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ISSN 1413-389X Trends in Psychology / Temas em Psicologia – 2015, Vol.

23, nº 3, 763-775
DOI: 10.9788/TP2015.3-19

Representação de Famílias Constituídas por Casais


do Mesmo Sexo: A Posição de Professoras
de Ensino Fundamental

Maria Cristina Lopes de Almeida Amazonas1


Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica
de Pernambuco, Recife, PE, Brasil
Luciana Leila Fontes Vieira
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, PE, Brasil
Marcelo Ferreira Leite
Instituto de Desenvolvimento Educacional, Recife, PE, Brasil
Instituto Integrado de Apoio a Família, Recife, PE, Brasil
Ricardo Delgado Marques de Lima
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica pela Universidade Católica
de Pernambuco, Recife, PE, Brasil

Resumo
O objetivo desta pesquisa foi analisar a representação de professores do Ensino Fundamental de escolas
públicas e privadas da cidade do Recife a respeito de famílias cujo casal parental é do mesmo sexo.
Foram entrevistadas trinta professoras. Os dados foram submetidos à Análise de Conteúdo. Resultaram
dois temas: (a) a representação das professoras acerca de famílias cujo casal parental é do mesmo sexo;
(b) suas percepções sobre as crianças que vivem neste tipo de família. Predominou um discurso que
considera que este tipo de família não é “normal”, mas, ainda assim, é preciso respeitá-la. Quanto às
crianças, a maioria das professoras afirmou que elas sofrem ou podem sofrer consequências nefastas,
tais como: serem vítimas de preconceitos e apresentarem problemas com a futura orientação sexual. Em-
bora uma minoria, há professoras que não veem razão para que essas crianças sofram danos diferentes
daqueles que podem ser sofridos por outras que vivem em famílias de configurações tradicionais.
Palavras-chave: Professoras de ensino fundamental, representação de família, casais do mesmo sexo.

Representations of Same-Sex Couple Families: A Perspective


from Elementary School Female Teachers

Abstract
The aim of this paper was to analyze the representation of families formed by a same-sex couple in the
city of Recife by public and private elementary school teachers. Thirty teachers participated in this re-
search. Data were submitted to Content Analysis. Two themes have come out as results: (a) Teachers’
representation on families formed by same-sex couples; (b) Their impression on children living in such

1
Endereço para correspondência: Estrada do Encanamento, 608, Apto. 1303, Casa Forte, Recife, PE, Brasil
52070-000. Fone: 3034-6030. E-mail: crisamaz@gmail.com, lufontesvieira@hotmail.com, marcelofl75@
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Agência de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
764 Amazonas, M. C. L. A., Vieira, L. L. F., Leite, M. F., Lima, R. D. M.

families. Predominant discourse oscillated between admitting such families as not “normal” and stating
that yet they have to be respected. Regarding the children, most teachers considered that they suffer or
may suffer adversity consequences, for instance, as being victims of prejudice or having problems with
their sexual orientation. However, there is a small number of teachers who does not see any reason for
these children to suffer any different damage than those suffered by the children of any other traditional
configuration family.
Keywords: Elementary school female teachers, representation of families, same-sex couples.

Representación de Familias Formadas por Parejas del Mismo Sexo:


La Posición de Profesoras de Escuela Elemental

Resumen
El objetivo en este estudio fue analizar la representación de maestras de primaria de las escuelas pú-
blicas y privadas de la ciudad de Recife sobre las familias cuya pareja parental es del mismo sexo. Se
entrevistó a treinta profesoras. Los datos fueron sometidos a análisis de contenido. Resultó en dos temas:
(a) La representación de las maestras acerca de las familias cuya pareja parental es del mismo sexo; (b)
Sus percepciones de los niños que viven en este tipo de familias. Prevaleció un discurso que considera
que este tipo de familia no es “normal”, pero aun así, hay que respetarla. En cuanto a los niños, la mayo-
ría de las maestras declararon que sufren o pueden sufrir consecuencias adversas, como ser víctimas de
prejuicios y tener problemas con la orientación sexual futura. Aunque una minoría, hay maestras que no
ven razón por la que estos niños sufren daños diferentes de los que pueda sufrir por los demás que viven
en entornos familiares tradicionales.
Palabras clave: Maestras de escuelas primarias, representación de la familia, parejas del mismo sexo.

Na sociedade atual, intensificou-se a visi- De toda forma, os recentes questionamen-


bilidade das mais variadas configurações fami- tos sobre o modelo de família baseado em um
liares. Casais constituídos por dois homens ou casal heterossexual, como única possibilidade,
duas mulheres são muito mais que uma exceção. e a despatologização das homossexualidades le-
Melhor dizendo, são sujeitos que buscam sair da varam a modificações na concepção de família.
clandestinidade e encontrar um lugar social de Nesse sentido, vê-se hoje uma disputa entre as
reconhecimento e legitimação (Barajas, 2012). diferentes concepções de família, embora, para-
É bastante provável que a presença de crianças doxalmente, esta disputa venha servindo para re-
nas escolas originadas dos vínculos entre esses dobrar o valor atribuído à família tradicional, em
casais torne-se cada vez mais frequente. Neste menosprezo de outras possibilidades de constru-
sentido, é necessário assegurar a legitimidade ção de vínculos afetivo-sexuais que escapem às
dessas famílias e o direito dos cidadãos/cidadãs suas normas e aos seus princípios (Bento, 2012).
a um relacionamento afetivo livre dos preconcei- Nessa perspectiva, diz-nos Lobo (2002):
tos e determinações sociais imutáveis. A criança Não é a família per se que é constitucional-
advinda desse tipo de união deverá, igualmente, mente protegida, mas o locus indispensável
ter direito a uma educação sem discriminações. de realização e desenvolvimento da pessoa
Porém pesquisas realizadas envolvendo a escola humana. Sob o ponto de vista do melhor in-
mostram que ainda é muito forte a representação teresse da pessoa, não podem ser protegidas
segundo a qual qualquer modelo de família que algumas entidades familiares e desprote-
escape ao tradicional (pai, mãe e filhos) seria de- gidas outras, pois a exclusão refletiria nas
sajustado e disfuncional (Amazonas, Lima, Si- pessoas que as integram por opção ou por
queira, & Arruda, 2008). circunstâncias da vida, comprometendo a
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de Professoras de Ensino Fundamental.

