]. 5

Apesar dessa complexidade, para reconstruir seus espaços sagrados esses dois povos em
confronto procuraram conviver com certa "racionalidade"e precisaram construir uma
identidade comum para ultrapassar as diferenças, encontrando na religião essa afinidade.
Os mitos de Quetzalcóatl/ São Tomás ( considerado um mistério religioso) e
Tonantzin/Guadalupe converteram-se em símbolos e gritos de guerra até os dias atuais, não
como especulação teológica, porém como imagens coletivas. 6

A entrada dos espanhóis no México-Tenochtitlán causou grande ruptura na sociedade


indígena, principalmente após o extermínio da casta sacerdotal, detentora do saber
religioso, mágico e político, além da submissão ao processo de evangelização.

Octávio Paz atribuiu aos franciscanos a responsabilidade por aquela catástrofe cultural. Eles
se […]negaron a todo compromiso con las religiones y creencias prehispánicas. Ninguno de
los ritos y ceremonias que describe Sahagún, fue visto como un “ signo” que pudiese servir
de puente entre la religión antigua y la cristiana[…]7

O sincretismo desenvolveu-se de fato na base da pirâmide social. Abandonados pelos seus


deuses, os índios aceitaram o cristianismo e substituíram seus deuses pelos anjos e santos
do catolicismo. Embora batizados e frequentando a Igreja, guardaram em suas memórias e
imaginários suas crenças como forma de resistência. A permanência da cultura deles
manteve-se intacta no corpo calado, que os espanhóis não conseguiram decifrar, na
racionalidade da sobrevivência. 8

A interpretação de Paz sobre o sincretismo revelou um México exótico e místico. Para ele,
a Nova Espanha foi uma sociedade estranha e com um destino não menos estranho:

[…]fue una sociedad que negó con pasión sus antecedentes y antecesores - el mundo
indígena y el español - y que, al mismo tiempo, entretejió con ellos relaciones ambiguas; a
su vez, fue una sociedad negada por el México moderno.México no sería lo que es
sin Nueva España, pero México no es Nueva España. Y más: México es su negación.
La sociedad novohispana fue un mundo que nació, creció y que, en el momento de
alcanzar la madurez, se extinguió[…].9

No século XVI , foram grandes os esforços dos franciscanos e outras ordens Religiosas no
sentido de enraizar o catolicismo por meio de uma especulação sincrética, bem como tornar

4
Barros, J.F- op.cit. p.167).
5
- Paz, Octavio – El Laberinto de la Soledad. México 1959 p.22-23
6
-Idem, op. cit, p.23
7
- Lafaye, J. – op. cit.p.14
8
- Toribio B. Lemos, Maria Teresa. - Corpo Calado. RJ.2000.
9
-Paz, op. cit., - p.23

2
o vice-reino de Nova Espanha a Outra Espanha e de México-Tenochtitlán, centro do
Império asteca, a Roma da América Setentrional.

Para Carlos Sigüenza y Góngora ( 1645) 10 a exaltação do passado indígena morto coexista
com o ódio e o temor diante do índio vivo. De acordo com seus relatos, por ocasião da
limpeza de um dos canais de Tenochtitlán, encontrou-se um grande número de de pequenos
objetos de superstição, que qualificou como magia negra asteca. Estavam todos perfurados
com facas e lanças, o que para ele comprovava o ódio dos índios aos espanhóis, embora a
maioria já se encontrasse cristianizada. O autor, rígido em seus princípios religiosos não
admitia a existência de magia indígena. Tratou as práticas culturais mágicas dos indígenas
como a bruxaria na Espanha. Os mexicas eram as feiticeiras de Vizcaya e os sacerdotes
astecas que substituíram os “sábios “ (grandes sacerdotes) como “nigromantes”.

O sincretismo mexicano representou a necessidade da legitimação da origem divina do


homem e se desenvolveu através da convergência entre a expectativa escatológica dos
astecas, com o retorno de Quetzalcóatl e o milenarismo dos cristãos.

