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A ESPECIFICIDADE DO RELIGIOSO: PARA UMA HISTÓRIA RELIGIOSA

Tiago Pires1
tiago_pires@ymail.com

Pensar a especificidade do religioso sempre foi uma grande dificuldade para qualquer cientista das
humanidades. A própria concepção de religião assume diferentes significados ao longo do tempo e do
espaço. Segundo Francisco José Silva Gomes: “Qualquer tentativa de definição de religião é, pois, de
todo impossível fora das formas concretas em que historicamente se manifestou ou evoluiu.” (GOMES,
2002:14). Não mais fácil é pensar quais seriam as características singulares do que chamamos de
História religiosa.
No que tange a História das religiões e a História religiosa, é possível perceber uma importante
diferença em suas abordagens: a primeira privilegia o recorte de seu objeto, em variadas escolas
(francesa, italiana, entre outras) (AGNOLIN, 2005); já a história religiosa busca articular a experiência
do sagrado com o conjunto das relações sociais. Inúmeras vezes, porém, tais perspectivas se
aproximam e até se mesclam. Todavia, a forma que elas lidam com o objeto “religião”, como o vêem, a
ênfase que elas mantêm, são, de alguma maneira, diferentes. Dessa forma, a busca de uma melhor
definição para as referidas abordagens e consequentemente uma fundamentação teórico-metodológica
para as mesmas se faz necessária. A presente comunicação reconstituirá algumas problemáticas e
desafios referentes a este debate, na tentativa de contribuir com esse longo e complexo processo de
caracterização do objeto e da metodologia da História religiosa.

Distintas premissas

A História das religiões tradicionalmente esteve mais “preocupada com as origens e os períodos mais
antigos das religiões, seu método era voltado para determinar a precisão dos textos religiosos,
comparar os discursos sagrados e comparar as próprias religiões por meio de seus mitos, ritos,
símbolos e instituições.” (ALBUQUERQUE, 2003:59). Na perspectiva da História das religiões, a ênfase
no trato com os textos antigos de determinadas religiões é uma tendência que está, de certa forma,
relativizada tanto por causa de novas propostas e métodos como por dificuldade filológica dos
historiadores. Hoje, de forma mais acentuada, a História das religiões tem adotado uma abordagem
fenomenológica, mais preocupada com a relação indivíduo-sagrado, usando o termo eliadiano, do que
com os textos “cânones”. O grande número de trabalhos sobre os movimentos pentecostais e
neopentecostais e sobre as religiões africanas, sob um viés fenomenológico, confirma a proposição
feita acima.
No momento de sua afirmação, a História das religiões tinha como preocupação a análise de sistemas
religiosos em sociedades mais antigas. Podemos citar, como exemplo, Max Müller em sua obra
Lectures on the Sciense of Language (Londres, 1861) que propunha uma forma de interpretação dos
fenômenos religiosos por meio da linguagem. (AGNOLIN, 2005:12). Acompanhando os estudos que se
detinham aos problemas religiosos, ainda nos primórdios da constituição da História das religiões,
apresenta-se Durkheim. Seu estudo acompanha a corrente de Müller, porém se diferencia ao tentar
entender o sistema religioso em si, a partir da relação intrínseca entre religião e cultura.

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Graduando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Esta comunicação é fruto de discussões
desenvolvidas no Grupo de Pesquisa em Historiografia Religiosa coordenado pela Profª Dr. Virgínia
Albuquerque Castro Buarque da mesma instituição.
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Um pouco a frente, já num período de amadurecimento e firmeza, surge, principalmente a partir de


