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VISUALIDADES

ISSN 1679-6748
VISUALIDADES . GOIÂNIA . v. 14 n.2 . Jul-Dez/2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

Reitor
Orlando Afonso Valle do Amaral

Pró-Reitor de Pós-Graduação
José Alexandre Felizola Diniz Filho

Diretor da Faculdade de Artes Visuais


Raimundo Martins

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual


Profa. Dra. Rosana Horio Monteiro

Sub-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual


Prof. Dr. Thiago Sant’Anna

Editora
Profa. Dra. Alice Fátima Martins

Conselho Editorial
Christinne Bernier (UDM, Canadá) / Denise Bernuzzi de Sant’Anna (PUC-SP, Brasil)
/ Eliane Chaud (FAV/UFG, Brasil) / Fernando Miranda (UdelaR, Uruguai) / Helio
Fervenza (UFRGS, Brasil) / Jorge La Ferla (Universidad de Buenos Aires, Argentina) /
Laura Traffi (University Of Wisconsin Milwaukee, EUA) / Nicholas Mirzoeff ( New York
University, EUA) / Remedios Zafra (Universidad de Sevilla, Espanha) / Ricardo Campos
(Universidade Aberta, Portugal) / Rosana Horio Monteiro (UFG, Brasil) Thiago Fernando
Sant’Anna e Silva (UFG, Brasil)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (GPT/BC/UFG)
V834 Visualidades
Visual I Faculdade de Artes Visuais I UFG. – V. 14, n.2
(2016). – Goiânia-GO: UFG, FAV, 2016.
V. :il.

Semestral
Descrição baseada em V.14, n.2
ISSN: 1679-6748
1. Artes Visuais – Periódicos I. Universidade Federal de Goiás.
Faculdade de Artes Visuais II.
Título.
CDU: 7(05)
Tiragem: 150 exemplares Data de circulação: julho/2016
Pareceristas deste número:
Bruno Souza Leal (UFMG, Brasil) / Carla Abreu (FAV/UFG, Brasil) / César Lignelli (UnB,
Brasil) / Clélia Maria Lima De Mello e Campigotto ( UFSC, Brasil) / Edgar Franco (FAV/
UFG, Brasil) / Emerson Dionisio Gomes de Oliveira (UnB, Brasil) / Erika Savernini Lopes
(UFJF, Brasil) / Fábio Oliveira Nunes (UNESP, Brasil) / Gazy Andraus (FIG-Unimesp, Brasil)
/ Heloisa Selma Fernandes Capel (FH/UFG, Brasil) / Henrique Magalhães (UFPB, Brasil) /
Irene Tourinho (FAV/UFG, Brasil) / Juzelia de Moraes Silveira (UDESC, Brasil) / Laura Maria
Coutinho (UnB, Brasil) / Lavinnia Seabra Gomes (FAV/UFG, Brasil) / Luís Edegar de Oliveira
Costa (UFRGS, Brasil) / Luisa Günther Rosa (UnB, Brasil) / Luiz Sérgio de Oliveira (UFF, Bra-
sil) / Madalena Zaccara (UFPE, Brasil) / Manuelina Maria Duarte Cândido (FCS/UFG, Brasil)
/ Maria Claudia Bonadio (UFJF, Brasil) / Nilson Almino de Freitas (UVA, Brasil) / Pablo Petit
Passos Sérvio (FAV/UFG, Brasil) / Thiago Fernando Sant’Anna e Silva (UFG, Brasil) / Rita
Andrade (FAV/UFG, Brasil) / Rebeca Lenize Stum (UFSM, Brasil) / Rodrigo Cássio Oliveira
(FIC/UFG, Brasil) / Ronaldo Alexandre de Oliveira (UEL, Brasil) / Rosana Horio Monteiro
FACULDADE DE ARTES VISUAIS (FAV/UFG, Brasil) / Rosillandes Cândida Martins (EMAC/UFG, Brasil) / Vanessa Freitag
UFG (Universidad de Guanajuato, México) / Wolney Fernandes (UFG, Brasil)
Secretaria de Pós-Graduação
Revista Visualidades Créditos
Avenida Esperança, s/n Capa e Ensaio Visual: Moacir - Coleção de desenhos do acervo do CCUFG | Curadoria:
Câmpus Samambaia (Câmpus II) Alice Fátima Martins, Cátia Ana Baldoino da Silva e Wagner Bandeira | Fotografia: Alice
CEP: 74690-900 Fátima Martins | Editoração: Cátia Ana Baldoino da Silva | Direção de arte: Wagner
Bandeira | Projeto gráfico: Márcio Rocha | Revisão: Divisão de Periódicos do CEGRAF/
UFG: Janaynne C. do Amaral, Bruna Mundim, Fabiene Riâny Azevedo Batista, Pedro Augusto
+55 (62) 3521-1442 de Lima Bastos e Camila Di Assis (Revisão Português), Letícia Lima e Pedro Augusto de Lima
revistavisualidades@gmail.com Bastos (Revisão Inglês), Bruna Mundim, Fabiene Riâny Azevedo Batista e Sara Guiliana G.
www.fav.ufg.br/culturavisual Belaonia (Revisão e tradução ao Espanhol).
Sumário

ARTIGOS

Experiências a/r/tográficas:
gênero e sexualidades
Luciana Borre Nunes (UFPE, Brasil) 10

Comida e visualidade
Elaine de Azevedo (UFES, Brasil)
Shay Peled (UFES, Brasil) 30

Zeferino e o problema da seca no Nordeste


Fabio Mourilhe (UERJ/UFRJ, Brasil) 48

Algumas demonstrações para introduzir


a arte da performance
Carina Sehn (UCS, Brasil)
Paola Zordan (UFRGS, Brasil) 68

Histórias em quadrinhos, filosofia pop e


filosofia política: a América da Liberdade versus
os Estados Unidos da Verdade em “Uncle Sam”
Heraldo Aparecido Silva (UFPI, Brasil) 90

Flores, cores e formas:


o Brasil estampado de chita
Ivana Guilherme Simili (UEM, Brasil)
Priscila Barbeiro (UEM, Brasil) 106

Pedagogias culturais e conhecimentos esco-


lares: interpelações à educação contemporânea
Odailso Sinvaldo Berté (UFSM, Brasil)
Raimundo Martins (FAV/UFG, Brasil) 140
Narrativas híbridas: o estático e o movimento
no vídeo 911 do coletivo Cia de Foto
166 Rafael Castanheira (UnB, Brasil)

Ensaio visual

Arte fora da norma: a obra de Moacir,


o Nô, da Vila de São Jorge
Moacir Soares de Faria (desenhos)
185 Carla de Abreu (texto)

relato de pesquisa

“2086”: a imagem entre a vigilância


e a contemplação
198 Fernando Gerheim (UFRJ, Brasil)

teses e dissertações

O renascimento da relação entre a arte e a


ciência: discussões e possibilidades a partir do
codex entre Galileo e Cigoli no século XVII
213 Josie Agatha Parrilha da Silva (UEPG, Brasil)

218 Normas para publicação de trabalhos


Contents

ARTICLES

A/r/tografhic experiences:
gender and sexuality
Luciana Borre Nunes (UFPE, Brasil) 10

Food and visuality


Elaine de Azevedo (UFES, Brasil)
Shay Peled (UFES, Brasil) 30

Zeferino and the problem of drought


in Northeast
Fabio Mourilhe (UERJ/UFRJ, Brasil) 48

Some demonstrations to introduce


the art of performance
Carina Sehn (UCS, Brasil)
Paola Zordan (UFRGS, Brasil) 68

Comics, pop philosophy and political


philosophy: America’s Freedom versus the
United States of Truth in “Uncle Sam”
Heraldo Aparecido Silva (UFPI, Brasil) 90

Flowers, colors and shapes:


Brazil stamped in chita
Ivana Guilherme Simili (UEM, Brasil)
Priscila Barbeiro (UEM, Brasil) 106

Cultural pedagogies and school knowledge:


challenges to contemporary education
Odailso Sinvaldo Berté (UFSM, Brasil)
Raimundo Martins (FAV/UFG, Brasil) 140
Hybrid narratives: the static and the
mobile in the “911” Cia de Foto video
166 Rafael Castanheira (UnB, Brasil)

Visual eSSAY

Art outside norm: the work by Moacir,


Nô, from São Jorge Village
Moacir Soares de Faria (desenhos)
185 Carla de Abreu (texto)

Research Report

“2086”: the image between surveillance and


contemplation
198 Fernando Gerheim (UFRJ, Brasil)

Theses and dissertations

The renaissance of the relationship between


art and science: discussions and possibilities
from the Codex between Galileo and Cigoli in
the 17th century
213 Josie Agatha Parrilha da Silva (UEPG, Brasil)

218 AUTHOR GUIDELINES


Índice

ARTÍCULOS

Experiencias a/r/tográficas:
género y sexualidades
Luciana Borre Nunes (UFPE, Brasil) 10

Comida y visualidad
Elaine de Azevedo (UFES, Brasil)
Shay Peled (UFES, Brasil) 30

Zeferino y el problema de la sequía


en el Nordeste
Fabio Mourilhe (UERJ/UFRJ, Brasil) 48

Algunas demostraciones para introducir


el arte de la performance
Carina Sehn (UCS, Brasil)
Paola Zordan (UFRGS, Brasil) 68

Historietas, filosofía pop y filosofía política:


la América de la Libertad frente a los Estados
Unidos de la Verdad en “Uncle Sam”
Heraldo Aparecido Silva (UFPI, Brasil) 90

Flores, colores y formas:


Brasil estampado de percal
Ivana Guilherme Simili (UEM, Brasil)
Priscila Barbeiro (UEM, Brasil) 106

Pedagogías culturales y conocimientos esco-


lares: cuestionamientos a la educación contem-
poránea
Odailso Sinvaldo Berté (UFSM, Brasil)
Raimundo Martins (FAV/UFG, Brasil) 140
Narraciones híbridas: lo estático y el movimiento
en el video 911 del colectivo Cia de Foto
166 Rafael Castanheira (UnB, Brasil)

Ensayo visual

Arte fuera de la norma: el trabajo de Moacir,


el Nô, del pueblo de San Jorge
Moacir Soares de Faria (desenhos)
185 Carla de Abreu (texto)

Resultado de Investigación

“2086”: la imagen entre la vigilancia


y la contemplación
198 Fernando Gerheim (UFRJ, Brasil)

Tesis de Maestría y Doctorado

El renacimiento de la relación entre el arte y la


ciencia: discusiones y posibilidades a partir del
Codex entre Galileo y Cigoli en el siglo XVII
213 Josie Agatha Parrilha da Silva (UEPG, Brasil)

218 NORMAS PARA LOS AUTORES


ARTIGOS
Experiências a/r/tográficas:
gênero e sexualidades

Luciana Borre Nunes

Resumo

Texto poético e narrativo. Conta histórias pessoais que


provocaram processos - intencionais e pretensiosos - de
aprender e ensinar no campo das artes visuais. Escrita por um
grupo produtor de imagens que através de leituras, diálogos
e experimentações/imersões poéticas buscou caminhos para
pensar a produção de gênero, sexualidades e cultura visual.
Um viés a/r/tográfico inundou nossas práticas pedagógicas
tramando esta escrita coletiva que confunde a autoria e
denuncia memórias. Procura nos relatos de situações cotidianas
Palavras-chave:
Cultura visual, a/r/tografia,
a potência de uma formação docente em Artes Visuais baseada
gênero e sexualidades nos atos de aprender, pesquisar, artistar e ensinar.

10 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016


A/r/tografhic experiences: gender and sexuality

Luciana Borre Nunes

Abstract

A poetic and narrative text. It tells personal stories that led


to intentional and pretentious processes of teaching and
learning in the field of visual arts. It is written by a group of
producers of images and that through lectures, dialogues
and poetic immersion, has sought to think about gender
identities, sexualities and visual culture. An a/r/tografhic field
provides the basis for our teaching practices and provides the
possibility of a collective writing that confuses the authorship,
denouncing our memories. The review of texts grounded on
the everyday situations demonstrated the power of a Visual
Keywords:
Arts teacher training that is based on the acts of learning, Visual culture, a/r/tografh,
researching, being an artist, and teaching visual arts. gender and sexuality

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016 11


Experiencias a/r/tográficas:
género y sexualidades

Luciana Borre Nunes

Resumen

Texto poético y narrativo. Cuenta historias personales que


estimulan procesos –intencionales y pretenciosos – de
aprender y enseñar en el campo del arte visual. Escrita por
un grupo productor de imágenes que a través de lecturas,
diálogos y experiencias/ inmersiones poéticas buscó caminos
para pensar la producción de género, sexualidades y cultura
visual. Una oblicuidad a/r/tográfica inundó nuestras
prácticas pedagógicas, tejiendo este escrito colectivo
que confunde autoría y denuncia de memorias. Busca en
los relatos de situaciones cotidianas la potencia de una
Palabras-clave:
Cultura visual, a/r/tografía,
formación docente en Artes Visuales basada en los actos de
género y sexualidades aprender, investigar, artistar y enseñar.

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016

CUIDADO! Este texto:


(1) possui conteúdo autobiográfico e de fácil identificação;
(2) contém fatos/imagens/pensamentos verídicos (da vida
real);
(3) está escrito em primeira pessoa.

Eu tramava imaginários e poéticas do corpo performatiza-


do. Tu tramaste rituais sobre como viver o feminino. Ela me
jogou na trama feminista e depois me abandonou em novas
verdades. Ele entendeu que as formas de poder disciplinam
e, assim, confiou nos movimentos sociais minoritários. Nós
tramaremos bagunças no ato de pesquisar e vós apontareis
os marcadores sociais da diferença: sexualidades, corpo, raça,
etnia, classe social (...). Eles buscarão a liquidez dos discur-
sos queer e, voltarão ao aprisionamento. Elas, acreditando-se
emancipadas, consolidarão novos contextos de cidadania se-
xual e afetiva.
Um emaranhado de vozes e tempos ecoará no desenvolvi-
mento desse texto que se pretende poético e narrativo. Histó-
rias pessoais provocaram processos (intencionais e pretensio-
sos) de aprender e ensinar no campo das artes visuais enquanto
o grupo se constituiu como produtor de imagens. Leituras, di-
álogos e experimentações/imersões poéticas compuseram os
caminhos para pensarmos a produção de gênero e sexualidades
através da cultura visual. Esperamos que um viés a/r/tográfico
possa inundar as práticas de pesquisar, ensinar e artistar.
Tramamos uma escrita coletiva que confunde autoria,
denunciando-nos. Giselle, Jaci, Luana, eu (Luciana) e Rafa-
el protagonizamos a produção de imagens e poéticas visuais
com a intenção de subverter/romper/desconfigurar/recriar

Luciana Borre Nunes . Experiências a/r/tográficas: gênero e sexualidades 13


Figura 1
“Divindades Femininas”,
Aquarelas, Giselle Silva, 2015.

discursos naturalizados sobre como viver gênero e sexualida-


des. Procuramos nos relatos de situações cotidianas a potência
de uma formação docente em artes visuais baseada nos atos
de aprender, pesquisar, artistar e ensinar. Eis que histórias de
vida – amores, dores, frustrações e sorrisos – desencadearam
processos reflexivos sobre educação da cultura visual duran-
te a disciplina de metodologia do ensino das artes visuais, no
curso de artes visuais da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), em 2015.

Divindades femininas – Giselle Silva


Saí de casa vestida toda de branco. Estava com uma saia
rodada (acho saias desse tipo um charme), uma blusinha
de algodão e chinelo de couro. Chegando à parada de
ônibus avistei uma senhora do outro lado da rua. Senti
a intensidade do seu olhar. Ela veio em minha direção -
achei um pouco estranho e pensei que, talvez, pudesse
conhecê-la - e o inesperado aconteceu. Parou na minha
frente e começou a gritar: “Deus tá vendo o que você anda
fazendo, viu?! Coisa ruim! Vai pros teus xangôs, vai!” Ela
pegou um fio de poste (molhado) caído no chão, saco-
diu em minha direção e foi embora com uma expressão
de raiva. Fiquei sem reação no momento, vendo somente
que todos voltaram seus olhares para a cena. Ao embarcar
no ônibus, um turbilhão de sentimentos e pensamentos
tomou conta de mim. Relembrei de outro dia, no metrô,
quando uma pessoa disse em voz alta: “tem pente em casa

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016

não, é?!” Mesmo não sendo adepta a religiões afro-bra-


sileiras essas situações mexeram muito comigo. Se meu
cabelo crespo e roupas brancas incomodam, o que as pes-
soas negras, mulheres e adeptos das religiões afro sofrem?

Corte com/tensão – Jaci Borba


Estou num ônibus indo pra Casa Forte/Recife. Um ônibus
vazio exceto pela óbvia presença de uma pessoa que diri-
ge o veículo e outra que recolhe os pagamentos. Nenhu-
ma preocupação me ocorre a não ser a atenção extrema
para não perder o ponto de descida. Olhos fixos na janela.
Sobem dois homens que cumprimentam os outros dois
homens. Os recém-chegados não me veem até que, fi-
nalmente, me levanto para acionar o sinal de descer. Eu,
com calça jeans e cabelo cortado (curtinho como eu que-
ria), tênis, camiseta e portando uma mochila. Eles, com
um alto nível de ódio e preconceito. Ao descer, um dos
homens põe a cabeça na janela do ônibus e começa a me
insultar. É tudo muito rápido, o semáforo fecha, as pessoas
na rua olham apáticas e talvez felizes pela quebra da roti-
na nessa tarde. O homem esbravejava, cuspia seu veneno
e me banhava com saliva fétida. Paralisou meus nervos,
emudecendo-me: “Machinho! Vem saber o que é homem!
Olha o tamanho dela, só o meu ‘pau’ é do teu tamanho!
É que ninguém ‘comeu’ direito!” Paralisada, não consegui
atravessar a rua e seguir meu rumo. Foi tudo tão rápido,
mas era como se ainda estivesse acontecendo em um tipo
de slow motion. Quem disse que sou lésbica? Quem disse
que se eu fosse lésbica ele teria o direito de me agredir?
Quem disse? Quem deu esse direito? A homofobia me
atingiu, machucando-me.

Pequenas agressões - Luana Andrade


Eu sempre pensei que amamentar fosse automático e natu-
ral. Nasceu o filho, amamento-o. Contudo, devido a todas
as dificuldades físicas inerentes à amamentação - a dor, o
mamilo plano e a inexperiência - não consegui amamentar
o meu primeiro filho. Carreguei culpa por isso. Todas as vi-
roses, cólicas e desapegos, em meu (in)consciente, só tinham

Luciana Borre Nunes . Experiências a/r/tográficas: gênero e sexualidades 15


Figura 2
“Corte com/tensão”, vídeo insta-
lação, Jaci Borba, 2015. Acesse o
vídeo arte em: <www.youtube.
com/watch?v=TYQPr5E3Etw>

uma razão: a incompetência de não amamentar. Um fracas-


so! Na minha segunda gravidez prometi que iria ser diferen-
te. Pesquisei, fiz exercícios de estímulo nos mamilos, com-
prei acessórios e remédios. Ela nasceu. Tinha que dar certo...
E deu! Tinha leite igual ‘vaca holandesa’. Alimentava minha
filha e me sentia competente e completa na arte de ser mãe.
Um orgulho danado até o dia que precisei amamentar na rua.
Estava na praça e precisei cobrir tudo porque um homem fi-
cou me olhando ‘estranho’. Depois, uma criança que passava
falou: “olha, mãe, um bebê!” Eu, toda orgulhosa, descobri
minha filha e meus seios e, imediatamente, a zelosa esposa
afastou o marido e o filho daquela devassa que se expunha na
rua. Passei por situações parecidas outras tantas vezes. Algu-
mas mulheres sugeriram que me escondesse para amamen-
tar. Um dia me peguei dando leite artificial a minha filha para
não expor meu seio ao meu orientador na universidade, com
receio de ofendê-lo. Depois disso tudo, percebi que a dor de
amamentar é muito mais moral que física.

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016

Figura 3
“Pequenas Agressões”, Nanquim,
Luana Andrade, 2015

Figuras 4 e 5
“Pequenas Agressões”, Lambe-
-lambe, Luana Andrade, 2015

Tramações - Luciana Borre


Aconteceu durante uma confraternização familiar. Estávamos
reunidos em volta de uma mesa para comemorarmos a colação
de grau do meu irmão. Durante as preces, uma das minhas tias
pediu a palavra e fez uma oração. Ela pediu a Deus que eu fi-
nalmente conseguisse um bom namorado para se constituir
meu futuro marido. Diante do silêncio de todos e dos olhares
de concordância e benevolência, cheguei a acreditar que eu era
uma infortunada por ainda não ter casado. Compartilhei aquela

Luciana Borre Nunes . Experiências a/r/tográficas: gênero e sexualidades 17


intenção e, naquele momento, fiquei satisfeita porque todos
estavam rezando por mim, pelo meu possível futuro casamen-
to. Durante a infância estive imersa em uma rede de contos de
fadas, histórias de princesas, ensinamentos religiosos, crenças
familiares e rodas de conversa que consolidavam a felicidade fe-
minina atrelada ao casamento. São discursos que se tornaram
naturalizados em meu cotidiano e que consolidaram versões de
realidade nas quais acreditei que “toda mulher tem o sonho de
casar”, que “todas nascem com instituto materno” e que o casa-
mento, muitas vezes, é sinônimo de “viveram feliz para sempre”.

Figura 6
“Tramações”, Instalação, Instrumento humano indispensável - Rafael
Luciana Borre, 2015 Vascon
O reconhecimento do “outro” como semelhante é um
processo de aceitação das diversas identidades e da plura-
lidade de experiências humanas. Os muros físicos e sim-
bólicos, assim como os murais das redes sociais em que
o ódio e os diversos preconceitos são abertamente con-
fessados, foram traduzidos numa experiência de reflexão,
cuja síntese seja, talvez, a construção de uma sociedade
mais justa e participativa.

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Figura 7
“Instrumento Humano Indispen-
sável”, Escultura,
Rafael Vascon, 2015

Aprendemos, ensinamos, pesquisamos


e artistamos
A turma de metodologia do ensino das artes visuais era com-
posta por 20 estudantes que tinham diante de si uma proposta
de experimentações a/r/tográficas e debates no campo da cul-
tura visual. A/r/tografia produz sentidos sobre ser: Artist (ar-
tista), Researcher (pesquisador), Teacher (professor) e grafh
(grafia: escrita/representação) (DIAS, 2013, p. 25). A intenção,
pretensiosa e duvidosa, era contar e compartilhar histórias -
relatos de vida - que ressignificassem recordações íntimas e

Luciana Borre Nunes . Experiências a/r/tográficas: gênero e sexualidades 19


subjetivas, expandindo-as para discussões sobre a construção
social de nossas visualidades.
Neste caminho, buscamos uma formação docente baseada
na reflexão crítica de ações educativas, na produção de poéticas
visuais e no aprofundamento teórico sobre práticas de pesqui-
sa, pois “a docência é uma prática atrelada à pesquisa e, ao mes-
mo tempo, de que a pesquisa é uma prática que fundamenta,
organiza e renova a docência” (TOURINHO, 2013, p. 64).
Ao final da disciplina estávamos submersos na exposição
“Experiências A/r/tográficas”, que aconteceu nos dias 23, 24 e
25 de novembro de 2015, no hall do Centro de Artes e Comu-
nicação da UFPE, na qual Giselle, Jaci, Luana, eu (Luciana) e
Rafael discutimos e escrevemos sobre diferentes tópicos den-
tro das questões de gênero e sexualidades. A interação com
colegas, professoras/es e comunidade acadêmica durante a
exposição demonstrou que nossos vídeos arte, instalações,
desenhos e intervenções provocavam questionamentos, in-
compreensões – algumas rejeições – desejos de participação e
empatia nos visitantes. Voltamos para sala de aula com muitas
perguntas e entendemos que a proposta a/r/tográfica favore-
ceu um encontro de experiências, produção de sentidos e, até
mesmo, risco de consolidação de novas verdades.
Ao propor um vídeo arte e uma instalação com tesouras
afiadas e facas pontiagudas Jaci (Corte Com/Tensão) buscou
respostas, principalmente sobre aquela parte “que não conse-
guiu atravessar a rua”. Ela ainda dialogou com autores, permi-
tiu-se duvidar de suas perspectivas, escutou o relato de outras
mulheres e protagonizou a produção de imagens:

Esta experiência a/r/tográfica somou-se à busca pela ex-


pressão do “não dito” que me habita radicalmente. É so-
bre aquilo que não sei dizer sobre as outras mulheres, mas
reconheço em mim. É sobre o humano, sobre-humano,
e que só posso dizer com firmeza do meu lugar de mu-
lher. Mulher? Lugar de mulher? Lugar de fala? O que me
roubou a fala é o meu grito de hoje, mesmo que abafado
pelas pequenas agressões diárias de antes, de hoje e das
que virão. Assim como Eça (2013, p. 73), acredito que du-
rante uma investigação “muitas perguntas se podem fazer
e muitas maneiras de ir para além das perguntas, gerando
outras em um espírito de indagação contínuo que nunca
se poderá dar por encerrado”. Notei que a minha roupa e o

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meu corte de cabelo foram postos como estereótipos alvo


para o agressor e, na busca por respostas e novas provo-
cações, lancei-me a pesquisar tendo um questionamento:
como roupas definem gênero e sexualidades e como estas
definições geram violência? Isto foi sobre mim, mas não
era a única. Durante a produção de “Corte com/tensão”
conversei com amigas, observei comportamentos de al-
gumas mulheres que circulavam no meu cotidiano, fiz
leituras e percebi uma gama de imagens que me deram
recursos para a inconclusão proposta na obra. Fui conta-
giada e “essas contaminações geram diálogos com a diver-
sidade através de apropriações, interferências, marginali-
zações e, até mesmo, silêncios, produzindo espaços onde
novos objetos e imagens podem influenciar imaginários
sociais e subjetividades individuais” (MARTINS, 2013, p.
85). Um vídeo arte exibido no hall do Centro de Artes e
Comunicação (CAC-UFPE) compôs uma cena sem a pre-
tensão de explicar coisas, mas problematizar alguns fatos
sobre ser mulher nesse tempo, nesse lugar, fruto de uma
pesquisa viva partindo da experiência.

Entender como acontece a formação de professoras/es para


questões de gênero e sexualidades é uma inquietude que trans-
passa minhas práticas como professora: quais embates, enfren-
tamentos e possibilidades que professoras/es de artes visuais
encontram em relação a questões de gênero e sexualidades no
âmbito formal e não formal de ensino? Como acontece o pro-
cesso de formação de professoras/es de artes visuais sobre ques-
tões de gênero e sexualidades? Como um grupo de alunas/os do
curso de Artes Visuais da UFPE entendem questões de gênero e
sexualidades em seu processo de formação profissional?
Como docente no âmbito acadêmico percebi que questões
de gênero e sexualidades circulavam os interesses das/os estu-
dantes e que a cultura visual “concentra atenção especial nos
fenômenos (não apenas) visuais que estão acontecendo hoje,
na utilização social, afetiva e político-ideológica das imagens
e nas práticas culturais e educativas que emergem do uso des-
sas imagens” (MARTINS, TOURINHO, 2015, p. 141).
Luana é uma destas estudantes que atuava como professora
de artes visuais em âmbito não formal de ensino e que procurava
espaço para debater e expor seus enfrentamentos pessoais. “Pe-
quenas Agressões” (técnicas de lambe-lambe e nanquim) com
frases/revelações da irmã, amigas e conhecidas constituíram a

Luciana Borre Nunes . Experiências a/r/tográficas: gênero e sexualidades 21


matéria-prima para sua produção poética. Sobre suas motiva-
ções Luana comentou que...

a ideia de abordar a violência de gênero veio das conversas


que tive com minha irmã, mãe de dois filhos. Os depoi-
mentos dela foram um pontapé pra que eu decidisse fazer
“Pequenas Agressões”. As questões de gênero e violência
já me transpassavam e há algum tempo que todas as mi-
nhas produções (imagens e textos) se vinculavam a isso.
Quando eu decidi usar a fala dela como material na mi-
nha experiência a/r/tográfica pedi que ela escrevesse sua
história sobre a amamentação. Eu a vi sentar-se à mesa
(mais ou menos meia-noite, quando os filhos já estavam
dormindo), escrever, reler algumas vezes e entregar esse
depoimento depois de refletir sobre seu cotidiano nor-
matizado. Esse relato é um grifo da sua trajetória como
gente, mulher e mãe, destacado pelo caráter de denúncia
e pela necessidade do grito.

Os três “cuidados” descritos na abertura deste artigo fo-


ram elencados por Luana e transmitidos aos visitantes da
exposição. Ao advertir que sua produção “contém fatos/
imagens/pensamentos verídicos”, maliciosamente, Luana
problematizou a formação docente baseada em modelos de
treinamento e atualização, nos quais as/os estudantes conhe-
cem tendências didáticas e metodológicas para aplicá-las em
sala de aula. Ela também reivindicou espaço para conteúdos
“autobiográficos”, rejeitando tradições positivistas que des-
consideram os saberes do cotidiano no campo da pesquisa e
questionou porque textos escritos em “primeira pessoa” ainda
causam rebuliço no campo acadêmico.
“Experiências A/r/tográficas” envolveu o resgate de vi-
vências, a construção de um produto e/ou imersão artística
e a reflexão crítica das/os espectadoras/es bem como, e ine-
vitavelmente, das/os próprios investigadoras/es. O desafio
de pesquisar, artistar e ensinar a partir de nossas vivências
correspondeu a “investigações impregnadas de práticas não
são apenas agregadas à vida de alguém, mas são a própria vida
deste” (IRWIN, 2013, p. 28).
O enfoque nas narrativas pessoais legitimou – no âmbito
acadêmico – experiências relevantes que ganharam novos senti-
dos quando refletidas. São experiências de vida em forma de re-

22 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016

lato que “desde uma perspectiva de conhecimento prático, nar-


rativas e relatos são ferramentas de trabalho que os profissionais
utilizam com frequência tanto pra dar sentido a sua experiência
quanto para organizá-la” (PARDIÑAS, 2010, p. 23). Nos encon-
tros em sala de aula buscamos transformar visualidades ao li-
darmos “com a multiplicidade de sentidos, significados e usos
dessas experiências, entendendo-as sempre como trincheiras
de nossas subjetividades, de nossos contextos, parcialidades e,
também, delírios” (MARTINS; TOURINHO, 2015, p. 137).
Eu estava inserida neste processo produzindo e expondo
minhas histórias pessoais para entender a formação de profes-
soras/es para questões de gênero e sexualidades. Assim como
Conelly e Cladinni (2000), me tornei personagem vulnerável e
sofri as erosões do processo que tentei problematizar. Preten-
di que minhas histórias criassem, instigassem, provocassem,
rasgassem e/ou fraturassem outras histórias.
Esta foi minha busca ao produzir a instalação “Trama-
ções” na qual inseri fotos do happening “Como destruir o ves-
tido” dentro de uma mala tramada com uma rede de elásti-
cos. O happening foi uma proposta reflexiva, pedagógica e de
imersão poética que problematizou discursos naturalizados
sobre ser mulher. Durante quatro horas destruí publicamen-
te o vestido de noiva que costurei e bordei. Neste momento,
contei com a ajuda e interação de um grupo de amigas e de
inúmeros pedestres que circulavam pela praia de Boa Viagem/
Recife, em março de 2015.
Envolvida em uma trama de significações sobre ser mulher,
mãe e esposa, decidi materializar minhas dúvidas, inquietações
e desejos de rompimento através da destruição de um vestido
de noiva que costurei durante três meses. Foram meses costu-
rando o sonho e o vestido do casamento para depois destruí-lo.
Logo após destruir o vestido e postar as fotos nas redes sociais
recebi muitos relatos de mulheres que sofreram algum tipo de
violência de gênero atrelada à instituição casamento. Fiquei
impressionada com o número de mulheres que também dese-
javam “destruir” seus vestidos de casamento.
Sentimentos desencontrados e discursos naturalizados so-
bre ser mulher instigaram a produção de “Tramações”. Para Lou-
ro (2007), discutir sobre gênero representa pensar sobre como
o masculino e o feminino são constituídos e problematizar re-
lações sociais consideradas “comuns” ou “normais”. Ao contar,
inventar e reinventar experiências estamos gerando processos
de mudanças microfísicas, ao nível do pessoal/subjetivo, e
possibilidades de transformações, diálogos e entendimentos

Luciana Borre Nunes . Experiências a/r/tográficas: gênero e sexualidades 23


sobre lugares que ocupamos nas redes de poder. Um processo
emancipatório é desencadeado a partir da tramação de nossas
histórias - e o que escolhemos contar - com o acontecimen-
to em si e a interpretação do outro. Uma tríade que provoca,
constrói sentidos.
Aguirre (2011) trabalha com aspectos da educação da cul-
tura visual visando a um sentido emancipador. Fundamenta-
-se no princípio de que “tanto os estudos da cultura visual
como suas aplicações vem trabalhando arduamente na iden-
tificação crítica das lógicas que regulam nossos regimes de
representação” (AGUIRRE, 2011, p. 89) e amplia a questão
afirmando que uma educação emancipadora não se restringe
a conhecer e mostrar mecanismos de poder e posições hege-
mônicas, mas, oportunizar e promover mudanças tendo em
vista que “a compreensão dos mecanismos de dominação não
garante em absoluto a transformação das consciências e das
situações” (AGUIRRE, 2011, p. 90).
Nesse percurso protagonizamos a produção de imagens
que duvidam das maneiras normatizadas sobre como viver
feminilidades e masculinidades. Interrogamos os sentidos so-
bre ser mulher/homem com os quais convivemos e, com isso,
fraturamos formas de ver.
Giselle provocou uma destas fraturas ao retratar/legitimar
algumas histórias e divindades femininas das religiões afro-
-brasileiras. O preconceito sofrido em uma parada de ônibus e
o deboche de seus cabelos no metrô foram pontos de partida
para pensar sistemas de representação e romper supostas atri-
buições sociais do feminino. Sobre sua formação profissional
no curso de artes visuais, questionou o apagamento da mulher
na história da arte e a ausência de discussões étnico-raciais
nos âmbitos formais e não formais de ensino.
Rafael apresentou uma escultura em forma de cintos de
castidade, uma masculina e outra feminina, dispostos em um
manequim de costura, no qual foram alfinetados papéis com
relatos de preconceito sofrido pelos visitantes da exposição,
“problematizando o cinto de castidade enquanto arma branca
tolhedora de autonomia e liberdade, tão quão o preconceito”.
Somos ensinados sobre o que podemos fazer, responder,
temer, gostar e considerar perigoso. Prazeres e desejos são
autorregulados porque, mesmo sem um olhar vigilante, re-
produzimos as normas comportamentais e as exigimos dos
demais. Na teorização foucaultiana, poder é um conceito que
não diz respeito especificamente à coerção e a repressão, mas,
às relações de força nas quais estamos inseridos e, na maioria

24 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016

das vezes, estão ligadas as capacidades de governo, autogover-


no e autorregulação.
Esse “poder disciplinar” (FOUCAULT, 1987) fabrica, mol-
da e determina os sujeitos que passam a serem produtores de
mecanismos de disciplina. As esculturas de Rafael foram es-
pecialmente desafiadoras porque trouxeram à tona discussões
sobre o prazer, erotismo e desejo sexual em um contexto de
normatização das vontades e dos comportamentos. Condutas
ditadas, mantidas, vigiadas e refeitas foram colocadas em xeque
pelo áudio de prazer e gozo - justapostos às esculturas - que
impregnou o prédio, envergonhando e/ou incentivando alguns
visitantes a interagirem através de relatos como vítimas de pre-
conceitos. Para Rafael, constitui-se, também, como ação crítica
e educativa que deslocou posicionamentos nas redes de poder:

A instalação “Instrumento Humano Indispensável” regis-


trou depoimentos de visitantes estimulados a relatarem
suas experiências através da escrita desafiando a natura-
lização do preconceito e revelando como variados fatos e
comportamentos presentes no cotidiano carregam conte-
údo segregador e opressor. Registar as vozes daqueles que
são “alvos” preferenciais da intolerância foi um exercício
de deslocamento de ponto de vista, favorecendo a empa-
tia com as diversas condições humanas e possibilitando a
reflexão crítica sobre tais questões.