realização do princípio da dignidade huma- as coisas, tendo manifestado e intercambia-


na. (p. 8) do seu sentido, podem voltar à interioridade
Como é possível observar, concordemos ou silenciosa da consciência de si. (Foucault,
não, a família, mais do que qualquer outro tipo 1970/1999, p. 49)
de vínculo afetivo e/ou sexual, é vista como o Mais ainda, as representações fazem mais
locus privilegiado de desenvolvimento e prote- do que interpretar/descrever práticas sociais; elas
ção dos indivíduos, principalmente das crianças. as produzem. Por meio delas, os significados são
Desse modo, considera-se de importância funda- produzidos e damos sentido à nossa experiên-
mental investigar como professores/as que lidam cia, ao que somos e até ao que podemos vir a ser
com a população infantil representam famílias (Foucault, 1970/1999; Woodward, 2000).
constituídas por casais do mesmo sexo. De acordo com Woodward (2000, p. 17) “a
Tomamos o conceito de representação a representação inclui as práticas de significação
partir dos estudos culturais, como o fez Stu- e os sistemas simbólicos por meio dos quais os
art Hall (2000), conectando-o aos conceitos de significados são produzidos, posicionando-nos
identidade e diferença. Trata-se de uma repre- como sujeito”. Trata-se de um processo cultural
sentação pós-estruturalista. Nessa perspectiva, que produz identidades individuais e coletivas e
“a representação é concebida unicamente em sua se baseiam em sistemas simbólicos que nos indi-
dimensão de significante, isto é, como sistema cam quem somos, quem poderíamos ser, quem
de signos, como pura marca material” (Silva, queremos ser. É nessa perspectiva que o discur-
2000, p. 90). so é, portanto, um conjunto de saberes que vai
Assim, a representação pode expressar-se adquirindo o status de verdades sobre algo. No
por meio de filmes, fotografias, desenhos, texto, momento em que entramos em contato com tais
expressão oral, etc. São descartadas, da repre- verdades, passamos a existir e a agir atravessa-
sentação, toda e qualquer conotação mentalista dos pelos sentidos que nos tomam como consci-
ou associação com uma suposta interioridade ência de si (Fernandes, 2012).
psicológica, pois representar é a maneira como Desse modo, ao investigar a forma como
os sistemas apresentam, simbólica e socialmen- professores/as de Ensino Fundamental repre-
te, as identidades; são modos culturais de atri- sentam as uniões entre casais do mesmo sexo e
buir significados que são produzidos em meio a percebem as crianças que vivem nessas famílias,
relações de poder (Louro, 2008). questionam-se as condições que possibilitaram a
Em outras palavras, são formas de interpre- sua construção e as posições de poder, a partir
tar e de atribuir sentido que se dá em um campo das quais elas se formaram. Pois essas represen-
de forças em conflito, movimentado pelas dife- tações e posições irão repercutir sobre suas per-
renças de perspectivas. Cada representação de formances em sala de aula e estarão imbricadas
família, por exemplo, é apenas uma versão, uma no processo de subjetivação e individuação das
possibilidade entre tantas outras que poderiam crianças que serão seus alunos.
ser produzidas. Elas são, no sentido dado por Ao representar a família em um determina-
Foucault (1970/1999), discursos que circulam. do modelo, não importa qual seja, apagam-se as
O autor entende o discurso como sendo a circu- diferenças entre os vários e singulares agrupa-
lação de verdades sobre algo em determinado mentos familiares, escamoteiam-se suas grada-
tempo histórico, que torna possível falar sobre ções, suas continuidades e as suas descontinui-
algo. dades. A diferença, nesses casos, é relegada ao
. . . o discurso nada mais é do que a rever- status de mero acessório, de simples acidente
beração de uma verdade nascendo diante de (Silva, 2002).
seus próprios olhos; e, quando tudo pode, Além disso, sabe-se que a representação
enfim, tomar a forma do discurso, quando nunca é imparcial, pois carrega sempre um índi-
tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito ce de valoração: “normal” ou “anormal”, “bom”
a propósito de tudo, isso se dá porque todas ou “mau”, “certo” ou “errado”. Assim, acaba
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por produzir a equivocada concepção segundo a das formas de articulação do saber-poder que
qual um modelo de família seria melhor ou pior operacionaliza certos jogos de verdade, criando
do que outro. Na verdade, esse jogo valorativo as possibilidades de criação de sujeitos norma-
depende, necessariamente, da perspectiva que se tizados (Foucault, 1978/2010). Mas, por serem
adota. forças em constante tensão, possibilita também
A escola, enquanto sistema que tem o poder a resistência e a libertação. Assim, para além da
de representar, deve constituir-se em um espaço simples sujeição, a investigação das condições
que possibilite diferentes interpretações, pontos históricas promoveria a compreensão do surgi-
de vista e perspectivas acerca dos temas por ela mento desse discurso e não outro (Fernandes,
tratados, visando à preservação da dignidade hu- 2012; Moraes, 2010).
mana.
Outro aspecto que se deve salientar é que Metodologia
professores são figuras de autoridade e referên-
cia para seus alunos, responsáveis por sua for- Participantes
mação e pela transmissão de conhecimento que A cidade do Recife está mapeada por Re-
não é neutro, mas produzido em um campo de giões Político-Administrativas (RPAs), que se
forças. Quem o produz está em uma posição de dividem em seis zonas: RPA1 Centro; RPA2
poder dizer: é isso, é assim que são as coisas Norte; RPA3 Noroeste; RPA4 Oeste; RPA5 Su-
(Foucault, 1970/1999; Silva, 2002). doeste; RPA6 Sul (Prefeitura da Cidade do Re-
Nesse embate de forças, os conceitos pro- cife, 1997). Esta pesquisa foi realizada na Zona
duzidos podem reduzir o diferente ao igual. Ao Centro da cidade do Recife (RPA1).
representar a família em um único e hegemôni- Inicialmente, foi realizado o levantamento
co modelo – o nuclear e heteronormativo – por do número de escolas existentes nesta zona que
exemplo, a escola acaba por reunir todos os in- ofereciam o Ensino Fundamental. Em seguida,
divíduos em uma única classe, à medida em que foram sorteadas 10% das escolas públicas e 10%
busca as semelhanças entre os diferentes, numa das escolas particulares existentes na zona, para
tentativa incessante de classificação. Ora, sabe- compor a amostra.
-se que a hetoronormatividade (Butler, 2003) é Em cada escola sorteada, foi pedida a auto-
um tipo de discurso que imprime como verdade rização para a realização da pesquisa. Depois de
natural a ideia de que as organizações afetivo- obtida a permissão das escolas, fez-se um levan-
-sexuais não heterossexuais são anormais ou tamento de todos os professores/as de cada esco-
desviantes, produzindo pares de opostos que la que atuavam no Ensino Fundamental e foram
fomentam a hierarquização e a exclusão. Diante sorteados/as 10% do total. Em seguida, agen-
desse quadro, a proposta deste trabalho é investi- dou-se um encontro no qual foram explicados os
gar como professores/as de Ensino Fundamental objetivos da pesquisa, apresentado o Termo de
de escolas particulares, da zona centro da cidade Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e,
do Recife, representam as famílias resultantes de somente após sua assinatura, foi iniciada a Pro-
uniões entre pessoas do mesmo sexo. Para tanto, dução dos Dados.
interroga-se o que pensam e como se sentem em Embora o critério de inclusão dos partici-
relação a elas; os valores e preconceitos que lhe pantes abrangesse os dois sexos, não foram en-
são atribuídos; como percebem as crianças que contrados indivíduos do sexo masculino atuando
vivem em famílias, cujos pais são homossexuais. como professores nessas escolas.
Nossa expectativa é contribuir para pro- Assim, foram entrevistadas 30 professoras,
blematizar as “verdades” que são produzidas sendo 18 de escolas particulares e 12 de escolas
no espaço escolar e que estão influenciando as públicas. A faixa etária variou de 25 a 48 anos
condições de inclusão ou exclusão social. Parti- de idade para as professoras das escolas parti-
mos do princípio de que o discurso em si mesmo culares, e 40 a 59 anos para as professoras das
não é libertador, nem opressivo. Pois, ele é uma escolas públicas.
Representação de Famílias Constituídas por Casais do Mesmo Sexo: A Posição 767
de Professoras de Ensino Fundamental.

