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14/11/2019 Considerações a respeito de gramática

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Considerações a respeito de gramática


Ricardo E. Schütz (sk-inst.html)
Última atualização em maio de 2011

Língua é anterior à gramática. Língua é causa e gramática consequência, e


não o contrário. Portanto, podemos deduzir regras gramaticais a partir do
fenômeno existente, mas dificilmente fazer o contrário. Podemos partir do
particular para o geral, da experiência para a teoria; mas dificilmente dá
certo partir da teoria para a prática, em se tratando de línguas.

Portanto, o estudo da gramática de uma língua só faz sentido se o estudante


já tiver desenvolvido uma certa habilidade comunicativa nessa língua.

Prescritiva x Descritiva
Gramática tradicional, normativa, ou prescritiva são termos sinônimos. Como
o próprio nome define, a gramática prescritiva é uma tentativa de estabelecer
um ordenamento lógico em um determinado idioma e definir normas que vão
determinar o que é apropriado no uso desse idioma. Daí surge a noção de certo
e errado. Aquilo que não estiver de acordo com as normas, com as regras
gramaticais, é classificado como errado. Esta teoria predominou desde meados
do século 18 até o início deste século, e é ainda encontrada no currículo de
muitas escolas hoje.

A partir das décadas de 1920 e 1930, a teoria do estruturalismo em linguística


(Ferdinand de Saussure na Europa e Leonard Bloomfield nos EUA) passou a
questionar a visão prescritiva. No estruturalismo, o fenômeno existente é o
ponto de partida. Observar o fenômeno da linguagem de fato e descrevê-lo
passou a ser mais importante do que prescrever como esse fenômeno deveria
ser.

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Nos anos 60, a partir do trabalho do norte-americano Noam Chomsky (sk-


chom.html), a teoria linguística gerativo-transformacional revolucionou
conceitos e trouxe um elemento novo: o de que a linguagem humana é criativa,
e de que a capacidade (competence) de um native speaker com bom grau de
instrução, através da qual ele consegue produzir um número ilimitado de frases,
é que determina a "gramaticalidade" ou a "aceitabilidade" da língua.

Por um lado a nova gramática gerativo-transformacional representou um


movimento em oposição ao então predominante estruturalismo, mas por outro
lado ambos se opõem radicalmente à rigidez da linguística prescritiva. Isto
coloca o estudo da gramática, quanto a seu aspecto funcional, no papel de
descritiva e não normativa. Levando nosso raciocínio ao extremo, poderíamos
dizer que, se gramática fosse prescritiva e conseguisse frear a evolução natural
das línguas, devêssemos talvez voltar a usar o latim vulgar em vez do
português. Ou talvez o latim nem tivesse de desviado de sua versão clássica.

O fato é que regras gramaticais são úteis se dinâmicas, se relativas e não


absolutas. Devem acompanhar com agilidade as transformações que
inexoravelmente ocorrem em todos os idiomas, ao sabor de fenômenos sociais,
culturais, econômicos, etc.

Relatividade na descrição gramatical


Uma vez aceito o fato de que o fenômeno linguístico é anterior e superior à sua
descrição gramatical, e que a natureza e a função desta é descrever e
interpretar os aspectos do mesmo que apresentam lógica, podemos concluir
que esta descrição e interpretação é relativa e não absoluta, podendo (e
devendo!) variar de acordo com a função a que se destina.

Quando um linguista descreve e interpreta um idioma com a finalidade de


proporcionar uma visão do mesmo aos estudantes que já falam esse idioma
como língua materna, está criando uma gramática geral. Este mesmo idioma,
entretanto, pode ser descrito, comparado e interpretado sob a ótica de quem
fala e conhece outro idioma. Neste caso teríamos uma gramática comparada.
Quando um linguista por exemplo, descreve e interpreta o inglês para ensiná-lo
como língua estrangeira a brasileiros, essa descrição gramatical deve levar em

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especial consideração aqueles aspectos que contrastam mais em relação ao


português, e portanto representam uma dificuldade maior para os alunos.
Exemplo dos aspectos gramaticais que nesse caso exigiriam atenção especial:

Ensinando Inglês para falantes de Português

Português Inglês

Modos negativo e principalmente Relevância gramatical dos


interrogativo em português não modos interrogativo e negativo
implicam em alterações estruturais. A
mente do falante nativo de português Implicação estrutural dos modos
não possui qualquer habilidade negativo e principalmente
desenvolvida para lidar com as interrogativo, com a inversão de
implicações estruturais dos modos posição entre sujeito e verbo e,
interrogativo e negativo do inglês. outras vezes, uso de verbo auxiliar.