autores como Otto, Van der Leeuw e Eliade, uma concepção de História das religiões pautada numa
abordagem fortemente marcada pela fenomenologia, que buscava, de forma diferente em cada autor,
entender a experiência religiosa vivida em si. Esta perspectiva, que mais parece um desafio, criou
debates ainda inacabados.
Enquanto Otto e Van der Leeuw procuravam recuperar o sentimento religioso por meio da observação
e estudo da experiência com o invisível, diferentemente Mircea Eliade tinha como meta buscar a
essência da religião, por meio do sagrado. Todavia, na concepção do autor, o sagrado não pertence ao
nosso mundo, por isso a necessidade de procurar nos símbolos uma manifestação do sagrado. Ao
mesmo tempo em que a abordagem fenomenológica, nesta conjuntura, abriu caminhos para uma
cobiçada interdisciplinaridade, também suscitou o risco de se afastar da história, na medida em que
esta última não conseguiria explicar em seus próprios termos o que era ansiado – a experiência
religiosa em si.
Outra vertente que suscitou novas propostas, em contrapartida as trabalhadas acima, é a italiana.
Gerada a partir da revista Studi e materiali dis Storia delle religioni (SMSR, Itália, 1925), “[...] este
endereço de estudos se propõe a ressaltar a historicidade dos fatos religiosos [...]” (AGNOLIN,
2005:19). Tal vertente, em seu período de amadurecimento – na década de 1970 – assume
características mais sólidas no que tange os estudos histórico-religiosos, “[...] partindo da necessidade
de ressaltar, antes de mais nada, a historicidade dos fatos religiosos enquanto produtos culturais,
redutíveis em sua totalidade à razão histórica.” (AGNOLIN, 2005:21).
Tratando-se agora da História religiosa podemos inferir que esta deixa de lado a experiência com o
invisível para tratar da relação entre religião e sociedade. Ao longo do século XIX, a religião passou a
ser vista como um produto sócio-cultural. Essa tendência é assinalada por Dominique Julia quando diz
que “[...] querer explicar em termos científicos uma religião já constitui uma confissão de que esta
deixou de fundamentar a sociedade, significa defini-la como uma representação, tratá-la como um
produto cultural despido de todo privilégio de verdade com relação aos outros produtos.” (JULIA,
1995:107).
O religioso, mesmo antes do século XIX, passa a ser estudado no meio acadêmico, tirando o
monopólio das mãos da esfera confessional, o que reforçará o olhar secularizado e desconstruirá a
visão providencialista que a História eclesiástica mantinha. Contudo, a História religiosa, ainda hoje,
não se desvincula totalmente da História eclesiástica, principalmente porque esta última se destituiu do
caráter apologético e pedagógico que manteve durante muito tempo.
Outro importante item para a compreensão da formação da perspectiva histórica em questão é a
influência da História das mentalidades, principalmente com os Annales. Esta foi muito importante para
a constituição de uma História religiosa, na medida em que abria à história uma nova gama de objetos
e abordagens. Contudo, os ganhos advindos das novas propostas dos Annales não excluem as
contradições que estes proporcionaram, claro que indiretamente, aos estudos sobre religião:

Mas se a história religiosa beneficiou-se incontestavelmente com os progressos da história das


mentalidades, com ela talvez também tenha sofrido um pouco. Com efeito, vimos multiplicarem-se os
‘objetos históricos’ novos – a morte, a sexualidade, a criança – que se constituíram com frequência nas
fronteiras da história religiosa, mas numa perspectiva completamente diversa. Problema fútil de
limitação? Não somente. (LANGLOIS, 1993:661).

Indubitavelmente os estudos sobre religião, a partir dos Annales, assumiram um caráter sócio-cultural,
porém é inquietante que o foco sobre o religioso se perca, sendo este um mero apetrecho para uma
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explicação social. É difícil pensar em história religiosa quando analisamos uma obra de Marc Bloch,
para ser mais específico, Os reis taumaturgos. Nesta obra, Bloch entenderá o contexto social e político
por meio da importância que os reis assumem na sociedade. A questão da cura das escrófulas por
meio do toque real caracteriza uma sociedade em que o rei é uma peça importante, não somente no
campo político e administrativo, mas no místico e religioso, na medida em que este personagem possui
“poderes” milagrosos. Na visão de Le Goff e Truong, a obra Os reis taumaturgos é um conjunto de
História das mentalidades, do corpo, dos rituais e dos gestos (LE GOFF; TRUONG, 2006:23).
Assim, nos deparamos com um autor que usa o religioso para uma explicação política e/ou cultural,
desconsiderando de certa forma a especificidade do objeto. Seria cabível classificar a obra de Bloch
como uma História religiosa? Considerando o período em que foi escrito e a indefinição profunda do
que seria um fazer história do religioso, poderíamos considerar Os reis taumaturgos ao mesmo tempo
uma crítica à maneira de produzir-se história religiosa até então hegemônica (basicamente voltada para
as instituições “igrejas” e contestações a elas, quando não perpassadas por um viés providencialista ou
transcendental); de forma concomitante, e também uma incitação à escrita de uma nova modalidade de
história religiosa, sem necessariamente constituir-se paradigma desta.
O fato de a História religiosa ter um vínculo austero com a História das mentalidades constitui um fator
determinante na explicação do porque de sua inconsistente delimitação e especificidade, visto que o
religioso está diluído numa História econômica ou social. O próprio termo “História religiosa”, usado por
Dominique Julia, é carregado de uma conotação que dificulta considerar o objeto religião como algo
que necessite de uma abordagem singular, pois se a religião é um mero produto social – uma
representação – por que estudá-la a partir de uma metodologia exclusiva? A meu ver, Julia
desconsiderou qualquer grau de autonomia que a religião possui, chegando assim a conclusões que
devem ser problematizadas.
Esta tarefa é bastante complexa, implicando em uma aproximação das novas possibilidades de
questionamento e interpretação histórica advindas dos Annales, bem como de uma releitura (e não um
descarte) das produções formuladas em espaços confessionais, já que a maneira de ver e escrever
sobre o assunto decorre também das concepções aportadas pelo historiador em suas diferentes
historicidades. Contudo, no presente texto, estou considerando com mais afinco e profundidade as
problemáticas levantadas a partir do século XIX até nossas atuais discussões, pois acredito que o
pensar história religiosa hoje se aproxima mais do que foi proposto nesses dois últimos séculos.