Apesar dos cuidados adotados na escolha da • Após a delimitação dos temas, foi constru-
amostra, não se pode dizer que se trata de uma ída uma tabela em que constavam as res-
amostra significativa, nem que ela represente a postas das professoras relacionadas a cada
população de professores do Ensino Fundamen- um dos temas com a finalidade de facilitar
tal da Cidade do Recife. A escolha por essa zona a análise.
da cidade se deu pelo critério de conveniência, • A partir daí, realizou-se a análise em torno
e nela buscou-se abranger o maior número pos- dos temas, entremeando as respostas das
sível de escolas, considerando-se tanto escolas professoras à literatura consultada. Este
públicas quanto privadas, assim como o maior procedimento não foi linear. A cada etapa, o
número possível de professores em cada uma pesquisador tanto trabalhou o material pro-
das escolas sorteadas. No entanto, isso não sig- duzido, quanto teorizou sobre ele, em um
nifica dizer que se pretendeu, nesta pesquisa, movimento constante de ida e volta.
adotar uma amostra representativa nem alcançar
generalizações. Representação das Professoras
Acerca de Famílias Constituídas
Instrumento por Casais do Mesmo Sexo
Realizou-se entrevista aberta, contendo duas A respeito das manifestações da sexualida-
questões: (a) Você já teve alguma experiência, de na escola e das posições dos professores dian-
na escola, de lidar com crianças provenientes te do tema, Leão, Ribeiro e Bedin (2010) dizem
de famílias em que o casal parental é do mesmo que o campo é “dominado pelo desconhecimen-
sexo? (b) Como você se sentiu nesta situação? to, pelo preconceito, o tabu e a discriminação”
Outros questionamentos emergiram a partir das (p. 37) e que os professores não sabem como li-
respostas dadas pelas professoras. dar com as atitudes e comportamentos sexuais
que surgem na sala de aula. Pode-se dizer que
Procedimento de Produção dos Dados isso reflete o quadro que se encontra em nossa
pesquisa.
O projeto foi submetido e aprovado pelo
Nas respostas dadas pelas professoras nas
Comitê de Ética da Universidade Católica de
entrevistas, quando questionadas acerca de como
Pernambuco (Processo n°. 25000-050953/2004-
veem as famílias formadas por casais do mesmo
81, Parecer n°. 071/2008). Antes das entrevistas,
sexo, preconceito e homofobia se mesclam ao
foi explicado às professoras o objetivo da pes-
discurso de inspiração religiosa. A homofobia
quisa e solicitado que assinassem o Termo de
refere-se ao conjunto de emoções negativas em
Consentimento Livre e Esclarecido.
relação às pessoas homossexuais ou que assim
As entrevistas ocorreram individualmente e
se identificam (Junqueira, 2007), mas a principal
em ambiente privado. As respostas foram gra-
justificativa para a “não aprovação” a esse tipo
vadas e, posteriormente, transcritas literalmente.
de união é quase sempre a religião, Deus, peca-
do. Uma delas diz:
Procedimento de Tratamento e Análise
Eu acho ainda um negocio muito esquisito.
das Respostas às Entrevistas
Muito! Pra mim…, eu realmente…, tá fora
As etapas do tratamento e da análise foram realmente, até contra a vontade de Deus.
as seguintes: Isso aí é pecado, para o homem, para a
• Inicialmente as entrevistas foram transcritas mulher. É um ser humano como qualquer
literalmente, anotando-se as pausas, risos, outro, mas a situação, eu não aceito não.
lacunas, etc. Não vou nem demonstrar pra criança, pra
• Em seguida, foram lidas e relidas, conside- aquela criança, que eu não tô respeitando.
rando-se os objetivos da pesquisa e visando Eu respeito. Agora, eu não aceito, não é?
a delimitar os temas a serem analisados. Eu não aprovo. (P.13)
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A noção de pecado associada à sexualidade “Pra mim é um pouco conflitante porque eu