Veja Formulação de idéias


interrogativas e negativas (sk-
gram.html#1)

Posicionamento do adjetivo em Adjective-noun order


relação ao substativo
A não ser por raríssimas exceções,
Em português, o adjetivo normalmente em inglês o adjetivo sempre vem à
é posicionado após o substantivo a que frente do substantivo a que se
se refere, podendo entretando ser refere.
posicionado à frente em muitos casos.
Ex: beautiful house, high rate
Ex: casa bonita, alto índice

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Em português, dificilmente a mesma Adjetivação dos substantivos


palavra desempenha a função de
substantivo e adjetivo ao mesmo Em inglês, substantivos podem ser
tempo. Para qualificarmos um usados como se fossem adjetivos.
substantivo com outro, é necessário o
uso de uma preposição. Ex: summer vacation, brick house

Ex: férias de verão, casa de tijolos Frequentemente dois ou até três


substantivos na função de adjetivos
são acrescentados à frente do
substantivo principal.

Ex: Hygiene cost reduction


programs

Em português, não existem Relevância gramatical de


quantificadores específicos para substantivos contáveis e
substantivos contáveis e incontáveis. incontáveis

Veja Countable & Uncountable


Nouns - Uso Correto de seus
Quantifiers (sk-gram.html#16)

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A ambiguidade léxica do verbo ter Em inglês, a idéia de propriedade é


traduzida pelo verbo have.
Em português, o verbo ter tem dois
significados predominantes: Ex: I have a car.
propriedade e existência. A
necessidade de diferenciar entre estas A idéia de existência, entretanto, é
duas idéias representadas pela mesma construída com o verbo there is.
palavra se traduz numa dificuldade
notória. Ex: There is a book on the table.

Toda ambiguidade léxica da língua Veja There TO BE = ter (existência)


materna sem equivalente na L2 (sk-gram.html#4)
representa dificuldade. A ambiguidade
do verbo ter, entretanto, devido à
frequência com que o mesmo ocorre,
assume uma importância maior.

Sobre a ambiguidade léxica do


português, veja Palavras de Múltiplo
Significado (sk-mmw.html).

Sujeito oculto, indeterminado ou Em inglês, a não ser pelo modo


inexistente imperativo, não há frase sem
sujeito.
É comum em português a frase
apresentar-se sem sujeito, seja ele Ex: Did you go to the movies?
oculto, indeterminado ou inexistente. Everybody drank a lot at the party.
They say he may win the elections.
Ex: Foste ao cinema? Bebeu-se muito It's going to rain.
na festa. Dizem que ele é capaz de
ganhar nas eleições. Vai chover.

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Posicionamento livre do verbo em Em inglês, quando houver verbo


relação ao sujeito auxiliar, o posicionamento do verbo
em relação ao sujeito tem a
Em português o sujeito pode ser finalidade de identificar o modo
posicionado tanto antes como depois interrogativo. Portanto, em inglês o
do verbo. sujeito deve sempre ser colocado
antes do verbo em frases
Ex: Sua casa é bonita. É bonita sua afirmativas e negativas.
casa.
Ex: He is a student. Is she a
Um vendedor apareceu no escritório. student?
Apareceu um vendedor no escritório.
I have never been to England.
Have you ever been to England?

Uso abundante de voz passiva Uso restrito de voz passiva

O uso frequente da voz passiva é uma A ocorrência da voz passiva em


característica do português. inglês se limita a determinadas
situações. Seu uso indiscrimado e
frequente como em português
compromete a qualidade do texto.