O ato de crer e o discurso: prenúncios para um objeto religioso

A tentativa de definir um objeto consistente e único para a história religiosa é extremamente


controversa. A própria concepção de religião muda nas diferentes conjunturas, o que nos impossibilita
de caracterizar algo que seja, universalmente, religioso. Podemos inferir que o que faz um estudo se
encaixar na categoria História religiosa não é em si seu objeto, mas a forma como este é visto e
tratado. Contudo, temos que ficar atentos acerca da possibilidade do religioso se dissolver no estudo
do social, se constituindo como uma mera representação cultural, o que pode vir a ser um problema.
Gomes alerta, com toda a razão, para o fato em questão: “Gostaria de assinalar que há uma Nova
História religiosa que tende preferencialmente para a distribuição clara, articulando, não obstante, a
História religiosa com a História cultural. Articulação, não diluição.” (GOMES, 2002:19).
Apesar do objeto religioso não ser, em si, totalmente definível, não exclui a necessidade de pensarmos
sobre ele. Primeiramente, devemos fazer menção a uma circunstância que muito me incomoda: a
perda do foco no religioso. Temos, contrapondo-se a uma História religiosa, uma História social do
religioso. Esta última serve-se da religião para uma explicação econômica, política ou cultural, proposta
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na qual se aproxima da produção historiográfica dos Annales. É preciso, para não esquivar-se da
singularidade do religioso, separar estas dessemelhantes perspectivas.
Todavia, fica difícil não perder o foco, já que não existe um objeto plenamente constituído. A fim de
superar essa problemática, creio que deva haver uma tentativa de construção do que pode ser
considerado pertencente ao campo religioso em uma conjuntura específica. Feito isso, fica mais fácil se
enquadrar em uma abordagem sem perder o eixo objetivado.
Dentro da História religiosa se apresentam, basicamente, duas vertentes quanto aos enfoques: 1) viés
cultural: ideológico e literário, sistema de pensamentos; 2) viés sociológico: práticas, enfoque
antropológico (BUARQUE, 2008). Em ambos nos deparamos com o que me parece ser o grande
desafio do historiador das religiões: a apreensão do ato de crer presente no discurso. Seja numa
abordagem fenomenológica ou ideológica, o que é almejado entender só pode ser feito por meio da
análise do discurso, já que este é o único vestígio palpável da vivência religiosa do qual o cientista das
humanidades tem acesso. Acredito que o mais cabível para referendar tais proposições sejam as
contribuições de Michel de Certeau.
Para Certeau, o historiador nunca terá acesso à experiência religiosa em si, nunca alcançará o inefável
homo religiosus e seu respectivo diálogo com o sagrado. De acordo com o pensador francês:

Através de uma mística sempre ameaçada (segundo Bremond) ou de um folklore (para Van Genep), o
religioso assume a imagem do marginal e do atemporal, nele, uma natureza profunda, estranha à
história, se combina com aquilo que uma sociedade rejeita para suas fronteiras. (CERTEAU, 2008:35).