é uma herança judaico-cristã. O judaísmo enfa- não sou uma pessoa que aceita esse tipo de
tizou a prática sexual com fins apenas procriati- relacionamento como uma coisa normal.
vos, reprovando, tanto o incesto quanto a homos- Eu teria que, primeiramente, trabalhar co-
sexualidade masculina. Isso estava relacionado migo mesma para que evitasse a questão do
ao combate aos cultos pagãos e ao crescimento preconceito” (P.1).
de seus adeptos. Quanto ao Catolicismo, pode-se Outro aspecto que se destaca é a naturali-
dizer que essa associação entre religião e sexua- zação das identidades de gênero, fundamen-
lidade vista como pecado é historicamente data- tando-se em uma ordem biológica ou cultural.
da. Foi a partir do século IV que “a Igreja Cató- Ao mesmo tempo, delega-se à escola a função
lica começou a imprimir sua moralidade sexual de transmitir para as crianças o que é ser uma
como doutrina e a ter domínio universal” (Farias mulher ou ser um homem. Uma das professoras,
& Maia, 2009, p. 33). ao falar sobre o papel da escola na educação das
Aliadas ao discurso religioso aparecem con- crianças, diz:
tradições, ambiguidades e hesitações entre as Assim... as diferenças, elas observam no
concepções que possuem e os comportamentos lidar em sala de aula, tanto de um homem
que dizem adotar. É como se o discurso contem- como de uma mulher. Assim, as diferenças
porâneo do respeito às diferenças se impusesse, de sexo. Geralmente eles percebem assim,
mesclando-se e tencionando os demais discur- porque o homem tem um tom mais, é, vamos
sos, entre eles, o discurso religioso. Outra pro- dizer assim, sério. E a mulher, ela já é mais
fessora afirma: carinhosa, mais mãe, ela coloca esse lado
Olhe, essa sua pergunta, ela é assim… pra mais afetivo. Então assim, eu acho que ela,
mim que sou uma pessoa assim…, eu tenho através da escola, dá pra perceber que os
uma doutrina aonde a gente preserva o que sexos, eles podem ser bem definidos: mulher
Deus quer... a gente vai muito pela Bíblia. mais feminina e o homem mais masculino,
Então..., eu posso te dizer que eu não sou no lidar mesmo, na escola, com o professor
uma pessoa que tenho preconceitos, de jei- e a professora, no caso. (P.20)
to nenhum. Eu tenho amigos homossexuais, Desse modo, a escola vai atuando na cons-
que vão na minha casa, e eu os recebo mui- trução da diferença entre os sexos, fazendo
to bem, mas eu prefiro seguir, assim, o que parecer que elas são naturais. Segundo Butler
a Bíblia me pede que eu faça, obedecer a (2003), nem o sexo nem o gênero seriam cons-
Deus, que é servir convencionalmente. Ho- truções naturais, mais possibilidades instituídas
mem e mulher. (P.19) a partir dos variados discursos circulantes, e que
O principal referencial dessas professoras se tornariam possíveis em função dos jogos de
é a religião e, quando o discurso laico se con- verdade historicamente atuantes. Como exemplo
trapõe ao discurso religioso, os conflitos entre da constituição do referencial de gênero na mo-
as concepções que possuem sobre esse tipo de dernidade, temos a heteronormatividade. Outro
união e o modo como “devem” comportar-se aspecto destacado pela autora é que a lógica he-
diante delas, refletem-se em um discurso entre- teronormativa, também institui uma linearidade
cortado e entremeado por idas e vindas, avanços necessária entre o sexo, o gênero e a orientação
e retrocessos, afirmações e negações, permitin- sexual. Se uma pessoa nasce com um pênis, logo
do entrever as dificuldades que a temática lhes deve ser homem e direcionar sua sexualidade
impõe. para uma mulher. Isso seria a ordem natural das
Algumas professoras têm claros seus pró- coisas. Tudo o que se distancia deste modelo é
prios conflitos e preconceitos, como demonstra a visto como capaz de causar malefícios ou é pa-
resposta a seguir, mas, para outras, como a P.19, tologizado.
o discurso da aceitação e respeito é tensionado Olha, eu não acho graça [risos]. Eu não sei,
pelo discurso religioso. eu sou hétero, eu gosto de homem. Eu acho
Representação de Famílias Constituídas por Casais do Mesmo Sexo: A Posição 769
de Professoras de Ensino Fundamental.