Possibilidades de “ver” e “ser visto”


Narrativas de professoras/es e estudantes apresentam poten-
cialidades como textos pedagógicos, mas, muitas vezes suas
histórias não são registradas, dificultando a continuidade de
reflexões sobre o próprio processo de formação docente. Por
isso, construir e registrar experiências pessoais e práticas edu-
cativas através de produções poéticas possibilitou circulação
de ideias, autorreflexão, continuidade das discussões com ou-
tros grupos de professoras/es e estudantes, inovação nas prá-
ticas pedagógicas, protagonismo político e legitimação destes
profissionais como produtores de conhecimentos e sua circu-
lação nas redes de saber-poder.
Ao procurar possibilidades de qualificação docente para
os enfrentamentos que vivenciava no cotidiano da escola e,
posteriormente, para orientar estudantes em processo de for-
mação, entendi que “as questões em torno dos gêneros e das

Luciana Borre Nunes . Experiências a/r/tográficas: gênero e sexualidades 25


sexualidades não envolvem apenas conhecimento ou infor-
mação, mas envolvem valores e um posicionamento político
diante da multiplicidade de formas de viver e de ser” (LOURO,
2011, p. 62). Luana também direcionou seus entendimentos
neste caminho ao dizer:

No campo artístico e, em específico, no contexto das re-


presentações femininas e do lugar ocupado pela mulher ao
longo dos anos na História da Arte, os sistemas opressores
se consolidaram e perduram até a contemporaneidade. Ser
mulher e ter a oportunidade de desenvolver um projeto ar-
tístico que atravesse as questões de gênero me fez perceber
a dimensão política da arte. Foi a esta dimensão que atri-
buí caráter educativo em “Pequenas Agressões”. Pretendi
valorizar uma experiência de compreensão humana, que
corresponde, de acordo com Morin (2007), a um dos sete
saberes necessários à educação do futuro. A compreensão
humana “comporta uma parte de empatia e identificação,
o que faz com que se compreenda alguém que chora, por
exemplo, não é analisando as lágrimas no microscópio,
mas porque sabe-se do significado da dor, da emoção”
(MORIN, 2007, p. 54). No fundo eu desejei suscitar o di-
álogo sobre gênero, violência, feminismo e arte. Quando
idealizei a concretização dessa proposta, imaginei pessoas
se questionando, movimentando-se por dentro, reconhe-
cendo-se e se (trans)formando na experiência visual.

Nossas “Experiências A/r/tográficas” possibilitaram pro-


tagonismos no processo de formação docente em artes visuais
e, intimamente envolvidas/os e reconhecendo-nos nas ex-
periências visuais, deixamos perguntas: como acontecem as
discussões sobre gênero e sexualidades na formação das/os
professoras/es de artes visuais? Como legitimar as narrativas
de professoras/es no processo de formação docente? Como
produções poéticas e narrativas assumem atribuições políti-
cas no campo da educação da cultura visual? Quais possibili-
dades pedagógicas geradas por um processo crítico/narrativo
e poético na formação de educadoras/es? Como socializar e
comunicar nossas experiências a/r/tográficas em um campo
de pesquisa e formação docente marcado pelas tradições po-
sitivistas? Jacilene cresceu “ouvindo que mulher nasceu pra
sofrer. Se eu me machucava e chorava diziam que seria mole

26 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016

demais para parir”. Como suas tesouras e facas podem cor-


tar (com tensão) discursos naturalizados sobre ser mulher?
Como os relatos de mulheres registrados por Luana e expostos
através do lambe-lambe se tornaram ferramentas educativas e
de combate a violência de gênero?

Referências
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cação emancipadora. In: MARTINS, Raimundo; TOURI-
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Recebido em: 08/03/16


Aceito em: 09/05/16

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 10-29, jul-dez 2016

Luciana Borre Nunes


lucianaborre@yahoo.com.br
Professora no Curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Per-
nambuco (UFPE). É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Arte
e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal
de Goiás (FAV/UFG). Integrante do Grupo de Pesquisa Cultura Visual e
Educação (GPCVE). Mestre em Educação (2008) pela Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); especialista em Gestão
e Planejamento Escolar (2006) pela PUCRS e graduada em Pedagogia
(2004) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Luciana Borre Nunes . Experiências a/r/tográficas: gênero e sexualidades 29


Comida e visualidade

Elaine de Azevedo
Shay peled

Resumo

Este estudo teórico-conceitual coloca em evidência temas


e debates ligados à alimentação sob uma perspectiva
sociopolítica e cultural, a partir de diferentes mídias
audiovisuais – cinema, TV, reality shows e vídeos veiculados
na internet. O artigo se debruça particularmente sobre filmes
no cinema que mobilizam a alimentação como eixo transversal
Palavras-chave:
Alimentação,
das tramas. A ideia é complexificar a comida como temática
cinema, visualidade audiovisual e pensá-la como estratégia sensorial.

30 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016


Food and visuality

Elaine de Azevedo
Shay peled

Abstract

This theoretical-conceptual study highlights issues and


debates related to food under a socio-political and cultural
perspective, from different audiovisual media - cinema,
TV, reality shows and Internet videos. The article focuses
particularly on movies that mobilize the food as a transversal
axis of the plots. The idea is to complexify food as a visual Keywords:
theme and as a sensorial strategy. Food, cinema, visuality

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016 31


Comida y visualidad

Elaine de Azevedo
Shay peled

Resumen

Este estudio teórico-conceptual pone de relieve temas y


debates relacionados a la alimentación, desde la perspectiva
socio-política y cultural, partiendo de diferentes medios
audiovisuales – cine, TV, reality shows y videos transmitidos
en internet. El artículo se centra, particularmente, en
películas de cine que toman como tema central de sus tramas
Palabras-clave: la alimentación. La idea es problematizar la comida como
Alimentación, cine, visualidad tema audiovisual y pensarla como estrategia sensorial.

32 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016

Alimentação e seus Signos


Não há dúvidas. A comida comove e mobiliza sentidos, praze-
res e ideias. Na abordagem estruturalista de Roland Barthes
(2008), a alimentação constitui signos em um sistema de in-
formação capaz de gerar diferentes mensagens.
O indivíduo nutre-se de imaginários e significados, compar-
tilhando representações coletivas e uma intimidade peculiar ao
incorporar a comida na interioridade corporal humana. O po-
tencial simbólico da comida é central para a construção do senso
de identidade individual e coletiva (FISCHLER, 2001; 1988).
Para além do seu potencial simbólico, estrutural ou estru-
turante, a alimentação também pode ser compreendida como
continuidade ou rompimento com a tradição; como distinção de
gêneros e etnias; como estratégia de prazer e lubrificação de in-
terações sociais ou como fomentadora de intolerâncias, divisões
sociais, solidão, incertezas e controvérsias. Mais recentemente,
práticas de ativismo alimentar questionam o antropocentrismo
e o sistema agroalimentar dominante, apoiando novas formas
de se alimentar e propostas de manejo agropecuário sustentável,
transformando o comer em um ato político e ambiental.
Esse potencial cultural expande-se sob diversas formas de
visualidade que alimentam todos os sentidos dos consumido-
res audiovisuais e virtuais. Algumas dessas formas serão aqui
exploradas conceitualmente a partir de autores das áreas das
Ciências Humanas e Sociais e da Comunicação para enfatizar
a relação central do estudo - comida e visualidade.

Gastromídia
Os programas culinários na TV tornam-se cada vez mais atra-
entes. Talvez devido ao gradual afastamento do meio rural

Elaine de Azevedo e Shay Peled . Comida e visualidade 33


onde a comida é produzida ou à crescente especialização da
profissão de cozinheiro, uma vez que cada vez menos as pes-
soas comem ou aprendem a cozinhar em casa. Provavelmente
esses programas não fariam tanto sucesso anos atrás, quando
menos pessoas viviam nos centros urbanos e cozinhar era uma
prática cotidiana e trivial, inerente ao papel da boa esposa e
mãe. Essa gastromídia, para usar o conceito de Jacob (2000),
garante a visualidade da culinária e estabelece vínculos dire-
tos entre indivíduos, comida e cozinha.
A comida promove uma sensação de conforto (que reme-
te ao conceito de comfort food) e pertencimento - sensações
cada vez mais pulverizadas na urbanização contemporânea.
Os programas culinários investem em experiências gastro-
nômicas que remetem à infância ou a experiências coletivas,
prazerosas e afetivas. Esses programas apostam na ideia de
revelação do novo como se os segredos dos chefs e dos pratos
disponíveis em restaurantes caros ou em cozinhas distantes
fossem caridosamente revelados aos espectadores.
Jacob (2012, p. 124) resume essa experiência de comuni-
cação ao enfatizar que o “gastrônomo alimenta-se do novo e
do exótico em igual proporção [...] a ânsia pelo novo expõe e
coloca como valor de troca comunicativo a imagem do chef e
de sua cozinha”. Na mesma direção, Heldke (2001) percebe a
gastronomia como forma de endossar a recorrente fascinação
branca pela comida étnica. A busca por novas e remotas cul-
turas e experiências foi o motor dos primeiros antropólogos,
exploradores e colonizadores.
A alta gastronomia na televisão também contribui para
democratizar o que Nascimento (2007, p. 220) chama de “ho-
bby de gente refinada” ao colocar indivíduos comuns mais
perto dos foodies. Esse termo foi criado em 1984 pelos escrito-
res ingleses Paul Levy e Ann Barr para designar pessoas de alto
nível intelectual que têm um agudo interesse por experiências
gastronômicas gourmets e extravagantes.
O chef catalão Santi Santamaria, entrevistado pelo soci-
ólogo Carlos Alberto Doria (2013), aborda o aspecto político e
ambiental da gastronomia. Voltar a comer em casa, utilizando
alimentos orgânicos provenientes de agricultores familiares
locais, torna-se uma forma de resistência à globalização e à
hegemonia do sistema agroalimentar dominante, delineando
assim a função social do cozinheiro.
Para alcançar essas sensações – e esclarecer as crescentes
controvérsias que rondam a comida – nunca se veiculou tanta
informação sobre alimentação em programas televisivos que

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016

ensinam técnicas ancestrais e revelam segredos culinários. São


reality shows que mostram a feitura de doces monumentais para
festas e disputas de quem prepara o melhor prato. Na emissora
brasileira mais popular são transmitidos os programas: “Mais
Você” com seu momento receitas; “Estrelas” com vídeos de re-
ceitas feitas por celebridades no papel de chefs e “Bem Estar”
que fala de alimentação e saúde. Já o canal GNT veicula diver-
sos programas de culinária: “Tempero de Família”, “A Cozinha
Caseira de Annabel”, “Cozinha Mediterrânea”, “Cozinha Prática”,
“Que Marravilha!”, “Viagem Gastronômica”, “Diário de Olivier”,
“Nigella”, “Receitas do Chuck” e “GNT Receitas”. Nos canais
pagos também são muitas opções: “Fome de quê?”, “The Taste
Brasil, Food Truck- a batalha”, “Kitchen Nightmares”, “Top Chef”,
“Just Desserts”, “Man vs Food”, “Ace of Cakes”, entre outros.
Na televisão, os reality shows lideram a audiência dos
telespectadores em busca da intimidade dos personagens.
“Cake Boss”, uma série de televisão estadunidense, se debruça
sobre o negócio de Buddy Valastro e sua família que confec-
cionam bolos estruturais. No seriado gastronômico “Chef’s
Table” cada episódio revela a rotina de grandes chefs ao re-
dor do mundo; como cozinham, como vivem e o que comem.
Apesar do foco na gastronomia, tais formatos de reality shows
apostam na receita infalível de mostrar comida e intimidade.
Ao se deparar com a discussão da alimentação em todas
as mídias possíveis, o espectador está sujeito à influência de
diversos discursos que servem aos interesses do mercado em
detrimento da saúde, mudando até mesmo concepção do que
é saudável como pode se ver na resposta de um auxiliar de en-
fermagem questionado sobre tal conceito: “saudável era a ali-
mentação observada na novela de televisão...” (SALLES, 2004
apud PROENÇA, 2010, p. 46).
Sob a influência da globalização e com o destaque que a
gastronomia garante nas mídias contemporâneas, restauran-
tes, pratos e alimentos de diferentes culturas são facilmente
encontrados nas ruas de qualquer cidade brasileira. No projeto
transmídia (série e websérie) “Latitudes”, de Felipe Braga, cada
episódio acontece em uma cidade de um país diferente. O epi-
sódio em Veneza inicia com o protagonista saindo de um res-
taurante oriental, causando estranheza no telespectador que
espera assistir à degustação de uma suculenta massa italiana.
É interessante também notar a representação das diferen-
tes culturas através dos filmes e programas. Além de apresen-
tar como é a forma de comer em outras sociedades, essas mí-
dias tendem a fortalecer arquétipos de como um determinado

Elaine de Azevedo e Shay Peled . Comida e visualidade 35


povo se comporta frente à alimentação. Assim, é permitido
ao japonês sorver a sopa fazendo ruídos para demonstrar que
saboreia o prato ou ao árabe comer com as mãos. Do francês
esperam-se refeições refinadas e minimalistas, com apelo es-
tético e do chinês aceita-se que qualquer ser vivo que se mexe
possa ser incorporado ao prato.
Todas as mídias têm o seu poder de influência. Entre-
tanto, a televisão como mídia inclusiva, de fácil assimilação
e disseminação, contribui para diversificar as controvérsias e
os riscos alimentares, bem como para criar dietas ideais, des-
providas de valores culturais e funções sociais discutidos por
Azevedo (2009; 2004).
A influência da propaganda sobre os transtornos alimenta-
res como obesidade, anorexia, bulimia, tem sido extensamente
estudada e veiculada por órgãos preocupados com a saúde públi-
ca1. Estela Renner evidencia essa temática no universo infantil ao
tratar a relação entre a criança, a obesidade e a propaganda infan-
til abusiva em seu documentário “Muito além do peso”, de 2012.
A dimensão audiovisual das diferentes mídias - TV, ci-
nema e internet - contribui para disseminar o referencial de
beleza ideal, impulsionado pela ideia de saudabilidade do
corpo magro, sob influência do fenômeno de “lightização da
existência” identificado por Santos (2008, p.18). Esse constru-
to social, passaporte para o mundo do sucesso, é objeto do
curta-metragem de animação “Super Venus”2 (2013), do cine-
asta francês Frédéric Doazan, para mostrar a transformação
do corpo feminino em busca da perfeição.
As mídias sociais não escapam da era do modismo ali-
mentar e milhões de comedores postam suas habilidades
culinárias, seus anseios ativistas e suas composições gastroa-
limentares. A (antiga) intimidade e o cotidiano alimentar são
disseminados através de celulares, tablets e computadores.
No Instagram, por exemplo, o uso no hashtag #foodporn é
amplamente usado para exibir as experiências gastronômicas
ou culinárias dos usuários.
Eve Turow (2015) se volta para a geração Yum formada por
jovens estadunidenses obsessivos por comida e por receitas e
experiências gastronômicas, sentimento causado pela priva-
ção sensorial que a era digital promove. A comida e a o comer
fomentariam a emoção e os múltiplos sentidos que faltam aos
solitários ‘gastronautas’ à frente das telas.
Come-se só, mas se compartilha a visualidade alimentar
com milhões de usuários. É a ideia da visualidade extrema ali-
mentando a invisibilidade (JACOB, 2012).

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016

A comida nas grandes telas:


mais do que pipoca
“Cinema e comida. Dois grandes prazeres humanos cada vez
mais juntos”. A chamada da jornalista Giuliana Toledo (2013)
divulga inúmeros festivais e projetos que misturaram cinema
e comida em São Paulo. Um shopping lança um projeto de ses-
sões de cinema com menus que dialogam com o filme, criados
por grandes chefs de cozinha. Um cinema faz sessões e com-
bina obras brasileiras com pratos dentro da Semana Mesa SP.
Uma mostra (“Doc Gastronômica”) apresenta vinte documen-
tários de diferentes países sobre alimentação. O gênero food
film e o festivais “Food and Films””3 se espalham por diferentes
cidades e países.
O site “Gastronomismo” ou “comida de cinema”, projeto
de Isadora Becker, ensina a fazer receitas inspiradas nos pratos
que aparecem nos filmes: ovos na cestinha de “V de Vingança”;
ponche rosa de “Across de Universe”; hambúrguer Big Kahu-
nar de “Pulp Fiction”; cookies de “Alice no país das maravi-
lhas”; canapés de “Uma linda mulher”; courtesan au chocolate
do “Grande Hotel Budapest”; folhado dinamarquês da “Bo-
nequinha de luxo”; crème brûlée de “Amélie Poulain”; manjar
turco das “Crônicas de Nárnia”; croissant au chcolat de “Sim-
plesmente complicado”; apfelstrudel de “Bastardos inglórios”;
cerveja amanteigada de “Harry Potter”; pizza de marguerita de
“Comer rezar e amar”; sanduíche de salada de ovos de “O que
há tigresa?”; gaspacho (sem soníferos) de “Mulheres a beira
de ataque de nervos” e coxinhas de frango de “Estômago”. As
pessoas parecem ávidas por vivenciar a sedução da mesa e por
ver comida do e no cinema, ampliando assim seus conceitos
“gastronômicocinematográficos”, como sugere Siani (2014).
As imagens manipulando o desejo de comer e as represen-
tações simbólicas da comida aparecem no cinema sob a mesma
construção que a literatura utilizou para expressar a influên-
cia da linguagem sobre as sensações. Personagens que lidam
com a culinária ou fazem referências a comidas são explorados
desde Shakespeare que se refere aos “lábios cerejas” de Helena
em “Sonhos de uma noite de verão”. Entretanto, remete-se a in-
glesa Joanne Harris, autora da trilogia gastronômica “Vinho de
Amoras”, “Cinco Quartos de Laranja” e “Chocolate”, a invenção
do neologismo “gastrorromance”, gênero de literatura que con-
siste em conferir qualidades alimentares aos personagens prin-
cipais, trazendo a culinária como temática central da trama.
Outras publicações inspiradas na gastronomia fizeram sucesso:

Elaine de Azevedo e Shay Peled . Comida e visualidade 37


“Como água para chocolate”, de Laura Esquivel (1994), “A festa
de Babette e outras histórias do destino”, de Isak Dinesen (1999)
que, assim como o romance de Harris, “Chocolate”, originaram
filmes com os mesmos nomes nos anos de 1992, 1987 e 2000,
respectivamente (NASCIMENTO, 2007).
Na maioria das produções cinematográficas, a alimenta-
ção, uma das principais atividades humanas, é usada de forma
ilustrativa, como por exemplo, um jantar em família ou um
café entre amigos através dos quais a trama central se desen-
volve. Porém, alguns diretores elegem a alimentação como
protagonismo simbólico. Cardoso e Antonio (2006), ao anali-
sarem o clássico “Como água para chocolates” (1992) e o filme
“Açaí com Jabá” (2001), mostram que nesses filmes as práticas
alimentares assumem papel central no roteiro, mediando re-
lações sociais e impulsionando as ações da trama.
Um filme em que a temática da comida aparece como re-
presentação do extremo prazer e do ilimitado irrestrito é a “A
Fantástica fábrica de Chocolates”, de Tim Burton (2005), no
qual Willy Wonka, o excêntrico dono de uma famosa fábrica
de chocolate desativada, decide premiar cinco crianças ofere-
cendo uma visita ao local de desejo. Em artigo que analisa esse
filme, Vander Casaqui e Antonio Roberto Chiachiri destacam:

[...] a construção imagética do filme parece nos indicar o ca-


minho do domínio da representação rumo a um imaginário
fantástico, porém, é evidente que toda construção repre-
sentativa não se restringe apenas à imagem, mas é esta que
aí se apresenta mais forte. Como fazer brotar, por meio de
imagens, na mente de um intérprete, um delicioso mundo
de chocolate sem tocar no seu imaginário, no seu desejo,
no salivar de sua boca? Esse fazer brotar é o domínio da
representação. Charles Sanders Peirce, o pai da semiótica
geral moderna, define representar como: “estar para, quer di-
zer, algo está numa relação tal com o outro que, para certos
propósitos, ele é tratado por uma mente como se fosse aquele
outro” (CASAQUI; CHIACHIRI, 2007, s/p, grifo do autor).

Os mesmos autores ainda ressaltam que quando o filme


acaba, “[...] o sabor permanece na mente daqueles que desfru-
taram os instantes de prazer gustativo que emanaram da tela”
(2007, s/p). Nesse caso, o alimento aparece como potenciali-
zador de simbolismo que tenta representar ou estar no lugar
de. Imagens aparecem como signos indiciais que apontam

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016

um mundo de chocolate que se pode definir como concreto


ou aquele que desperta as fantasias do viver.
Alguns filmes atribuem capacidades gastronômicas aos
protagonistas como forma de complexificar relações, como no
“Estômago”, de Marcos Jorge (2007). No filme, um nordestino
chamado Nonato, chega a São Paulo e encontra um trabalho
como cozinheiro num bar popular, descobrindo um carinho pela
culinária e um dom, antes desconhecido: o de preparar coxinhas
que se tornam um sucesso comercial do estabelecimento e lhe
garante popularidade e sobrevivência. O protagonista divide-se,
essencialmente, entre duas necessidades biológicas, comer e fa-
zer sexo, ambas permeadas pelo prazer e pela estrutura do po-
der que tem dois eixos – a gastronomia e o sexo - determinantes
para mostrar quem come quem na trama. A gastronomia ainda
garante o reconhecimento social do protagonista no bar que ao
ser preso deixa de ser um simples presidiário para se tornar um
prestigioso cozinheiro da cadeia (PINTO, s/d).
“Julie & Julia” (2009), de Nora Ephron, é baseado em histó-
rias reais, intercalando duas tramas em tempos diferentes, nas
quais, ambas protagonistas, são cozinheiras e não se conhecem
pessoalmente. O prazer pela culinária amarra a tradição e a
modernidade e constrói um laço afetivo entre as duas mulhe-
res separadas pelo tempo real, tal como previsto por Durkheim
(1996), ao considerar o potencial da comida na construção de
um vínculo artificial de parentesco ou afetividade.
O resultado final do jantar de  “A festa de Babette”, dirigi-
do por Gabriel Axel, expressa plenamente esse sentimento de
comunhão proporcionado pela comensalidade. Na gélida Di-
namarca, após uma sedutora refeição preparada por Babette, os
severos e distanciados irmãos da congregação local vivenciam
uma genuína experiência de fraternidade e reconciliam-se en-
tre si (SANTOS, 2010). A comida costurando afetos e encontros,
nesse caso familiares, aparece nos filmes “Alimento da Alma”
(1997), de Fatih Akin e “Comer, Beber, Viver” (1995), de Ang Lee.
O filme de 2010 do diretor Jorge Coira, “18 comidas”, foca
na prática da comensalidade urbana como estratégia transver-
sal as tramas dos diferentes (des)encontros. O enredo se passa
na cidade de Santiago, Chile, no entrelaçamento de 24 perso-
nagens, seis histórias, 18 refeições ou “atos de refazer forças”,
como define o dicionário. O músico de rua, Edu, vai almoçar
com seu antigo amor, uma dona de casa depressiva e solitária;
um par romântico toma café da manhã depois de acordarem
juntos após sua primeira noite; um homem de negócios vai

Elaine de Azevedo e Shay Peled . Comida e visualidade 39


jantar na casa de seu irmão Victor, homossexual não assumi-
do, que apresenta na ocasião seu novo namorado, e Vladimir,
um ator e celebridade local, prepara três refeições para uma
mulher misteriosa que nunca chega a tempo para degustar
seus pratos e sua companhia.
Dentro dessa ideia de comida aproximando pessoas, um
web projeto colaborativo do cineasta francês Jonas Parien-
te – Grandmas Project 4 - chama cineastas e filmmakers para
produzir um curta sobre suas avós, usando a transmissão de
receitas culinárias para abordar as heranças afetivas passadas
entre as diferentes gerações. As receitas revelam, na ‘lingua-
gem das avós’, vivências sexistas e eventos históricos como
o surgimento do movimento feminista, a decolonização, as
grandes guerras e o nazismo.
Tramas gastronômicas, nas quais o protagonista é um cozi-
nheiro e das telas exalam aromas culinários deixando o público
esfomeado, têm lugar garantido no cinema. Entre muitos pro-
duzidos durante os anos 2000, destacam-se os filmes “Chef”,
de Jon Favreau, “Os sabores do palácio”, dirigido por Christian
Vincent, “O Tempero da Vida”, de Tassos Boulmetis e “Simples-
mente Martha”, de Sandra Nettelbeck.  O estilo animação tam-
bém ganhou seu cozinheiro antropoformizado na forma de um
habilidoso rato, em Ratatouille (2007), dirigido por Brad Bird.
Uma receita de sucesso incorpora comumente os ingre-
dientes comida e sexo. Ambos são fenômenos biológicos e
culturais, prazerosos, nutritivos e permitem explorar uma va-
riedade de prescrições. A sedução da comida permite usá-la
como metáfora sexual para enfatizar o erotismo e, frequen-
temente, o poder masculino sobre as mulheres. A ideia de
‘comer’ remete às relações sexuais - sendo frequentemente o
mais forte que come o mais fraco ou o macho que come a fê-
mea, como aponta Fischler em entrevista a Goldenberg (2012).
Outras expressões alimentares enfatizam o erotismo alimen-
tar como no caso do ‘homem/mulher gostoso/a’ ou das ‘mu-
lheres frutas’, fenômeno do funk carioca e da mídia erótica.
Para Nascimento (2007, p. 111), o “vocabulário amoroso se
entrelaça constantemente com o gastronômico [...] implícito
nas nostálgicas expressões “pele de pêssego”, “olhos amen-
doados” ou “cor de avelã”, “boca de cereja”, “lábios polpudos”,
“formas apetitosas”, sem esquecer a “lua-de-mel” que, tantas
vezes, acaba com o caldo entornado”.
Em muitos filmes o alimento é aliado ao amor românti-
co e ao erotismo, trazendo cenas em que sexo e comida são
deliciosamente compartilhados. Dois clássicos exemplos são

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016

a polêmica manteiga do “O Último Tango em Paris “(1972),


de Bernardo Bertolucci, e os morangos de “9 ½ semanas de
amor” (1986), dirigido por Adrian Lyne.
No filme israelense “And thou Shalt love” (2008), de  Chaim
Elbaum, um judeu ortodoxo adere a um longo jejum na tentati-
va de curar sua homossexualidade. Em “Pecado da Carne”, o di-
retor Haim Tabakman usa a imagem de uma grande peça de car-
ne pendurada na câmera frigorífica no momento do encontro
impossível entre o açougueiro religioso e seu sedutor ajudante.
Provavelmente, em um romance homossexual protagonizado
por mulheres, tal simbolismo não seria utilizado, já que a carne
carrega a conotação de comida e poder masculinos, simboliza-
dos arquetipicamente pela força física, pela caça, pelo belicismo
e pelo consumo de alimentos que estimulam a virilidade.
A relação entre sexualidade e alimento aparece também
no romance “Gabriela, cravo e canela”, de Jorge Amado (1958),
adaptado três vezes para televisão na história da telenovela bra-
sileira (em 1960, 1975 e 2012) e, ainda foi tema de um filme di-
rigido em 1983 por Bruno Barreto. A obra narra o caso de amor
entre o árabe Nacib e a sertaneja Gabriela, contratada para ser
cozinheira em seu bar Vesúvio. É lá que Gabriela mistura os
temperos orientais com os segredos da Bahia e atrai fatalmente
seu patrão. Gabriela, como ícone de sedução, de brejeirice, de
vigorosidade sexual, de apelo à ingenuidade e malícia feminina
foi utilizada por Ribeiro e Souza (2006) para problematizar rela-
ções de gênero, patriarcalismo, sexualidade e poder masculino.
Um dos melhores exemplos de como a comida pode ex-
pressar o amor romântico está no filme “Como água para cho-
colates”, de Alfonso Arau (1992). Em cena clássica, a apaixo-
nada e melancólica Tita cozinha para seu grande amor, agora
casado com sua irmã. Ao servir a comida, todos na mesa cho-
ram, saboreando o triste banquete e compartilhando, inad-
vertidamente, a poesia de Mia Couto (2009, p.45): “cozinhar é
o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ternura
ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Cozinhar não
é serviço. Cozinhar é um modo de amar os outros”.
Outro filme que mistura sexo e comida, agora sob a pers-
pectiva da gula, da violência, da escatologia e do canibalismo
é o clássico “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Esposa e o Aman-
te”, de Peter Greenway (1989), que se passa no restaurante
Le Hollandais. Nesse cenário gastronômico, um gângster e
seus capangas se dedicam aos prazeres da mesa, enquanto sua
esposa o trai com um solitário frequentador do restaurante,
acobertada pelo chefe de cozinha francês. Para Ferraz (2012,

Elaine de Azevedo e Shay Peled . Comida e visualidade 41


s./p.), o affair percorre o caminho oposto das adoradas igua-
rias do marido uma vez que “começa no banheiro, floresce à
mesa, explode na cozinha, se refugia pelo frigorífico e escapa
pelo caminhão de entrega de carne”.
E os simbolismos alimentares não se esgotam. Nascimen-
to (2007, p. 90) cita Lima (1999) para mostrar que quando se
consome ou manipula determinado alimento como símbolo,
ele transcende a qualidade de objeto, pois transmite um sig-
nificado, como “[...] um fixador psicológico no plano emo-
cional”. No filme russo “O Encouraçado Potemkim” (1925),
o diretor Eisenstein utilizou um pedaço de carne podre para
simbolizar a decadência de um regime político. A dinâmica
do café da manhã foi utilizada por Welles para mostrar a de-
terioração do primeiro casamento de Charles Foster Kane, em
“Cidadão Kane” (1941), dirigido por Orson Welles. Em “The
big swallow”, rodado em 1901, Williamson, diretor dinamar-
quês encerra o filme com a câmera sendo engolida pela bo-
carra do protagonista. A busca obsessiva de provar carne de
boi motivou e modificou a vida de um caipira brasileiro em “A
marvarda carne” (1985), dirigido por André Klotzel. “A força
do desejo é expressa no alimento nunca dantes experimenta-
do, imaginado como a maior das delícias e cuja busca justifica
sacrifícios e muita persistência” (NASCIMENTO, 2006, p.92).