Não importa se o estudioso acredita ou não que a experiência com o invisível seja verdadeira, pois
independente disto o que se busca (e o que se pode buscar) está no discurso no qual o indivíduo
apresenta, seja em escritos ou na própria fala, e não na compreensão do transcendente.
O texto ou qualquer outro vestígio – quando se trata da descrição de uma experiência do sagrado – é
fruto da cristalização de uma circunstância vivenciada, porém não a é puramente (no âmbito do real).
Seja qual for o objeto em questão, não podemos alcançá-lo senão por meio da interpretação – que é
histórica – dos resquícios deixados pelos fatos, o que não resulta num acesso ao real. Certeau faz uma
distinção relevante entre o sentido vivido e o fato observado:

Aqui o problema é o da relação entre o sentido vivido e o fato observado. O historiador não pode nem
se contentar com descrever o fato, postulando cegamente a sua significação, nem admitir como
incognoscível uma significação que seria susceptível de uma expressão qualquer (neste último caso, a
experiência religiosa seria a noite, onde todos os gatos são pardos, já que, finalmente, se admitiria um
corte total entre o sentido vivido e as expressões religiosas). Existe, pois, entre significante e
significado, uma relação a elucidar. Mas isto não pode ser feito ao próprio nível do fato. (CERTEAU,
2008:145).

A busca pelo sentido religioso puro, considerando a perspectiva eliadiana, pode consistir em um
objetivo inatingível na visão de Certeau. Encontrar o real não é tarefa para a ciência histórica. Seja
dentro ou fora do campo religioso, o que temos são distintas perspectivas acerca de um fato. Destarte,
a proposta de Certeau nos fornece um grande avanço nos estudos sobre religião, levando-nos a uma
maior compreensão dos limites e possibilidades desta área do conhecimento.
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Visto que o objeto religioso, seja qual for, está submetido ao olhar do sujeito que o busca, a partir do
discurso (imagético, textual ou oral), onde estaria sua especificidade já que não passa de uma
construção discursiva? Por que então o objeto em questão precisaria de uma metodologia
diferenciada? Entendo que, para garantir sua singularidade, o religioso deve se pautar na seguinte
hipótese: a fonte utilizada pelo historiador, contendo a fala do sujeito, deve ser apreendida e analisada
de forma particular, porquanto as palavras nela expressas não são fruto de uma circunstância
meramente cultural, mas sim resultados de uma experiência transcendente, cuja especificidade está no
fato desta assumir um certo grau de autonomia perante as estruturas sociais.
Assim sendo, definir o quão autônomo é o campo religioso em relação às estruturas sócio-culturais é
um processo realizado a partir das escolhas que o pesquisador faz sobre o objeto e consequentemente
sobre a abordagem. O grau de autonomia é relativo ao período estudado já que a religião, em
diferentes momentos, assume distintas formas.
Considero que o campo religioso assume seu grau de autonomia perante a sociedade, fato que não
exclui o diálogo entre ambos. A posição de Gomes, da qual compartilho, frente a esta ocasião, me
parece bastante ponderada: “[...] as religiões são também lugares relevantes dos conflitos sociais.
Assim sendo, o campo religioso é simultaneamente lugar, produto e fator ativo daqueles conflitos, e
parece-me, pois, legítimo considerar a História religiosa como uma disciplina específica.” (GOMES,
2002:17). As rupturas e continuidades concernentes ao âmbito religioso não estão totalmente ligadas
às mudanças sociais. Uma estrutura social pode se alterar sem que isto implique em transformações
nas formas de crer.
É exatamente por manter relativa autonomia que o religioso necessita de uma metodologia específica.
O quadro teórico-metodológico advindo da História social ou cultural não possibilita uma compreensão
da especificidade do religioso.