[...]fue una raíz de la mística nacional criolla, que debía tomar rasgos de la virgen de
Guadalupe antes de laicizarse en la divisa de un pueblo que se creyó a sua vez el “ pueblo
elegido". Como México no hay dos [...] .11

Assim, o guadalupismo 12 tornou-se uma das mais fortes expressões do sincretismo


mexicano. Da mesma maneira a identificação de Quetzalcóatl, herói-deus indígena, com o
apóstolo São Tomás, evangelizador do Novo Mundo, significou a redenção espiritual da
sociedade México-hispânica.

A Espanha transmitiu ao México o espírito de “paróquia”, desenvolvendo um apego


místico ao espaço sacralizado pela religião cristã em terras náhuatl, que pode ser
exemplificado por Puebla de los Ángeles, em território tlaxcalteca.

Em 153l, segundo os espanhóis, o Arcanjo São Miguel apareceu a um índio, em local


afastado entre Puebla e Tlaxcala. Por que essa visão não poderia ser o deus Quetzalcóatl, a
serpente emplumada, com asas, que voava? Por que predominou a versão cristã? Essas
questões explicam o etnocentrismo e a alteridade. Os franciscanos ignoraram a religião
indígena, que consideravam apenas cultos idólatras e por isso trataram de construir no
local, em homenagem ao Arcanjo, uma grande Igreja, como prova dos mistérios da fé. Os
nativos passaram a adorar São Tomás/Quetzalcóatl.

Nesse mesmo ano, segundo os espanhóis, a Virgem de Guadalupe apareceu na cidade do


México também para um nativo e imediatamente foi construída uma capela em sua
homenagem. Por que o índio não poderia ter visto Tonantzin, que tinha o mesmo
significado de deusa mãe para os nativos? Por que foi justamente a Virgem de Guadalupe?
Evidente que os espanhóis jamais poderiam admitir uma visão que não fosse cristã. Para
10
-Carlos de Sigüenza y Góngora foi um dos primeiros grandes intelectuais nascidos no Vice-Reino de Nova Espanha
( 1645/1700). Escritor e polígrafo assumiu na colônia vários cargos políticos e acadêmicos.
11
Lafaye, op. cit.p.10).
12
- guadalupismo – culto a Nossa Senhora de Guadalupe ou Tonantzin.

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eles, apenas o cristianismo consistia numa religião sagrada, pois os índios possuíam apenas
ídolos e crenças diabólicas.

Mesmo sendo considerada uma visão cristã, a Virgem de Guadalupe foi tratada pelos
mexicas como Tonantzin/Guadalupe, uma associação com a sua deusa. O cristianismo
introduzido nas comunidades indígenas tornou-se a religião oficial e aliado à mestiçagem
transfigurou as crenças nativas, dando origem ao que se define como sincretismo religioso.

Apesar da grande perseguição à idolatria, o sincretismo conseguiu mascará-la. Os mexicas


continuaram adorando seus deuses, travestidos de anjos e santos cristãos. Escondiam seus
ídolos atrás dos altares, embaixo das roupas e as enterravam, além de outras formas para
ludibriar as autoridades. Esse comportamento comprovou que embora combatidas as
crenças indígenas, consideradas idólatras pelos espanhóis, , não foram de fato destruídas.

Apesar dos processos da Inquisição contra os índios "idólatras", da derrubada dos templos,
da queima dos ídolos e construção de igrejas cristãs nesses locais sagrados, também a
perda do visual, do concreto, os mexicas guardaram na memória sua cultura religiosa. A
absorção do cristianismo e seus ritos foram associados às suas manifestações religiosas para
que o “corpo calado “ resistisse, não permitindo que os espanhóis se apercebessem dele.

Outro fator que concorreu para a continuidade das crenças nativas foi o extermínio da casta
sacerdotal. Esse fato permitiu que "bruxos e feiticeiros", na versão espanhola, assumissem
aquele papel e continuassem desenvolvendo as crenças tradicionais.

