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1 CRÍTICA DO JOVEM MARX AO STATUS DA CIDADANIA OU CRÍTICA A

CIDADANIA LIBERAL

Em páginas anteriores foi citado T.H Marshall e sua definição sobre cidadania – status que
reúne direitos de ordens cívico, político e social de abrangência universalizada aos membros de
determinada comunidade política (Estado). Faremos dessa nota um excurso, o objetivo é apontar
brevemente a discussão em torno dos valores políticos contemporâneos a respeito da democracia,
cidadania e do modelo de sociedade. Objetivamente, trataremos da contradição entre o status de
cidadania e sua efetivação prática. Portanto a análise é abstrata (a-histórica), na tentativa de facilitar
a explanação.
De início lembremos T.H Marshall (1967), em sua palestra de 1949, quando reconstitui a
história do desenvolvimento da cidadania na Inglaterra. Nessa palestra a organização social está
classificada entre status de cidadania (esfera política) e classe social (esfera econômica). Tanto a
cidadania quanto a classe social tem valores orientadores, sendo respectivamente a igualdade, para a
cidadania, e a desigualdade social, para a classe social (MARSHALL, 1967, p. 76) – essa divisão na
verdade remonta ao pensamento liberal da dicotomia entre Estado político de valor igualitário e
sociedade civil valorada como espaço da diferença.
O alinhamento a esse tipo de pensamento político, de T.H Marshall (1967, p. 77), considera
a desigualdade social como necessária, tornando uma patologia social quando “excessiva”. A defesa
da desigualdade social é feita por T.H Marshall porque o seu fundamento é a vida econômica, algo
diferente, por exemplo, do feudalismo em que a desigualdade social se objetivava na lei e nos
costumes, onde político e econômico não estavam dissociados. Mas a desigualdade deve ser
compreendida além da esfera econômica. Desigualdade e diferença são sinônimos na ordem liberal
quando consideradas no âmbito da sociedade civil, cada homem é livre na promoção de sua vida.
Os méritos e qualidades diferenciam os indivíduos tornando desiguais, por isso, é preciso apreender
desigualdade exterior a esfera econômica em certo sentido.
Assim, a desigualdade econômica não afeta um “padrão de vida comum” das necessidades
vitais, pois, a desigualdade está relacionada a diferença ao invés da miséria social, embora seu
excesso, segundo Marshall, possa se transformar em miséria comprometendo o reparo das
necessidades. No embate entre cidadania (igualdade política) e classe social (desigualdade
econômica), na história inglesa, o primeiro neutralizou os danos sociais do segundo, e mais: os
direitos sociais – constitutivos da cidadania – diminuiu a desigualdade social, “transformando o
arranha-céu num bangalô” (MARSHALL, 1967, p. 88 e 89).
A política, considerada em seu termo primevo, é a tomada de decisão de enorme capacidade
reflexiva, intervindo nas práticas sociais da sociedade humana corrigindo as distorções da sociedade
civil em âmbito do direito civil e da economia. Nesse sentido as misérias provocadas pela economia
são corrigidas pelas decisões políticas, equilibrando a ordem social orientada valorativamente pela
igualdade. É importante frisar duas observações de T.H Marshall a esse respeito.
A primeira observação, é constatado o descompasso entre os direitos da cidadania e sua
efetivação prática. O exemplo dado são os episódios dos sindicados ingleses em “barganharem” o
cumprimento da remuneração mínima de que estava garantida na lei, entretanto, na prática era
descumprida. O direito jurídico do salário-mínimo não se aplicava enquanto imperativo categórico,
primado da jurisprudência moderna, e sim em constantes negociações. O direito adquirido na lei
também devia ser negociado nas interações práticas. T. H Marshall, é sensato em pontuar essa
dicotomia entre código formal prescrito em lei e a conduta dos indivíduos. Entre estrutura e prática
social a relação é assimétrica, não existe uma simetria como fazem crer funcionalistas e
estruturalistas (GIDDENS, 2003, p. 35).
A segunda observação, de T.H Marshall, diz respeito a natureza dos direitos sociais; ora, os
direitos sociais é a possibilidade do gozo comum de todos os cidadãos aos padrões de vida
minimamente aceitáveis de bem-estar, garantidos institucionalmente através do sistema educacional
e pelos serviços sociais (MARSHALL, 1967, p. 64). Ao fazer uma regressão histórica, T.H.
Marshall aponta o surgimento dos direitos sociais ao Poor Law (lei dos pobres) quando o Estado
inglês garantiu minimamente o necessário para reprodução da vida. Ou seja, os direitos sociais têm
um viés assistencialista tornando o indivíduo dependente dos serviços estatais, desaparecendo a
noção de autonomia relativa. Do ponto de vista psicológico essa dependência tem consequências
negativas aos dependentes dos programas sociais [ VER SE MENCIONA O NOVO ESTUDO DO
IPEA].
Mesmo com essas ponderações, e outras mais, a crítica de T.H Marshall é feita na finalidade
de reivindicar a realização prática da cidadania, mas em nenhum momento é feito uma crítica da
cidadania em si, isto é, nos moldes liberais – estamos nos referindo a dicotomia comunidade
política e sociedade civil. Se a realização da cidadania não é cumprida, Marshall, não busca explicar
o porquê, caindo numa crítica volitiva, como se fosse a falta de vontade em não cumprir o contrato
social a causa dessa agrura. Essa postura implica em não analisar a infiltração dos interesses
privados derivados da sociedade civil (economia) ficando sobrepostos ao interesse da vontade
comum ao mesmo tempo que os recursos “escassos” são capturados por grupos sociais em agravo
de outros se distanciando do “bem comum”.
Em contrapartida citamos Marx, que faz a crítica da crítica crítica, de que a normatividade
abstrata da cidadania e sua efetividade prática são dois extremos sem nenhuma causalidade natural
evidente, e de que fazer da obviedade uma crítica é algo superficial por ser evidente. No entanto,
rastrear as causas da “subcidadania” foi uma tarefa realizada pelo jovem Marx quando analisou a
concepção de Estado em Hegel e nas polêmicas com os jovens hegelianos de esquerda. Uma crítica
ontológica aos princípios do Estado moderno foi algo desenvolvido em pouco tempo pelo jovem
Marx. Em um dos primeiros textos de Marx, Tratativas da sexta dieta renana. Por um renano ou
Debates sobre a lei referente ao furto de madeira, de 1842, há uma crítica baseada na concepção
democrática liberal, isto é, sua crítica é imanente a organização política, exigindo, portanto, o
cumprimento prático dos princípios do Estado moderno referente à vontade comum na garantia da
igualdade dos membros políticos – cidadãos –, limitando o interesse privado a esfera da sociedade
civil, crítica volitiva sem nenhuma dúvida. Um excerto é esclarecedor a esse respeito:

se porém, se evidenciar aqui que o interesse privado quer e tem de rebaixar o Estado aos
recursos do interesse privado, como não inferir disso que uma representação dos interesses
privados, dos estamentos, quer e tem de rebaixar o Estado às ideias do interesse privado?
Todo Estado moderno, por menos que corresponda ao seu conceito, será obrigado, diante da
primeira tentativa prática de tal poder legislativo, a exclamar: seus caminhos não são os
meus caminhos e seus pensamentos não são os meus pensamentos! (MARX, 2017, p. 99).

Em 1844, uma ruptura drástica com o postulado do Estado moderno liberal é realizada. O
debate de pano de fundo é a crítica feito a Arnold Ruge, conteúdo exposto no artigo de Marx
intitulado Glosas críticas marginais ao artigo “o rei da Prússia e a reforma social”. De um
prussiano. Ruge explicava a rebelião dos tecelões da Silésia, rebaixados a brutal miséria, a falta de
senso político do Rei da Prússia em combater a miséria social. Marx, refuta essa explicação
comparando a Prússia de regime político retardatário – mescla de despotismo e liberalismo – e a
Inglaterra, país tipicamente liberal. As conclusões obtidas dessa comparação é de que a causalidade
de regime político atrasado gera miséria social é falso, o exemplo dado é a ineficiência das políticas
assistencialistas das workhouses elaborado pelo Estado político inglês. A curto prazo essa política
assistencialista de combate à miséria gerou um estigma social, porquanto

como se vê, a Inglaterra tentou acabar com o pauperismo primeiramente através da


assistência e das medidas administrativas. Em seguida, ela descobriu, no progressivo
aumento do pauperismo, não a necessária consequência da indústria moderna, mas antes o
resultado do imposto inglês para os pobres. […] Finalmente, a miséria é considerada como
culpa dos pobres e, desse modo, neles punida (MARX, 2010a, p. 53 e 54).
Por conseguinte, o resultado da política assistencialista inglesa foi o cinismo parlamentar
manifesto posteriormente na criminalização da pobreza – algo semelhante é dito por T.H. Marshall
(1967, p. 93 e 95) no surgimento do “elemento qualitativo” dos serviços sociais. Marx conclui que o
regime político liberal reproduz ao seu modo a miséria, e o objetivo das políticas sociais
assistencialistas visam o controle do pauperismo a níveis normais ao funcionamento da organização
social. Portanto, é no Estado em sua dicotomia ontológica, comunidade política e sociedade civil, a
causa da miséria social. A miséria não está no regime adotado pelo Estado e sim na própria
fundamentação da natureza do Estado. No Estado a igualdade do ente genérico humano é declarada,
mas igualdade e dignidade são abstratas; na sociedade civil as diferenças materiais (propriedade
privada, comércio, indústria) são declaradas e factíveis, sendo diferenças concretas.
Dessa dicotomia uma antítese insolúvel condena a instituição social Estado
independentemente do seu regime político,