Veja Cuidado com o uso da voz


passiva (sk-write.html#Passiva)

Veja aqui um estudo mais abrangente sobre contrastes gramaticais: ERROR


ANALYSIS (sk-gram.html)

Da mesma forma, um bom programa de português para estrangeiros deve ser


direcionado aos contrastes entre a língua materna do aluno e o português.
Exemplo de aspectos gramaticais que representam dificuldades persistentes e
exigem atenção especial de falantes nativos de inglês estudando português:

Ensinando Português para falantes de Inglês

Inglês Português

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Quase-inexistência de Conjugação verbal


conjugação verbal
O português possui mais de 40 sufixos
Com exceção do verbo to be, diferentes para flexionar um único verbo
que tem 8 formas diferentes (am, em todas as pessoas e tempos comuns.
is, are, was, were, be, being, Isto representa um pesadelo para o
been), os demais verbos têm estrangeiro cuja língua materna não seja
apenas 4 formas quando uma das línguas latinas.
regulares (work, works, worked,
working) e 5 quando irregulares
(speak, speaks, spoke, speaking,
spoken).

Rara ocorrência de gênero em Gênero de substantivos, adjetivos e


inglês artigos

As únicas ocorrências de gênero O português, assim como as demais


masculino e feminino que se línguas latinas, apresenta sempre uma
observam no inglês são nos forma masculina e uma feminina para
pronomes da terceira pessoa do substantivos, adjetivos e artigos. Todo
singular (he, she, his, her, him) e substantivo tem que pertencer a uma dos
alguns raros substantivos como dois gêneros, e seus respectivos adjetivos
prince - princess, lion - lioness. e artigos devem concordar. Isto
representa uma séria dificuldade para o
falante nativo de inglês.

Invariabilidade de adjetivos e Pluralização de adjetivos e artigos


artigos em inglês Em português, todos os adjetivos e
artigos, tanto no masculino como no
Com exceção do artigo feminino, são pluralizados.
indefinido, que comporta um
variação fonética (a, an),
adjetivos e artigos são
invariáveis em inglês.

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Ambiguidade léxica de Em português a idéia de condição


palavras de alta ocorrência permanente é normalmente representada
pelo verbo ser, enquanto que a idéia de
Toda ambiguidade léxica da condição temporária é representada pelo
língua materna sem equivalente verbo estar.
na L2 representa dificuldade. No
caso de palavras com alta Ex: Eu sou médico. / Estou visitando o
ocorrência como os verbos to be Brasil.
e can, as formas equivalentes
em português precisam ser O verbo can do inglês comporta as idéias
claramente explicadas e de permissão e habilidade, para as quais
frequentemente lembradas. o português usa diferentes formas.

Ex: I'm a doctor. / I'm visiting Ex: Posso fumar aqui? / Eu sei falar
Brazil. inglês. / Você consegue dirigir à noite?
Can I smoke here? / I can speak
English. / Can you drive at night?

Veja aqui mais exemplos de


ambiguidade léxica do inglês.
(sk-emmw.html)

Os desvios gramaticais
Dentro da visão da gramática gerativo-transformacional, os tradicionais
conceitos de "certo" e "errado", tão adequados às ciências exatas, cedem lugar
ao que Chomsky denomina de grammatical e ungrammatical, e que poderíamos
interpretar como "usual" e "não-usual", ou talvez "autêntico" e "não-autêntico".

Usuais ou autênticas são as formas passíveis de serem usadas por falantes


nativos, que na conceituação tradicional são denominadas de "corretas."

Não-usuais ou não-autênticos seriam os desvios produzidos por não-nativos,


que na conceituação tradicional são denominados de "erros." Estes, por sua
vez, dividem-se em "aceitáveis" ou "eficazes" e "inaceitáveis" ou "ineficazes." O
desvio "aceitável" ou "eficaz" é aquele que, embora seja percebido por falantes

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nativos como não-autêntico, ainda assim cumpre com a finalidade de comunicar.


Por exemplo, se um estrangeiro que está aprendendo português como segunda
língua disser:

Eu vai Porto Alegre amanhã. ou


Eu gostar de beber cerveja brasileiro.

estará produzindo desvios aceitáveis ou eficazes, uma vez que os mesmos não
comprometem o entendimento. Entretanto, se este mesmo estrangeiro disser:

Eu fui Porto Alegre amanhã.

estará produzindo um desvio inaceitável ou ineficaz, uma vez que compromete


seriamente a comunicação da mensagem.

Veja também
Interlíngua e Fossilização (sk-interfoss.html)

COMO FAZER UMA CITAÇÃO DESTA PÁGINA:

Schütz, Ricardo E. "Considerações a respeito de gramática" English Made in Brazil


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