que tem... eu particularmente não acho... vistos como direitos restritos “ao universo do ca-
Eu nunca passei por essa situação, né? Eu samento monogâmico, indissolúvel e reproduti-
acho que ninguém pode dizer assim, o que é vo, centrado na complementaridade dos sexos”
realmente o que você nunca passou. Mas... (p. 177).
é... Mas... Eu, pela minha visão, eu acho que Borrillo (2009, citado por Caterina Rea,
é… eu acho que seria sem graça. Eu já tô 2011, pp. 99-100) afirma:
apaixonada por um homem, agora, eu não Se a homoparentalidade ainda é percebi-
sei as coisas de cada um, porque eu acho da como perigosa, é porque faz fracassar o
que cada um quer o melhor pra si, né? Deus modelo “naturalista” e porque radicaliza a
nos fez com livre arbítrio pra gente escolher dimensão cultural das regras que governam
aquilo que a gente acha melhor pra gente. a filiação, as quais têm sido sempre, na so-
Só que eu acho que traz consequências que ciedade laica, independentes das leis bioló-
não são legais. Eu, particularmente, acho gicas, das invariantes antropológicas ou dos
que é uma relação assim… E com filhos, eu princípios psicanalíticos2.
acho que traz consequências pras crianças Essas questões de homofobia e preconceito
que não são legais. (P.30) já vêm sendo referendadas por outras pesqui-
Segundo Borges e Meyer (2008, p. 63), a sas, tais como a desenvolvida por Farias e Maia
escola e os professores compõem “um território (2009), na qual foram entrevistados psicólogos
em que se constituem e se reproduzem mecanis- jurídicos a respeito da possibilidade de adoção
mos homofóbicos”. Nesse contexto, os discursos por homossexuais. Os resultados desta pesqui-
escamoteiam relações de poder que determinam sa apontam que a questão do preconceito é re-
quais identidades sexuais devem ser considera- corrente nas falas desses profissionais. Há uma
das legítimas e quem está devidamente autoriza- concepção de que, tanto o casal homossexual,
do a legitimá-las. Assim, às identidades homos- quanto a criança a ser adotada poderão enfrentar
sexuais, enquanto vistas como desviantes, lhes é frequentes situações de preconceito nas relações
negado, inclusive, o direito a constituir vínculos sociais cotidianas, e isso vai demandar deles
afetivos conjugais e/ou parentais. Essas famílias condições emocionais especiais para fazer frente
sempre são vistas como um território de risco a tais situações. Tal reflexão se vê presente na
para as crianças e, ainda que tais riscos não es- fala de outra entrevistada:
tejam manifestos, desconfia-se que eles existam. “Eu teria muito cuidado porque eu acho que
. . . Um, por exemplo, eu vim descobrir no na sociedade que a gente vive ainda é mui-
final do ano, que a mãe dele tinha um re- to difícil viver numa família assim. Ainda é
lacionamento com outra mulher. Ele não muito complicado” (P.2).
apresentava nenhum tipo de problemas por Outro elemento que se destaca nas respostas
conta disso, mas eu não sei…, eu não sei na das professoras é o discurso da estranheza em
vida dele em casa…, eu não sei o que passa torno de um casal do mesmo sexo.
na cabecinha dele. Talvez ele se sente bem Por mais que a gente ache normal, não é, é
assim, deixou passar. Pra gente tava tudo uma coisa diferente. E o diferente é estra-
tranquilo, mas será que tava mesmo? Será nho, nos inquieta. Mas a gente tentou assim,
que realmente ele aceitava 100%? (P.19) através de estudos, agir naturalmente, né?
Admitir a possibilidade de uma família for-
mada por casais de pessoas do mesmo sexo com 2
Tradução nossa. Texto original: Si la homoparen-
a presença de crianças ameaça o modelo heteros- talidad es aún percibida como peligrosa, es por-
sexual de família hegemônico e coloca em risco que hace fracasar el modelo “naturalista” y por-
os próprios alicerces da sociedade (Mello, 2005). que radicaliza la dimensión cultural de las reglas
Isso porque, a priori, não se admite que as uniões que gobiernan la filiación, las cuales han siempre
sido, en la sociedad laica, independientes de las
homossexuais possam vir a ser incorporadas ao
leyes biológicas, de las invariantes antropológi-
estatuto de família, pois amor e sexualidade são cas o de los principios psicoanalíticos.
770 Amazonas, M. C. L. A., Vieira, L. L. F., Leite, M. F., Lima, R. D. M.