Ativismo alimentar nos documentários


Em vários trabalhos audiovisuais, o alimento é inserido na
perspectiva do ativismo alimentar, denunciando e critican-
do o sistema agroalimentar dominante e as novas práticas
alimentares contemporâneas. No seriado “Super Size Me”
(2004), um documentário estadunidense dirigido e protago-
nizado por Morgan Spurlock, o alimento é usado como de-
núncia do sistema fast food. Spurlock passa 30 dias comendo
apenas no McDonald’s e alcança resultados desastrosos para
sua saúde. O documentário é impactante na medida em que
é verdadeiro e envolve riscos reais. Outro documentário pro-
duzido no Brasil em duas versões, “O Veneno está na Mesa”
(2011), de Silvio Tendler, revela o escândalo dos agrotóxicos
por meio do depoimentos de agricultores, representantes de
consumidores, representantes de multinacionais, da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e dos movimentos
ligados a Agroecologia e segue o mesmo caminho que o docu-

42 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016

mentário “In Organic we trust” (2012), do diretor Kip Pastorm,


que questiona a produção de alimentos nos EUA e os perigos
do ‘agriorganic business’.
Michael Pollan, um jornalista e ativista alimentar esta-
dunidense, protagoniza quatro episódios no documentário
“Cooked”, de 2016, com o objetivo de conscientizar as pessoas
sobre os bastidores da produção de alimentos, incentivando
assim o retorno às praticas de cozinha tradicional.
Outro exemplo de ativismo alimentar em forma de docu-
mentário, agora a favor do vegetarianismo/veganismo e dos
direitos dos animais é “A Carne é Fraca” (2005), produzido
pelo Instituto Nina Rosa para abordar os impactos do carnivoris-
mo na saúde humana, no bem-estar animal e no meio ambiente.
Trabalhando na lógica inversa, mostrando o positivo, os
documentários “Brasil Orgânico” (2013), dirigido por Kátia
Klock e Lícia Brancher e “Você sabe de onde vêm seus alimen-
tos?” (2012), produzido pelo Coletivo Aura, enaltecem o modo
de viver dos agricultores orgânicos em diferentes regiões do
Brasil. São produções que cumprem funções sociopolíticas de
revelar os bastidores da produção alimentar e apoiar sistemas
agroalimentares sustentáveis. Outro exemplo de ativismo,
agora a favor do direito humano à alimentação, é o clássico
curta-metragem “Ilha das Flores”, de 1989, dirigido por Jor-
ge Furtado. O filme utiliza de uma história relacional entre
personagens ficcionais e alimentos para falar criticamente das
diferenças sociais dos catadores de lixo do local.

Considerações finais: para além das lágrimas


A veiculação das imagens e experiências gastronômicas pelas
diferentes mídias sugere uma espetacularização de uma ação
cotidiana descolada da sua intimidade - o ato de comer e pre-
parar alimentos. As experiências gastronômicas na vida real
são perseguidas pelo apelo de perfeição, prazer e enlevo que a
cultura da imagem projeta.
Morin (2000) afirma que o plano da produção imagéti-
ca transporta para um momento mágico, no qual a posse da
representação equivaleria – por contiguidade – à posse do
representado.
Tal magia, que também pode ser mais bem descrita como
dimensão sensória do cinema, foi pensada por Maurice Mer-
leau-Ponty, Vivian Sobchack, Jennifer Barker e Steven Shaviro

Elaine de Azevedo e Shay Peled . Comida e visualidade 43


em seu Cinematic Body. Tais autores buscam analisar como o
corpo do expectador é convocado a participar durante a expe-
riência de assistir um filme e como o corpo e o filme podem ser
indissociáveis nesse processo (VIEIRA Jr., 2013).
Nesse artigo foram pensados filmes que apostam na pro-
ximidade ou ainda na intimidade do corpo e seus sentidos;
principalmente o olfato e o paladar. Esse mergulho na fisica-
lidade da experiência ao assistir um filme é, muitas vezes, im-
perceptível ao espectador que se deixa levar por seus sentidos
e suas memórias, que sente o filme em vez de apenas vê-lo,
experimentando-o com todo o seu corpo – ou no caso aqui,
com seus sentidos envolvidos no ato de comer.
Vieira Junior (2013) mostra que Jennifer Barker, em “Car-
nal Thoughts: embodiment and moving image culture”, desen-
volveu o conceito de pensar o filme como um corpo, já que o
mundo está inscrito nele. A autora conclui que, exatamente
pelo fato de cinema ser um corpo, este vai usar modos de exis-
tência corpóreos como visão, audição, mobilidade ou a pro-
dução de sensações físicas diversas como veículo e substância
de sua linguagem. O corpo do filme em contato com o corpo
do espectador inscrito no filme e no mundo estará sujeito a
diversos estados físicos e emocionais - ansiedade, animação,
sono, fome, sede - impregnados nesse corpo e trazidos, mui-
tas vezes, antes de se começar a sessão.
Essas considerações podem ajudar a pensar nas diferentes
formas de visualidade que usam a comida como recurso que
pode, se não duplicar, pelo menos intensificar ou comple-
xificar essa perspectiva sensória/gustativa. A questão que se
deseja levantar aqui é: quando a comida é protagonista cons-
ciente da trama, como os órgãos do sentido são ativados no
expectador? Esse artigo não teve o objetivo de responder a
essa questão, mas ela pode ser o fio condutor de futuros es-
tudos para investigar como outros órgãos do sentido são ati-
vados no espectador que assiste a um filme sobre comida. Tal
abordagem vai ao encontro da desconstrução da prevalência
da visão ocularcêntrica frente à imagem, o que Vieira Junior
(2013) chama de opticocentrismo.
A natureza de um mundo hiper-real baudrillardiano, que
aperfeiçoa a realidade e tenta dissimular com absoluta perfei-
ção as experiências que se propôs a representar, explica a bus-
ca de satisfação encontrada através do simulacro imagético/
sensorial/gustativo projetado nas imagens de comida. A visu-
alidade alimentar se torna mais comida que a própria comida;
um “engano autêntico” como diria Umberto Eco (1984, p.12),

44 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016

que permite o expectador se deixar enganar e saborear uma


experiência para além da visual.

Notas

1. Informações disponíveis em: <http://portalsaude.saude.gov.br/images/


pdf/2014/novembro/05/Guia-Alimentar-para-a-pop-brasiliera-Miolo-PDF-
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2. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=VBdjk1jD7PA>.


Acesso em: 6 maio 2015.

3. Ver “Food and films Festivals” em:< http://www.nycfoodfilmfestival.com/>.


Acesso em: 5 fev. 2015

4. Ver:< http://grandmasproject.org/>. Acesso em: 2 fev. 2016

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46 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 30-47, jul-dez 2016

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Recebido em: 02/03/16


Aceito em: 16/05/16

Elaine de Azevedo
elainepeled@gmail.com
É Professora Adjunta no Depto de Ciências Sociais do Centro de Ciên-
cias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES). Coordena o Grupo de Pesquisa CNPq/UFES: Diálogos entre
Sociologia e Arte/ DISSOA.

Shay Peled
shay@ufes.br
É Graduanda em Cinema e Audiovisual no Depto de Comunicação
Social do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES). Integra o Grupo de Pesquisa CNPq/UFES: Diálogos entre
Sociologia e Arte/ DISSOA.

Elaine de Azevedo e Shay Peled . Comida e visualidade 47


Zeferino e o problema da seca no Nordeste

Fabio Mourilhe

Resumo

O objetivo deste trabalho é verificar como os problemas


relacionados à caatinga no Nordeste seco, na década de 1970,
são tratados nas tiras do Zeferino de Henfil, publicadas na
revista Fradim. Para atingir tal intento, traçamos inicialmente
um panorama do local, considerando os aspectos culturais,
físicos, ecológicos e sociais. O humor de Henfil serve para
apontar os problemas ali vigentes e direcionar esta percepção
para uma atitude crítica. Não apresenta exatamente uma
solução, mas uma exacerbação do problema para que ele possa
ser utilizado fora do contexto em metáforas e através de um
Palavras-chave: humor que emerge com a criação de caricaturas da realidade,
Seca, Henfil, quadrinhos tornando-a menos insuportável.

48 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 48-67, jul-dez 2016


Zeferino and the problem of drought in Northeast

Fabio Mourilhe

Abstract

The objective of this study is to check how the caatinga-


related problems in the dry Northeast, in the 1970s, are
handled in Zeferino’s comic strips of Henfil, work published
in Fradim magazine. To achieve this purpose, we initially
traced a local panorama, considering cultural, physical,
ecological and social aspects. Henfil’s humor serves to point
out the existing problems in their context and direct this
perception to a critical attitude. A single solution is not
presented, but an exacerbation of the problem so that it can
be used outside of the context in metaphors and through
a humor that emerges with the creation of caricatures of Keywords:
reality, making it less unbearable. Drought, Henfil, comics

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 48-67, jul-dez 2016 49


Zeferino y el problema de la sequía
en el Nordeste

Fabio Mourilhe

Resumen

El objetivo de este trabajo es verificar cómo los problemas


relacionados a la caatinga en el Nordeste de la sequía, en
la década de 1970, son tratados en las viñetas de Zeferino
de Henfil, publicados por la revista Fradim. Para lograr
ese propósito, inicialmente, delineamos un panorama del
local, considerando aspectos culturales, físicos, ecológicos y
sociales. El humor de Henfil sirve para señalar los problemas
allí vigentes y orientar esa percepción hacia una actitud
crítica. No presenta exactamente una solución, pero una
exacerbación del problema para que él pueda ser utilizado
fuera del contexto en metáforas y por medio del humor
Palabras-clave: que surge con la creación de caricaturas de la realidad,
Sequía, Henfil, viñetas haciéndose menos insoportable.

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Introdução
Os estudos realizados anteriormente sobre o trabalho de
Henfil têm o mérito de serem bem fundados e minuciosos,
mostrando aspectos que se relacionam a sua vida pessoal e a
realidade sociopolítica de sua época. Esta pesquisa não des-
considera essas questões, principalmente o conteúdo político,
porém, aqui trazemos o foco para os problemas derivados da
seca representados em Zeferino.
Neste seu trabalho, o humor de Henfil parte de uma não
conformação com uma realidade sofrida e insuportável da
seca e da fome no Nordeste e da crítica à grande imprensa e ao
governo com seu “milagre brasileiro” na década de 1970.
Antes, contudo, apresentaremos uma contextualização
do local onde passam a narrativa e as imagens das tiras de Ze-
ferino, senão corre-se o risco de generalizar a ideia de Nordes-
te sofrido como única visão possível para a região. A caricatu-
ra de Henfil foca justamente no aspecto carente desta região.
Tenta denunciar o problema com os recursos humorísticos e
caricaturais do exagero sempre carregados de ambiguidade.
Serão utilizados aqui os termos característicos do trabalho
de Henfil, de forma a deixar clara sua postura. Não acredito
que estes cartuns e sua linguagem sejam capazes de denegrir
a imagem do Nordeste. Trata-se de uma representação neces-
sária para compreender o tema e os personagens envolvidos.
É comum, principalmente no Sudeste do país, conceber o
Nordeste como o local onde só existe seca, morte, atraso, fome,
dentre outros aspectos que ressaltam a condição desumana
de sobrevivência. Apesar disso, se utilizarmos a imagem cria-
da por Euclides da Cunha, que parece inspirar Henfil, temos a
condição desumana do sertanejo e ao mesmo tempo uma força

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sobre-humana invejável. Devemos considerar além da geogra-
fia física diversificada, os múltiplos aspectos culturais.

Estrutura física e ecológica do Nordeste seco


O nordeste seco do Brasil é uma das grandes áreas semiári-
das da América do Sul (SÁBER, 2003, p. 81). Caracterizado
pelas caatingas, periferia pobre da zona da mata, onde vigo-
ram temperaturas médias elevadas, baixa umidade, escassez
e irregularidade de chuvas – conforme a definição da Superin-
tendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE)1 para
a região semiárida (MELO, 2006, p. 176) –, terras de difícil
utilização e uma ausência de rios com fluxo permanente. Sua
geografia e seu aspecto social indicam uma das regiões com
problemas mais graves das Américas. Podemos dizer que as
causas da seca são naturais, mas ela foi favorecida por qua-
se cinco séculos de queimadas e corte intensivo da floresta,
além da exploração da monocultura da cana-de-açúcar (BUR-
SZTYN; MENDES, 1993, p. 124).
Aziz Nacib Ab’Sáber (1999) mostra a grande variedade
física e ecológica do Nordeste seco, que não se restringe uni-
camente às chapadas com solos pobres e gretados, e nem é ha-
bitada exclusivamente por uma população de seminômades.
Existem também depressões interplanáticas, maciços antigos,
colinas sertanejas, esculpidas em xistos e gnaisses, sulcadas
por rios e riachos intermitentes (SÁBER, 1999, p. 10), um sis-
tema de rodovias asfaltadas, uma rede de açudes e as capitais
regionais (Campina Grande, Mossoró, Feira de Santana, Ca-
ruaru etc.) com um comércio intenso e feiras populares.
Temos uma vegetação baixa, com pequenas folhas e has-
tes espinhentas, quase toda caducifólia – cinza-calcinada nos
meses secos e exuberantemente verde nos meses chuvosos – e
também algumas espécies de cactáceas: mandacarus, coroas
de frade, facheiros, xiquexiques etc. “Trata-se de uma flora
constituída por espécies dotadas de longa história de adapta-
ção ao calor e à secura incapaz de restaurar-se, sob o mesmo
padrão de agrupamento, após escarificações mecânicas de seu
suporte edáfico” (SÁBER, 1999, p. 10).

Principais problemas humanos e sociais


König (2013) mostra que o Nordeste brasileiro sofreu 34 secas
exageradas desde 1583, quando o padre Fernão Cardin reali-
zou seu primeiro registro sobre o fenômeno. Temos, em fun-

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ção da seca, revoltas populares com saques, êxodos ou grande


quantidade de morte pela fome e falta de água, e uma popula-
ção que, sem alimentos da terra e com o desaparecimento dos
rebanhos, sofre de inanição. O Centro Técnico Aeroespacial,
de São José dos Campos (SP), chegou à conclusão em 1978 que
as grandes estiagens ocorrem em intervalos de 26 anos, com
outras menores entre elas.
Além de ter que lidar com a seca, a população carente tam-
bém sofre com as inundações. Lotada em lugares inadequados
nas periferias das cidades sertanejas – espaços ribeirinhos –, aca-
ba sendo afetada nas estações das chuvas. Segundo Sáber (1999,
p. 24), é necessário melhorar o método de previsão das inunda-
ções e reordenar as ocupações dos espaços rurais e urbanos.
Pode-se dizer que os principais problemas humanos e so-
ciais do Nordeste seco são principalmente a fome, os limites im-
postos pela realidade do meio físico e também as exigências im-
postas pelas relações trabalhistas. A fome está presente na vida
de grande parte dos trabalhadores sem terra, a força de trabalho
do sertão. Porém Sáber (1999, p. 26) mostra que ali existe mais
gente do que as relações de produção podem suportar. As secas
criam problemas na produção rural, levando a um desemprego
maciço, transformando aqueles que não têm terra em retirantes.
Considerando a grande reprodução humana, as altas ta-
xas de mortalidade e a falta de emprego e moradia, temos um
movimento de migração, com a região da seca fornecendo
mão de obra barata para quase todas as regiões, onde existe
algum potencial de riqueza e emprego. Frentes de trabalho
têm tentado diminuir este efeito migratório, porém sem mui-
to êxito, pois os sertanejos continuam sem condições autos-
sustentáveis de trabalho. O problema é agravado pelo fato de
a população ser rural, ter alta densidade demográfica, por não
haver espaços agrícolas e pela economia rural ser precária.
Tendo em vista todo este panorama, Sáber (1999, p. 8) ca-
racteriza a região do Nordeste como aquela que se encontra
“sob intervenção”, porém através de um planejamento esta-
tal com um alcance desigual, em “programas incompletos e
desintegrados de desenvolvimento regional”. Algumas des-
tas tentativas foram realizadas através da Sudene, mas ela se
transformou em foco de corrupção a partir da ditadura militar.
Além dos problemas relacionados à seca, temos também
uma ênfase na riqueza cultural da região, que é apresentada
também de forma cômica no trabalho de Henfil, seja na tea-
tralização da seca e dos conflitos armados ou na música e na
dança no ritmo do chão que racha.

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Multiplicidade cultural do Nordeste
A diversidade cultural do Nordeste é salientada por Albuquer-
que Junior (1994, p. 127). Segundo o autor, ela passa pelos ar-
tistas e intelectuais tradicionalistas que

vão apoiar a visibilidade e a dizibilidade regional no trabalho


com a memória. A partir de um rendilhado de remanências,
se busca construir uma memória voluntária, um conjunto de
lembranças que seriam de um Nordeste, de uma região que
estaria desaparecendo aos poucos.

Como tentativa de manter esta memória, o trabalho de


Gilberto Freyre mostra que

raro é... o artista ou o escritor para quem não exista a suges-


tão de uma região ou de uma província, em particular – de
ordinário a do seu tempo de menino –presente de modo nem
sempre ostensivo, às vezes até sutil, nas formas ou nas cores
mais características da sua expressão (1987, p. 23).

O prestígio e as obras de Freyre, como Casa Grande e Sen-


zala (1933), influenciaram e orientaram a produção artística
de José Lins, Cícero Dias, Jorge de Lima, entre outros.
Com o modernismo, temos uma resistência ao regionalis-
mo, mas, segundo Sérgio Buarque de Holanda, “ao menos em
São Paulo, ele [o modernismo] veio a prolongar [...] o esforço
regionalista iniciado muito antes de 1922” (HOLANDA, 2009,
p. 60), embora submetido à questão nacionalista.
O “romance de trinta” – produção ficcional brasileira de
inspiração realista produzida à partir de 1928 –, conforme Al-
buquerque Junior (1994, p. 171), caracteriza a produção da re-
gião e mostra a “identificação completa dos autores com sua
paisagem, com seu meio”. Para Paulo Cavalcanti (apud AL-
BUQUERQUE JUNIOR, 1994, p. 171), “era um romance que
expressava uma realidade coletiva, fiel às tendências de um
povo e às características de uma região”. Trata-se de

uma literatura verdadeiramente brasileira por estar ligada à re-


gião que menor influência estrangeira havia sofrido e também
por ser a síntese de todas as suas contradições, os contrastes
sociais e naturais: abundância de inverno e seca, sertão deserto
e várzea amena, a ternura, o cafuné, o tratamento voluptuoso
de ‘meu nego’, a hospitalidade e a fraternidade e, ao mesmo

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tempo, o relampejar do ódio, as faíscas da peixeira, o derrama-


mento de sangue (ALBUQUERQUE JUNIOR, 1994, p. 171).

A pintura também caracteriza o Nordeste e trata de temas


semelhantes aqueles apresentados na literatura. Ambos par-
tem de problemáticas similares. Freyre (1996, p. 28; 1941, p.
79-107) descreve a pintura regionalista como aquela que seria
verdadeiramente “a paisagem e a vida do Nordeste”, o que in-
clui tonalidades ocres e exuberância tropical, que não se co-
aduna nem com tons “cinzentos dos acadêmicos, nem com
as cores carnavalescamente brilhantes do impressionismo”
(ALBUQUERQUE JUNIOR, 1994, p. 210). Além disso, inclui

contrastes de verticalidade – as palmeiras, os coqueiros, os


mamoeiros – e as volúpias rasteiras – cajueiro do mangue, a
gitirana, uma paisagem animada de muitos verdes, verme-
lhos, roxos e amarelos2. Uma paisagem que parece ter alguma
coisa de histórico, de eclesiástico e cívico. Uma pintura que
devia se voltar, principalmente, para as cenas de engenhos,
de negros trabalhando no meio daquela fábrica de aquedutos
– de pau ou trazendo carros de boi cheios de cana madura.
Figuras de senhores de engenho, danças de negros, flagrantes
de xamegos em que se prolongavam os gestos de se semear e
plantar cana (ALBUQUERQUE JUNIOR, 1994, p. 210).

Roger Bastide (apud ALBUQUERQUE JUNIOR, 1994, p.


211) diferencia a estética da cultura regional da outra praticada
no sul, mais ligada à experimentação. Certos pintores como Por-
tinari, Di Cavalcanti e Aldemir Martins, contudo, se utilizam da
mesma temática característica do regionalismo, carregando-a
de uma preocupação política. Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres,
por sua vez, compartilham da visão saudosista em relação à so-
ciedade da qual são descendentes tal qual aparece em Freyre.
A música também tem sua importância na cultura do Nor-
deste e começou a ser veiculada através do rádio após liberação
da tutela do estado depois da década de 1930. Aqui, a música pro-
duzida pelas camadas populares, “vista como folclórica, adquire
nova importância num momento em que a preocupação com o
nacional e com o popular passa a redefinir toda a produção cultu-
ral e artística” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1994, p. 215).
A música rural, regional e modalista, “como aquela produ-
zida pelos cegos de feira do Nordeste, ligada remotamente aos
cantos gregorianos europeus” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1994,
p. 216), era vista, segundo Albuquerque Júnior (1994, p. 216),

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“como uma manifestação musical autêntica do país”. Na década
de 1940, surge Luiz Gonzaga, o criador da “musica nordestina”,
especificamente o baião. Como representante do “Nordeste”,
cria uma indumentária típica que reunia a roupa do vaqueiro
nordestino com o chapéu usado pelos cangaceiros. Com Hum-
berto Teixeira como letrista, compõe muitas canções de sucesso
no Brasil e exterior.
Em termos de teatro, temos Ariano Suassuna que, a par-
tir da década de 1950, introduz o Nordeste como tema, em O
auto da compadecida.
Albuquerque Júnior (1994, p. 220) mostra que a “cultura
nordestina é uma das culturas regionais mais ricas e resisten-
tes”, que se coloca diante do

processo de generalização dos bens culturais produzidos pela


sociedade capitalista. Como uma região cada vez mais política
e economicamente subordinada, com uma população que migra
constantemente dentro e para fora da região, portanto, sofren-
do sucessivos processos de desenraizamento cultural, conseguiu
preservar suas raízes, suas tradições cu1turais. Isto se deve ao fato
da cultura nordestina ser uma invenção recente, assim como o
Nordeste, fruto em grande parte deste desenraizamento. Essa
cultura da memória do passado não é só uma evocação, mas prin-
cipalmente a criação de um espaço imaginado e feito em contra-
ponto à realidade urbana e sulista, enfrentada pelos imigrantes.

A partir destes aspectos, podemos compreender melhor


as questões socio-culturais defendidas por Henfil nas tiras do
Zeferino no começo da década de 1970 veiculada no Jornal do
Brasil e posteriormente republicadas na Revista Fradim.

Zeferino
As tiras de Zeferino trazem Zeferino, Graúna e o Bode Francis-
co Orelana, personagens de Henfil que sentem os contrastes
do Brasil da década de 1970. Apesar de viverem no Nordeste,
suas aventuras tangem os problemas socioeconômicos de todo
o Brasil. O convívio dos três personagens é apontado como
aquele onde é possível “apesar das diferenças de raça e cor...”
(HENFIL, 1980a, p. 48). Aponta o valor da relação entre eles,
colocando que “só a cooperação constrói um mundo justo e
equânime” (HENFIL, 1980a, p. 48).
Henfil (apud SEIXAS, 1996, p. 73) apresenta Zeferino con-
textualizado na caatinga: “No alto da caatinga, légua e meia

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de Monte Santo, no calcanhar de Canudos3 vive o cabra ma-


cho valente e atrevido, curtido em veneno de cobra, amante do
que é do homem, inimigo do que é injusto, capitão Zeferino”.
Ele aparece inicialmente no Jornal dos Sports, de 1º de abril de
1969, antes das eliminatórias da copa do mundo, durante um
ato de pajelança praticado por Urubu, Bacalhau, Cri-Cri e Pó de
Arroz. Durante a véspera da Copa do mundo, estes personagens
gritaram “Xazam”. Ao invés de gênio da lâmpada, surgiu Zefe-
rino impressionado com o tamanho do Maracanã (MORAES,
1996, p. 142). Segundo Moraes (1996), a intenção de Henfil era
colocá-lo na liderança de uma reativação de Canudos, aproxi-
mando resistência sertaneja e luta contra o regime militar. “O
plano seria levantar o povo numa cruzada contra a supremacia
dos latifundiários” (MORAES, 1996, p. 142), mas a censura ob-
viamente não permitiu que ele desenvolvesse seus intentos.
Para Seixas (1996, p. 50), Zeferino representa o povo, a clas-
se oprimida, o nordestino distante do poder econômico dos
grandes centros, mas também o mito de resistência do homem
do sertão brasileiro, herói popular que faz a justiça com as pró-
prias mãos – como Lampião4. Graúna é uma ave de cor escura
do Nordeste, que simboliza a mulher de classe média, tanto
ingênua quanto consciente, dominadora e dominada. O Bode
Orelana devora livros, representa a “intelectualidade pequeno
burguesa, símbolo do medo e da autocensura que predomina-
ram nos intelectuais brasileiros na década de 1970” (SEIXAS,
1996, p. 50), e critica-os por assumirem posições teóricas sem
realizar ações políticas diretas. Moraes (1996, p. 143) mostra que
Orelana teria sido inspirado no cantor baiano Elomar, que cria-
va bodes com nomes de figuras revolucionárias. Havia de fato
um bode chamado Francisco Orelana que devorava os livros
do cantor. Apesar de estes personagens viverem aventuras no
cenário seco da caatinga, temos a possibilidade de transforma-
ção de seu drama calamitoso através do espírito alegre, que em
Fradim #9 (HENFIL, 1976c, p. 24) faz Bode Orelana dançar e
cantar com grande entusiasmo no ritmo do chão que racha com
a estiagem prolongada.

Nordeste seco x “Sul-maravilha”


As adversidades vividas pela população do Nordeste seco nas
tiras do Zeferino são contrastadas com as regalias dos morado-
res do “sul-maravilha” (Rio de Janeiro e São Paulo)5. A dieta do
sertanejo baseada em farinha, que resulta em subnutrição, di-
fere da dieta dos habitantes do sul maravilha, com carne, ovos,

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legumes, aves, peixes, leite, pão, verduras, frutas etc., conforme
exposto em Fradim #8 (1976b, p. 37). Em Fradim #12 (1976d,
p. 38), esta dieta do “sul-maravilha”, junto ao ideal de que “o
leite da futura mamãe seja nutritivo e o neném cresça forte e
saudável”, é apontada por Graúna (ao chocar seu ovo) como um
panorama de um “horóscopo para quem nasceu no ‘sul-mara-
vilha’”. Após nascer Grauninha, a filha da Graúna se alimenta
apenas do “milagre da vida”, quer dizer, não come nada (HEN-
FIL, 1976f, p. 24). “Que novidade é esta agora de que se come na
caatinga” (HENFIL, 1976f, p. 25)? Ali, o leite é considerado por
Graúna como uma ficção, assim como Papai Noel (HENFIL,
1976f, p. 25). Mesmo em Monte Santo, ninguém nunca ouviu
falar em leite (!). Graúna reclama dizendo que “comer não é
um hábito da caatinga” (HENFIL, 1976f, p. 26) e que os outros
personagens em um ato de “vanguardismo alienado” querem
alterar e “destruir a cultura e os costumes da caatinga” (HEN-
FIL, 1976f, p. 26). “Instaurada a alimentação, daqui a pouco vão
querer mudar a música, o folclore, tudo!” (HENFIL, 1976f, p.
26). Com a fome, só resta a Grauninha perder a cor, perder as
penas, perder o equilíbrio e, por fim, morrer. Bode Orelana diz
que a solução seria dar comida a ela, mas Zeferino retruca ironi-
camente dizendo que ele estaria com “mania de distribuição de
renda” (!) (HENFIL, 1976f, p. 38). Graúna desiste de ter filhos,
mas Zeferino indica para a necessidade de ocupar a caatinga.
Para ela, ter filho equivale a modificar a estética da caatinga,
pois provocaria uma redução do número de covas (com suas
cruzinhas) da paisagem (HENFIL, 1976f, p. 46).
O turismo, aspecto tão valorizado no “sul maravilha”, no
Nordeste de Henfil se transforma em turismo-caatinga, onde
não há uma abundância de belezas e sim de problemas. Se o sul
maravilha sofre com a mortalidade de peixes na Lagoa Rodrigo
de Freitas, o Nordeste sofre com a mortalidade infantil (HEN-
FIL, 1976c). No Fradim #15, Henfil (1976g) mostra em Zeferino
que, com o problema da crise de petróleo, temos o racionamen-
to de gasolina, que na caatinga se converte em racionamento do
ir e vir: apenas quatro passos por dia. No Fradim #22 (1977c, p.
22), temos a proposta de integração da caatinga ao “sul-maravi-
lha”. Porém, não através do aporte dos serviços de grandes adu-
toras, nem hospitais, nem padarias, mas através da televisão. Na
página 24 deste mesmo número, Henfil mostra como esta inte-
gração, “somos hoje um único país nas asas da TV”, é efêmera,
com a cultura veiculada através da TV transformando a própria
percepção das coisas e transmitindo a ilusão de que existe rique-
za mesmo na realidade mais sofrida da caatinga. Este é poder da

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tecnologia da informação. Graúna, na página 27 do Fradim #22


(1977c), ingenuamente acredita que da mesma forma que os ha-
bitantes do Nordeste receberiam as imagens do “sul-maravilha”,
os habitantes do “sul-maravilha” receberiam imagens da reali-
dade da caatinga com os efeitos da febre Sezão6, com os canta-
dores recitando versos de cordel e com a falta d’água. Descobre-
-se, contudo, que, além disso, grande parte do conteúdo nem
seria do “sul-maravilha”, mas estrangeiro (HENFIL, 1977c, p. 28).

A presença da Sudene
Na caatinga, não temos grandes aberturas de jogos ou olim-
píadas, mas a “Abertura-oficial-da-temporada-da-seca”, com
um banquete servido pela Sudene, onde Graúna toma um
porre de água (HENFIL, 1977c, p. 30-31). Porém, Bode Orela-
na mostra o posicionamento da Sudene, que tenta maquiar a
dura realidade com o discurso: “não há seca... o que há é ca-
rência de chuvas!” (HENFIL, 1977c, p. 32), posição que é corro-
borada nas tiras subsequentes com o aval do fiscal da Sudene.
Quando o poço seca, a solução apontada por Zeferino é pedir à
Sudene um caminhão-pipa para a caatinga, mas ele descobre
que isto não seria possível, pois a Sudene ainda não decretou
a seca. Além disso, ainda teriam de esperar pelo percurso bu-
rocrático: esperar sair o decreto e sua publicação 10 dias mais
tarde no Diário Oficial (HENFIL, 1977c, p. 34-35). Ao “co-
mer” a “legislação sobre a seca”, Bode Orelana descobre que
é necessário antes de tudo “tirar a certidão de seca, deve-se
fazer requerimento em seis vias”, e levar na seção de protocolo
(HENFIL, 1977c, p. 36). Depois de ir e vir várias vezes, Zeferino
é informado também da necessidade de “tirar certidão nega-
tiva de chuva”, o que o leva à atitude extrema de querer cortar
os pulsos (HENFIL, 1977c, p. 38). Eles conseguem a certidão,
mas acham que provavelmente será indeferida. Para tal, será
enviado à caatinga um fiscal de chuva. “A certidão será dada
se ele não encontrar uma gota d’água nos exercícios de 1948 a
1976” (HENFIL, 1977c, p. 40). Com a chegada do fiscal (HEN-
FIL, 1977c, p.41), Bode Orelana aconselha que não se produza
mais qualquer umidade, seja através de suor, choro ou saliva,
para não prejudicar a obtenção da “certidão negativa de chu-
va”. A figura improvável do fiscal – como quem quer garantir
a todo custo que a ajuda da Sudene não seja necessária – traja
galochas, capa e guarda-chuva, e aconselha aos personagens
que se vistam da mesma forma para não ficarem gripados
descalços na “enxurrada” (!). A “última chuva de 1936” para o

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fiscal seria uma “chuva recente” que deixou a terra úmida. Por
fim, o fiscal – Amaral Neto disfarçado – conclui que, se consi-
derarmos a presença dos três personagens – “três exuberantes
vivos” –, a seca é improvável. Sua presença mostra a “pujança
da nossa raça” e a “encarnação do milagre brasileiro”7 (HEN-
FIL, 1977c, p. 43). Após esta conclusão, os personagens ficam
preocupados com um boato de que o AI-5 serviria também
para perseguir aqueles que estão “provocando a seca” (HEN-
FIL, 1977c, p. 45), paralelo interessante na era da ditadura mi-
litar, pois, nas tiras de Henfil, para a caatinga e para a seca “foi
decretada a chuva no Nordeste” pela Sudene.