Querelas metodológicas: diálogo interdisciplinar e objetividade

Dentre as discussões metodológicas que permeiam o campo da História religiosa, acredito ser a
questão do diálogo interdisciplinar e da objetividade duas problemáticas relevantes, das quais
discorrerei brevemente abaixo, numa tentativa de suscitar maiores debates acerca das presentes
temáticas.
O temor em reduzir o estudo histórico do religioso a uma Ciência da religião ou social, e até mesmo em
teologia, ainda permeia as análises em voga. O diálogo entre estas disciplinas é algo que possui
vantagens ao mesmo tempo em que oferece riscos. Talvez o receio maior esteja no contato com a
teologia, mais do que com as ciências sociais. Todavia, precisamos lembrar, a fim de compreender
melhor as possibilidades de diálogo, que a teologia já não é a mesma dos períodos em que a religião
regia a sociedade. Não pretendo fazer uma apologia para o uso teológico nas interpretações históricas
do religioso, apenas atento para o fato de que, muitas vezes, o objeto almejado requer um diálogo com
outro campo do saber, seja ele sociológico, antropológico ou teológico. O pretendido não é diluir o
conhecimento histórico em outro, mas complementá-lo, na medida em que se fizer necessário.
A própria história da igreja, sob a perspectiva teológica, pode ter sido uma das causas do surgimento
do nosso hodierno receio. Na medida em que a história se afirmava como ciência, sua repulsa aos
saberes teológicos se tornava mais evidente. As críticas recaiam sobre: a leitura providencialista da
história; o intuito pedagógico das obras; autenticidades das fontes; desprezo pelas mudanças e
descontinuidades e pela necessidade de ser cristão para desenvolver qualquer atividade historiográfica
(BUARQUE, 2008). De certa forma, o saber teológico superou o que antes era alvo de críticas,
possibilitando, hoje, um diálogo saudável com a História religiosa.
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Deste modo, acredito ser válida a comunicação entre a história e as outras disciplinas, desde que estas
últimas sejam utilizadas como complemento, sem sobrepujar-se a primeira. Ansiar por um diálogo que
não exclua o aparato teórico-metodológico da história, que considere as historicidades, constitui numa
conversação saudável entre os distintos, mas não longínquos, saberes humanísticos.
A preocupação em desenvolvermos uma análise a-histórica do religioso por meio da
interdisciplinaridade não é, obstante, nosso único receio. Ser crente ou não, para o estudo de uma
determinada religião, é fator que gera arsenal suficiente para levantarmos algumas problemáticas.
Apesar de acreditar que atualmente a História religiosa tenha se afastado de uma construção
apologética ou memorial, creio ainda ser necessário pontuar algumas questões acerca da objetividade
no estudo do religioso.
Antes, quero explicitar que estou considerando objetividade não como um ponto de observação neutro,
imparcial, mas como uma tentativa de melhor compreender um objeto histórico sem julgá-lo ou exaltá-
lo. O historiador deve se embasar no rigor científico, não para restringi-lo, mas para ajudá-lo a
compreender de forma mais ampla o objeto religioso.
Em períodos de afirmação de uma religião numa sociedade ou em momentos de “descristianização”,
por exemplo, observamos uma tendência na produção historiográfica, principalmente eclesiástica, para
tentar construir uma memória religiosa ou um saber pedagógico. Atualmente, tal tendência se encontra
relativamente desfeita, porém ainda não superada. Entretanto, não tão distante da produção
eclesiástica, hoje, a grande questão me parece estar mais orientada na direção de um conhecimento
histórico modelado por convicções subjetivas, no qual:

Estas motivações intervêm na escolha do objeto (relativo a um interesse religioso) ou na finalidade do


estudo (em função de preocupações presentes, por exemplo: a descristianização e suas origens, a
realidade de um cristianismo popular, etc.). [...] Por um lado, faz-se história religiosa porque se é cristão
(ou padre, ou religioso), mesmo quando não se pode mais fazê-la como cristão. Por outro lado, com
outra finalidade, mobilizam-se os resultados a serviço da crença, e esta intenção (mais ou menos
‘apologética’) provoca um certo número de distorções na pesquisa, porque o fim visado modifica o
processo que leva a ele. (CERTEAU, 2008:144).

Todo historiador, por mais pujante que seja seu rigor científico, estará fadado a partir de um lugar de
fala e tomar partido de alguma hipótese que o encanta. A escolha do objeto e a finalidade do estudo, é,
a priori, subjetivo. Destarte, a preocupação maior está em uma história distorcida por convicções
individuais, que reduz o conhecimento histórico numa tentativa de exaltar a “verdade” de uma religião
ou de produzir uma “ciência edificante”, perdendo assim os ganhos que a cientificidade propiciou aos
estudos da religião.
Assumir o lugar de fala é a melhor forma de evitar tal desacerto: “É com a condição de saber que se
pertence ao campo religioso, com os interesses aferentes, que se pode controlar os efeitos dessa
inserção no campo e retirar daí as experiências e informações necessárias para produzir uma
objetivação não redutora [...]” (BOURDIEU, 1982:112). Trabalho pujante e custoso, porém essencial
para a construção de um saber científico mais sofisticado da História religiosa.

Considerações finais

Tentar compreender o outro, tarefa essencial para o historiador, na visão de Michel de Certeau, já se
apresenta como um grande desafio. Deste modo, ainda mais árduo é o trabalho de interpretar a
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experiência do sagrado ou os atos de crer. A fim de contribuir para aclarar os debates que permeiam o
campo historiográfico religioso é que discuti, ao longo da presente comunicação, as problemáticas que
se mostram mais relevantes sobre a História religiosa.
Assim, almejei contribuir para melhor definir o objeto e a metodologia da História religiosa, como, ainda,
ansiei colaborar para uma definição mais consistente da mesma. Longe de esgotar os debates em
questão acredito ter cooperado, de alguma forma, para estes.

Referências

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