Porque antes de serem homossexuais, são Para Garcia et al. (2007), na tentativa de se-
pessoas. E trabalhar com pessoas, a gente rem legalmente reconhecidas, essas famílias, pa-
vê o lado emocional o tempo todo. Eu acre- radoxalmente, tendem a tomar a família nuclear
dito que não haveria mal nenhum. O mal como modelo e a preocupar-se com eventuais
que eles poderiam fazer é a eles mesmos falhas na educação das crianças, entre as quais
(P.12). se destacam as dificuldades escolares e os adoe-
Nessa perspectiva, o normal é apenas aquilo cimentos dos filhos. Dizem esses autores:
que é idêntico a nós mesmos. A tendência é to- Este tipo de estruturação familiar é favo-
mar a nós mesmos como referência, como a nor- recido pelo medo em relação às acusações
ma, como o ponto original relativamente ao qual presumidas no que diz respeito ao cuidado
se define a diferença. Desse modo, a diferença é dos filhos: . . . parecem ter uma preocupação
vista como uma ameaça à identidade, pois aqui- em cuidar de seus filhos de forma exemplar,
lo que está “fora” também nos constitui (Silva, para se defender de eventuais críticas em re-
2000). lação ao fato de formarem uma família ho-
Butler (2012, p. 26) diz: “Daí que é insu- moparental. (pp. 284-296)
ficiente sustentar que os sujeitos humanos são Quando se trata do reconhecimento da famí-
construções, pois a construção do ‘humano’ é lia constituída por casais do mesmo sexo, prin-
uma operação diferencial que produz o mais ou cipalmente em relação aos filhos no processo de
menos ‘humano’, o inumano, o humanamente escolarização, não é raro encontrar certos discur-
inconcebível.3” As construções do humano pro- sos que mostram uma discrição por parte desses
duzem um lugar dos excluídos o qual limita o casais. Tal discrição, muitas vezes, é autoimpos-
humano e assombra suas fronteiras e, neste caso, ta diante da própria homossexualidade, a qual
aquilo que está fora, perturba e pode ser rearti- serve como estratégia de evitar discriminação e,
culado. com tal postura, tem-se também a intenção de
Como vemos, os discursos são variados, evitar discriminação em relação ao filho. É o que
embora haja o predomínio de uma visão que faz podemos perceber nessa fala:
referências reiteradas à diferença e a não norma- A gente não desconfiava não, foi uma coisa
lidade. Há alguns, porém, que apontam a dife- de repente, ela era casada, bem casada, e
rença, privilegiando e positivando casais gays. de repente, quando a menina saiu da escola,
Assim, afirma uma das professoras: foi que nós ficamos sabendo, entendeu? Que
Às vezes eu achava até que eles eram mais a mãe tinha se separado, ele já era padras-
compreensivos do que outros pais. No caso, to da menina, e ela tava com uma amiga.
eram dois homens né? E era um menino que (P.27)
era superagressivo. Já tinha outras histó- Segundo Louro (2008), hoje, quando se tra-
rias anteriores, da família, bastante sofrido ta dos gêneros e da sexualidade, o desafio não é
e eles resolveram ficar com esse menino. mais aceitar que as posições se tenham multipli-
Eu achei até que eles tinham mais atenção cado e que não é mais possível pensá-las a par-
do que os outros pais, que eram casais nor- tir de esquemas binários (masculino/feminino,
mais. Procuravam saber mais sobre o filho homem/mulher, heterossexual/homossexual),
na escola do que os outros pais. (P.26) mas sim “admitir que as fronteiras sexuais e de
gênero vêm sendo constantemente atravessadas”
(p. 21), e mais complicado ainda é admitir que
3
Tradução nossa. Texto original: De ahí que sea alguns sujeitos habitam, justamente, a fronteira.
insuficiente sostener que los sujetos humanos A mesma entrevistada ainda diz:
son construcciones, pues la construcción de Eu acho que cada um deve procurar ser fe-
lo ‘humano’ es una operación diferencial que liz do modo que quiser. Não é? Pela paixão,
produce lo más o menos ‘humano’, lo inhumano,
lo humanamente inconcebible. se está bem com uma mulher, o que é que
Representação de Famílias Constituídas por Casais do Mesmo Sexo: A Posição 771
de Professoras de Ensino Fundamental.