O problema da vida
No número 12 de Fradim, o foco dos quadrinhos de Zeferino
é a mortalidade infantil. Quando Graúna fica grávida, temos
a crítica à falta de médicos, farmácias e hospitais na caatinga,
responsabilidades da Sudene (HENFIL, 1976d, p. 21-22). Para
o ato de correr para uma farmácia inexistente, Bode Orelana
levanta uma comparação com o fundo 157 (HENFIL, 1976d,
p. 22), vigente entre 1967 e 1983, que permitia que os contri-
buintes adquirissem cotas de fundos administrados por ins-
tituições financeiras, porém só para aqueles que contribuem
com imposto de renda, ou seja, não incluía a população ex-
tremamente pobre da caatinga. No Fradim #13 (HENFIL,
1976e, p. 26), o problema da saúde continua a ser enfatizado
quando Graúna nota que, quando ela nasceu, “na caatinga,
não se tinha notícia de que existia vacina pra sarampo”, mas
tinha melhorado, pois, mesmo não tendo chegado vacina, já
se sabia de sua existência. No número 7 de Fradim (HENFIL,
1976a, p. 25), por ocasião do racionamento de gasolina no sul-
-maravilha, temos a proposta de “um racionamento pioneira:
vida máxima de cinco anos na caatinga!”
A crítica ao controle de natalidade aparece de forma incisi-
va no número 30 do Fradim (HENFIL, 1980b). Na página 21, é
incluída uma representante do Bem-Estar Familiar no BRASIL
(BEMFAM)8, que dissemina sua campanha de controle da na-
talidade com o slogan: “Este é um controle de natalidade que
vai pra frente... uôu! uôu! uôu!” (HENFIL, 1980b, p. 27). Bode
Orelana reconhece a visitante, pois por onde eles passam “não
nasce nem grama”. O interesse da agente é só “ajudar a plane-
jar os filhos”. Graúna acha que a ajuda seria ótima, em um pla-
nejamento de “creche, escola, merenda, livros, bibliotecas...”
(p. 27). A agente retruca dizendo que o auxílio seria realizado

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como um “controle”, o que Graúna também concorda se fosse


um controle do “sarampo, poliomielite, meningite...” (HENFIL,
1980b, p. 23). Conclui-se que segundo a condição financeira de
Graúna ela nem poderia ter filhos e nem mesmo poderia ter
nascido (!) (HENFIL, 1980b, p. 24-25). Graúna decide apenas
“treinar” (a prática sexual), mas a agente não compreende, pois,
segundo Graúna, ela “nunca viu um pitoco...”. A agente fornece
uma pílula para Graúna que deveria ser engolida junto de uma
refeição, mas Graúna não tem nem pão (HENFIL, 1980b, p. 26).
Chega-se à conclusão na página 28, sob a luz do agente do Be-
mfam, que a pílula anticoncepcional realmente auxiliaria na
economia, pois evitaria todos os gastos futuros com os filhos.
Porém, em ótima crítica ao controle de natalidade, Graúna de-
cide na página 29 que não tomará mais a pílula. Sua decisão se
deve a uma espera pelo resultado de um “pedido de habeas cor-
pus”, segundo ela, baseado na lei do ventre livre, ou seja, uma
garantia constitucional para o feto. A única forma de impedir
e conter este direito seria um “mandado de prisão de ventre”
(HENFIL, 1980b, p. 29). Para a agente, seria necessária a utiliza-
ção da pílula, pois ainda não dava para utilizar a televisão com
este intento no Nordeste. Enquanto chega a essa conclusão, a
agente joga pílulas dentro de um poço (HENFIL, 1980b, p. 31).
Graúna, por outro lado, tenta contornar o problema da imposi-
ção do controle de natalidade com a atitude prática de troca dos
anticoncepcionais por comida (HENFIL, 1980b, p. 32).

As “belezas” da caatinga
Ao perceber as “belezas” da caatinga, realidade sofrida e seca,
Graúna deseja que seu filho nasça míope. E para suportar as
altas temperaturas, Zeferino ingere bebidas alcoólicas eventu-
almente acompanhado por Graúna – quando esta não apanha
dele bêbado. Neste estado embriagado, toda a realidade pode
se tornar muito mais bela (HENFIL, 1976a, p. 35).
Neste número, as variações cômicas continuam a ser dis-
postas em torno do sol e seus efeitos na caatinga, incluindo o
momento em que Graúna pega fogo (HENFIL, 1976a, p. 36).
Considera-se, assim, o sol como o “tipo do negócio burro”
(pelo menos em termos de caatinga). Graúna ainda assume
a necessidade de “fazer um movimento para conseguir a re-
tirada do sol da caatinga” (HENFIL, 1976a, p. 38), de forma
semelhante ao que ocorreu quando “os vietcongues [...] con-
seguiram a retirada americana do Vietnã” (HENFIL, 1976a, p.
38). Mas Bode Orelana informa “que o culpado pela seca na

Fabio Mourilhe . Zeferino e o problema da seca no Nordeste 61


caatinga não é o sol, mas os desmatamentos e queimadas”.
Graúna, por seu turno, explica que o sol é utilizado em “metá-
foras contra os poderosos” (HENFIL, 1976a, p. 39).

Resistência ao latifúndio
Um posicionamento de combate na tira também está presente
quando é tratada a questão do latifúndio9, a partir da página
43 do Fradim #15 (HENFIL, 1976g), como o “Lati”, que aparen-
temente matou o Bode Orelana. Como ocorreu na caatinga
nas últimas décadas, trata-se de uma expansão das fronteiras
agrícolas que não veio acompanhada de uma democratização
da propriedade. Muitas vezes envolveu a expulsão com violên-
cia de pequenos proprietários ou sua absorção nos latifúndios.
Bode Orelana se queixa: “Lati vem aí de novo pra nos expulsar
da caatinga com uma metralha!” (HENFIL, 1976g, p. 44). Graú-
na reclama com o Lati, questionando sua covardia, atacando-os
“na tocaia” para expulsá-los da caatinga, onde não tem água,
“o sol queima as pestanas da gente” e “de verdura só tem cac-
tos” (HENFIL, 1976g, p. 45-46). Lati responde com uma bala ou
com o cano da espingarda (HENFIL, 1976g, p. 45-46). Zeferino
decide construir uma cidadela para resistir ao Lati. No núme-
ro seguinte de Fradim (#16) (HENFIL, 1977a, p. 25), Lati prega
uma misteriosa placa que tem seu conteúdo revelado: “Proibida
entrada de estranhos”. Bode Orelana considera a atitude positi-
va, pois auxiliaria a proteger a caatinga “destes depredadores da
fauna e da flora” (HENFIL, 1977a, p. 25), porém Zeferino adverte
que os estranhos indicados na placa são eles mesmos.
Pires (2012) mostra a necessidade de contextualizar este
conflito armado representado em Zeferino junto a todo o pro-
cesso que se deu nas guerras campesinas e na repressão à refor-
ma agrária que acompanhou o golpe de 64. As lutas campesi-
nas anteriores a 64 envolviam o homem comum do campo, mas
também tinham apoio do governo e das lideranças sindicais. “O
golpe de 1964 representou, entre outras coisas, a tentativa de
frear a discussão e a movimentação democrática que tais movi-
mentos suscitaram, com a desmobilização e repressão destes”
(PIRES, 2012, p. 259). A resistência dos trabalhadores rurais
contou com o apoio da Confederação Nacional dos Trabalha-
dores na Agricultura (CONTAG) e da Igreja Católica, auxílios
decisivos para que o movimento não acabasse. Basearam-se no
Estatuto da Terra e no Estatuto do Trabalhador Rural para exigir
os seus direitos. O movimento de resistência ganhou força a
partir de 1968, “quando um grupo de oposição assumiu a dire-

62 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 48-67, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 48-67, jul-dez 2016

ção da CONTAG, tornando-se, assim, decisivo para a interme-


diação e organização das reivindicações num âmbito nacional”
(PIRES, 2012, p. 259). Com o posicionamento combativo assu-
mido, no governo militar tivemos grande perseguição.
Em Zeferino, com a criação de uma cidadela de resistên-
cia, temos, segundo Pires (2012), a formação de três discursos
e ideologias distintas. O primeiro, defendido por Graúna, se-
guia a lógica de o discurso militar, buscava legitimidade na
mística do crescimento, com uma revolução nacional “a partir
da composição de forças sociais que reuniria o proletariado,
os camponeses, a pequena burguesia e a burguesia nacional”
(GORENDER apud PIRES, 2012, p. 264). O segundo, apresen-
tado por Zeferino, evoca “o legado das lutas do passado para
servir como base norteadora do novo projeto insurrecional
[...] se alinha à perspectiva ideológica comum entre as organi-
zações de esquerda pós-64” (PIRES, 2012, p. 265). O terceiro,
proposto por Bode Orelana, se aproxima “da ideia de ‘propa-
ganda armada’ defendida por alguns grupos armados, como a
ALA, a VAR-Palmares, a VPR e a ALN, após a radicalização do
AI-5” (RIDENTI apud PIRES, 2012, p. 266).

Associações livres
Além da especificidade das representações veiculadas nas ti-
ras, em outros momentos Henfil realiza diversas associações
livres que garantem uma potência para o trabalho. Entre Viet-
nã e caatinga, mostra através de Bode Orelana a caatinga como
um resultado funesto. “Graúna de Deus! Comi um livro que
dizia terem os americanos bombardeado o Vietnã com tantas
bombas desfolhantes que aquilo virou um deserto” (HENFIL,
1980a, p. 52). Graúna responde: “escuta, Francisco Orelana, a
caatinga já entrou em guerra com os americanos” (HENFIL,
1980a, p. 52). Em entrevista veiculada no Fradim #21, Henfil
mostra que os personagens não têm realmente noção de tem-
po e espaço. Em outro exemplo, eles comemoram São João no
dia de Natal. Esta, segundo Henfil (1977b, p. 31-32), seria “a
realidade na caatinga, os caras lá não sabem em que dia estão”.
Deslocamentos dos fatos também são utilizados no tra-
tamento dos problemas do país, que nas tiras de Zeferino ga-
nham uma especificidade e são adaptados à realidade ali vigen-
te. Aqui, como vimos, mesmo o movimento das rachaduras do
chão serve de ritmo para a música. No Fradim #9, aspectos da
economia brasileira são encaixados na realidade sertaneja. A
necessidade de distribuição da renda bruta nacional e o slogan

Fabio Mourilhe . Zeferino e o problema da seca no Nordeste 63


“Diga não à inflação” são transformados em “necessidade de
distribuição do cuspe bruto nacional” e “Diga não à sede”. No
Fradim #22 (HENFIL, 1977c), Graúna, desacostumada, toma
um porre de água, trocando a bebida servida em festa pela be-
bida mais valiosa na caatinga.

Conclusão
Devem-se conhecer e estudar os problemas locais do Nordes-
te seco e do sertão para que seja possível tentar descobrir solu-
ções para a realidade social ali vigente. Os recursos destinados
a sanar essas dificuldades devem ser utilizados em socorro dos
mais necessitados.
O humor de Henfil serve para apontar os problemas ali
vigentes e direcionar essa percepção para uma atitude crítica.
Não apresenta exatamente uma solução, mas uma exacerbação
do problema para que ele possa ser utilizado fora do contexto
em metáforas e através de um humor que emerge com a criação
de caricaturas da realidade, tornando-a menos insuportável.
Sob este viés, a variedade física e ecológica do Nordeste
seco é reduzida nas tiras de Zeferino a cactos e cadáveres de
cabeças de gado. Apesar de o Nordeste ser mais do que isso,
esta é uma boa representação para salientar o problema da
seca, como se essas fossem as únicas “espécies” capazes de se
“adaptar” ao calor.
A figura constante de um grande sol nas tiras marca a pre-
sença não só do calor e da seca, mas do poder de destruição
secular que através das queimadas e corte indiscriminado das
florestas transformou certas áreas em um estado desértico
quase irreversível; e de um poder de dominação que persiste
com o latifúndio.
Com estes efeitos de poder, temos também tradicional-
mente na região revoltas populares agravadas pela falta de
moradia e pela falta de emprego. Inconformado com tais si-
tuações e com outros problemas específicos de seu tempo,
Henfil, através das tiras de Zeferino, deixa claro seu posicio-
namento anticapitalista, de resistência sertaneja contra os la-
tifundiários e de luta contra o governo militar.

Notas

1. Órgão instituído a partir de 1959, dirigido por Celso Furtado, cujo objetivo
era diminuir a desigualdade da região com projetos de irrigação e cultivo de
plantas resistentes à seca.

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 48-67, jul-dez 2016

2. Referência à poesia de Gilberto Freyre Formas e cores do sertão e do


agreste:

Contrastes de verticalidade gótica e de volúpias rasteiras,


rudezas do alto sertão e do agreste,
maciços de catingueiras
salpicadas
nos tempos de chuva de vermelhos
que são ao sol como pintas de sangue fresco,
e de amarelos vivos,
de roxos litúrgicos.... (FREYRE, 1980, p. 23)

3. Monte Santo, segundo Toledo (2002, p. 107), evoca a religião - por ter sido
cidade santuário - e a Guerra de Canudos, narrada por Euclides da Cunha em
Os Sertões. Canudos, também considerada cidadela santuário, foi defendida
por uma coligação de jagunços e beatos liderados por Antônio Conselheiro em
forte resistência contra quatro expedições militares (TOLEDO, 2002, p. 94).
Monte Santo - fundada 100 anos antes de Canudos no século XVIII pelo frei
Apolônio de Todi -, localizada a 100 quilômetros ao sul de Canudos, foi uti-
lizada pelos militares como base de apoio. A guerra ocorreu por causa de um
boato, de que, com o atraso da entrega de madeira para construção de uma
igreja, os conselheiristas preparariam uma invasão da cidade (TOLEDO, 2002,
p. 106). “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu
até o esgotamento completo” (CUNHA, 2010, p. 507).

4. A figura de Zeferino ecoa, de acordo com Seixas (1996, p. 73-74), além


do homem forte indicado por Euclides da Cunha em Os sertões, no mito da
resistência apresentado anteriormente por José Américo de Almeida em A
bagaceira ou no herói popular no cinema de Glauber Rocha.

5. Segundo Seixas (1996), “’sul-maravilha’ é apenas mencionado pelos perso-


nagens, sem ter existência real nas histórias: assim como o Brasil divulgado
pela grande imprensa era apenas uma fantasia, para o homem do interior bra-
sileiro as cidades grandes de Rio e São Paulo configuravam-se como um sonho
distante e inalcançável ou então como uma realidade sufocante e esmagadora”.

6. Tipo de malária.

7. Referência ao “milagre econômico” realizado no governo Médici (1969-


1974). Na prática, implicava em uma reconcentração da renda nas classes
altas, que multiplicaram sua capacidade de consumo. Foi favorável apenas
à classe dominante. Os trabalhadores tiveram sua capacidade de consumo
reduzida (SEIXAS, 1996, p. 10).

8. Bemfam, Sociedade do Bem-Estar Familiar, é um órgão não governamen-


tal, subsidiado por empresas internacionais, que auxiliou o Brasil no con-
trole da natalidade a partir de 1965. Tinha grande concentração no Nordeste
(SCAVONE, 2003, p. 176).

9. Latifúndios no Brasil, segundo Benjamim (2009), “chegam a centenas de


milhares de hectares, alguns à casa dos milhões, uma contribuição brasileira
ao bestialógico universal. Propriedades privadas desse tamanho são impen-
sáveis em qualquer outro país”.

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Recebido em: 28/04/2015


Aceito em: 04/06/2016

Fabio Mourilhe
funkstroke@yahoo.com
Fabio Mourilhe é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) com doutorado-sanduíche na Florida Atlantic
University (FAU) (EUA), Mestre em Design pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Bacharel em Filosofia pela Uni-
versidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Foi professor temporário
no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS-UFRJ) e no Colégio e
Faculdade Silva e Souza. Realizou pós-doutorado em Filosofia na UERJ.
É autor de diversos livros, dentre eles “O quadro nos quadrinhos” e
“Cuidado de si e aufklarung: caminhos para a vida como obra de arte”.
Organiza o evento anual Colóquio Filosofia e Quadrinhos.

Fabio Mourilhe . Zeferino e o problema da seca no Nordeste 67


Algumas demonstrações para introduzir
a arte da performance

Carina Sehn
Paola Zordan

Resumo

O texto traz algumas noções relativas à performance a


partir de exemplos, alguns bastante conhecidos do público
especializado, para introduzir questões básicas em torno
desse tipo de manifestação, apresentando célebres obras
performáticas. Pressupondo que a performance ainda não
seja uma arte familiar para a maior parte das pessoas, uma
breve história de suas origens e marcos principais é traçada. A
intenção é mostrar como se constitui essa arte, suas relações
Palavras-chave:
Arte viva, história da com as intensidades do corpo e o porquê da performance ser
performance, presença considerada “arte viva” e não de representação.

68 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016


Some demonstrations to introduce the art of performance

Carina Sehn
Paola Zordan

Abstract

The article discusses some notions related to performances


parting from examples, some well-known to the specialized
audience, with the intention to introduce questions around
performance art, presenting some celebrated performance
work. Assuming that performance art is not yet a familiar
topic for most of the people, a brief history of its origins is
showed. The intention is to show how this art is constituted,
Keywords:
its connections with body’s intensities and why performances Live art, history
are “live art” and are not considered simply representation. of performance, presence

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016 69


Algunas demostraciones para
introducir el arte de la performance

Carina Sehn
Paola Zordan

Resumen

El texto trae algunas nociones relacionadas a la performance a


partir de ejemplos, algunos bastante conocidos por el público
especializado, para introducir cuestiones básicas sobre ese
tipo de manifestación, presentando performances celebres.
Suponiendo que la performance aún no es un arte familiar
conocido para la mayoría de la gente, una breve historia de
sus orígenes e hitos principales es esbozada. La intención es
mostrar cómo se constituye ese arte, sus relaciones con las
Palabras-clave:
Arte vivo, historia de la intensidades del cuerpo y el motivo por el que la performance
performance, presencia es considerada “arte vivo” y no representación.

70 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016

A intenção deste artigo é introduzir aspectos relevantes do


conceito de performance citando alguns exemplos notórios
na constituição deste campo de experimentações. O texto
procura trazer aspectos gerais de acontecimentos relevantes
para se pensar a performance, fazendo uma síntese de seus
principais elementos constitutivos. Embora a performance
exista há muitas décadas, tendo sua gênese em experiências
que ocorreram há mais de cem anos, como podemos confe-
rir nas historiografias de Jorge Glusberg e RoseLee Goldberg,
no Brasil ainda é uma expressão artística compreendida por
poucos, principalmente enquanto modalidade híbrida. Sem
classificações peremptórias, a performance transita entre to-
das as modalidades artísticas do componente curricular Arte.
A estratégia e as escolhas aqui desenvolvidas consideram as
poucas disciplinas de performances existentes nos cursos de
graduação em Artes Visuais, Audiovisual, Dança, Música e Te-
atro em nosso país, procurando oferecer um texto introdutó-
rio com abordagens sucintas, ainda que abertas à discussão e
a outros desdobramentos.

Corpos em mostra
Terra Comunal – Marina Abramovic + MAI1 (2015) realizada de
março a maio no Sesc Pompéia em São Paulo foi o mais im-
portante evento de performance já realizado até agora no Bra-
sil. Uma mega exposição que contou com trabalhos de quatro
décadas de carreira da aclamada artista sérvia e que abordava
três pontos focais: o Corpo Artista, que referia-se à presença
de seu próprio corpo em suas performances; o Corpo Públi-
co, que se percebe na superação dos limites entre performer e

Carina Sehn e Paola Zordan . Algumas demonstrações para introduzir a arte da performance 71
público mesmo; por último, o Corpo Estudante, que propicia
espaços de colaboração para artistas, pesquisadores e público,
nesta exposição chamada Espaço Entre.
Além das obras de Abramovic, em Terra Comunal havia,
ainda, oito obras performáticas de artistas brasileiros, sele-
cionadas por Linsey Peisinger, assistente de Abramovic, por
Paula Garcia, artista brasileira, e pela própria Abramovic. São
elas: Transmutações da Carne, de Ayrson Heráclito2; DNA de
DAN, de Maikon K3; Preenchendo o Espaço, de Marco Paulo
Rolla4; apresentadas em dias e horários específicos e, outras
cinco obras de longa duração, realizadas diariamente no Sesc
Pompéia durante todos os dias da exposição: Corpo Ruindo, de
Paula Garcia5; O Datilógrafo, de Fernando Ribeiro6; O Jardim,
de Rubiane Maia7; O Vínculo, de Maurício Ianês8; e Vesúvio, do
Grupo Empreza9. Durante dois meses estes artistas performa-
ram diariamente e o público podia tê-los ali ao vivo todos os
dias, durante seis horas por dia.
Performar: um infinitivo, verbo que não consegue conter
os múltiplos sentidos implicados na ação. Uma performance
não se fecha na palavra ou título que a define. Não há um con-
ceito fechado, seja numa performance, seja no que se enten-
da por performance. Pode ser intervenção, exercícios entre o
corpo performático e outros corpos, manifestação, testagem
de limites, exploração de espaços, interação e relações diver-
sas entre pessoas, objetos, tempo e lugar. O(s) performer(s)
é/são o(s) corpo(s) que está(ão) exposto(s). Quem performa
se permite experimentar. Nem toda experiência é uma perfor-
mance, mas toda performance configura experiências. Expe-
rimentar: pressuposto infinito da performance.
Uma experiência única foi proposta a estes artistas, que
para se prepararem para o acontecimento inédito na vida de
todos ali, passaram cinco dias em companhia de Abramovic e
Linsey em um workshop chamado Cleaning The House, reali-
zado em um sítio no interior de São Paulo, em meio à natu-
reza. Ali, eles foram convidados a permaneceram em silêncio,
jejuarem (alimentando-se com 21 amêndoas no terceiro e no
quarto dias), e relacionarem-se, sem ressalvas, com a nature-
za. Maurício Ianês, um dos artistas convidados, em entrevista a
revista Trip10 abriu o seu diário e contou alguns detalhes sobre
este tempo proposto por Abramovic. Ao longo do artigo volta-
remos a falar deste workshop que a artista já havia realizado em
Nova York com os artistas que iriam reperformar as suas obras
na exposição The Artist is Present11 (2010).

72 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016

Desde 1989, Abramovic visita o Brasil para pesquisar as pe-


dras preciosas e a sua influência sobre o corpo. Ela começou a
criar objetos os quais chamou de Transitory Objects For Human
Use 12 e que, são hoje, usados no seu método de trabalho. En-
contramos, entre as muitas pedras “obras” na exposição: Waiting
Room, que contava com um grande cristal no chão e três ban-
quinhos para sentar e observá-lo; quatro mesas com bancos em
frente e uma pedra preciosa em cima: ferro, quartzo, lápis-lazuli
e quartzo-negro. Shoes for Departure13, dois sapatos gigantes de
ametista para calçar e ficar imóvel, energizando-se. Havia tam-
bém a Video Portrait Gallery, que apresentava catorze obras em
vídeo realizadas por Abramovic entre 1975 e o início dos anos
2000. Os vídeos se concentram especificamente no rosto da ar-
tista enquanto a mesma realiza muitas ações diferentes, desde
comer uma cebola, até respirar com o rosto coberto de cristais.
Video Gallery apresentava vídeos de 1974 a 2010. The Abramovic
Method, onde o público por duas horas e meia experimentava
um pouco o treinamento performático proposto pela artista – as
três posturas básicas do corpo – ficar de pé, sentar e deitar. Du-
rante duas horas o público se dividia nas práticas de 30 minutos
de duração cada: andava em câmera lenta, sentava em bancos
com o espaldar cravejado de cristais, ficava de pé em frente a três
pedestais com cristais localizados na cabeça, no plexo solar e no
peito e deitava em uma cama com cristal localizado na glândula
pineal. Tudo isto usando fones de ouvido que lhe permitia ouvir
muito mais a sua própria respiração do que os barulhos externos
a ela. Em Terra Comunal, o público em geral teve a oportunidade
de experimentar certo estado de performance, exercitando ca-
racterísticas caras a esta maneira de fazer arte: a presença, o es-
tado de aqui e agora, a atenção plena. Experimentou, exercitou,
praticou e observou a ação de muitos artistas que diariamente
realizavam as suas ações. Talvez seja este o ponto de partida para
que possamos voltar no tempo e desbravarmos a história desta
arte ainda tão controversa, cheia de nuances e possibilidades
estéticas-éticas, agora à flor da pele, seja de quem visitou a expo-
sição ou que somente tenha ouvido falar dela.

Levei 25 anos para ter a coragem, a concentração e o conheci-


mento para vir a fazer isso. Era apenas uma visão, uma ideia
de que haveria arte sem qualquer objeto, somente entre artis-
ta e público... eu precisava de toda a preparação, eu precisava
de todas as obras que vieram antes, elas me levavam a esse
lugar (ABRAMOVIC, 2015)14.

Carina Sehn e Paola Zordan . Algumas demonstrações para introduzir a arte da performance 73
Fronteiras imprecisas
A performance, por não ter fronteiras precisas, se afirma como
uma arte da presença que imiscui artes cênicas, artes visuais
e outras artes possíveis. Ela está ligada ao termo live art: arte
viva. Este termo visa dessacralizar a arte, tirá-la do lugar me-
ramente estético, ilusionista, artificial dos quadros, espetá-
culos, esculturas e outros objetos comumente considerados
“arte”. Trata-se de uma arte ligada ao corpo, à presença do ar-
tista e de acontecimentos que procuram colocar a arte mais
perto “da vida como ela é”; executando-a a partir dos rituais
cotidianos do homem e seu modo de existir.
Carlson (2010, p. 12), baseado no contexto norte-ameri-
cano, embora observe a popularidade do termo, não consi-
dera que, mesmo tendo se passado mais de cem anos desde
que o lugar sacralizado das “grandes obras” de arte tenha sido
amplamente discutido e seus aspectos sociais pesquisados,
propostas performáticas ainda são extravagantes e polêmicas
entre o público. As primeiras problematizações em torno dos
conceitos de arte e do que pode vir a ser a linguagem dentro
das artes se situam com Marcel Duchamp. Objetos prosaicos,
como um secador de copos, um ancinho, um urinol, expostos
de modo a serem vistos como esculturas, chamados readyma-
des, provocaram uma decisiva ruptura com a tradição e for-
çaram uma reavaliação do que podia e devia ser considerado
arte. A alegação de Duchamp, leitor de Nietzsche, pensador
que concebe a vida como obra de arte, era que os artistas não
deveriam ser limitados a um âmbito tão rígido de represen-
tação. Antes da intervenção provocativa de Duchamp, arte
era algo feito pelo homem, tipicamente de mérito estético,
técnico e intelectual, meios através dos quais expressar suas
ideias e emoções (GOMPERTZ, 2013, p. 330-31). Renato Cohen
(2002) no seu livro Performance como Linguagem pergunta-
-se: “Qual o desígnio da arte: representar o real? Recriar o
real? Ou, criar outras realidades? À medida que se quebra com
a representação a performance abre espaço para o imprevisto,
e portanto, para o vivo, pois a vida é sinônimo de imprevisto,
de risco” (COHEN, 2002, p. 97).
Algumas pistas para o aparecimento de tais questões são
encontradas ao longo da história da arte contemporânea já
nos anos 50, tendo seu auge entre os anos 60 e 70. Em 1933 a
escola de artes Black Mountain College recebeu 22 estudantes
e nove professores da antiga Bauhaus, após o fechamento da
mesma pela censura prussiana em 1932. Entre os anos de 1919

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016

e 1933 a Bauhaus, escola de design, artes plásticas e arquite-


tura, mostrava novos conceitos para a arte, numa unificação
de todas as artes, numa arte total onde a performance, o fi-
gurino e outras possibilidades eram exploradas. Entre os pro-
fessores da Black Mountain College estavam o artista Robert
Rauschenberg, seu amigo compositor e músico John Cage e
o coreógrafo Merce Cunningham. Em 1952, eles convidaram
o público em geral para mais um dos saraus/happenings que
os mesmos organizavam na escola. Nesta noite, além da ex-
posição das pinturas de Rauschenberg, Cunningham dança-
ria e John Cage, como uma “moldura para todas as atividades
que aconteciam” (GOMPERTZ, 2013, p. 335), faria do alto de
uma escada uma leitura/palestra da Doutrina da Mente Uni-
versal de Huang Po, mestre zen, chinês, morto em 850, que
escreveu a Doutrina da Mente Universal e seu opúsculo Da
Transmissão do Espírito, que se trata de um tratado pedagó-
gico. Um dos trechos lidos por Cage dizia: “No Zen-Budismo
nada é bom nem mau. Ou belo ou feio... A arte não deve ser
diferente da vida, mas uma ação dentro da vida. Como tudo na
vida, com seus acidentes e acasos e diversidade e desordem e
belezas não mais que fugazes” (GOLDBERG, 2006, p. 116). Aos
artistas que realizavam ações performáticas durante a leitura
não havia sido oferecida nenhuma indicação de tempo para
que realizassem suas atividades; – seguiu-se a desordem, en-
quanto Cage “palestrava” – o evento foi divertidíssimo e a arte
performática dera o seu primeiro passo experimental rumo à
notoriedade (GOMPERTZ, 2013, p. 335). O que se via então era
um aglutinamento de várias expressões de arte como a músi-
ca, as artes plásticas, a literatura, o cinema e o teatro, carac-
terística herdada desde a Bauhaus onde o termo “obra de arte
total”, cunhado pelo seu fundador Oskar Schlemer, era o fio
condutor de todas as produções artísticas.
Em 1952, aconteceria no Maverick Hall, um dos episódios
mais importantes na história da música, da performance e na
carreira de John Cage. O público esperava ansioso para ouvir a
mais recente obra de Cage quando o pianista David Tudor en-
trou em cena, sentou-se ao piano e durante quatro minutos e
33 segundos ele ficou em silêncio, imóvel, somente mexendo-
-se ao final deste tempo para deixar o palco. A obra intitulada
por Cage de 4’33, deixou o público do teatro perplexo e bastante
revoltado. Diziam que Cage havia sido desrespeitoso com uma
peça que não consistia em nada senão silêncio! Cage respondeu
às críticas dizendo que 4’33 não era silenciosa, que o silêncio
era algo que não existia. Ele declarou que durante o primeiro

Carina Sehn e Paola Zordan . Algumas demonstrações para introduzir a arte da performance 75
movimento pôde ouvir o barulho do vento que soprava lá fora,
seguido do tamborilar de gotas de chuva no telhado. A obra,
disse, não era sobre silêncio e sim sobre audição.
Allan Kaprow, pintor e intelectual americano que havia
sido aluno de composição de Cage na New School for Social Re-
search em Nova York, “trouxe os happenings para o público em
geral ver” (GOLDBERG, 2006, p. 118). Em 1959, dentro da gale-
ria Reuben em Nova York, Kaprow realizou a sua obra 18 happe-
nings em 6 partes15, onde o público, que ele mesmo havia con-
vidado através de cartas enviadas pelo correio, chegava à galeria
e podia ver o seu nome constando no programa como parte do
elenco. Então cada um tomava seu lugar e iniciavam-se uma
série de ações comuns como subir em uma escada, sentar-se
em uma cadeira ou espremer uma laranja. Estas ações levavam
o público a se deslocar por três diferentes espaços separados por
painéis semitransparentes e montados dentro da galeria. Tudo
acontecia de forma sequencial e os performers haviam passado
por duas semanas de ensaios para que tudo acontecesse den-
tro de um rigoroso controle. Para Kaprow, que também havia
sido “aluno e pesquisado a obra de Jackson Pollock” e sua ac-
tion painting, era preciso remover a tela por completo e, em vez
disso, “tornar-se preocupado e até deslumbrado com o espaço
e os objetos da nossa vida cotidiana, quer sejam os nossos cor-
pos, roupas ou quartos...” (GOMPERTZ, 2013, p. 337). Kaprow
em seus trabalhos utilizava materiais como lâmpadas, neóns,
meias velhas, um cachorro, filmes, cadeiras, comida, água etc.
Ele dizia que no futuro não mais se diria “sou um pintor”, “sou
um poeta” ou um “dançarino” e sim, simplesmente, “sou um
artista” (GOMPERTZ, 2013, p. 337). Ressaltamos que em um
happenig as imagens relacionam-se com outras imagens e
umas influenciam as outras, com nos diz Bergson em Matéria
e Memória ao falar sobre o universo onde “tudo o que existe são
imagens relacionando-se entre si infinitamente” (BERGSON,
1990, p. 9). No happening tudo é acontecimento, os performers,
a ação dos performers, o lugar/espaço onde acontece a ação e
o tempo que cada uma delas leva para se efetivar no corpo e na
visualidade, na latitude e na longitude.
Em City Scale16, de Ken Dewey, o público se reunia numa
das extremidades da cidade ao anoitecer e preenchia uma sé-
rie de formulários do governo. Logo após era levado a circular
pela cidade e presenciar uma série de happenings/ações per-
formáticas em diferentes lugares: uma mulher que despia-se
na janela de um apartamento, um balé de carros num esta-

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016

cionamento, um cantor em uma vitrine, balões meteorológi-


cos em um parque desolado, um restaurante self-service, uma
livraria e ao nascer do sol do dia seguinte chegava ao final com
um vendedor de aipo em um cinema.

“Como”, ao invés de “o que”


Os artistas passaram a sair dos espaços convencionais e a bus-
car uma experiência nova, levando o público a vivenciar o que
a obra propõe e não somente a fruição da mesma de forma
estática e separado dela. Ele já não é mais espectador passivo,
mas agente ativo da ação, a qual já não acontece mais sem ele.

Na performance, a intenção vai passar do what para o how


(do que para como). Ao se romper com o discurso narrativo,
a história passa a não interessar tanto e sim, como “aquilo”
está sendo feito. Essa intenção reforça uma das características
principais da arte da performance e de toda a live art, que é
o de reforçar o instante e romper com a representação (CO-
HEN, 2002, p. 66).