“ele [o Estado moderno] repousa sobre a contradição entre vida pública e privada, sobre a
contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a administração
deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá onde começa
a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. […]. Se ele quisesse eliminar a vida privada,
deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como antítese. Por isso, o Estado
não pode acreditar na impotência interior da sua administração, isto é, de si mesmo. Ele
pode descobrir apenas defeitos formais, casuais, da mesma e tentar remediá-los (MARX,
2010a, p. 60 e 61).

A sociedade civil historicamente antecede o Estado, essa ordem não é apenas histórica, mas
também lógica, pois proteger as diferenças e interesses particulares – desigualdade – é o principal
papel do Estado mesmo que idealmente seja fundado na “vontade comum”. A quimera político-
jurídica em vez de ser solucionada pela ação humana acaba orientando a ação humana, nisso reside
a crítica de Marx (MARX, 2010a, p. 58e 59),

Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de qualquer mal no fato de que
não ele, mas o seu partido adversário, acha-se ao leme do Estado. Até os políticos radicais e
revolucionários já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas numa
determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem colocar uma outra forma de
Estado.

Nos escritos do jovem Marx existe um outro artigo interessante, Sobre a questão judaica, de
1844, de longe seu conteúdo guarda semelhanças com a questão quilombola e a efetivação da
cidadania. O cenário social em que ele escreve é uma Alemanha de Estado declarado cristão, e os
judeus por serem uma etnia/religião estavam privados de vários direitos civis. Desta maneira, Marx
(2010b, p. 33) inicia o seu texto dizendo, “Os judeus alemães almejam a emancipação. Que
emancipação almejam? A emancipação cidadã, a emancipação política”. A crítica desta vez é
destinada diretamente aos limites da emancipação política (cidadania), porquanto em si essa
emancipação não atinge a emancipação humana – realização prática do gênero humano em seu ser
social. Mesmo formulando uma crítica “ácida” a cidadania, Marx (MARX, 2010b, p. 41) é honesto
e pontua: “A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma
definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique claro:
estamos falando aqui de emancipação real, de emancipação prática”. Os limites e a antítese
ontológica da cidadania enquanto um status de uma comunidade política – o Estado – continua
sendo a dicotomia fundante: de um lado, a comunidade política orientada pela igualdade e
dignidade do ente genérico humano, considerados dogmas universais abstratos; e doutro lado, a
sociedade civil e suas diferenças desiguais nas relações fáticas. A esse respeito, o jovem Marx
(2010b, p. 40 e 41) diz,

“O Estado anula a sua maneira a diferenciação por nascimento, estamento, formação e


atividade laboral ao declarar nascimento, estamento, formação e atividade laboral como
diferenças apolíticas […]. Não obstante, o Estado permite que a propriedade privada, a
formação, a atividade laboral atuem a maneira delas, isto é, como propriedade privada,
como formação, como atividade laboral, e tornem efetiva a sua essência particular. Longe
de anular essas diferenças fáticas, ele existe tão somente sob o pressuposto delas, ele só se
percebe como Estado político e a sua universalidade só se torna efetiva em oposição a esses
elementos próprios dele. [...]Na sua realidade mais imediata, na sociedade burguesa, o
homem é um ente profano. Nesta, onde constitui para si mesmo e para outros um indivíduo
real, ele é um fenômeno inverídico. No Estado, em contrapartida, no qual o homem
equivale a um ente genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo
sido privado de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal”.

Nesse sentido, a identidade quilombola, enquanto tática política de cumprimento da


cidadania, trouxe alguns avanços, e em algumas situações a efetividade prática na obtenção de
direitos políticos e sociais chegam a ser nulos, o exemplo paradigmático é principalmente no
embate com projetos de desenvolvimento nacional quando o Estado força uma “negociação”,
indenizando precariamente esses grupos.

REFERÊNCIAS
GIDDENS, A. A constituição da sociedade. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
MARX, K. Glosas críticas marginais ao artigo "O rei da Prússia e a reforma social: de um
prussiano. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010a.

MARX, K. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010b.

MARX, K. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. 1a ed. São Paulo:
Boitempo, 2017.

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