impede? Não sou contra não. Eu sou des- tão todos são especiais, então todos têm as
sas que a pessoa tem que procurar ser feliz suas limitações, então por que não acolher
do modo que tiver vontade, tiver a fim. O esse tipo de família? Eu acredito que para
que é que adianta tá com um homem e não muitos tem o choque, né? Eu acredito que
ser feliz, ser espancada, o homem lhe bater, para os pais deva ter choque, né? Mas em
lhe maltratar? Aí encontra uma pessoa do questão de escola, eu acredito que não. Eu
mesmo sexo que vai lhe dar carinho, lhe dar acredito que eles iam acolher normal, como
amor. Ela vai escolher o que? Do mesmo qualquer outra família. (P.5)
sexo. (P.27) O que parece, a princípio, um movimento
A fala dessa entrevistada parece representar de resistência ao discurso hegemônico do lu-
um locus de resistência em relação ao entendi- gar determinado aos diferentes (os não hete-
mento comum sobre a sexualidade. Ela conse- rossexuais), faz transparecer a dificuldade de
gue compreender que a possibilidade de felici- “pensar” fora do estabelecido pelo processo
dade ultrapassa os limites do gênero, do que é de sujeição (sujeito), mesmo que uma aparente
socialmente aceito e ditado em relação ao sexo. torção nos valores pareça ser um discurso di-
Por outro lado, caracteriza o homem como vio- ferente. Chamar de “especial”, que na história
lento, o que poderia justificar a procura por uma tentou substituir a ideia de deficiente, sugere a
relação homossexual, como compensação. necessidade de acolhimento do diferente e, ao
mesmo tempo em que inclui, também promove
Como as Professoras Representam as um movimento de exclusão, pois marca essas
Crianças que Vivem neste Tipo pessoas pela diferença, e nessa diferença evi-
de Família denciada pela deficiência ou anormalidade.
Mais uma vez, o discurso que emerge das De acordo com Quartiero e Nardi (2011,
respostas das professoras é ambíguo. Há uma p. 709), “O sistema de ensino tem proposto um
“preocupação” em afirmar um comportamento olhar para as identidades como um lugar fixo
de respeito às diferenças, de “normalidade”, ao para os sujeitos”. Ao mesmo tempo em que
mesmo tempo em que se acentua a dificuldade uma política de afirmação de certos grupos pela
dos “outros” (nunca de si mesmos) de conviver identidade destaca e evidencia a sua existência,
com essa realidade. Acerca de como lidaria com trazendo afirmações e conquistas, ele também
essa situação em sala de aula, uma das partici- pode apenas ressaltar as diferenças e marcar
pantes afirma: mais ainda a sua “natureza” anormal ou des-
“Eu agiria normal. Agora, assim…, as ou- viante da norma. Assim, discutir a diversidade
tras crianças, não é? Eu teria que conver- sexual, no âmbito da Educação, torna-se um
sar com elas porque elas não iam entender” grande desafio.
(P.28). A fala seguinte aponta para as dificuldades e
A participante, a seguir, tenta refletir sobre as limitações que as professoras demonstram em
a temática, assume uma posição de quem ques- relação ao tema da sexualidade quando essa tem
tiona o que seria normal e o que seria anormal, que ser pensada para além do aspecto puramente
porém fica confusa e compara as limitações de biológico e reprodutivo, levando em considera-
crianças advindas dessas famílias, com crianças ção os aspectos social e político. Parece haver
com necessidades especiais. De todo modo, pa- um acordo tácito em relação aos problemas de
rece que a situação da pesquisa a faz refletir e família que reverberam na escola, e, mais espe-
propõe que a escola deve ter uma atitude de aco- cificamente, nas professoras. Problemas esses já
lhimento em relação a essas crianças. catalogados e conhecidos dos docentes:
Eu acredito que da mesma forma que se Ela sofria, o rendimento dela era muito
comporta com os ditos normais, da mesma baixo, a autoestima dela era baixíssima.
forma como as crianças especiais, especiais Porque nós temos problemas sérios tanto
em quê? Ela tem as limitações dela, é... En- a prefeitura, o Estado nessa... nesse... nós
772 Amazonas, M. C. L. A., Vieira, L. L. F., Leite, M. F., Lima, R. D. M.

professores nós temos problemas sérios de monstra mesmo... pelo jeito dele agir, pelo
família. Famílias totalmente desestrutura- jeito de falar, ele sentia medo de se apro-
das, mas assim, o preconceito ainda é muito ximar pra brincar com os meninos” (P.13).
forte, pra se ter uma família homossexual. É interessante salientar aqui o que diz Go-
(P.6) ellner (2003, p. 29): “O corpo é também o que
Arán (2009) afirma que a capacidade de cui- dele se diz e aqui estou a afirmar que o corpo
dar de uma criança não pode estar vinculada à é construído, também, pela linguagem”. Isso
orientação sexual de seus pais. Segundo Farias e significa que a linguagem não apenas reflete a
Maia (2009), pesquisas realizadas sobre crianças realidade, mas cria aquilo que existe. Quando se
que vivem nesse tipo de família têm demonstra- trata do corpo, “. . . a linguagem tem o poder de
do que elas não se diferenciam, em nenhum as- nomeá-lo, classificá-lo, definir-lhe normalidades
pecto significativo, das crianças cujos pais são e anormalidades, instituir” (Goellner, p. 29).
heterossexuais. Uma participante, quando questionada so-
Essas mesmas autoras acrescentam que nem bre se já teve alguma experiência, na escola, no
o desenvolvimento emocional nem o estabeleci- lidar com crianças que viviam em famílias cons-
mento de vínculos afetivos parecem ser prejudi- tituídas por um casal do mesmo sexo, afirma que
cados pelo convívio com dois pais ou duas mães. sim e diz como se sentiu:
Tal afirmação pode ser percebida na fala de Eu acho isso uma coisa assim… tão nor-
outra professora, quando ela diz: mal, porque é como eu digo na minha his-
Partindo do princípio de que nós vemos a tória [refere-se à história que contou sobre
criança como centro de tudo, eu não perce- o desenho], as pessoas para serem felizes,
bi nenhum... não percebi algo diferente que para viverem em harmonia, em respeito, em
eu pudesse dar uma atenção maior. . . . A união, não precisam ter aquela figura pater-
criança não tinha problema nenhum quanto na, a figura materna, não. Eu não sei se isso
a isso [referindo-se à sexualidade da crian- mexe com a cabeça da criança, entendeu?
ça]. (P.15) Com a minha, porém, como eu sou adulta,
A fala dessa professora revela um exercício não mexe nada. Poderia ser um casal gay
comum da prática docente, no qual o mecanismo masculino ou um casal gay feminino crian-
de poder que o integra foi e é a vigilância, no do uma criança, desde que essa criança se
sentido de prevenir as condutas não desejadas. A sinta bem, que essa criança seja respeitada
sexualidade, então, constitui-se como alvo privi- e amada. Não vejo por que não ser. (P.23)
legiado da vigilância e controle das sociedades. Ainda uma terceira participante afirma, a
Multiplicam-se e diversificam-se as formas de respeito da mesma questão:
regulação, as instâncias e as instituições que lhe “Não vejo diferença nenhuma, obstáculo
ditam normas (Louro, 2008). nenhum. Se a criança não apresentava ne-
Na esteira dessa reflexão, vale salientar que, nhum problema, falava numa boa, era uma
no que tange à identidade e à diferença, trata-se criança saudável, tinha um bom aproveita-
de uma relação social que está sujeita a vetores mento escolar, não tinha complicação ne-
de forças, em uma constante relação de poder, nhuma” (P.22).
que é permeada por conflitos e contradições ad- A forma como as professoras percebem a
vindas das diferentes posições que os envolvidos questão da sexualidade e a maneira pela qual ela
assumem. Nesse sentido, muitas vezes aquele produz e reproduz as identidades e as diferenças,
que produz o discurso é convocado a ratificar seu a normatividade heterossexual, parece também
discurso, é o que se percebe na fala desta outra “(re)velar” a sua própria construção, enquanto
participante: sujeito. Mas não apenas isso: diz e revela tam-
“Na minha turma tinha um menino, todo bém que a maneira de perceberem as crianças
mundo dizia: ‘tia, ele é bicha’…, ele de- advindas de casais do mesmo sexo os coloca em
Representação de Famílias Constituídas por Casais do Mesmo Sexo: A Posição 773
de Professoras de Ensino Fundamental.