Yves Klein, artista plástico francês, realiza em 1962 um


ato extremamente importante na história da arte da perfor-
mance intitulado Saut dans le vide17 (Salto no vazio). Trata-se
de uma fotografia que aparentemente mostra-o pulando de
uma janela, de braços abertos em direção à calçada, publica-
da como parte de um panfleto de Klein, o qual denunciava
as expedições à lua, as quais eram consideradas por ele como
arrogantes e estúpidas. Klein pesquisou o conceito de vazio
em diferentes obras – um livro sem palavras, uma composi-
ção musical sem composição de fato, uma instalação em uma
galeria sem objetos de arte. O vazio estava ali como um signo,
como uma imagem. Klein acreditava que o vazio servia como
uma espécie de zona neutra, semelhante ao nirvana para os
budistas, espaço livre das influências do mundo, onde as pes-
soas são induzidas a concentrarem-se sobre as suas próprias
sensações e não na representação delas – o que ele chamou
de “Zona de Sensibilidade Pictórica Imaterial” (GOLDBERG,
2006, p. 135). Segundo Richard Schechner (2006), professor
de Estudos da Performance (Performance Studies) na Tisch
School of the Arts da Universidade de Nova York, prestar aten-
ção às atividades simples executadas no agora é desenvolver
uma consciência zen com relação ao nosso dia a dia, uma

Carina Sehn e Paola Zordan . Algumas demonstrações para introduzir a arte da performance 77
honra ao comum. “Honrar o comum é notar como se parece
com um ritual à vida cotidiana, o quanto consiste-se em repe-
tições” (SCHECHNER, 2006, s/p). Podemos pensar a perfor-
mance como ritual?
O artista alemão Joseph Beuys acreditava que a arte deve-
ria transformar concretamente a vida das pessoas: “Precisa-
mos revolucionar o pensamento humano. Antes de mais nada,
toda a revolução ocorre no interior do ser humano. Quando o
homem é realmente criativo, capaz de produzir algo novo e
original, ele pode revolucionar o tempo” (BEUYS apud GOL-
DBERG, 2006, p. 139). Foi exatamente o que ele tentou com
suas ações. Em Como explicar pinturas a uma lebre morta18
(1965), Beuys, com mel e folhas secas no rosto, sentou em um
canto da galeria segurando em seus braços uma lebre morta,
depois de um tempo passeou com ela por toda a galeria, suas
patas encostavam nos quadros expostos. Às vezes parava em
frente a uma das pinturas, mostrava-a ao animal e sussurrava
ao seu ouvido algo sobre o sentido da obra. “Mesmo morta,
uma lebre tem mais sensibilidade e compreensão instintiva
do que alguns homens, com sua obstinada racionalidade”
(BEUYS apud GOLDBERG, 2006, p. 140). A performance du-
rou três horas e em nenhum momento Beuys se dirigia à pla-
teia ou reconhecia a sua presença, o que deixava mais claro
ainda a crítica que fazia o artista. “A performance, como um
código secreto, contem rituais invisíveis atrás de rituais visí-
veis” (GLUSBERG, 2011, p. 118).
O que não se pode identificar assombra, apavora e para
isto imediatamente se procura dar nome, a fim de que o ino-
minável da experiência possa ser classificado e enquadrado
na linguagem. A linguagem insere a vida na normalidade
dominante das imagens já conhecidas. Saber ser um ser di-
ferente em si mesmo, único, constituído de caos e diferença,
está além das possibilidades do homem que tem vontade de
verdade, como diz Nietzsche (2009). O homem é moralizado
desde que nasce, pois já nasce sob uma luz branca – a luz da
transcendência, do que é superior –, a linguagem que tudo
organiza e mantém funcionando a vida conforme as leis da
ciência. O homem que necessita de uma verdade cria para si
as mais variadas referências visuais, os mais variados ideais.
Ele encontra-se longe da terra, num lugar rarefeito, quase sus-
penso por uma corda, sufocado e regulado. Toda a liberdade
cultivada desde os saraus do Black Mountain College, culmi-
na então com uma arte que é uma arma de guerrilha peran-
te a obsolescência das Belas Artes, uma “máquina de guerra”,

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como diriam Deleuze e Guattari (1997), cujas forças surgem


inesperadamente, fazendo sentir sua estranha presença e de-
saparecendo em seguida. A ação performática é radical por
natureza. “A performance como verdadeira emergência esté-
tica é uma transgressão dentro de uma cultura em que o cor-
po, a partir das convenções vigentes, é alienado de si próprio”.
(GLUSBERG, 2011, p. 100). Ela não está presa ao mercado, até
porque por ser uma arte que se baseia na presença do artista
para ser executada, como pode ela preencher os quilômetros
de paredes brancas de uma galeria de arte?
Marina Abramovic, como já apresentamos anteriormen-
te, trabalha com performance desde o final dos anos 60 e, em
2010, a artista foi convidada a realizar uma retrospectiva da
sua trajetória no Museu de Arte Moderna (MoMA) em Nova
York. Convite que se torna um grande desafio a um artista do
corpo, da ação. Como ela não poderia estar presente ao mes-
mo tempo realizando as suas ações performáticas nas várias
salas de um dos maiores museus de arte contemporânea do
mundo, Abramovic treinou19, por três meses, em sua casa no
campo, vários artistas de performance para reapresentarem as
suas performances, pois ela mesma estaria apresentando no
MoMA uma obra inédita, criada especialmente para a expo-
sição: The Artist is Present (2010). Nesta, a artista durante os
três meses de exibição, sentar-se-ia diariamente em uma ca-
deira com uma mesa à sua frente e mais uma cadeira vazia na
ponta da mesa, nesta sentaria o público, uma pessoa de cada
vez. A performance durava diariamente 6h30min, que era o
tempo de abertura do museu. Abramovic não levantava nem
mesmo para fazer xixi, a sua cadeira continha uma espécie de
reservatório no assento, para que a artista sem se levantar pu-
desse urinar ali mesmo. Os visitantes podiam sentar-se a sua
frente e olhar para ela pelo tempo que quisessem e assim fa-
ziam parte da obra de arte. A maioria das pessoas que forma-
vam filas quilométricas contornando os quarteirões do museu
permanecia na presença da artista pelo tempo de um a dois
minutos e outros ficavam por horas ali, tiveram dois visitantes
que permaneceram em frente à Abramovic até o final do dia,
para desespero das pessoas que aguardavam silenciosamente
na fila. A indicação para participar da performance era sim-
ples: tinha-se que permanecer em silêncio e imóvel do começo
ao fim, assim como a artista. A retrospectiva de Marina Abra-
movic foi uma das mais importantes exibições que o MoMA já
apresentou, tanto pelo número de pessoas que frequentaram
o museu quanto pela repercussão que obteve na mídia.

Carina Sehn e Paola Zordan . Algumas demonstrações para introduzir a arte da performance 79
Arte presente
A arte da performance ganha status no mercado da arte con-
temporânea. No entanto, não deixa de ser política, provocante
e polêmica, pois como é que se compra uma das obras presen-
ciais de Abramovic, as quais abrem mão de quaisquer objetos,
mas não do próprio corpo e presença da artista? O que se pode
comprar na sua última obra The artist is presente? O que se leva
dali senão o que se viveu, experimentou estando ali em frente
à artista, na sua presença, olhando-a no olho? A performan-
ce dentro de um museu de arte, com todo o glamour, status e
críticas que este acontecimento contém, mas ao mesmo tem-
po ela manteve a força, a imponência, a provocação plena de
músculos e sangue do corpo da artista. Contendo sim um es-
tranhamento para quem a experienciava (basta ver as fotos das
expressões dos visitantes e o noticiário da televisão americana
durante a exposição). Serve, definitivamente, de uma abertura
para um novo lugar para o pensamento, para a emoção dentro
da arte. Abramovic pode sim ter cedido às exigências do merca-
do, mas não deixa de fazer o que se propõe desde o início da sua
trajetória: estar viva perante os olhos de quem a vê.
Richard Schechner (2006), em seu artigo O que é perfor-
mance?, disserta sobre as variadas possibilidades que temos
de nos relacionarmos com a performance. Segundo o profes-
sor da Tisch, um artista pode viver “sendo” a sua performan-
ce, pode estar “fazendo” a sua performance, pode “mostrar
fazendo” e “pode explicar mostrar fazendo”. “Sendo” a sua
performance a existência por ela mesma, quando um artista
já não separa mais a sua arte da sua vida, como diz Allan Ka-
prow, “arte como a vida”. Tehching Hsieh20 é um exemplo des-
te modo de fazer performance. Ao longo da sua vida realizou
performances longas que duravam um ano cada uma delas.
Se chamavam One Year Performance e consistiam sempre de
um statement que continha todas as “regras” da performance
assinada por ele. Hiseh vivia a sua proposição durante todos
os 365 dias do ano, ininterruptamente “in action”. Na One
Year Performance 1980-198121, iniciada em 11 de abril de 1980 e
concluída em 11 de abril de 1981, o artista raspou o seu cabelo
e instalou uma máquina de ‘cartão ponto’ em seu atelier e
de uma em uma hora filmava-se ao lado da máquina. Depois
mandou revelar frame a frame as imagens e preencheu muitas
paredes de galeria com seus autorretratos. O resultado é um
filme que mostra a passagem do tempo no relógio e na apa-

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016

rência do artista. Em outra performance intitulada One Year


Performance 1981-1982, iniciada às 14h do dia 26 de setembro
de 1981 e encerrada às 14h do dia 26 de setembro de 1982, o
artista morou na rua e não poderia dormir em nenhum lugar
coberto, ou dentro de um carro, ou dentro de alguma constru-
ção, teria que ficar na rua somente com um saco de dormir.
Em One Year Performance 1983-1984, iniciada em 4 de julho
de 1983 e finalizada em 4 de julho de 1984, o artista em cola-
boração com outra artista, Linda Montano, viveu ligado a ela
por uma corda de oito metros presa na cintura dos dois. Eles
viviam juntos, nunca sozinhos, no mesmo quarto, em camas
diferentes. Quando saíam para a rua estavam da mesma forma
juntos em todos os lugares. Enfim, a vida passa a ser vivida a
partir de uma proposição performática e não de outro modo.
Quando Schechner (2006) refere estar “fazendo” uma per-
formance, ele trata de uma das características mais marcantes
nesta arte. Na sua grande maioria, os artistas de performance
fazem uma ação, realizam uma tarefa (task). Tendo em vista
que estamos sempre fazendo algo, mesmo os que nada fazem
estão fazendo algo, pois o universo é pleno de movimento, de
agir, de ação, nada está parado. Podemos pensar em muitos ar-
tistas, um deles em especial é Vito Aconcci, que em sua obra Se-
edbed22 (1972), construiu na Sonnabend Galery, em Nova York,
uma rampa baixa de madeira que se confundia com o chão e
dava acesso à exposição. “Escondido” embaixo da rampa o ar-
tista se masturbava a partir dos passos dos visitantes que passa-
vam pela rampa, enquanto falava em um microfone suas fanta-
sias sobre os desconhecidos corpos que moviam-se acima dele:

você está na minha esquerda, você está se afastando, mas eu


estou empurrando meu corpo contra você, no canto... você está
dobrando a cabeça para baixo, em cima de mim, eu estou pres-
sionando meus olhos em seu cabelo... eu estou fazendo isso
com você agora... você está na fonte de mim... eu tenho que
continuar durante todo o dia - cobrir o chão com o esperma,
semente no chão... você pode reforçar a minha excitação, servir
como um meio. a semente plantada no chão é o resultado con-
junto da minha presença e da sua (JONES, 2000, p. 117).

Aconcci realizava uma simples ação, comum a todos os


homens, não? Uma ação cotidiana que colocada como centro
da ação do artista se tornara uma das mais impactantes e irô-
nicas obras da história da performance.

Carina Sehn e Paola Zordan . Algumas demonstrações para introduzir a arte da performance 81
Na performance há uma acentuação muito maior do instan-
te presente, do momento da ação (o que acontece no tempo
“real”), isso cria a característica de rito com o público, não
sendo só espectador, e sim, estando numa espécie de comu-
nhão (COHEN, 2002, p. 97).

“Mostrar fazendo” é outra possibilidade de ação perfor-


mática, na qual o artista desempenha uma ação e aponta para
algo, sublinha algo, exibe algo – fazendo. Neste caso, não po-
demos deixar de citar o trabalho da perita policial e artista
paraense Berna Reale, que realiza performances que ofere-
cem um alto nível de complexidade. Em Ordinário23 (2013),
por exemplo, ela aparece recolhendo e transportando cerca de
quarenta ossadas de vítimas anônimas de homicídios na área
metropolitana de Belém do Pará. A performance foi filmada
no violento bairro de Jurunas. Tais restos mortais, de pessoas
dadas como desaparecidas, geralmente são encontrados por
agentes policiais em cemitérios clandestinos e levados para
depósitos, diante da ausência de reclamação de exames de
DNA. A coloração e a forma dos ossos podem indicar o sexo,
a idade e o tempo de falecimento da vítima. Para usar esse
material foi necessário um minucioso trabalho de limpeza
e catalogação com a ajuda de um biólogo, posto que, após a
performance, as ossadas retornaram aos depósitos para per-
manecerem por mais alguns anos antes de serem enterradas
para sempre pela polícia. Berna mostra, conforme aponta
Glusberg, “numerosos fantasmas psicológicos e sociais” que
colocam em crise a estabilidade do sujeito ao romper com a
“repetição normalizada de convenções gestuais e comporta-
mentais” (GLUSBERG, 2011, p. 65). Com sua ação, Berna nos
aponta algo, nos faz ver o que nem mesmo pensamos ser pos-
sível. Ela está carregando as ossadas em cima de um carrinho
de mão pelo bairro de Juruna enquanto é filmada, no entanto,
nem precisamos dizer que dentro desta ação estão contidas
n possibilidades, múltiplas potências, contínuos de variações.
Já quando Schechner (2006) se refere o modo de “explicar
mostrar fazendo”, ele está evidenciando os estudos performá-
ticos. Esta investigação é um exemplo, tentamos “explicar” a
arte da performance a partir de uma pesquisa prática onde a
autora é também performer e busca um modo particular de se
relacionar com a arte e seus variados desdobramentos. Aqui,
buscamos trazer alguns modos de se fazer performance a par-
tir dos exemplos de Schechner (2006), o que não quer dizer
que neste exato momento não esteja sendo produzido/cria-

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016

do outro modo. A performance não para jamais de produzir


a si, como uma máquina de guerra das artes quer mostrar,
demo(N)strar o novo, experienciar as heterogeneidade do que
que está por vir, dos fluxos, ela se “opõe ao estável, ao eter-
no, ao idêntico, ao constante” (DELEUZE; GUATTARI, 1997,
p. 25). Deleuze, em uma entrevista a Arnaud Villani, diz que
“monstro é um ser composto, que tem um segundo sentido:
alguma coisa ou qualquer um cuja extrema determinação dei-
xa plenamente subsistir o indeterminado”. No rastro de De-
leuze é possível pensar o que há de indeterminado também
na performance, algo de monstruoso que perturba quem a vê
e vivencia, um limiar de caos.

O delírio e a performance são fenômenos estreitamente rela-


cionados. A arte não tem nenhuma relação com o “bom sen-
so” ou com o “senso comum”, para dizer com todas as letras:
a arte não tem nenhuma relação com o sentido (GLUSBERG,
2011, p. 124).

Sentidos caósmicos
Se pensarmos o conceito de sentido aqui, nos é possível deixar
claro que o sentido para a performance nada tem a ver com
uma significação, com um significado, com uma essência,
mas sim com um efeito, “um efeito produzido, cujas leis de
produção devem ser descobertas” (DELEUZE, 2006, p. 177).
Este sentido é produzido por certa maquinaria, com efeito fí-
sico, assignificante; por “todas as espécies de máquinas que
estão entre a complexidade e o caos” (GUATTARI, 2012, p.
127), que buscam reconciliar o caos com a vida no corpo, com
o acontecimento. A noção de sentido aqui é uma “contestação
absoluta, uma crítica absoluta, e também de uma determina-
da criação” (DELEUZE, 2006, p. 177), que o quer não como
predicado, como propriedade, mas como acontecimento,
como uma nova realidade, como uma sutileza que ora está no
corpo, ora na natureza, na Terra, no grito, nas nuvens, aqui
bem dentro do estômago, dobrando-se, efetuando-se diferen-
te e provido de uma estrutura problemática sempre aberta ao
virtual – o qual não tem compromisso com a realidade, mas
sim com a experimentação de si e da sua existência, com o seu
processo de engendrar-se sempre novo, integrado e cósmico.
Numa perspectiva esquizoanalítica, é possível pensar a
ação performática como ocupação de território, a expandir-se
como grama, rizoma, sempre valendo-se do corpo e de suas

Carina Sehn e Paola Zordan . Algumas demonstrações para introduzir a arte da performance 83
variações contínuas. Ela acontece no espaço, metamorfosean-
do corpos e entorno a partir das afecções que lhe acontecem,
aberta para o que a transborda. Efêmera, revolucionária, ex-
perimentadora, a performance sempre opera uma micropolí-
tica. Como os nômades, perambula, se reveza em si mesma,
equilibra suas forças e dissipa a sua energia condensada em
imagens-processo que avançam progressivamente sobre quem
vê, velozes e não pesadas. A performance aproxima o corpo da
vida, da singularidade da vida. Ela põe em contato com o que
se desconhece, com o que não está dado. Na performance, não
há sujeito, este fica borrado porque está imerso na vida, em um
processo de subjetivação ético-estético que se distingue de toda
a moral, de todos os códigos da moral, pois cria outros estilos
de vida. A performance oferece um corte mais profundo da re-
alidade (DELEUZE, 1990, p. 62). O performer subjetiva-se ao
realizar a performance, dobra-se sobre si mesmo, sobre a sua
singularidade-acontecimento – sem sujeito – “um vento, uma
atmosfera, uma hora do dia, uma batalha” (DELEUZE, 1992, p.
143), algo que viu na rua, a morte de um amigo, uma nova medi-
da econômica, etc... O performer se volta para as intensidades,
para as virtualidades e deixa de lado todas as formas da identi-
dade, produz multiplicidades, que não dizem mais respeito a
um único e sedentário sujeito, a um número.

Irrepetível
Ao longo da história da performance, muitas obras e artistas
somente nos deixaram com as imagens das suas ações, por
estas nunca mais serem reapresentadas, como por exemplo
o brasileiro capixaba Marcus Vinícius na performance O im-
previsível, o acaso e o que não se sabe24 (2011); a cubana Ana
Mendieta em Sin titulo (señales de sangre)25 (1974); o ameri-
cano Chris Burden em Shoot26 (1971); o alemão Bas Van Ader
em Fall 1 & 227(1970); Berna Reale em Palomo28 (2013), a ma-
ranhense radicada em São Paulo; Elen Gruber em O peso (da
série os 12 trabalhos)29, entre outros. O que o público em geral
aprecia das performances são as suas imagens, seus registros
visuais e audiovisuais, o que quer dizer que a imagem assu-
me aqui um papel fundamental à performance. Apesar de
imensurável e extemporânea, enquanto acontecimento que
começa sempre na nossa pele e músculos, o que resta de uma
performance é a imagem que a registrou. A imagem afirma o

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016

lugar do acontecimento performático para quem nunca po-


deria estar presente no momento da ação.
A performance apresenta, segundo Auslander (2006),
professor da School of Literature, Media and Communication,
uma relação ontológica com a sua documentação; pois afinal:
“o espaço do documento (fotografia ou vídeo) se torna, mui-
tas vezes, o único espaço no qual a performance ocorre” (AUS-
LANDER, 2006, p. 4). No caso da performance, é a imagem que
também se faz performática, ou melhor, faz ver a performance
que não é vista na hora da sua execução. Existem trabalhos em
performance que são realizados exatamente para serem regis-
trados, o que quer dizer que o seu registro deixa de ter um ca-
ráter simplesmente representacional, ele passa a ser objeto de
arte, ele passa a guardar em si, a simbolizar a obra de um artista
do corpo. Por isso podemos dizer que uma performance não
pode ser exatamente reproduzida, mesmo que sua proposta
seja repetida, a singularidade consegue apenas ser registrada. O
corpo se encontra como um todo ali, uma máquina de criação,
um modo de existir e de expressar-se imbricado em uma série
de relações possíveis entre quem está por ali passando, quem
permanece para ver e mesmo quem registra a obra.
O artista de performance está interessado em produzir
uma imagem tão potente que seja capaz de causar em quem
vê uma transformação no seu modo de existir. Dessa imagem
surge uma infinidade de possibilidades a serem vistas e obser-
vadas pelo público. O performer não reproduz o mesmo. Ele
recria, e as imagens oferecem outros modos de performativi-
dade, pode-se perceber e ver coisas e elementos que muitas
vezes enquanto se performa não são percebidos. Quando se
performa, não mais se representa nada, não faz sentido ser
idêntico a nada, buscar um personagem, uma imagem fora de
si. A imagem tem vivacidade, intensidade, assume outros mo-
dos de existir para além da ação. Faz com que performances
autônomas ganhem outros territórios que abrangem lugares
outros daqueles por onde o corpo esteve ou experimentou. A
imagem performática nada tem a ver com um índice remissi-
vo, pois ela carrega forças corpóreas, fluxos de intensidades e
ares de performance, contudo, não está apenas atrelada a uma
lógica temporal e histórica, se torna extemporânea, tempo
puro, movimento, cosmos. De fato, a performance projeta-se
na esfera social e depois regressa em direção à própria subjeti-
vidade, já outra. Ela força a pensar primeiramente o performer

Carina Sehn e Paola Zordan . Algumas demonstrações para introduzir a arte da performance 85
e em seguida exige do pensamento de quem a vê. Faz brotar
em nós o milésimo diferencial, a diferença intensiva. Porque
quando se performa, não mais se representa nada, não faz
sentido ser idêntico a nada, buscar um personagem, fazer
uma cena, uma imagem fora de si.
A ação performática pretende oferecer resistência a todo
o tipo de limite, de obstáculo à liberdade da criação. O per-
former não se fixa em nenhuma linguagem, pois a perfor-
mance não precisa se definir como uma linguagem, mas sim
como um espaço possível, um lugar para novas ideias, uma
experiência que transforme em primeiro lugar quem a re-
aliza e depois quem entra em contato com ela. Mesmo sob
rígido treinamento, movimentos involuntários respondem
aos acontecimentos que perpassam o corpo performático
preparado às mais duras resistências físicas e emocionais. Na
aclamada ação The Artist is Present, a reação de Marina Abra-
movich quando Ulay, seu companheiro de performances nos
anos 1970, senta à sua frente30, mostra que mesmo os prepa-
ros mais ascéticos não controlam certas emoções. Entre 736
horas e trinta minutos de performance há uma notável que-
bra de continuidade quando Marina é surpreendida por Ulay,
fato notório que inspirou a canção “Ulay Oh”, em vídeo que se
tornou viral na internet31. A experiência performática oferece
um novo entendimento para o próprio performer sobre o seu
corpo e sua realidade. Ela demonstra que a consciência não
está separada das suas mãos muito menos do seu pulmão, que
se expande e se recria. O corpo que pulsa e respira vive. Arte
e vida não se distinguem para o artista e o público entregue à
experiência provocada por uma performance.

Notas

1. “Terra Comunal” do latim significa ‘terra comum’. Realizada no e pelo Sesc


Pompéia de São Paulo nos meses de março a maio de 2015.

2. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LDkKj-hgvcU>.


Acesso em: 18 jul. 16.

3. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bWf9PQW2EDo>.


Acesso em: 18 jul. 16.

4. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Ev1LPRsK2CA>.


Acesso em: 18 jul. 16.

5. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HtzKx2tIBpA>.


Acesso em: 18 jul. 16.

6. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=QSvsaogq5wk>.


Acesso em: 18 jul. 16.

86 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016

7. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pj7iPi05nag>.


Acesso em: 18 jul. 16.

8. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fY2u59QdKKs>.


Acesso em: 18 jul. 16.

9. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bw2Wj8z5Fxg>.


Acesso em: 18 jul. 16.

10. Disponível em: <http://revistatrip.uol.com.br/revista/242/reportagens/


mauricio-ianes-conta-como-foi-o-retiro-que-fez-com-marina-abramovic.
html>. Acesso em: 02 set. 2015.

11. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ASS7xMOM1EE>.


Acesso em: 18 jul. 16.

12. Objetos Transitórios para Uso Humano – feitos de pedra, ervas, madeira
e espelhos, são objetos que propõem uma experiência ao público, quando
este se relaciona com os objetos. Este trabalho de Abramovic lembra muito o
trabalho de Lygia Clark e seus “objetos relacionais”.

13. Disponível em: <http://www.art21.org/images/marina-


-abramovi%C4%87/shoes-for-departure-1991>. Acesso em: 18 jul. 16.

14. Frase que compunha a exposição “Terra Comunal” no SESC Pompéia em


São Paulo (2015), programa da exposição.

15. Disponível em: <http://www.medienkunstnetz.de/works/18-happenings-


-in-6-parts/>. Acesso em: 17 jan. 2017.

16. Não existem imagens disponíveis desta performance.

17. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/File:Le_Saut_Dans_le_


Vide.jpg>. Acesso em: 17 jan. 2017.

18. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Mo47lqk_QH0>.


Acesso em: 17 jan. 2017.

19. O treino ou workshop que a artista chamou “Cleaning the house” consis-
tia em variadas proposições da artista, desde passar uma noite na floresta,
entrar nu no rio gelado, andar segurando um espelho de rosto na floresta,
etc. Pode-se conferir trechos e a própria artista explicando sobre o workshop.
Disponível em: <http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2010/mari-
naabramovic/retreat_participants.html>. Acesso em: 02 set. 2015.

20. Site do artista. Disponível em: <http://www.tehchinghsieh.com>. Acesso


em: 02 set. 2015.

2. Entrevista com Teching Hsieh. Disponível em: <http://www.youtube.


com/watch?v=90izVR2Kip0>. Acesso em: 02 set. 2015.

22. Disponível em: <http://www.moma.org/collection/works/109933>.


Acesso em: 18 jul. 16.

23. Disponível em: <http://dasartes.com.br/pt_BR/materias/ed-30-out-2013-


-berna-reale-moca-com-brinco-de-perola>. Acesso em: 18 jul. 16.

24. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tTtB5LzFBGc>.


Acesso em: 05 set. 2015.

25. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JE5u3ThYyl4>.


Acesso em: 07 set. 2015.

26. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JE5u3ThYyl4>.


Acesso em: 07 set. 2015.

Carina Sehn e Paola Zordan . Algumas demonstrações para introduzir a arte da performance 87
27. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8loz4lHZxwk>.
Acesso em: 07 set. 2015.

28. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_Acp4cclG_A>.


Acesso em: 07 set. 2015.

29. Disponível em: <https://vimeo.com/90038040>. Acesso em: 07 set. 2015.

30. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sLbFugaFyAA>.


Acesso em: 05 set. 2015.

31. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hbUKUKkM770>.


Acesso em: 05 set. 2015.

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88 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 68-89, jul-dez 2016


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Recebido em: 18/11/15


Aceito em: 27/06/16

Carina Sehn
carinasehn@gmail.com
É mestra em Educação, Bacharela em Teatro e Especialista em
Saúde Mental Coletiva. Professora do Departamento de Dança da
Universidade de Caxias do Sul (UCS), pesquisa o corpo performáti-
co, a imagem e os processos vivos da natureza.

Paola Zordan
paola.zordan@gmail.com
É Doutora e Mestra em Educação, Bacharela em Desenho e Licen-
ciada em Educação Artística. Professora do Departamento de Artes
Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
pesquisa epistemologia das artes e historiografia do corpo. Na
mesma instituição é professora do Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGEDU/UFRGS). 

Carina Sehn e Paola Zordan . Algumas demonstrações para introduzir a arte da performance 89
Histórias em quadrinhos, filosofia
pop e filosofia política: a América da
Liberdade versus os Estados Unidos
da Verdade em “Uncle Sam”

Heraldo Aparecido Silva

Resumo

O presente artigo tem por objetivo analisar a minissérie


em quadrinhos U.S. Tio Sam, de Steve Darnall e Alex Ross
(1998), a partir da filosofia pop de McLaughlin (2005) e
Goodenough (2005), e da filosofia política de John Rawls
(2000) e Robert Nozick (1991). Primeiramente, o estudo
foca na descrição da obra para, em seguida, apresentar
as perspectivas filosóficas que servem de aporte teórico
analítico. A fundamentação teórica baseia-se em autores
como: Eco (1993), Mix (1997), Eisner (1999), Moya (1994;
2003), McLaughlin (2005); Goodenough (2005), Vergueiro
e Ramos (2009), dentre outros. A leitura filosófica a partir
Palavras-chave:
Quadrinhos, filosofia pop,
das ideias de Rawls (2000) e Nozick (1991) ocorre mediante a
filosofia política interpretação de temas extraídos da história em quadrinhos.

90 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016


Comics, pop philosophy and political philosophy:
America’s Freedom versus the United States
of Truth in “Uncle Sam”

Heraldo Aparecido Silva

Abstract

This article analyses the graphic novel U.S. Uncle Sam, by


Steve Darnall and Alex Ross (1998), starting from the pop
philosophy of McLaughlin (2005) and Goodenough, (2005)
and the political philosophy of John Rawls (2000) and Robert
Nozick (1991). First, the study focuses on the description of
the work to then present the philosophical perspectives that
function as analytical theoretical support. The theoretical
foundation is based on authors such as: Eco (1993), Mix
(1997), Eisner (1999), Moya (1994; 2003), McLaughlin (2005);
Goodenough (2005), Vergueiro and Ramos (2009), among
others. A reading from the philosophical ideas of Rawls
Keywords:
(2000) and Nozick (1991) occurs through the interpretation Comics, pop philosophy,
of extracted themes of the comic book. political philosophy

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016 91


Historietas, filosofía pop y filosofía
política: la América de la Libertad
frente a los Estados Unidos de la
Verdad en “Uncle Sam”

Heraldo Aparecido Silva

Resumen

Este artículo tiene el objetivo de analizar la miniserie en


historietas U.S. Tio Sam, de Steve Darnall y Alex Ros (1998), a
partir de la filosofía pop de McLaughlin (2005) y Goodenough
(2005), de la filosofía política de Jhon Rawls (2000) y Robert
Nozick (1991). En primer lugar, el estudio se centra en la
descripción de la obra para, luego, presentar las perspectivas
filosóficas que sirven de marco teórico analítico. La base teórica
se fundamenta en autores como: Eco (1993), Mix (1997), Eisner
(1999), Moya (1994; 2003), McLaughlin (2005); Goodenough
(2005), Vergueiro y Ramos (2009) entre otros. La lectura
Palabras-clave:
Historietas, filosofía pop,
filosófica de las ideas de Rawl (2000) y Nozic (1991) se produce a
filosofía política través de la interpretación de temas extraídos de las historietas.

92 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016

Introdução
No campo da crítica filosófica, durante quase três décadas a
leitura dos quadrinhos foi bastante tendenciosa e limitada em
termos teóricos, visto que, basicamente, as abordagens das
HQs eram feitas mediante os aportes teóricos do marxismo
(Marx, Escola de Frankfurt, Althusser), da semiótica (Peirce,
Eco) e da semiologia (Saussure, Barthes, Propp). Em grau me-
nor, também era possível encontrar artigos esparsos que dis-
corriam sobre quadrinhos a partir de outros aportes teóricos,
como a Psicanálise (Freud, Jung), a Fenomenologia (Husserl,
Merleau-Ponty), o Existencialismo (Sartre), além de estudos
baseados em autores isolados como: Nietzsche, Heidegger,
Bachelard e Deleuze (MARNY, 1970; NEOTTI, 1971; CAGNIN,
1975; MOYA, 1977; LUYTEN, 1985; ECO, 1993; CIRNE, 2000).
Durante as décadas de 70 e 80, até meados dos anos 90 do
século XX, esse foi o padrão das chamadas leituras críticas que,
invariavelmente, repetiam exaustivamente os mesmos temas
(ideologia, alienação, comunicação, forma, conteúdo, leitura
e letramento, estrutura, semântica, narrativa) e concorriam
entre si, alguns abertamente e outros sub-repticiamente, pela
posse da leitura correta e cabal das histórias em quadrinhos
(NEOTI, 1973; CIRNE, 1974; DORFMAN; JOFRÉ, 1978; DORF-
MAN; MATTELART, 1980; CALAZANS, 1997).
A partir dos anos 2000, uma iniciativa norte-americana e
europeia que visava a popularização da filosofia, vista até en-
tão como algo acadêmico e árido, buscou humanizar os grandes
vultos da história da filosofia e abordar temas atuais a partir da
perspectiva filosófica mediante elementos não filosóficos. Den-
tre tais elementos, se destacavam filmes, músicas, histórias em
quadrinhos, literatura, poemas, documentários, romances filo-
sóficos, seriados televisivos, desenhos animados, cafés filosófi-

Heraldo Aparecido Silva . Histórias em quadrinhos, filosofia pop e filosofia política (...) 93
cos e temas do cotidiano. Essa abordagem filosófica terapêuti-
ca e prática ficou conhecida como Filosofia Pop (MARINOFF,
2006; ROSS, 2006; BAGGINI, 2008; ROOS, 2008; CATHCART;
KLEIN, 2008; POWERS, 2012; COHEN, 2012).
Em virtude da delimitação temática, não trataremos aqui
das polêmicas em torno das distinções feitas a partir da noção
originária de pop filosofia de Deleuze (1998). Registramos, no
entanto, que a nomenclatura filosofia pop não é um ponto pa-
cífico na comunidade filosófica. Inclusive, há quem defenda a
necessidade de se estabelecer cisões entre tipos de filosofia pop,
em virtude das concepções subjacentes aos questionamentos,
abordagens e procedimentos defendidos por seus praticantes.
Também a respeito disso, é preciso notar que muitos intelectu-
ais ou expertises filosóficos que atuam junto ao grande público
(programas televisivos, colunas de jornal, revistas não acadê-
micas, sites e outras mídias) não consideram o seu trabalho
como uma expressão da filosofia pop (OLIVEIRA, 2015). Assim,
alguns estudiosos sustentam que é possível dividir esquema-
ticamente a filosofia pop em três variantes: a filosofia pop boa
(criativa); uma filosofia pop má (comercial); e uma filosofia pop
relutante (que não se reconhece como tal).
Então, em conformidade com os objetivos do presente ar-
tigo, suspenderemos a discussão acerca do estatuto da filosofia
pop para praticar a filosofia pop, pois no âmbito dessa proposta
é possível ampliar consideravelmente o escopo temático passí-
vel de articulação com o universo das histórias em quadrinhos
e abdicar da pretensão de elaborar qualquer leitura crítica que
se arrogue como completa e definitiva. Em linhas gerais, é nessa
perspectiva que transladamos do campo cinematográfico para
o campo das HQs o enfoque sugerido por Goodenough (2005),
cuja abordagem propõe que os filmes podem: ilustrar teorias
filosóficas; ser sobre filosofia; e ser filosofia.
Essa diretriz também coincide com a proposta de McLau-
ghlin (2005) sobre a abordagem dos quadrinhos como filoso-
fia. E também é nessa linha de estudos que apresentaremos
posteriormente a nossa interpretação acerca da obra quadri-
nizada U.S. Tio Sam, de Steve Darnal e Alex Ross.