Os processos da Inquisição expressaram os delitos referentes à idolatria e à feitiçaria Os


sacerdotes indígenas, considerados bruxos, vestiam-se com as roupas dos frades, na
esperança de captar a força sobrenatural dos religiosos espanhóis. Em contrapartida, os
religiosos franciscanos, que se diziam Apóstolos de Cristo, foram identificados por Martin
Ocelotl como monstros devoradores, que na cosmogonia mexicana aniquilavam
ciclicamente a humanidade.

Essa questão foi possível pela conversão rápida dos nativos e pelo número reduzido de
sacerdotes espanhóis, que não tinham condições de controlar a ortodoxia dos índios. A
repressão não impediu a continuidade das antigas crenças, nem os ritos tradicionais de
subsistir e fundir-se à religião cristã, possibilitando esse caráter sincrético.

A forte adesão ao culto da Virgem de Guadalupe, senhora da proteção e garantia da


salvação, explica-se pela expectativa escatológica indígena associada à lembrança de uma
cosmogonia, onde o apocalipse consistia na destruição da humanidade. O medo do caos
aproximou-os da religião cristã, que da mesma maneira que a mexica, indicava a origem da
humanidade e a sua salvação pela fé.

Como o sincretismo se manifestou rapidamente, os espanhóis tiveram grandes dificuldades


em impor a Virgem dos Remédios no lugar Tlaloc, deus da água, da mesma forma que
conceder à Virgem de Guadalupe atribuições inerentes ao deus Tlaloc, com a finalidade de
evitar as inundações.

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Assim como os indígenas conservaram no seu cotidiano a antiga religião, na medida que
ela garantia sua subsistência, foram também induzidos a aderir aos símbolos da religião do
conquistador. Não somente os mexicas assimilaram as práticas cristãs, como também os
cristãos foram influenciados pela religião mexica, sobretudo em relação aos seus costumes.
Lafaye assinalou que foram vários os casos em que sacerdotes cristãos se envolveram com
índias casadas, em torturas e assassinatos de nativos.13

As crenças sincréticas, especificamente as mexicanas, e os rituais mágicos dominaram as


comunidades indígenas, associadas à espera messiânica e à concepção apocalíptica. O
encontro entre as divindades mexicas e o culto dos santos protetores locais, presentes na
sociedade espanhola, deu lugar a substituições e assimilações, isto é, moldando o caráter
sincrético da sociedade mexica-espanhola.

Enfim, constatamos que o sincretismo, ao incorporar as crenças das sociedades mexica e


espanhola, permitiu forjar uma nova sociedade, calcada na nova sacralização do espaço
pelo cristianismo, mantendo, no entanto, de forma dissimulada, as crenças nativas. Não
obstante, o sincretismo também se tornou um dos principais fatores de resistência indígena
e contribuiu para a permanência das concepções mentais mexicas, guardada na memória
daqueles que não tiveram a oportunidade de conhecer a sua cultura, visual e concreta, mas
que permaneceu através dos mitos e dos relatos dos mais antigos.

O sincretismo constituiu numa forma artificial de convivência entre duas sociedades


fanáticas. O cristianismo incluiu em seus cultos as crenças nativas que mais se
aproximavam das práticas culturais européias, como o batismo e os funerais.

O México do século XVI conviveu com essas formas de pensar o sagrado. Barros inferiu
que o sincretismo do ponto de vista da ideologia da pureza e da arenga aculturativa, não
trouxe consigo senão contaminação e vergonha, surgiu também sob a espécie de
mestiçagem que constitui uma ameaça para a eugenia e hegemonia dos branco. Em ambos
os casos, trata-se de acentuar a fronteira e coibir transigências.

Bibliografia

Barros, Jose Flavio Pessoa- A galinha d’Angola, Rio de Janeiro, Pallas , 1993
Lafaye,J- Quetzalcóatl y Guadalupe. México, Fondo e Cultura Económica, 1991
Ortega y Gasset, Jose – História como sistema. Madrid, 1962
Paz, Octavio- El Laberinto de la Soledad. México 1959
Toribio B. Lemos, Maria Teresa – O Corpo Calado. RJ Sete Letras, 2000

13
-Lafaye, p.33

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