uma encruzilhada ética em relação à visão de dade e na família nos últimos anos e veem es-
criança, aluno, sexualidade, identidade, etc. O sas transformações como situações comuns aos
se posicionar de um jeito ou de outro parece ser humanos e que não há razão para que elas pro-
uma maneira de se defender da reflexão que tal voquem danos às crianças, diferentes daqueles
situação convoca. que podem ser sofridos por elas em famílias de
configurações tradicionais.
Considerações Finais Na verdade, os discursos dessas professoras
apontam, frequentemente, uma tensão entre as
Dois temas foram analisados nesta pesqui- mudanças sociais que elas presenciam e antigos
sa: (a) a representação dos professores acerca de (pre)conceitos do que é ou deveria ser uma famí-
famílias constituídas por casais do mesmo sexo, lia e o que é saudável para uma criança.
e (b) como eles percebem as crianças que vivem Nesse sentido, pode-se ver a ação de vigi-
neste tipo de família. lância a que o sistema educacional se presta, e
Em relação ao primeiro tema, pode-se di- que parece também operar como um dos ele-
zer que há uma predominância do discurso que mentos que subjetivam essas professoras como
oscila entre: (a) admitir que este tipo de família instrumentos de patrulha e normatização dos di-
não é “normal”, isto é, as professoras se regem tos comportamentos desviantes. A escola é um
pela norma heteronormativa para referendar o lugar de reprodução do estabelecido ou uma pos-
que deve ser uma família, e (b) a afirmação de sibilidade de abertura para o novo?
que, apesar de esse tipo de união não poder ser Por fim, podemos dizer que hoje já encon-
considerada normal, é preciso respeitá-la. Nes- tramos uma razoável literatura, tratando do tema
te cenário, o preconceito é sempre atribuído ao da homossexualidade na escola. Essa literatura
outro, isto é, à sociedade, aos pais dos alunos, e aponta que a escola é um lugar privilegiado de
tantos outros. construção da cidadania e de atitudes de respei-
Quanto ao segundo tema, repete-se a mesma to aos direitos do cidadão, não importando nem
visão, porém de modo mais enfático. A maio- a raça, nem a religião, nem a orientação sexual,
ria das professoras considera que crianças que entre outras diferenças.
vivem nesta modalidade de família sofrem ou Apesar disso, a realidade que se encontra
podem sofrer consequências nefastas: precon- nessa instituição não parece ter sofrido grandes
ceitos na escola, na vizinhança, por exemplo. modificações nas últimas décadas. Quando se
Além disso, temem que elas percebam os pais de trata de sexualidade, elas se regem pela hete-
forma distorcida. Além do receio de implicações ronormatividade. Situações de homofobia, quer
negativas em seu desenvolvimento emocional e sejam explícitas como a violência física, quer
social. Dois pais? Duas mães? Aparecem, tam- simbólicas, através do uso da linguagem, são
bém, com frequência, temores acerca da futura frequentes no cotidiano, tanto por parte de alu-
orientação sexual dessas crianças. nos, como professores, ou ainda de outros profis-
Conforme se discutiu no início do artigo, sionais da educação. Como vimos, na revisão da
a lógica parece estar firmemente alicerçada no literatura, até mesmo o material didático traba-
biológico como determinante do psíquico e do lhado nas escolas exclui a diversidade sexual de
social. Se há um desvio da norma, neste caso a seu conteúdo, numa demonstração homofóbica
heteronormatividade, o temor do surgimento de que ignora a existência dessas pessoas.
“patologias” aparece, e parece nortear as diretri- As questões discutidas neste artigo não se
zes na atuação das professoras e do sistema de prestam a ser generalizadas e tornadas univer-
ensino. sais, mas podem apontar a necessidade de que
Embora sejam minoritárias, existem exce- temas, como sexualidade e gênero, sejam abor-
ções a este discurso. Há professoras que estão dados com maior profundidade no momento de
atentas às mudanças que têm ocorrido na socie- formação e reciclagem destes profissionais de
774 Amazonas, M. C. L. A., Vieira, L. L. F., Leite, M. F., Lima, R. D. M.

ensino, já que, como discutidos, são eles ele- Fernandes, C. A. (2012). Discurso e sujeito em Mi-
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