Caracterização das Histórias em Quadrinhos


As histórias em quadrinhos são formadas por dois elementos
inter-relacionados: a imagem e o texto. A originalidade do sis-
tema narrativo da arte sequencial reside nesta relação imagé-

94 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016

tica e textual (EISNER, 1999). Nesse caso, a exceção é feita por


algumas variantes de HQ, como a tira e a charge que, muitas
vezes, não empregam a linguagem escrita. A relação entre os
aspectos linguísticos (textos) e icônicos (imagens) dos quadri-
nhos constitui a sua essência (ECO, 1993).
Embora a harmonia entre os dois tipos de signos gráficos,
o imagético e o textual, seja determinante para a produção de
uma boa história em quadrinhos (visto que desenhos malfei-
tos comprometem um bom roteiro, tanto quanto textos ruins
comprometem belas imagens), isto não significa que haja um
padrão definido, uma forma única ou canônica de como uma
HQ deve ser (MOYA, 1994; CIRNE, 2000).
Em contrapartida, há quem sustente a ideia dogmática
segundo a qual deveria ser fixado um molde definitivo para a
produção de quadrinhos. Acreditamos que tal ensejo é apenas
uma tentativa sub-reptícia de cercear a imaginação artística.
Talvez a melhor maneira de tratar esta questão e dissolver a
polêmica seja considerar a 9a arte através da ideia que pressu-
põe a existência de graus de quadrinização (CAGNIN, 1975).
A transformação constante das HQs e a permanente vivi-
dez de sua arte e de sua narrativa é, conforme acreditamos, um
feliz resultado da evolução técnica/tecnológica (repografias,
desenhos, fotografias, colagens e diversas técnicas de pintura) e
dos recursos textuais (estilística, simbolismos, formas literárias
e vários elementos linguísticos) combinados com a primazia da
liberdade criativa de roteiristas e desenhistas que usam a arte,
o balão, a legenda e a onomatopeia para expandir as dimensões
do conteúdo e da forma (McLAUGHLIN, 2005; RAMOS, 2010).
Dentre as inúmeras denominações usadas para designar
as histórias em quadrinhos, temos: HQ, gibi, romance gráfico,
arte sequencial, quadrinhos, 9a arte etc. Em 2016, se comemo-
ra 120 (cento e vinte) anos de quadrinhos, conforme a data
convencional de sua origem (1896), celebrada em quase todo
o mundo (MOYA, 1994).
Nos Estados Unidos da América, a denominação mais
comum para os quadrinhos é comics, embora sejam usados
também os termos comic books, graphic novel e sequential
art. A despeito de sua vasta produção temática, os quadrinhos
norte-americanos se notabilizaram mediante a divulgação
do gênero cômico infantil da Disney e do super-heroísmo da
Marvel e DC, marcas amplamente difundidas no mercado
editorial de quadrinhos e que conseguiram uma considerável
inserção em outras mídias (MIX, 1997; MOYA, 2003).

Heraldo Aparecido Silva . Histórias em quadrinhos, filosofia pop e filosofia política (...) 95
Na Europa, existe uma terminologia diversificada e cam-
biante para designar as HQs que tematizam principalmente a
história, a política, o erotismo, a ficção e a fantasia; na Itália, são
conhecidos como fumetti; na França, são chamados de bandes
dessinéss; em Portugal, são tratados como histórias aos qua-
dradinhos; na Espanha, são cognominados de tebeos. Em quase
todos os países da América Latina os quadrinhos são chamados
de historietas e sua temática assemelha-se aos tópicos aborda-
dos nos tebeos espanhóis. Na Argentina, Chile, Cuba e México,
por exemplo, a ênfase reside nas questões políticas e nos qua-
drinhos de humor (LUYTEN, 1987; MOYA, 2003).
Já os quadrinhos originários do Japão, denominados de
mangás, são considerados bastante originais tanto na forma
quanto no conteúdo, pois os desenhos mais estilizados e a téc-
nica inovadora conferem maior dinamismo narrativo, cons-
tituindo uma evolução na linguagem imagética dos quadri-
nhos; com suas metáforas visuais, convenções iconográficas e
símbolos cinéticos (LUYTEN, 1991; MOYA, 2003).
Finalmente, no Brasil, os quadrinhos, gibis, ou simples-
mente HQs, são bastante conhecidos e apreciados. Todavia,
embora a avidez brasileira nos situe entre os três maiores pa-
íses consumidores de quadrinhos, a produção nacional ainda
é relativamente escassa e com pouca projeção internacional.
A razão disso não decorre em virtude da falta de talento, pois
muitos artistas trabalham ou produzem nos EUA e Europa,
mas em decorrência do fato da produção nacional ser bastan-
te dificultada.
Aqui ainda se publica poucos quadrinhos em comparação
ao material que é importado das grandes editoras mundiais
de quadrinhos. Ainda há falta de estrutura tanto na produção
quanto na distribuição para se competir com os quadrinhos
internacionais. Exceções são poucas, uma delas é Maurício de
Souza, que conquistou uma importante fatia do mercado edi-
torial brasileiro e, de modo similar ao império Disney, expan-
diu sua Turma da Mônica para diversos países como Argenti-
na, Alemanha, Bélgica, Canadá, Espanha, França, Holanda,
Inglaterra, Itália, Uruguai, dentre outros.
A partir de meados dos anos 90, este cenário começa a
mudar devido, principalmente, a revolução tecnológica pro-
tagonizada pelo advento da internet (CALAZANS, 1996).
Muitos talentos que em outros tempos somente lograriam um
tímido êxito após árdua luta mediante o abnegado trabalho
artesanal de fanzines, agora conseguem ganhar visibilidade
em sites próprios para divulgação de seus trabalhos (MAGA-

96 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016

LHÃES, 2012). Nos dias atuais, graças a esse novo contexto,


proporcionado pela transição das histórias em quadrinhos
da mídia impressa para a mídia digital, é possível encontrar
algumas iniciativas interessantes e que merecem ser destaca-
das, como o Catarse e outros projetos similares de captação
voluntária de recursos voltado para o financiamento coletivo
de produções quadrinísticas.
No campo educacional a relevância das HQs é expressa
pela sua significativa presença nas instituições escolares, tan-
to como atividade de leitura quanto em práticas pedagógi-
cas utilizadas nas salas de aula (RAMA; VERGUEIRO, 2007).
Diante desse novo cenário em que a presença das HQs no
ambiente escolar passa a ser incentivado por uma gradativa
inserção quadrinística na educação brasileira como política
educacional mediante os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) e o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE),
um desafio constante para professores e pesquisadores passa
a ser a compreensão correta da linguagem, dos recursos e das
principais obras no campo das histórias em quadrinhos (VER-
GUEIRO; RAMOS, 2009).

Tio Sam: figura histórica, ícone cultural


e história em quadrinhos
Para evitar mal-entendidos, é preciso enfatizar que Tio Sam já
fazia parte da história e da cultura norte-americana bem antes
de sua “participação” na Primeira Grande Guerra. A origem do
nome Uncle Sam é atribuída a um episódio ocorrido no início
do século XIX, enquanto EUA e Reino Unido se confrontavam
pela segunda vez na guerra de 1812-1814. Sam Wilson, um dos
fornecedores de carne para o exército norte-americano, tam-
bém era conhecido pelo apelido de Uncle Sam. Como as iniciais
de sua alcunha “US” eram as mesmas usadas para identificar
algo que fosse “propriedade do governo”, em pouco tempo, as
pessoas jocosamente ou espirituosamente passaram a sinoni-
mizar US como Uncle Sam/United States.
A figura do Tio Sam obteve projeção internacional quan-
do os EUA (no original em inglês “U.S.”, como uma dupla re-
ferência a United States e Uncle Sam) romperam a neutrali-
dade e ingressaram na Primeira Guerra Mundial. Entretanto,
esta não é a única versão do lendário personagem. A austera
e intimidadora imagem do Tio Sam de 1917, convocando ho-
mens para o exército norte-americano, celebrizou-se através
de um cartaz, amplamente difundido nos EUA e em diversos

Heraldo Aparecido Silva . Histórias em quadrinhos, filosofia pop e filosofia política (...) 97
outros países, no qual aparecia um homem branco, grisalho e
de olhar severo, trajando terno e cartola nas cores vermelho,
azul e branco, com o dedo indicador em riste conclamando: “I
want you for U.S. Army!”. Essa famigerada figura foi criada por
James Montgomery Flagg.
Já em relação ao desenho da personagem, grosso modo, o
que ocorreu foi uma “sofisticação” na sua imagem original, de
1838 (que antes era caricatural, visto que sua área de atuação
primeva era a dos cartoons políticos de Thomas Nast), e uma
alteração em suas funções, pois, se antes ocupava uma posição
de crítica e de destaque em relação aos problemas estritos de
seu país, satirizando-os; a partir dos resultados da Primeira
Grande Guerra e da reconfiguração da ordem mundial, quan-
do os EUA emergem como potência econômica e política, a
figura passa a simbolizar para o resto do mundo, primeiro, os
ideais e a força deste país e, depois, o imperialismo.
A respeito disso, podemos destacar, por exemplo, que em
1877, charges do Tio Sam foram publicadas em Nova Iorque
no semanário humorístico Puck. Nesta ocasião, o referido
personagem foi apresentado como uma espécie de defensor
de Cuba contra os guerrilheiros da época, além de ser mostra-
do de modo simpático em relação aos patriotas cubanos que
estavam em guerra pela libertação contra a Espanha, que era a
sua colonizadora na época (FERNANDES, 1977).
Há também um Tio Sam criado por Will Eisner e Lou
Fine. Trata-se de um super-herói que “militou” do início da
década de 1940 até o final de 1944, sob o selo da antiga editora
Quality Comics. Esta versão do Tio Sam incorporava o espírito
da nação americana, possuía super força, um relativo grau de
invulnerabilidade e era capaz de viajar para outras dimensões
através de vórtices tricolores (azul, vermelho e branco). Tais
poderes eram idealisticamente derivados da consciência ame-
ricana e declinavam conforme o povo americano perdia a fé na
sua nação (patriotismo). Ele também foi líder de um grupo de
super-heróis cognominados Combatentes da Liberdade [Free-
dom Fighters] que lutaram e detiveram os nazistas num mun-
do alternativo, uma distópica Terra-X, onde a Segunda Guerra
Mundial durou mais tempo do que em nossa realidade e que
havia sido vencida pelos países da aliança do Eixo (Alemanha,
Itália e Japão). Atualmente, esse personagem e sua Terra-X fo-
ram incorporados ao multiverso da editora DC comics.
A minissérie em quadrinhos U.S. Tio Sam, escrita por Steve
Darnall e Alex Ross, que também faz a arte, foi publicada no

98 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016

Brasil em outubro de 1998 (Abril Jovem). Na sua edição original


de 1997, a obra foi publicada pelo selo Vertigo, linha da editora
DC comics especializada em histórias voltadas para o público
adulto. A história, subdividida em duas edições, apresenta uma
ficção política distópica no qual um dos mais conhecidos íco-
nes culturais do mundo, o Tio Sam, realiza uma involuntária
e extemporânea jornada ao âmago da nação que representa:
os Estados Unidos da América do Norte. A viagem de um an-
drajoso Uncle Sam através da história e pelas ruas dos Estados
Unidos é assolada pela constatação desoladora de que o sonho
americano tornou-se tétrico e a terra da liberdade, inóspita.

A análise da HQ a partir da filosofia política


americana
Diferentemente dos ícones predecessores homônimos ci-
tados anteriormente, o Tio Sam de Darnall e Ross (1998) não
ostenta uma imagem austera e tampouco um ideário definido.
Ele sequer tem consciência de sua identidade: não sabe se é
um mendigo ébrio e alucinado vagando pelas ruas ou o espí-
rito decadente da nação “desgastado pela autodestruição da
América” e pelas doenças sociais – como adverte Ross.
A busca pela sua própria identidade faz com que Sam seja
atormentado tanto por devaneios de um passado verídico e
cruel da história dos EUA, quanto por traumas hodiernos que
proliferam pelas ruas do país, e diante do qual não há como
escapar de maneira incólume.
Nessa perspectiva, são exemplificados: o genocídio dos
nativos americanos, a escravidão, o racismo, a intolerância
sexual e religiosa, a corrupção, o desemprego, a violência, os
assassinatos de Abraham Lincoln, John Kennedy e Martin Lu-
ther King, os generais latifundiários e os fazendeiros destitu-
ídos de suas propriedades, o poder midiático capitalista, os
imigrantes explorados, a obsolescência de produtos e valores,
os horrores da Guerra de Secessão, a Klu-Klux-Klan, as leis
que beneficiam grandes corporações em detrimento dos po-
bres, as campanhas difamatórias e a perseguição política no
macarthismo, o intervencionismo militar para garantir “inte-
resses americanos” no México, Nicarágua, China, República
Dominicana e Golfo Pérsico, Sacco e Vanzetti, Joe Hill e os
Nove de Scotsboro, o crime organizado, Daniel Shays e a mi-
lícia de Massachussetts em 1786, os policiais de Chicago em
1893, a Guarda Nacional em 1970, dentre outros episódios.

Heraldo Aparecido Silva . Histórias em quadrinhos, filosofia pop e filosofia política (...) 99
Diante de tal cenário desalentador Sam é ao mesmo tem-
po o protagonista da violência em profusão e o espectador in-
voluntário de uma miríade de injustiças. E a possível redenção
reside justamente na sua capacidade de reconhecer e assumir
a responsabilidade por tais atos.
Embora o propósito deste artigo seja relacionar, ainda que de
modo breve e lacunar, tópicos do comic book U.S. Tio Sam com
algumas ideias dos dois principais filósofos políticos americanos
da contemporaneidade, John Rawls (1921-2002) e Robert Nozick
(1938-2002), nesta ocasião, restringiremos nossa exposição ao
tema da liberdade. Entretanto, antes de indicarmos certos aspec-
tos teóricos extraídos de Uma Teoria da Justiça (2000) e Anarquia,
Estado e Utopia (1991) obras produzidas na Colúmbia (América),
faremos uma rápida digressão para situar o tema da liberdade na
Britannia (Inglaterra), com Sir Isaiah Berlin (1909-1997).
No ensaio Dois conceitos de Liberdade, Berlin (1980) afir-
ma que é necessário distinguir entre dois tipos de liberdade:
a negativa, compreendida como ausência de coerção; e a po-
sitiva, compreendida como possibilidade de autorrealização,
isto é, plena e autodirigida, sem os impedimentos das forças
culturais e sociais. Uma vez que os propósitos e os direitos do
indivíduo (cidadão) nem sempre se coadunam com os objeti-
vos definidos de uma sociedade estruturada (Estado), as duas
noções de liberdade inevitavelmente se opõem.
Para Rawls (2000), um Estado democrático liberal deve
garantir justiça social. O ideal de justiça (um dentre os vários
possíveis) esboçado por ele propõe assegurar que os membros
de tal sociedade sejam providos com direitos básicos e oportu-
nidades mais ou menos iguais. A configuração desta socieda-
de teria como ponto de partida dois princípios fundamentais
de justiça: primeiro, o estabelecimento de direitos básicos; e
segundo, a igualdade de oportunidades (também chamado de
“princípio da diferença”). Assim, na sua teoria da justiça como
equidade temos respectivamente um princípio de liberdade e
um princípio de igualdade.
Para combater as antinomias da sociedade democrática,
particularmente aquelas que envolvem justiça/injustiça e
opulência/miséria, Rawls (2000) propõe que os socialmente
mais favorecidos atuem de maneira altruísta, no sentido de
reparar as desigualdades que afligem os socialmente desfa-
vorecidos. Na prática, isto implica no fato que uma parcela
significativa da população teria de abdicar de forma conscien-
te e benevolente de alguns privilégios e vantagens materiais,
obtidas de forma legítima (por mérito, herança, virtude) em

100 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 90-105, jul-dez 2016

prol dos desvalidos.


Nozick (1991), por sua vez, ao analisar o Estado moderno
critica as teses políticas do Conservadorismo, do Liberalismo e
do Socialismo que, em instâncias distintas e por intermédio de
ingerências diferentes acabam por violar os direitos individuais
das pessoas. E, em conformidade com os termos definidos por
sua filosofia libertária, infringir os direitos do indivíduo equiva-
le a atentar contra a sua liberdade. Então, em contrapartida, ele
defende a noção de um Estado Mínimo (um modelo político e
econômico utópico), compatível com uma ética libertária base-
ada nos direitos e que seria legítimo e moralmente justificado,
visto que, nestes termos, qualquer outra concepção mais abran-
gente de Estado inelutavelmente violaria os direitos (pessoais e
de posse) do indivíduo. Trata-se de uma limitação considerável
nas funções do Estado que ficam praticamente restringidas ao
papel de defender seus cidadãos contra possíveis ataques (vio-
lência, roubo, fraude etc.) de outros indivíduos ou grupos.
Desse modo, Nozick (1991), contrário ao conceito de jus-
tiça distributiva, assevera que na teoria rawlsiana existe uma
incompatibilidade entre os dois princípios fundamentais que
constituiriam uma sociedade realmente justa: o princípio da
diferença colidiria com o primeiro princípio, na medida em
que ao abdicar de seus talentos naturais ou posse legítima
(“justamente adquirida” ou “justamente transferida”), o indi-
víduo estaria sofrendo um tipo de intervenção na sua liber-
dade. Deste modo, Nozick acusa Rawls de não defender a li-
berdade como o valor maior em qualquer sociedade, mas de
eleger a igualdade como o valor supremo.
Na interpretação original de Darnall e Ross (1998), há
pelo menos duas descrições alternativas e opositoras para o
emblemático Tio Sam.
Na primeira versão, ele é o ícone do maior Império capi-
talista mundial, os Estados Unidos, que sempre apela para a
Verdade (Truth), que é a sua Verdade absoluta para, conforme
os seus interesses políticos, econômicos e ideológicos, “justi-
ficar” todos os eventos trágicos anteriormente mencionados.
Na segunda versão, ele é um símbolo desacreditado da
democracia liberal, da América, cuja ideia de responsabilida-
de social reside, sobretudo, no primado da Liberdade (Free-
dom) para todos.
Assim, ocorre um inevitável gládio alegórico: a força ver-
sus o diálogo. E a aposta dos autores deste romance gráfico
reside no Tio Sam que personifica a Liberdade (aliás, que ca-
racteriza uma dentre as possíveis faces da liberdade). E em

Heraldo Aparecido Silva . Histórias em quadrinhos, filosofia pop e filosofia política (...) 101
conformidade com a descrição oferecida nessa saga imagética
e textual, somos admoestados a permanecer atentos com re-
lação ao outro Tio Sam que personifica a Verdade e que é jus-
tamente o amálgama de tudo aquilo que obsta as liberdades
individuais, visto que se trata de uma espécie velada de um
Estado totalitário.

Considerações finais
Diante do exposto, embora haja nítidas divergências entre as
teorias sociais dos filósofos políticos John Rawls (2000) e Ro-
bert Nozick (1991), podemos entrever nos escritos de ambos
um forte antagonismo ao tipo de regime político, econômico e
de organização social “representado” pelo Tio Sam da Verdade
totalitária.
Desse modo, tal como o Tio Sam idealizado para reivin-
dicar sua “consciência social sobre a América”, na perspectiva
de Darnall e Ross (1998), a noção de Liberdade defendida por
Rawls (2000) e Nozick (1991) nem sempre possui traços defi-
nidos e conciliadores: seus matizes, assim como seus contras-
tes, ora advém do Liberalismo, ora do Libertarismo.
Finalmente, assim como ocorre na obra de Darnall e Ross
(1998), esperamos que após o inevitável confronto entre as
duas versões de Tio Sam, emerja vitorioso aquele que carrega
as multidiversificadas cores da bandeira da liberdade. Embo-
ra saibamos que, na contemporaneidade, sombrias versões
alternativas sempre rondam as sociedades democráticas e
liberais em terras paralelas não tão distantes (Talvez seja me-
lhor seguirmos o exemplo de liberdade de Corto Maltese, de
Hugo Pratt, e não acreditar nem em dogmas e tampouco em
bandeiras...).

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Recebido em: 29/11/15


Aceito em: 11/06/16

Heraldo Aparecido Silva


heraldokf@yahoo.com.br
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFS-
CAR). Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP). Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP). Professor de Filosofia da Educação da Universidade Federal
do Piauí (UFPI) e Coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia da
Educação e Pragmatismo da UFPI.

Heraldo Aparecido Silva . Histórias em quadrinhos, filosofia pop e filosofia política (...) 105
Flores, cores e formas: o Brasil
estampado de chita

Ivana Guilherme Simili


Priscila Barbeiro

Resumo

No trabalho, a relação entre arte e cultura é examinada por


intermédio da análise das apropriações da chita, um tecido
que caracteriza a cultura brasileira na criação de visualidades
de um livro destinado ao segmento infantil: “Uma festa de
cores: Memórias de um tecido brasileiro”, de Anna Gobel
e Ronaldo Fraga (2014). Da produção visual encontrada no
livro, procuramos identificar como os elementos visuais
comunicam aos seus leitores características de brasilidades,
Palavras-chave:
a partir da história e da apropriação do tecido na narrativa
Chita, cultura, imagem contada na obra.

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Flowers, colors and shapes: Brazil stamped in chita

Ivana Guilherme Simili


Priscila Barbeiro

Abstract

At work, the relation between art and culture is examined


by means of the analysis of chita appropriations, a cloth
that characterizes the Brazilian culture, in the creation of
visualities in a book for the children segment: “A party of
colors: memories of a Brazilian cloth”, by Anna Gobel and
Ronaldo Fraga (2004, our translation). From the visual
production found in the book, we aimed to identify how the
visual elements communicate Brazilian characteristics with
the readers, from story and appropriation of cloth in the Keywords:
narrative told in the book. Chita, culture, image

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016 107


Flores, colores y formas:
Brasil estampado de percal

Ivana Guilherme Simili


Priscila Barbeiro

Resumen

En este trabajo se examina la relación entre el arte y la


cultura a través del análisis de las apropiaciones del percal,
un tejido que caracteriza la cultura brasileña en la creación
de visualidades de un libro destinado al segmento infantil:
“Uma festa de cores: Memorias de um tecido brasileiro”,
de Anna Gobel y Ronaldo Fraga (2014). En la producción
visual encontrada en el libro, buscamos identificar cómo los
elementos visuales comunican a sus lectores características
Palabras-clave: de brasileidades, partiendo de la historia y de la apropiación
Percal, cultura, imagen del tejido en la narrativa contada en la obra.

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

Introdução
Neste estudo buscamos tecer as relações entre um objeto his-
tórico cultural: o tecido chita e os processos de memória e de
significação da/para a identidade brasileira. Nesse sentido,
optamos por analisar a composição pictórica de imagens cul-
turais por meio da narrativa e da incorporação do tecido nas
visualidades presentes em uma história destinada ao segmen-
to infantil. Trata-se da obra Uma festa de cores: Memórias de
um tecido brasileiro (2014), de Anna Gobel e Ronaldo Fraga.
O livro conta de forma poética a história de uma perso-
nagem simples, chamada chita, presente no dia a dia de nós
brasileiros. A narrativa é toda em primeira pessoa feita pela
protagonista da história: a chita que conta sua origem e fala de
seus antepassados originários da Índia na Idade Média, conhe-
cidos como chintz. Ela narra que a variação dessa nomenclatu-
ra nasceu aqui no Brasil, com esse tecido com caráter tropical
que conhecemos hoje, com novas padronagens, motivos florais
vibrantes, contornos em preto, cores vivas e contrastantes. Na
composição visual da obra as imagens rompem estereótipos
e exploram linguagens artísticas, tais como as cores, formas,
padrões e texturas da chita, construindo figuras e cenários de
festas populares como o maracatu, as festas juninas, as danças
folclóricas etc. Com este projeto estético, o livro propõe-se a
apresentar aos seus/suas leitores/as a história de usos e apro-
priações desse tecido democrático, de personalidade suficiente
para sobreviver à globalização (GOBEL; FRAGA, 2014).
A ilustradora da obra, Anna Gobel, nasceu em Valencia,
na Espanha, e quando tinha apenas um ano de idade foi para
a Alemanha. Aos cinco anos veio para a América do Sul para
morar em Buenos Aires, e então não parou mais de viajar. Veio
para o Brasil em 1995 e, hoje, mora em Belo Horizonte, Minas

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 109
Gerais. Atualmente é professora, ilustradora e artista plástica.
Suas produções artísticas contemporâneas trabalham com a
linguagem pictórica do desenho e da gravura. Gobel conta que
é apaixonada pela chita desde que chegou ao Brasil: “A chita,
com seu colorido, piscou para mim logo que cheguei ao Brasil”
(GOBEL; FRAGA, 2014, p. 42). Desde pequena as festas popu-
lares exerciam um fascínio especial sobre ela. Impressionada
com a riqueza do tecido, convidou o estilista mineiro Ronaldo
Fraga para dar palavras aos seus desenhos.
Ronaldo Fraga, estilista mineiro que nasceu em Belo Ho-
rizonte, é um narrador da cultura brasileira que a traduz por
meio das linguagens artísticas e da costura de roupas. Fraga
criou mais de trinta coleções, celebrando uma interpretação
particular das obras de grandes ícones da música, literatura,
arte e de outras manifestações artísticas e culturais. Aspecto
marcante na trajetória de Ronaldo Fraga é a valorização de
suas origens por meio da produção de moda. Em suas cria-
ções ele procura manter viva a lembrança de sua infância no
interior de Minas Gerais, estado pioneiro na chita, e que ainda
continua fabricando o tecido. O destaque conquistado pelo
mineiro no mundo fashion fez com que passasse a usar chita
também em suas coleções. Na ótica de Ronaldo, “O sucesso
do tecido vem do fato de ele representar um Brasil que a gen-
te quis negar. Nossa identidade só vai ser construída se nos
aproximarmos de todas as referências iconográficas brasilei-
ras, conclui” (MELLÃO; IMBROSI, 2005, p. 178).
Na narrativa do estilista é patente a maneira como conce-
be seus fazeres na moda e o papel que os bens do patrimônio
cultural, entre os quais, os tecidos, desempenham na constru-
ção de sentidos simbólicos para a formação de ideias e ima-
gens sobre/para a identidade brasileira.
Entre os recursos envolvidos nos processos de construção
de identidades estão a história, a memória coletiva, os proje-
tos culturais desenvolvidos pelos indivíduos e pelas socieda-
des em diversos tempos/espaços. Processos que envolvem as
apropriações e as ressignificação de vários elementos simbóli-
cos (CASTELLS, 1999).
Face ao exposto, um livro que escreve a história da chi-
ta, como elemento simbólico na história da cultura brasileira,
permite entender os caminhos por ela percorridos nos proces-
sos das formações das identidades, dentre os quais, aqueles
desenvolvidos em diferentes tempos/espaços e que consti-
tuem o tecido em emblemas das brasilidades.

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

Com este olhar, por meio da produção narrativa feita


com e pela chita, encontrada no livro, procuramos identificar
como os elementos visuais comunicam aos/às seus/suas lei-
tores/as características de brasilidades de modo a determinar
de que maneira a história de um tecido fabricou e fabrica uma
história da cultura brasileira.
Deste modo, procuramos revelar as articulações da Arte,
tendo como suporte a literatura infantil na construção de signi-
ficados para a memória e a história da cultura brasileira em suas
conexões com o patrimônio. Nesse sentido, como pensa Barbo-
sa (2008), quando nos referimos a Arte, é importante desfazer-
mos estereótipos, principalmente no ensino das artes visuais,
no qual a grande maioria reproduz conceitos modernistas lar-
gamente difundidos nos meios acadêmicos. Esta metodologia
de ensino exclui todas as artes chamadas menores/populares,
impossibilitando um trabalho intercultural em arte. Assim, é
preciso desvincular a arte e suas produções da dimensão trans-
cendental, na qual a tradição moderna a colocou, superando a
concepção museológica da arte e a ideia de belas artes.
No Brasil, Barbosa (2008) vem desenvolvendo uma visão
intercultural para o ensino da arte. Seus estudos defendem a
ideia de reforçar a herança artística e estética dos alunos com
base em sua própria cultura. Para isso, é preciso compreender
o contexto histórico das imagens, sabermos que elas são fruto
de uma cultura e de um modo de vida, podendo apresentar um
conjunto de símbolos e artefatos com os quais os indivíduos
se identificam, e possuem um sentimento de pertencimento,
funcionando como fonte de significados. Concordamos com o
conceito de cultura preconizado pela autora e trazemos para a
abordagem da obra de Fraga um de seus princípios de análise,
que é o de tentar compreender a cultura e o contexto históri-
co das suas imagens, manifestações materiais e simbólicas de
grande importância para refletirmos sobre o efeito que elas
exercem sobre nossas identidades (BARBOSA, 2008).
Portanto, ao enfocarmos o estudo na chita, concebemos
esta como objeto histórico da cultura brasileira e, como tal,
biográfico-memorialístico, que foi e vem sendo apropriado
e ressignificado na modernidade, neste caso em específico,
apresentado na linguagem artística das ilustrações como nar-
rativas visuais e culturais.
Deste modo, o interesse neste texto e suas contribuições se
orientam pela descoberta de possibilidades para a ampliação
do conceito de arte, de um sentido mais restrito e excludente,

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 111
para um sentido mais amplo, no qual, nos voltamos à análise
de um elemento imagético presente na vida comum, de gran-
de valor estético para nossa cultura, que é a chita. É a história
que a chita escreve sobre/para a cultura brasileira, em suas
redes de apropriações e de significações, que procuramos des-
lindar no livro de Fraga.

Estampa chita: a brasilidade em cores e formas


A história da chita é a narrativa das apropriações do tecido nas
práticas de vestir e de produzir roupas. Dessa história emerge a
representação caracterizadora do tecido como elemento sim-
bólico da identidade brasileira, de suas narrativas emergem
estampas que desenham e definem os teores das brasilidades.
Nessa história, a chita serviu para vestir as escravas e as
manequins nas passarelas dos desfiles de moda. Foi estampa
da elite e estampa de forrar mesa da cozinha. Conhecida como
pano popular passou pela literatura, pelo cinema e pelas ma-
nifestações artísticas. Vestiu movimentos culturais, coloriu
festas populares, participou de tradições religiosas, tornan-
do-se símbolo da moda brasileira. A lembrança da chita é sig-
no de uma brasilidade associada ao nosso ambiente tropical,
logo, pensar em chita é ver a alegria descarada da combinação
de suas cores e das misturas descontroladas de estampas, a
alegria genuína do povo brasileiro que viveu história de casti-
go, festa, trabalho e arte (MELLÃO; IMBROSI, 2005).
A história da chita, hoje com esse caráter tropical que o
Brasil lhe deu, começa do outro lado do mundo, séculos atrás,
há pouco mais de quinhentos anos na Índia medieval. Conhe-
cido como Chint em híndi, língua derivada do sânscrito, que
significa pinta ou mancha e caracteriza a estampa predomi-
nantemente floral. A estampa chita foi levada à Europa atra-
vés da expedição de Vasco da Gama, que por ocasião de sua
chegada em Calcutá, em 22 de março de 1498, encontrou te-
cidos de algodão estampados, que encantaram toda a sua tri-
pulação. Pimenta, cravo, canela, açafrão e curry, não foram os
únicos sonhos da Europa quinhentista, quando conheceram o
algodão estampado, vários povos europeus ficaram fascinados
pelo tecido indiano; como os holandeses, ingleses e franceses,
os portugueses encantaram-se com a comercialização. Em
função da tomada de Constantinopla pelos Turcos, Portugal
passou a estabelecer comércio pelo Cabo da Boa Esperança
ao sul da África. Logo, esse tecido foi intensamente comercia-

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lizado, dando início a indústrias têxteis e de estamparia em


toda a Europa (MELLÃO; IMBROSI, 2005).
A disseminação dos tecidos indianos pelos países euro-
peus proporcionou diferentes interpretações e variações. Na
França no século XVII, surge um descendente da chita in-
diana, um tecido leve e florido conhecido como Provençal,
por ter origem na região de Provence, caracterizando as se-
das, brocados e algodões com delicadas estampas de flores.
A Inglaterra não só aperfeiçoou seus padrões, como também
aprimorou técnicas e máquinas, desenvolvendo novos moti-
vos botânicos de inspiração asiática, com flores e folhagens
miúdas, dando origem a outro descendente da chita, o Liberty
inglês. Em Portugal, o tecido ficou conhecido como “pintado”
e surgiu também uma variante, a “Chita de Alcobaça”, que até
hoje é produzida. Com estampas florais predominantes, po-
rém, existem figuras humanas, animais e frutos, em diferen-
tes cores, divididas por listras largas formando as molduras
características do tecido. As peças são feitas nas dimensões de
colchas ou lenços, e até hoje é possível identificar a inspiração
indiana original, mesmo com a estilização dos motivos orien-
tais e a utilização de cores diferentes.
Segundo os autores Mellão e Imbrosi (2005), no Brasil a
história da chita, embora acompanhe a trajetória das Gran-
des Navegações, mistura-se também às produções nativas das
Américas, visto que seus povos já teciam algodões estampados
em tons de vermelho, amarelo, azul, verde e preto. O próprio
algodão, matéria-prima de todas as chitas, já era produzido
pelos índios quando Cabral aportou na Bahia, eles o fiavam,
teciam e tingiam com pau-brasil, anileira e outras plantas,
para ser usado em redes e faixas.
Neste período os europeus que vieram morar no Brasil
colônia tiveram que buscar outras opções para as vestimen-
tas trazidas, pois estas eram muito pesadas e quentes para o
clima e inadequadas para os trabalhadores. Segundo Chataig-
nier (2010), os caminhos que levavam até as suas casas, o ca-
lor de um país tropical, a dificuldade de lavar suas roupas ou
mesmo mantê-las limpas, foram os principais motivos para
simplificação das vestimentas de moda. A princípio, a maioria
das roupas femininas era nas cores preta e marrom, por cau-
sa das dificuldades anteriormente mencionadas, mas depois
do nascimento das cidades, o algodão estampado, conhecido
como chita, ganhou presença no vestuário. Aos poucos os tra-
jes começaram a apresentar adequações necessárias ao novo

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 113
ambiente, introduzindo aos tradicionais trajes lusitanos o
despojamento no vestir exigido pelo clima tropical brasileiro.
Os escravos que vieram da África para o Brasil por meio
do tráfico negreiro não possuíam vestimentas características
de sua cultura, chegavam de navio na costa brasileira usando
apenas trapos. Assim, também tiveram que buscar opções nas
vestimentas aqui encontradas:

As vestes coloridas e cheias de referências culturais ficaram do


outro lado do Atlântico. Observa-se que a indumentária uti-
lizada pelos escravos no Brasil, bem como as que vestiam em
sua terra natal, eram feitas de algodão. Não seriam exatamente
trajes, mas sim panos em tamanhos variados, formando faixas
enroladas entre a cintura e a parte superior das pernas, como
se fosse uma saia curta ajustada (CHATAIGNIER, 2010, p. 36).

O algodão brasileiro foi muito utilizado tanto em vesti-


mentas para escravos quanto no fabrico de têxteis para uso do-
méstico das classes superiores. A partir do momento em que
a chita vestiu escravos, fica evidente a denotação que acabou
permanecendo ao longo do tempo de “tecido dos desvalidos”,
“tecido de qualidade inferior” ou “tecido barato”, significados
estes, atribuídos à estampa chita, que foram responsáveis por
situá-la como “pano popular” (SILVA, 2010).
No século XVIII, os mineiros desenvolviam grandemente
suas manufaturas e chegavam a produzir tecidos de tão boa
qualidade que as populações de outras capitanias começaram
a comprá-los. Esse comércio não agradou a metrópole, pois
para Portugal não era interessante que uma capitania da co-
lônia se tornasse independente dos produtos de exportação
portugueses. Para dar fim ao perigo que a tecelagem mineira
representava e, também, para satisfazer os tecelões portugue-
ses que se queixavam da queda na exportação de seus pro-
dutos para o Brasil, a rainha Dona Maria I, a louca, em 1785,
expediu o alvará proibindo qualquer tipo de manufatura no
Brasil e ordenando que todos os teares fossem levados a Por-
tugal. Os poucos teares que existiam na clandestinidade eram
utilizados pelos escravos, índios e mestiços, o que talvez possa
ser visto como o prenúncio da relação da chita com o povo.
Conforme relatam os autores Mellão e Imbrosi (2005), em
1808, com a chegada do príncipe regente Dom João ao Rio de
Janeiro, que autorizou a produção de atividades manufaturei-
ras, a estamparia em tecidos começou a desenvolver-se nova-
mente. Nos anos que se seguiram, com a abolição da escrava-

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

tura em 1888, houve uma grande demanda de trabalhadores


assalariados, principalmente imigrantes italianos que vinham
para o Brasil para trabalharem nas lavouras de café. No en-
tanto, esses imigrantes preferiam vestir-se com as roupas de
seu país de origem, fossem ou não adequadas à nova terra.
Além disso, esses novos habitantes não queriam identificar-se
como uma classe pobre, ex-escravos ou populações rurais, que
usavam o algodão, dessa forma, a chita nesse período perma-
neceu restrita ao “povo brasileiro”.
Nas primeiras décadas do século XX, o Brasil viveu uma
fase intensa de desenvolvimento graças às inovações técnicas
que facilitavam o crescimento de novas indústrias, entre elas
as têxteis. Nesse período, a Primeira Guerra Mundial trouxe
efeitos benéficos para a produção industrial brasileira. As im-
portações de produtos manufaturados foram suspensas, as-
sim, o Brasil foi obrigado a explorar ao máximo a sua capacida-
de produtiva, abastecendo o mercado interno e aumentando
o volume das exportações. O país começou a ocupar lugar de
destaque no comércio internacional de produtos manufatu-
rados. No final do conflito, a indústria têxtil nacional fornecia
85% dos tecidos de algodão consumidos internamente.
Em 1955, Juscelino Kubitschek assumiu a presidência e
estabeleceu o Plano de Metas, incentivando a diversificação
da produção nacional e dando início à construção de Brasília.
Foi a época de maior otimismo que o Brasil já havia assistido,
com um surto de desenvolvimento industrial e moderniza-
ção. No final da década de 1950, a Fiação e Tecelagem São
Jorge voltou-se à demanda específica de sua clientela, princi-
palmente dos que trabalhavam com tecidos para decoração, e
começou a fazer testes para fabricar tecidos, entre os quais, a
chita com largura maior:

Até então, as peças tinham sessenta, no máximo noventa


centímetros, limite determinado pela dimensão dos teares
utilizados no Brasil. Foram então cortados dois teares de no-
venta centímetros remontados, para permitir tecer peças com
1,2 metros de largura (MELLÃO; IMBROSI, 2005, p. 115).

A essa nova chita, deu-se o nome de chitão, que foi mui-


to divulgado na década de 1960, voltado principalmente à fa-
bricação de colchões. “Hoje, o que caracteriza o chitão são as
dimensões e as cores de suas estampas florais. Se alguém fizer
essa estampa sobre outro suporte que não seja o morim, cer-
tamente a referência do novo tecido será ‘estampa chitão’”

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 115
(MELLÃO; IMBROSI, 2005, p. 118). Segundo o relato de José
Henrique Mascarenhas, diretor da Fabril Mascarenhas, o au-
mento de tamanho dos motivos estampados teve muito mais
a ver com a tecnologia disponível do que com opções estéticas.
É impossível precisar exatamente quando o chitão ganhou as
cores vivas que tem hoje e até mesmo a dimensão dos motivos
florais, tudo o que há são especulações. Uma delas diz respeito
ao fato de que nas décadas de 1950/1960, as estamparias conse-
guiam utilizar no máximo seis cores de cada vez, assim, talvez
o uso de cores vivas fosse uma alternativa frente à impossibili-
dade de misturar mais de seis tonalidades, obtendo-se, dessa
forma, uma estampa vibrante. Uma das dificuldades para achar
o autor ou a empresa que primeiro tingiu o chitão com as atuais
características está na ausência total de patentes de estampas.
No que diz respeito à fabricação da estampa, era comum
ampliar uma flor de chita para utilizá-la no chitão, conforme re-
vela a estampadora mineira Jaqueline Mendes, que utilizou um
truque manual até pouco mais de dez anos atrás: “Copiávamos
a estampa com papel vegetal quadriculado para ampliá-la”, diz,
referindo-se ao tempo em que trabalhou na tecelagem Santa
Elisabeth, em Belo Horizonte (MELLÃO; IMBROSI, 2005, p.
128). Nessa reciclagem sem fim, de cópias e cópias, perdiam-se
os contornos originais, as proporções ou o realismo dos moti-
vos, gerando até flores inusitadas, inexistentes, que convivem
placidamente com hibiscos, margaridas, rosas e outras que se
reconhecem no chitão. “É possível identificar no tecido, ain-
da hoje, esse reaproveitamento artesanal, que faz parte do seu
charme” (MELLÃO; IMBROSI, 2005, p. 134). Além das estam-
pas florais, começaram a surgir também outras que escapavam
dos motivos originais, muitas vezes copiadas de motivos euro-
peus, como flocos de neve, maçãs, ursinhos ou figuras geomé-
tricas, podendo ser encontradas facilmente nos dias de hoje.
Surge, nesse período também, o apelido de chita “mamãe
– Dolores”, para as chitinhas de estampa floral miúda, inspira-
das na personagem de mesmo nome da novela de mais sucesso
da época, Direito de Nascer, da TV Tupi. Assim, nessa época,
o vestidinho de chita tornou-se indispensável para a mulher
brasileira: básico, fresquinho e ideal para o verão do nosso país.
Logo, a chita, chitinha e chitão começam a ser amplamente pro-
duzidos pela maioria das fábricas de tecidos brasileiras, sempre
comercializadas por preços baixos, já que o tecido é básico e a
fabricação muito simples.
Ainda na década de 1960, período marcado pela revolução
nos costumes, no comportamento, na moda, na sexualidade

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e na política; o poder jovem, Flower Power, feminismo, paz e


amor e psicodelia, marcavam o cenário dessa época, enquanto
nosso país atravessava os chamados anos de chumbo. “As rou-
pas de chitão eram a cara do movimento hippie e o oposto do
ufanismo e da repressão militar” (MELLÃO; IMBROSI, 2005,
p. 124). A popularidade do tecido, principalmente do chitão,
participava do movimento hippie com seu visual florido e co-
lorido, do tropicalismo vestindo Gil, Caetano e Tom Zé, e até
no figurino de Chacrinha, um ícone da TV brasileira. Foi tam-
bém utilizada pela alta costura, tendo como pioneira a adotar
a chita a estilista Zuzu Angel, vítima da ditadura, e que usava o
tecido em suas coleções ousadas para a época. “A chita no cor-
po e no cenário dos movimentos artísticos e revolucionários,
em plena vitória de repressão, era uma assinatura da alma
brasileira, um desafio, quase um descaramento” (MELLÃO;
IMBROSI, 2005, p. 127).
A partir do momento em que a chita foi incorporada nas
passarelas, livrou-se de estigmas que carregava desde o início
de sua fabricação no Brasil: pano de pobre, roupa de caipira,
de brincar, tecido ordinário e outros rótulos ficam em segun-
do plano quando estilistas resolvem vestir top models com as
estampas de chita e do chitão.
Como mencionado, a pioneira desse uso diferenciado da
chita, a estilista Zuzu Angel, democratizou o universo da alta
costura e colocou-a nas ruas. “Em 1959, ela fez saias de chita
e zuarte, que é um tecido semelhante, utilizado para forração
de colchões; eram baratos, ela estava sem dinheiro. Foi um
sucesso” (MELLÃO; IMBROSI, 2005, p. 171). Foi a primeira es-
tilista a falar em identidade brasileira e também a primeira a
usar a moda como bandeira política. Muito conhecida no Bra-
sil e nos Estados Unidos por suas coleções que transpiravam
brasilidade, Zuzu Angel também era conhecida por sua luta
constante contra a ditadura militar brasileira, sua denúncia ao
regime militar acabou tirando-lhe a vida.
No final da década de 1970, quando o Rio de Janeiro era
a capital da moda de rua brasileira, a chita marcou presença
nas criações de um casal de estilistas, Sônia Gallotti e Antônio
Bernardo, com seus biquínis e tangas de chitão. Em 1979, a
estilista (hoje decoradora) realizou um desfile nos Arcos da
Lapa, no Rio, ao final do qual os modelos despiam suas pe-
ças de chitão e ficavam nus, segundo ela com a intenção de
protestar contra o desaparecimento de presos políticos. “Mais
uma vez, fazia-se da chita bandeira liberal” (MELLÃO; IM-
BROSI, 2005, p. 178).

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 117
A década de 1980 chegou ao fim com a chita fora da indús-
tria da moda e das passarelas. Apenas alguns estilistas viriam
a ressuscitá-la, como foi o caso do mineiro Ronaldo Fraga, au-
tor do livro de análise. Em 2001, o estilista apresentou uma
coleção em homenagem à grande estilista Zuzu Angel, deno-
minada: “Quem matou Zuzu Angel ?”. Esta coleção retrata a
luta da estilista contra a ditadura militar brasileira. Foi muito
caracterizada pelo uso de chitas de variadas cores e tamanhos,
peças com estampas de pássaros e anjos misturavam-se em
perfeita harmonia.
Além da indústria da Moda, a chita também foi utiliza-
da por artistas. Em 1992, o Grupo Corpo de Belo Horizonte
estreou o espetáculo 21, como pano de fundo do palco uma
tela imensa reproduziu em escala teatral detalhes de telas do
responsável pela cenografia do espetáculo, o artista plástico
Fernando Velloso, cujo tema de sua obra é o Chitão.

Cor e textura são elementos de destaque no trabalho desse


artista plástico, professor e cenógrafo mineiro, que combinou
técnicas de pintura e colagem numa série de telas com es-
tampas do chitão e outros elementos populares, como o pa-
tchwork e o fuxico (artesanato feito com retalhos de tecidos
coloridos dobrados) (MELLÃO; IMBROSI, 2005, p. 186).

O espetáculo 21 colocou em cena vertentes criativas que


utilizavam a chita como inspiração e referência: cenografia/
figurino e artes plásticas. Outros artistas também transpuse-
ram a tela de morim estampada para a tela de pintura, como
Beatriz Milhazes, com suas fortes referências cromáticas que
remetem ao Barroco e às estampas de chitão. Na cenografia,
outro exemplo é o do diretor, artista gráfico e cenógrafo Grin-
go Cardia, no show que Elba Ramalho fez no Canecão, Rio de
Janeiro, em 1999. “O show era a cultura nordestina de uma
maneira pop e esse tecido faz parte do imaginário brasileiro,
explica Gringo Cardia” (MELLÃO; IMBROSI, 2005, p. 191). “Eu
customizei a chita, bordando com lantejoulas e usando outros
recursos. Acho que o trabalho do cenógrafo é colocar no palco
uma coisa que as pessoas veem todo dia, mas de forma dife-
rente” (MELLÃO; IMBROSI, 2005, p. 191).

O tecido aparece, de forma previsível, em filmes que retra-


tam a vida no Nordeste. Em outros, porém, pode surgir de
forma inusitada, como na capa e no colete de Dom João VI

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(vivido por Marco Nanini) em Carlota Joaquina, dirigido por


Carla Camurati. Menos inesperado – mas extremamente
marcante – é o uso de uma colcha de chitão vermelho sobre a
cama onde Rodrigo Santoro travestido descansa, numa cena
de Carandiru, de Hector Babenco. Além do tubinho de chita
da novela Gabriela, o tecido tem suas fases sob os refletores
das novelas de cada dia. Em Celebridade, a figurinista Marília
Carneiro escolheu um conjunto de saia e top de chita da grife
carioca Afghan para compor uma baianinha estilizada e vestir
a atriz Deborah Secco. A novela Da cor do pecado, ambiente
entre Rio e São Luís (Maranhão), abusa do chitão em cenário
e figurino (MELLÃO; IMBROSI, 2005, p. 191).

Mesmo enquanto participava de movimentos artísticos


e revolucionários, a chita nunca deixou de colorir e enfeitar
os festejos que se espalham por todas as regiões deste país
imenso. “Nossas festas descendem do sincretismo e misci-
genação que faz a cara de nosso país: influências europeias
– predominantemente portuguesas –, indígenas e negras se
misturam sem o menor pudor ou cerimônia.” (MELLÃO; IM-
BROSI, 2005, p. 145). O tecido se faz presente em celebrações
religiosas como as festas juninas com seus vestidinhos roda-
dos e coloridos de quadrilha feitos de chita e chitinha; em atos
com origens folclóricas como o bumba-meu-boi maranhense
e a Folia de Reis; nas festividades carnavalescas e celebrações
com forte conteúdo social, político e também religioso, como
o maracatu, que representa a permanência e resistência da
cultura africana. Tais festividades representam a miscigena-
ção de várias culturas, a chita é o ícone que melhor traduz o
significado de brasilidade presente nestas celebrações folcló-
ricas. Aparecendo em todos os cantos, não importa o lugar em
que esteja ela simboliza a alegria, a simplicidade e a sensuali-
dade brasileira. Metaforiza o ambiente aconchegante que só o
brasileiro pode produzir. O floral atrai, o colorido vibra.

Chita, cultura e identidade


Entender o homem brasileiro que busca identidade em meio
a tantas culturas distintas em seu território pode ser possível
quando se olha para os símbolos que representam a sua brasi-
lidade, e como vimos, a chita fabrica um deles.
A chita destacou-se tanto no cenário brasileiro, que muitas
pessoas desconheciam sua verdadeira origem, e acreditavam

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 119
ser um produto originário do Brasil. É importante, então, refle-
tirmos sobre como um objeto estrangeiro se desdobra ao ponto
de ser considerado um ícone de nossa identidade nacional.
Nesse desdobramento, os processos de traduções culturais,
como definido por Burke (2003), são os trabalhos desenvolvi-
dos por indivíduos ou grupos para domesticar o que é “estran-
geiro” por meio de estratégias e de práticas sociais e culturais
que envolvem apropriações, adaptações e ressignificações. Pro-
cessos de tradução que desempenham múltiplas funções nas
formações das identidades culturais de grupos e na imagem de
nação. Logo, falar em identidade cultural-nacional significa re-
conhecer que se trata de uma problemática que lida com a per-
cepção de um grupo acerca de si mesmo, de sua história, de seu
destino e de suas possibilidades, refletido na sua forma de vida.
A identidade cultural está associada a quem somos e a quem
queremos ser, nos possibilitando decidir quais de nossas tra-
dições nós queremos continuar e quais não queremos: há uma
capacidade de filtragem das tradições; “nossa identidade não é
somente algo que nós recebemos; ela é ao mesmo tempo nosso
próprio projeto” (MAIA, 2009, p. 104).
Em vários contextos históricos desde o final do século
XIX, percebemos que a afirmação de nossa identidade tinha
a cultura popular como elemento simbólico fundamental. No
entanto, esse tipo de concepção caracteriza-se principalmente
na idealização romântica em associar à cultura popular a ideia
de tradições. “A cultura popular é heterogênea, as diferentes
manifestações folclóricas – reisados, congadas, folias de reis
– não partilham um mesmo traço em comum, tampouco se
inserem no interior de um sistema único” (ORTIZ, 1985, p.
134). Nesse novo momento, a Cultura, com maiúscula, é subs-
tituída por culturas no plural. O foco não é mais a concilia-
ção de todos, nem a luta por uma cultura em comum, mas
as disputas entre as diferentes identidades nacionais, étnicas,
sexuais ou regionais. A noção de cultura brasileira vem pro-
curando atualmente enfatizar as diversas matrizes históricas
de formação de nossa nacionalidade. Portanto, é corrente a
utilização do conceito no plural, ou seja, culturas populares,
uma vez que nossa formação é diversa.
Segundo Renato Ortiz (1985), a identidade cultural bra-
sileira está intimamente ligada ao conceito de mestiçagem,
ou seja, de misturas raciais e culturais. Essa mescla formaria
nossos próprios traços identitários, que se caracterizam no
próprio elemento de diversidade. Logo, poderíamos definir a
cultura brasileira como o produto da culturação de diversas

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

origens. “Ela decorre do sincretismo de diferentes manifesta-


ções que hoje podemos identificar como caracteristicamente
brasileiras, traduzindo-se num sentido que, embora nacional,
tem peculiaridades regionais” (ORTIZ, 1985, p. 93).
Assim, as culturas podem apresentar um conjunto de sím-
bolos, signos e imagens com os quais os indivíduos identifi-
cam-se, e possuem um sentimento de pertencimento, funcio-
nando como fonte de significados. Como acredita Hall (2006,
p. 76), “as identidades nacionais representam vínculos a lu-
gares, eventos, símbolos, histórias particulares”. Esta relação
de pertencimento, muitas vezes, materializa-se nos artefatos
produzidos na sociedade.
Sabemos hoje que a ideia de nação como identidade cul-
tural unificada é um mito. As nações modernas são híbridos
culturais, juntamente com seus artefatos, símbolos, signos e
imagens. O discurso da unidade ou identidade oculta as dife-
renças de classes, étnicas, religiosas, regionais e etc. Portanto,
não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade
de identidades, construídas por diferentes grupos sociais em
diferentes momentos históricos. Para além dos termos “mes-
tiçagem”, que se refere às misturas raciais, ou “sincretismo”,
mais relacionado com fusões religiosas, o autor Néstor Garcia
Canclini (2011) refere-se à pluralidade de aspectos culturais
como Hibridação cultural, que abarca distintas misturas in-
terculturais propriamente modernas. Assim, usa-se esse ter-
mo para descrever processos interétnicos e de descolonização,
processos que implicam o cruzamento de fronteiras, envol-
vendo fusões artísticas, literárias e comunicacionais.
Neste âmbito, compreendemos que toda identidade é
uma construção simbólica que necessita de elementos cons-
truídos historicamente e tomados como representativos; o
tecido chita faz-se presente em diversos processos de hibrida-
ção cultural, numa interconexão que vai da tradição à moder-
nidade. A história da chita, com sua origem do outro lado do
mundo, séculos atrás, desdobrou-se em diferentes processos
culturais, sendo por meio de toda sua carga simbólica de usos,
desusos e apropriações no Brasil, o ícone que melhor traduz o
significado de hibridação brasileira.
Outro ponto importante a ser destacado, é a estética do
tecido chita. Quando referimo-nos à estética, diz respeito
às características visuais das partes constitutivas do objeto,
como a cor, a linha, o tom, a textura, a dimensão, a propor-
ção, a forma e suas relações compositivas. Sobre a estética ca-
racterística do tecido, o autor Luz Garcia Neira (2012, p. 13)

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 121
comenta que: “[...] os tecidos floridos e coloridos de algodão
também são signos de uma brasilidade associada ao ambiente
tropical e a alegria do nosso povo, considerada, muitas vezes,
o caráter que nos identifica”. Faz-se necessário então, refle-
tirmos sobre nossa identidade ser fundamentada nos signos
da “natureza”. Conforme Ortiz (1985), no Brasil, natureza e
nação estão indissoluvelmente ligadas. A identidade nacional
está mais ancorada na natureza do que na história. Há um
sentimento generalizado que se orgulha mais da natureza, das
belezas naturais do meio ambiente, do que da história. Isso
é uma atitude cultural que se tornou visível no Romantismo
literário que predominou no século XIX e deixou marcas que
se estendem até hoje. Portanto, podemos compreender que
a associação de identidade cultural brasileira ao tecido chita
se dá tanto pela sua historicidade e hibridação quanto pela
reprodução da tropicalidade e da natureza estampada visual-
mente. Hibridação e reprodução que não deixaram registros
visuais sobre as apropriações e mutações das estampas, co-
res, texturas, limitando, assim, os conhecimentos da história
da estética do tecido. Todavia, hibridação e reprodução que
compõem a história da chita por meio de várias apropriações
e construções de sentidos para o consumo real e simbólico do
tecido como emblemático da brasilidade ou das tentativas de
criar uma identidade para a moda brasileira.
Nesse sentido, importa destacar que com a criação de um
mercado brasileiro de moda nos anos 1960, o tema da iden-
tidade da roupa brasileira se transformou em ideológico, no
sentido de procurar vender uma imagem de Brasil; de que as
vestimentas criadas por costureiros brasileiros se diferencia-
vam daquelas produzidas por europeus e norte-americanos.
Nas construções estéticas e discursivas, a brasilidade foi es-
tampada com os símbolos da beleza e da elegância do país e
das mulheres (BONADIO, 2014; NEIRA, 2008; SIMILI, 2014).

Uma festa de cores:


memórias de um tecido brasileiro
Definido o objetivo neste texto que é o de compreender as
relações entre Arte e Cultura por intermédio das narrativas
visuais do livro de literatura infantil, faz-se necessária uma
análise das características deste e suas particularidades.
O livro Uma festa de cores: Memórias de um tecido bra-
sileiro (2014) tem por objetivo narrar a história da chita, por
meio de falas em primeira pessoa e ilustrações que apresen-

122 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

tam às crianças a trajetória deste tecido tão presente no coti-


diano de nós brasileiros. Deste modo, para compreendermos
as representações imagéticas da obra, que se utilizam da lin-
guagem artística das ilustrações, é necessário tomarmos como
ponto de partida a imagem ilustrativa como via de acesso ao
conhecimento. Sabemos que as narrativas visuais são tão an-
tigas quanto o próprio homem, por meio delas o homem con-
tava e registrava os seus feitos cotidianos, desdobrando-se na
criação de símbolos gráficos abstratos que deram origem aos
fonemas, letras e, por fim, a própria escrita. Essa invenção,
embora espetacular, não excluiu nosso interesse pela
imagem, ao contrário, escrita e imagem são companheiras no
ato de narrar histórias: “Utilizar a imagem como instrumento
de linguagem foi – e ainda é – crucial para todos os grupos
culturais” (CASTANHA, 2008, p. 141).
É importante lembrar que estudamos ilustrações e não
imagens isoladas. Portanto, temos que considerar a relação
texto e imagem nos livros infantis, a qual pode variar con-
forme o propósito do livro. Segundo a autora Ciça Fittipald
(2008), há casos em que as ilustrações são projetadas a fim
de promover “descansos” do texto, para romper com a mo-
notonia da leitura. Além disso, há casos em que as imagens
permeiam alguns pontos do texto, destacando momentos
cruciais das histórias. Em outros casos, as imagens e textos
dividem igualmente o mesmo espaço do livro; e, por fim, te-
mos os casos em que a imagem é a condutora da narrativa,
com textos pequenos ou sem nenhum, onde a visualidade é
trabalhada também a partir de uma ferramenta semelhante a
um roteiro, que organiza as sequências de ideias imagéticas,
tornando possível a leitura e compreensão do livro; esse tipo
é o mais utilizado na literatura infantil, visto que as crianças
estão iniciando a sua alfabetização. Assim, a obra de análi-
se insere-se neste tipo de literatura, onde a forma pictórica
ilustrativa se apresenta como uma tradução das palavras, em
linhas, formas, cores e texturas, ressignificando a linguagem
verbal para a visual. Dessa forma, os significados do texto se
projetam sobre as imagens, assim como os significados das
imagens projetam-se sobre o texto.
A partir da ideia da presença da imagem como elemento
profundamente significativo, nunca e em nada passivo ou sim-
plesmente decorativo quando inserido numa página de livro,
nos propomos a analisar nas imagens os processos de signifi-
cação da chita na construção de imagens culturais para a narra-
tiva contada na obra. Para tanto, utilizaremos como referência

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 123
de leitura de imagens, os estudos do autor Feldman (1993),
que aponta quatro estágios a serem seguidos para a leitura da
imagem que, embora distintos, são interligados entre si e não
ocorrem necessariamente nessa ordem. São eles: descrição,
análise, interpretação e julgamento.
A primeira etapa, a descrição, refere-se a prestar atenção
ao que se vê e, a partir da observação, listar apenas o que está
evidente. Nesta etapa identifica-se, também, o título da obra,
o artista que a fez, o lugar, a época, o material utilizado, a
técnica, o estilo ou o sistema de representação, se figurativo
ou abstrato etc. Na segunda etapa, a análise, diz respeito ao
comportamento dos elementos entre si, como se influenciam
e se relacionam. Por exemplo: os espaços, os volumes, as co-
res, as texturas e a disposição na obra criam contrastes, seme-
lhanças e combinações diferentes que neste momento serão
analisadas. O terceiro estágio, da interpretação, é quando
procuramos dar sentido ao que se observou, tentando iden-
tificar sensações e sentimentos experimentados, buscando
estabelecer relações entre a imagem e a realidade, no sentido
de apropriar-se da primeira. No quarto estágio, o julgamento,
emitimos um juízo de valor a respeito da qualidade de uma
imagem e sua importância.
Portanto, selecionamos algumas imagens do livro para aná-
lise, a fim de responder: Como os elementos visuais comunicam
aos seus leitores características de brasilidades, a partir da histó-
ria de um tecido que fabricou uma história da cultura brasileira?
Nesta imagem, identificamos cinco círculos com a repe-
tição de um desenho de flor em seu interior, esquematizan-
do um diagrama que indica, por meio de setas, o processo de
estamparia da chita, desde seu desenho em preto e branco
no primeiro círculo até os outros que aos poucos vão sendo

Figura 1
Fonte: GOBEL; FRAGA
(2014, p. 12)

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

preenchidos por cores. No canto esquerdo, junto ao texto, há


também a figura de uma menina feita de recortes de chita,
com saia e adereço no cabelo de flor vermelha e algumas bolas
coloridas que circulam a imagem. Podemos observar, anali-
sando-as, que as ilustrações seguem a linguagem da colagem,
como dito anteriormente, com uma figuração estilizada e
círculos irregulares, nos dando a impressão de serem feitos
manualmente. O aspecto artesanal e a realização manual são
reforçados nas ilustrações, aproximando-se dessa linguagem
tão característica da cultura brasileira, presente nas rendas,
bordados, objetos, tapetes de palha trançada, crochês e etc.
Na interpretação da imagem, o que mais chama atenção é
a forma e a coloração do processo de estamparia do tecido. A
chita é composta em sua maioria por quatro cores fundamen-
tais: vermelho, azul, amarelo e verde, que preenchem a con-
figuração da flor com contornos em preto. As cores possuem
força e são ao mesmo tempo instáveis. Elas são capazes de de-
monstrar que a mesma parte em tonalidades diferentes não é
a mesma, e as sensações são distintas. A forma flor preenchida
pela cor vermelha se distingue da mesma forma flor colorida
de verde, por exemplo. Na chita vemos confirmadas as ideias
da psicologia das cores quanto à relação entre cor e sensação,
a alegria das cores, sua luz etc. Assim, suas cores nos trazem
sentimentos de nostalgia, de tradição, tropicalidade e de
identificação cultural.
A forma “Flor” em questão remete-nos à representação
floral irregular bidimensional, grandes ou miúdas, transcritas
para o tecido, com a finalidade prática de tampar imperfeições
deste. No entanto, as experiências que se formaram nas me-
mórias da chita fizeram com que as flores grandes ou peque-
nas ultrapassassem este sentido prático, ganhando vida, ou
seja, a observação estética da estampa a coloca no segmento
prático e utilitário, mas a sua simbologia ultrapassa a funcio-
nalidade. Segundo Arnheim (2006, p. 90):

[...] a forma sempre ultrapassa a função prática das coisas en-


contrando em sua configuração as qualidades visuais como
rotundidade ou agudeza, força ou fragilidade, harmonia ou
discordância. Portanto são lidas simbolicamente como ima-
gens da condição humana.

A forma como expressão visual traz para cada observa-


dor um significado distinto. Ao trazer para si a imagem, cada
expectador coloca na mesma suas impressões e experiências

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 125
subjetivas, na tentativa de decodificá-la. Quando o coletivo
começa a identificar a mesma forma ligada ao mesmo signifi-
cado, a configuração desta forma torna-se simbolismo. Assim,
a forma Flor da chita estampada no tecido, ultrapassa o signo
e se torna símbolo da brasilidade, uma vez que seu significan-
do é reconhecível a todos.
Ainda nesta ilustração, observamos a composição didáti-
ca dos elementos e a relação do texto com a imagem. A grafia
das cores primárias é contornada pelas cores corresponden-
tes, ressaltando a visualidade dos tons. Há também o resul-
tado das suas misturas, que são as cores secundárias, repre-
sentadas por paletas de cores logo abaixo da escrita. Portanto,
a imagem trabalha, além da visualidade, a correspondência
entre texto e imagem, de grande importância para a aprendi-
zagem e a compreensão da mensagem comunicada pela obra.

Figura 2
Fonte: GOBEL; FRAGA
(2014, p. 20)

Nesta figura, estão representados quatro personagens


sentados em volta de uma mesa coberta por uma toalha de
chita amarela de flores vermelhas, azuis e folhas verdes, com
uma bandeja de frutas ao centro. As figuras são vistas de cima,
numa perspectiva distorcida; e no canto direito podemos
identificar um bordado representando uma porta entreaberta
sobre um fundo salmão com textura e estampa de tecido flo-
ral. Na análise da composição pictórica, a ilustração faz uso

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

da colagem, que por meio da sua distorção trabalha a tridi-


mensionalidade. Esta característica compositiva é marcante
no Cubismo, que rompe com a perspectiva renascentista,
buscando não reproduzir o objeto de um único ponto de
vista, mas sim de diferentes ao mesmo tempo, buscando
a simultaneidade, em que o tridimensional é reduzido ao
plano. Além da referência ao cubismo, a estética do desenho,
com os personagens e a mesa voltados para cima, assemelha-
se aos próprios desenhos infantis, em que as dimensões
dos objetos representados não são as do mundo real, são
dimensões que obedecem as regras particulares da própria
criança e de como ela vê o mundo a sua volta.
No que diz respeito à interpretação da imagem, ela nos
traz a sensação do conforto de um lar, onde todos estão a mesa
compartilhando um momento familiar. Esta familiaridade e o
reconhecimento da chita a nós brasileiros é algo recorrente,
ela está presente em diversos segmentos, e principalmente no
nosso cotidiano, no dia a dia, na toalha de mesa de nossas ca-
sas. Aparentemente, pelo tecido estar intimamente associado
ao “gosto das gentes simples”, fica evidente a denotação que
acabou reverberando ao longo do tempo de “tecido de quali-
dade inferior” ou “tecido barato”, significados estes, atribuí-
dos à estampa chita, que foram os responsáveis por situá-la
como popular. No entanto, devido a sua grande popularidade,
a chita ultrapassou as conotações pejorativas ao longo do tem-
po, aparecendo na toalha de mesa, no forro de colchão e na
cortina das casas, sendo redimensionada para o consumo da
classe média alta, por meio da indústria da moda e do design,
que se apropriaram do “gosto popular” para o consumo e por
meio desta apropriação ela começa a fazer parte de todos as
esferas culturais e sociais.
No que diz respeito aos “gostos”, o autor Bourdieu (2007)
diz ser este um produto das experiências de vida de grupos e
indivíduos envolvidos com as práticas culturais, que são em
grande parte determinadas pela trajetória educativa e socia-
lizadora dos agentes. Assim, a formação do gosto é um pro-
cesso social e não fruto de uma sensibilidade inata. Portan-
to, podemos concluir que o gosto pela chita resultou de uma
construção social e histórica, numa relação de internalização
e reprodução de preferências estéticas e simbólicas.
É importante salientarmos ainda que as ilustrações rompem
com os estereótipos tão disseminados ao público infantil. O este-
reótipo pode ser considerado uma forma de representação rela-
cionado a processos de condensação, generalização, simplificação

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 127
e homogenização (GOMES, 2002). Ou seja, as crianças e adoles-
centes têm sua visualidade fortemente influenciada pelas ima-
gens da mídia, cópias e reproduções, que afetam sua imagina-
ção, assim, seus desenhos se arraigam a modelos padronizados,
limitando a expressão e a criação de imagens singulares e formas
inimaginadas. Portanto, tomando como exemplo a Figura 2 e as
ilustrações presentes na obra, podemos caracterizá-las como ex-
pressivas, criativas e artísticas, apresentando aos seus leitores e
leitoras novas possibilidades de criação de desenhos, com dife-
rentes linguagens compositivas.

Figura 3
Fonte: GOBEL; FRAGA
(2014, p. 28)

Na Figura 3, identificamos a imagem de uma mulher de


perfil, aparentemente em movimentos de dança, com turban-
te de flor, vestida com trajes coloridos de verde, amarelo e ma-
genta, floridos, tradicionais das festas populares nordestinas.
Além da indumentária há também o adereço de guarda-chuva
colorido, com flor de chita no centro e franjas circundando-o.
Ao lado da figura feminina, a imagem acompanha o texto e
abaixo estão representados três modelos de guarda-chuva, fi-
xados no plano de fundo, como se fossem bordados. Abaixo
estão linhas formadas por pequenos traços, como se fossem
costuradas, sob o fundo com textura de tecido, onde é pos-
sível visualizarmos suas tramas. É importante ressaltarmos
novamente os detalhes da escrita e dos bordados, que

128 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

contribuem para a relação estabelecida entre a temática


da obra e as próprias imagens, ou seja, o bordado, o fazer
manual está intimamente associado à ideia de artesanato,
ou seja, são técnicas aprendidas de geração a geração e con-
figuram em muitos lugares elemento de identidade cultural
comunitária ou regional. A imagem novamente é estilizada,
figurativa, utilizando-se da colagem e dos recortes na cons-
trução dos personagens ilustrativos. Nesta em específico, é
visível a influência da cultura africana, uma vez que a imagem
representa uma mulher negra, com seu traje típico, usado em
celebrações religiosas e culturais, como é o caso do Carnaval e
do Maracatu pernambucano.
Na interpretação da imagem, é visível que há a apropria-
ção do estilo indumentário das mulheres baianas, com seus
trajes típicos usados desde o período colonial até atualmente.
Produção e reprodução de sentidos para a brasilidade das
mulheres negras e baianas amalgam a imagem. Nessas cons-
truções, as indumentárias aproximam e diferenciam os seg-
mentos femininos regionais e nacionais, tais como as baianas
de Salvador; aquelas do Carnaval e do Maracatu.
Um importante ponto a ser destacado é a apropriação
das vestimentas baianas por Carmem Miranda, uma cantora
que representou o Brasil no exterior, tornando-se símbolo de
nossa identidade nacional. Em seu figurino, Carmem Miran-
da esbanjava sensualidade, selecionando peças do vestuário
das baianas e acrescentando outros: fios de contas no pesco-
ço, o abdômen nu, o uso de cores vistosas e um turbante com
duas cestinhas cheias de frutas. As alterações das vestimentas
feitas pela atriz, não se deve apenas pela sua excentricidade,
mas tinha a ver com a própria brasilidade, com sua natureza
colorida, não devia se representar o Brasil com vestes brancas,
como as baianas faziam. O colorido associado à natureza, ao
Carnaval, e a toda diversidade étnica da nação, representava
muito mellhor o Brasil do que o branco. A baiana, como o pró-
prio nome diz, não deixou de ser uma figura regional, mas as
alterações feitas por Carmem Miranda deram a ela a possibili-
dade de ser uma figura nacional (KERBER, 2005). Portanto, na
ilustração podemos observar que as vestimentas puramente
brancas das baianas também foram modificadas, assim como
a da atriz Carmem Miranda, foram sobrepostas cores vibran-
tes, recortes florais de chita, na tentativa de se resgatar a iconi-
cidade das baianas e a brasilidade do tecido de chita.
Além da imagem da personagem, o texto faz referência a
festas populares: O Carnaval e o Maracatu Pernambucano. A

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 129
chita, com seu valor de compra acessível para as camadas da
população de menor poder aquisitivo e sua alegria evocada pe-
los florais de intenso colorido, fizeram dela a representação da
própria alegria festiva, espalhando-se nos figurinos dos festejos
do nosso imenso território. Conta-nos Mellão e Imbrosi (2005)
que já na primeira capital da República, onde estava a maior
população negra do país após a Abolição da Escravatura, o car-
naval de rua se vestia de chita. Os festejos carnavalescos são
comemorados em praticamente todo o Brasil e exibem em seu
bojo uma multiplicidade de manifestações culturais que são
capazes de movimentar, num mesmo momento, tantas ma-
nifestações artísticas diferentes. Uma dessas manifestações é
ação performática do Maracatu, que representa a permanência
e resistência da cultura africana. Tais festividades caracterizam
a miscigenação de várias culturas, a chita é o ícone que melhor
traduz o significado de brasilidade presente nestas celebrações.
Pode-se dizer então que a indumentária é um dos elementos
fundamentais de tais festas e que colabora profundamente para
a visualidade do espetáculo, como objeto cênico emblemático
capaz de compor e materializar personagens.
Assim, no que diz respeito ao juízo de valor, a imagem traz
para seus leitores diversos elementos de interculturalidade, de
extrema significância para nossa compreensão sobre a diversi-
dade das manifestações artísticas e culturais do povo brasileiro.

Figura 4
Fonte: GOBEL; FRAGA
(2014, p. 29)

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

A Figura 4 apresenta-nos a imagem bidimensional de um


personagem característico das festas folclóricas nordestinas.
Aparentemente uma figura masculina, com turbante verme-
lho com ramos de flores, vestindo um traje cênico de cor ver-
de com recortes de flor de chita vermelha, que leva à frente a
figura de um animal, representando o personagem folclóri-
co do Bumba meu boi. A figura está em movimento, fazendo
acrobacias com bolinhas e festejando. O plano de fundo da
ilustração é de tecido magenta com variações mais claras e
manchas brancas. Novamente a imagem trabalha com a figura
humana estilizada e de perfil, com a técnica da colagem para
compor a figuração, no entanto, as hachuras do personagem
e a coloração em preto assemelha-se muito a linguagem da
xilogravura. É importante salientarmos esta linguagem artís-
tica na produção da Literatura de Cordel nordestina, uma vez
que esta é uma herança cultural de grande valor para o Brasil
e principalmente para o Nordeste, onde suas raízes estão fin-
cadas. É uma literatura que contribui para o enriquecimento
não só da história, como também da arte, da música, entre
outras manifestações culturais nordestinas, além de ser carac-
terizada como um forte elemento de identidade regional.
Interpretando a imagem, é evidente a associação ao fol-
clore e à cultura popular nordestina. Segundo os autores Zu-
con e Braga (2013, p. 76): “Desde o final do século XIX, muitos
estudiosos no Brasil e no mundo, manifestavam preocupa-
ções com o registro de tudo o que fosse considerado folcló-
rico”. Para o autor, nesse período temia-se que as práticas
populares tradicionais entrassem em decadência pelo conta-
to com a cultura urbana e industrial. No entanto, por meio
dos estudos dos antropólogos e dos folcloristas no decorrer
dos anos, vimos que esta concepção está ultrapassada. Nesta
perspectiva, Canclini (1998) defende que, apesar da cultura
de massa – industrial ser ameaça às culturas tradicionais, ela
não as dominou, mas hibridizou as mesmas. A cultura po-
pular é pensada pelo autor, como o espaço em que o massivo
e o folclórico hibridizam-se. Nesta linha de pensamento, as
manifestações populares ocorrem no bojo desta hibridação, e
sua própria essência traz essa característica. Exemplo disto, as
festas populares mencionadas na imagem: Carimbó paraense
e o Bumba meu boi maranhense.
O Carimbó é uma das manifestações culturais presentes no
Estado do Pará. Trata-se de grupo formado por homens e mu-
lheres que dançam, cantam, e tocam o carimbó. Segundo Cas-
cudo (1980), a palavra carimbó é fruto da junção das palavras:

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 131
“curi – madeira – e imbó – ôca”. Esta palavra designa o instru-
mento de percussão do carimbó e a própria dança. O carimbó,
assim, seria uma derivação do batuque trazido pelos negros. De
acordo com Salles (1969, p. 281), este ritmo seria o “gerador da
imensa variedade do carimbó, talvez a principal dança africana
ainda possível de se observar e estudar na Amazônia”. A vesti-
menta das mulheres inclui conjuntos de saias longas rodadas
e muito coloridas de chita e blusas que exibem os ombros e o
pescoço, confeccionadas com rendados, em geral de uma só cor.
Os cabelos são enfeitados com uma rosa em um dos lados. Há
também o uso de acessórios como pulseiras e colares coloridos
que dão muitas voltas no pescoço e vão até a altura do umbi-
go. Os homens usam um lenço vermelho no pescoço, calças de
uma só cor e camisas de mangas compridas tão coloridas quan-
to as saias das parceiras. As camisas são amarradas na cintu-
ra. Homens e mulheres dançam descalços. Para o antropólogo
Salles (1969), o carimbó também constitui-se com a influência
indígena, em elementos como a coreografia, música e versos,
sendo considerado na Amazônia a manifestação mais evidente
resultante do contato de etnias e culturas.
O Bumba meu boi, de acordo com Mário de Andrade
(1982), é uma dança dramática, derivada do misticismo, mas
que em seu contexto histórico mantém a religiosidade numa
mistura de sagrado e profano, impregnada pela memória das
culturas ibérica e moura. Nota-se na manifestação a associa-
ção ao cênico, mímicas, danças e jogos construídos com rou-
pagens e máscaras, ou seja, a estrutura do bumba meu boi,
que condensa um enredo desenvolvido de forma dramática e
coreográfica em torno do tema central da morte e ressurreição
do boi. A cena é composta por vários personagens, animais e
figuras míticas, que provavelmente evoluíram das antigas his-
tórias europeias, o que faz supor sua forma de representação
por meio do improviso e de acrobacias.
Segundo a autora Moura (2010), na construção do perso-
nagem, o couro do boi, como é chamada a indumentária do
brincante que faz dançar o boi, pode ser comparado a uma
máscara de corpo inteiro, confeccionada em veludo com apli-
cação de bordados e ajustada a uma armação de madeira. Os
bordados seguem a tradição artesanal, ricamente elaborados
com miçangas, lantejoulas e contas, e sua linguagem plástica
detalha paisagens, cenas históricas e santos com riqueza de
detalhes. Essas imagens sagradas: figuras de santos, passagens
bíblicas, ou profanas como o brasão do Maranhão, a bandeira
do Brasil, podem apresentar ornamentação de flores em torno

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

do bordado central. De qualquer modo as indumentárias re-


presentativas dessa dança dramática expressam nítida mistu-
ra étnica, incluindo elementos medievais, orientais, africanos
e indígenas, o que se ilustra, por exemplo, pelo uso de tecidos
como o veludo e a chita. Sobre as vestimentas, a autora Moura
(2010, p. 101) comenta que:

A indumentária como produto da cultura popular brasileira


e até certo ponto mediadora de signos e representações, ima-
gens e imaginário do contexto em que está inserida. Consi-
dera-se que na festa popular os trajes expressam linguagem
simbólica que transcende o valor funcional da roupa, sobre-
tudo quando propõem a construção de personagens, sinali-
zam valores culturais ou relações com o corpo pela ornamen-
tação, fantasia e teatralização.

Assim, a estampa chita pode ser considerada símbolo


desse hibridismo da cultura de massa com a folclórica. Ela, a
chita, que sempre esteve presente nos rituais folclóricos e re-
ligiosos da cultura popular, não aparece somente com aspecto
funcional, de vestir, mas, como símbolo de alegria, tradição e
iconicidade brasileira. Portanto, podemos concluir que a ima-
gem ilustrativa, enquanto mediadora de conhecimento para
seus leitores, traz em sua totalidade uma riqueza de detalhes
e associações em que a cultura brasileira é o foco.

Figura 5
Fonte: GOBEL; FRAGA
(2014, p. 32)

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 133
Na Figura 5, identificamos novamente a figuração hu-
mana, na imagem feminina feita de recortes. Com chapéu de
chita, cabelos loiros e vestimentas simplificadas florais. Há
também linhas costuradas que representam um globo, com
a delimitação dos continentes. A personagem posicionada à
esquerda, no primeiro plano, ocupa uma grande parte da pá-
gina, destacando-se na imagem ilustrativa. O plano de fundo
segue o mesmo padrão, feito de tecido floral salmão, com suas
tramas visíveis. A composição da imagem é feita por meio das
colagens, que simplificam as formas corporais, estilizando-as.
Interpretando a imagem e relacionando-a ao texto narra-
tivo, a personagem em específico aparenta estar em um país
tropical; suas vestes são leves, florais, coloridas e o uso do
chapéu indica a sensação térmica elevada. Ela representa o
olhar do estrangeiro ao Brasil, a democratização da moda e da
cultura. Referente à moda, por meio dela é possível apreen-
der fatos de uma época, bem como perceber na sua linguagem
não verbal, de tecidos e estampas que constituem as roupas e
o trajar, os aspectos culturais em determinado tempo e espa-
ço. Assim, desde o século XIX, mais precisamente no século
XX, percebemos que a identificação e a divulgação da moda
brasileira para o estrangeiro era associada a nossa condição
tropical. Segundo Pedrosa (1998), no Brasil tudo o que indi-
cava primitivismo, romantismo, selvagismo, isto é, no fundo,
exotismo, tinha muito mais interesse e era desejado pelos
estrangeiros. Podemos acrescentar que, como imagem, todo
o universo de cores também era associado a esse conceito, e
desfrutava de um grande apelo midiático. Logo, o que se en-
tende é que as características plásticas das estampas brasilei-
ras, embora muito similares as suas concorrentes estrangeiras,
puderam coincidir com um discurso de brasilidade.
Sendo assim, podemos caracterizar o tecido chita apro-
priado na ilustração, como um elemento que mantém uma li-
gação direta com a noção de brasilidade, e por meio da globa-
lização, da publicidade, dos meios de comunicação e do apelo
midiático, ela desfila nas passarelas e é inserida na indústria
da Moda. Como já mencionado, Zuzu Angel, estilista da dé-
cada de 1960, e o próprio autor do livro em análise, Ronaldo
Fraga, são exemplos de estilistas brasileiros que utilizaram as
chitas em suas coleções de roupas e fizeram grande sucesso
para o público estrangeiro.
No entanto, mesmo com o caráter de efemeridade das cole-
ções de moda, a estampa chita continua a ter seu próprio valor,

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dentro ou fora da moda. Ela possui identidade própria. Ela não


se perde em coleções guardadas esperando o próximo chama-
do da moda. A chita continua seu caminho de ícone brasileiro
mesmo se a moda não a requisitar. Assim, a imagem se torna
muito importante, apresentando aos seus leitores e leitoras in-
formações sobre moda e globalização na modernidade.
Portanto, por meio da análise do livro em sua totalidade
imagética e discursiva, consideramos que estavam registrados e
comunicados nas apropriações do tecido chita para as visualida-
des, os signos e símbolos da cultura brasileira em suas diferentes
interfaces, registrando as culturas populares, a modernidade e
vivências cotidianas. Por meio desta operação, revelamos como
o emprego da chita na criação das imagens educa as subjetivi-
dades e sensibilidades dos seus leitores, no sentido de valorizar
a cultura, de entender o papel da arte na linguagem das ilustra-
ções, como produtores de significados e conhecimentos.
Logo, o papel que tais ilustrações desempenham não se li-
mita apenas em apresentar a história da chita como realidade,
mas de articular e colocar em cena a diversidade de sentidos e
significados por meio de uma linguagem artística. A arte con-
tinua sendo imprescindível nos projetos da cultura, porque
quando produzida a partir de uma profunda imersão nesta,
traz um diferencial em relação aos outros tipos de imagens.
Concordo com Deleuze (1999) quando reconhece que a arte,
diferente das demais produções, materializa atos de resistên-
cia, de desobediência e de rejeição ao discurso vigente. A arte
pode ser vista como uma materialização das possíveis ruptu-
ras nas continuidades históricas no presente.

Considerações finais
Por toda esta carga artística, cultural e simbólica, a estampa
chita foi digna deste estudo. Sua memória deve ser constante-
mente resgatada e trabalhada para que se possa ter outro olhar
sobre a cultura brasileira. Com este intuito, a pesquisa, tendo
como suporte a Literatura infantil focalizando em ilustrações
como narrativas visuais; e como principal elemento imagético
a estampa chita, provoca através de sua estética a nostalgia e
resgata as raízes simbólicas e híbridas de nossa cultura. Na
Literatura, Macabéa e Gabriela também vestiram chita. Talvez
como uma tentativa de caracterizar a alma do povo brasileiro,
dar lhe cor e forma. É como se a estampa chita pudesse afir-
mar conceitos, fazer verossimilhanças ou lutar contra tabus
e conceitos preestabelecidos (SILVA, 2010). Face ao exposto,

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a utilização da chita nas narrativas infantis contém fios que
“tramam contextos, alinhavam histórias, arrematam elos de
nossa cultura” (CHATAIGNEIER, 2006, p. 11).
Portanto, por meio da pesquisa, consideramos que as
diversas referências culturais formam um “tecido” de fun-
damental importância para pensarmos nossas identidades.
Embora muitas vezes nos deparemos com a noção de que os
objetos tradicionais são restritos às manifestações folclóricas
e às culturas populares, tentamos demonstrar que estão ar-
raigados de forma efetiva aos nossos modos de fazer, vestir,
celebrar, fazendo parte, conscientemente ou não, do dia a dia
do brasileiro. Mesmo na modernidade, as formas de expres-
sões tradicionais estão muito vivas, exemplo disso se constitui
o tecido Chita, que se adaptou à dinâmica das transformações
modernas, assimilando o novo e sendo apropriada e apre-
sentada de diferentes formas, sem perder sua força. Quando
compreendemos que cada grupo social tem suas dinâmicas
culturais, e que nossas próprias referências são conceitos
construídos historicamente, sabemos que um único artefato
possui em sua singularidade um sistema cultural simbólico,
com significados particulares.

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Recebido em: 31/01/16


Aceito em: 06/05/16

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 106-139, jul-dez 2016

Ivana Guilherme Simili


ivanasimili@ig.com.br
Fez a graduação, o mestrado e o doutorado em História, na Univer-
sidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp-Assis. É
professora associada da Universidade Estadual de Maringá. É professora
do programa de pós-graduação em História (PPH-Uem), na linha de
pesquisa Fronteiras, Populações e Bens Culturais.

Priscila Barbeiro
priscilabarbeiro@hotmail.com
Graduada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Maringá-PR.
Realizou pesquisas de iniciação científica na área de arte e cultura, com
foco no ensino intercultural e na estética do cotidiano.

Ivana Guilherme Simili e Priscila Barbeiro. Flores, cores e formas: o Brasil estampado de chita 139
Pedagogias culturais e conhecimentos
escolares: interpelações à educação
contemporânea

Odailso Sinvaldo Berté


Raimundo Martins

Resumo

Este artigo busca problematizar modos como as pedagogias


culturais estão relacionadas aos conhecimentos escolares. Em
consonância com diferentes pesquisas do campo da educação
da cultura visual, o texto articula argumentação teórica
que aproxima as perspectivas das pedagogias do prazer, da
pergunta e do conflito. Fundamenta proposições pedagógicas
que avancem da valoração crítica da cultura para considerações
sobre o corpo, as experiências, os afetos, as práticas de uso
Palavras-chave:
Pedagogias culturais, corpo,
de imagens e os artefatos culturais com o intuito de articular
conhecimentos escolares formas criativas e emancipadoras de ensinar-aprender.

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Cultural pedagogies and school knowledge:
questions to contemporary education

Odailso Sinvaldo Berté


Raimundo Martins

Abstract

This article aims to discuss the ways in which cultural


pedagogies are related to school knowledge. In line with
different research of the visual culture education field,
the text articulates theoretical arguments that approach
the pedagogies of pleasure, question, and conflict. It
grounds pedagogical proposals that advance from a critical
assessment of culture to considerations about the body,
experiences, affections, practices of image’s uses and cultural
Keywords:
artifacts in order to articulate creative and emancipatory Cultural pedagogies, body,
forms of the teaching-learning processes. school knowledge

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 140-165, jul-dez 2016 141


Pedagogías culturales y conocimientos
escolares: cuestionamientos a la
educación contemporánea

Odailso Sinvaldo Berté


Raimundo Martins

Resumen

Este artículo busca problematizar de qué forma las pedagogías


culturales están relacionadas a los conocimientos escolares.
De acuerdo con diversas investigaciones en el campo de
la educación cultural visual, el texto articula argumentos
teóricos que aproximan las perspectivas de las pedagogías
del placer, de la pregunta y del conflicto. Y, fundamenta
propuestas pedagógicas que vayan de la valorización crítica de
la cultura a consideraciones sobre el cuerpo, las experiencias,
los afectos, las prácticas del uso de imágenes y los artefactos
Palabras-clave:
Pedagogías culturales, cuerpo,
culturales, con la intención de articular formas creativas y
conocimientos escolares libertadoras de enseñar-aprender.

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The contemporary setting


Modern-day education has been constantly lagging behind,
whether regarding its teachers and students, the physical
structures and public spaces in which educational processes
take place, the structure of educational policies and curricula
or the pedagogical procedures involved in the teaching-
learning relationship. Being a teacher is no longer considered
a dream, a calling or a life plan to be pursued; becoming a
football player, for instance, seems to warrant much more
profit and respect. We have watched appalling scenes through
the media, such as the episode which took place in Curitiba,
Paraná state, in April 2015. When protesting for their rights,
teachers were violently repressed by the police, under the
authority of government officials. We have also seen several
episodes of students hitting teachers and classmates or
damaging school property, which often finds itself in a critical
state due to budget misappropriation or cuts.
The present-day educational setting in Brazil does not seem
encouraging or stimulating. On the contrary, it is disappointing
to such an extent that it becomes alarming. We start off this
reflection by establishing, albeit broadly, such drawbacks and
circumstances, not aiming to discourage those who decide
to invest their knowledge and efforts in this field, but to raise
their awareness. Despite the problems found in the educational
scenario, we can safely say that it remains a fertile ground for
challenges and for changes to be brought about by individuals
who still believe and hope that education may contribute to a
better world. We emphasize the importance and the need for
the field of qualitative research to reflect on these realities.
This is what researchers (AGUIRRE, 2009; 2011; BERTÉ, 2015;
MARTINS, TOURINHO, 2014; SÉRVIO, 2015) have been doing

Odailso Sinvaldo Berté e Raimundo Martins . Pedagogias culturais e conhecimentos escolares (...) 143
in the field of visual culture and its intersections with other areas
of knowledge. On this assumption, we chose, in this article, to
share theoretical reflections based on different investigations
conducted in such perspective.
The school may be regarded as a second home where
children, teenagers, and even adults spend a considerable
amount of their time. Society still relies on the school’s
responsibility as a place that instructs and forms individuals
for social life, for the job market, for civic participation, for
decision-making, and for taking up critical viewpoints.
Towards achieving that, the school organizes a series of bodies
of knowledge, practices, and procedures that are considered
appropriate for educating individuals who attend it daily in
their search for knowledge. The curriculum is viewed as the
main tool to list, organize, and pass on the school knowledge
required forthedevelopmentand training of its individuals – the
students. However, even though this may sound obvious, it is
important to remember that students are not empty, passive,
or inert when they start attending school; rather, they are
available and open to acquiring school knowledge.
Individuals – in this case, students – are not a “tabula
rasa” (PINKER, 2004), a blank sheet, an empty and harmless
vessel-like body, predisposed in such a way that the school,
its pedagogies, and teachers pour over and inscribe in them
summaries, formulas, and contents that are organized and,
therefore, considered appropriate for their education. Despite
sounding obvious to some and strange to others, education
deals with bodies, and, by stating this, we are not only referring
to dancing, drama, and physical education lessons. As hooks
(2001, p. 115) claims, “[some] individuals enter the classroom
to teach as though only the mind is present, not the body”1
2
– a legacy of the body versus mind dualism established in
the early days of modernity –, without accounting for the fact
that it is bodies attending the classroom, bodies which think
and feel. Bodies which, even though most of us have ignored
or not reflected on the issue, may be viewed as mediums
of information, images, and knowledge that educate them
outside school grounds.
According to Greiner and Katz (2001), when certain pieces
of information and images are presented and divulged by mass
media forms such as television, radio, newspapers, Internet,
etc., the immediate result is their rapid propagation. By
perceiving the body as a form of media or mediation, Greiner
and Katz (2001) argue that the information which reaches it

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or with which it establishes contact contribute to its design,


to its way of being, acting, thinking – in other words, such
information (trans)forms and changes the body, (re)designing
various interface forms. Through these processes, the authors
claim that the human body may be regarded as an example,
a media form for seeing itself and for thinking about these
constant interactions. Katz and Greiner (2005, p. 130) bring
forth the concept of mediabody, according to which the body
is not simply a means of conveying or receiving information
“because every piece of input information begins a negotiation
with the information that is already there.”3 The body selects
and reconstructs the information with which it relates in its
living environment. In this relationship with the environment,
the body constructs itself and is also constructed and, as society,
culture, and context affect it, it also affects them through
the ways in which it reacts, reconstructs, responds or resigns
itself. Therefore, we may view the body as a media form of the
processes and information which comprise it.
In agreement with Katz’s (2010, p. 126) arguments, we
believe that the notion of body as a biological organism, on
which culture and, in this particular case, the school inscribe
their traits, may be challenged by the concept of mediabody,
given that the latter “dismisses the idea that first the body is
formed and only then it begins to deal with the social features
of its surroundings.”4 For Katz (2010), the idea of inscribing
carries the possibility of acknowledging a natural body before
a cultural body, because that which can be inscribed – history,
culture, education – requires the prior existence of the location
– the body – on which to be inscribed. Still in line with Katz,
we challenge the idea that there exists a body ontologically
different from the culturally constructed body. According to
Katz (2010, p. 127), “the Mediabody Theory proposes the non-
existence of the body outside of culture, [given that] body and
environment determine each other.”5 Hence it is both possible
and necessary to understand that the body – a subject at the
same time natural and cultural – constructs itself and is
constructed in the movements between nature and culture.
When mediabodies first attend school and find themselves
within a classroom, they are neither empty nor passive but,
rather, impregnated by affections, artifacts, and situations
which are already a part of them. Even if, in certain contexts
based on modernist pedagogies, the school and its curriculum,
pedagogies, and teachers ignore such a fact, the elements that
make up the mediabody are not wiped out once the classroom

Odailso Sinvaldo Berté e Raimundo Martins . Pedagogias culturais e conhecimentos escolares (...) 145
door is closed and the learning of school knowledge begins.
School knowledge faces information and knowledge which
mediabodies – students – already possess and carry with them.
Thus, a negotiation process is set in motion between school-based
information and knowledge, on the one hand, and, on the other,
all that the students already know, have already seen and learned
outside school, in other spaces and institutions or through the
media. Reconstructions, doubts, and values emerging from such
negotiations gradually (trans)form the mediabodies – students –,
individuals involved in the educational process.
The school, together with its values and problems, is
one among a number of spaces that educate mediabodies.
Our intention is not to diminish its importance in educating
individuals, but to foster discussions and to endorse educational
processes that do not exclude the body and its range of affections
and knowledge constructed and acquired outside the school.
We wish to think of ways through which education may perceive
the individual/student/body in its entirety, considering its
vital relationship with the environment/context/culture – the
reference scope for school knowledge.

School knowledge
School knowledge as presented in the curriculum is not a set
of extraterrestrial pieces from another dimension. It comprises
curricular elements derived from social, historical, and cultural
settings that act as supporting references. These settings are
local, a part of the environment in which individuals live and
work, and contribute, directly or not, to the existence and
organization of such knowledge. As highlighted by Moreira and
Candau (2007), school knowledge is one of the curriculum’s
major elements, and learning it is an essential factor for socially
produced bodies of knowledge to be acquired, critiqued, and
reconstructed by students.
In line with Moreira and Candau (2007), we understand
that education is capable of providing students with school
knowledge that may help them to take charge of their daily
lives, to understand their realities, and broaden their cultural
universe. Education is an arena of experiences that contribute
to training independent, critical, and creative individuals that
are capable of promoting transforming actions. For Moreira
and Candau (2007, p. 22), “such processes necessarily interact
with disciplinary knowledge as well as with other forms of
socially constructed knowledge.”6 For these authors, “school

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knowledge” is a construct of the educational environment, a


set of bodies of knowledge “produced by the school system
and by the broader social and economic context”7 (2007, p. 22).
Such production of knowledge does not stem from an extra-
human dimension; instead, it is generated amid relations
of power, capital, interests, and bodies of knowledge which
bring together the school, the university, the church, and other
institutions within the sociocultural scenario.
Also according to Moreira and Candau (2007),
school knowledge derives from bodies of knowledge that
are socioculturally produced within what is known as
reference scopes: universities; research centres; job market;
technological developments; sporting and physical activities;
artistic production; various forms of civic participation; social
movements. In this sense, the school itself, as an institution
and a setting also belonging to the sociocultural context, is
a space within which its body of knowledge, together with
others, may be (re)formulated.
The reference scopes of school knowledge are part of the
environment that constantly affects the body and is affected
by it. In the teaching-learning relationship, at school or at
university, such knowledge should not be approached or
treated as unearthly reasoning, as rationalizations stemming
from spaces that are disconnected and even opposed to bodies.
Rather, as elements originated from the same environment/
context/culture as those of the body, they should confirm this
relationship which already exists within bodies’ framework of
experiences. The modernist aura which furnishes knowledge
with rationalizations, reasoning, abstractions, formulas,
measurements, and conceptualizations drives it away from
bodies, from their affections and environments, as if it did not
belong to them, but instead to a world of ideas far away from us.
The educational model devised in modern times – a science
based on quantifying, measuring, and abstractly representing
things via concepts and measurements which emerged
during the Renaissance period, in the 15th century – began
to characterize the relationship between bodies and the
world, the ways to build up knowledge (epistemologies) and
the means to educate bodies (pedagogies). Following the
argument proposed by Duarte Júnior (2010, p. 110), modernity
gradually abandoned the body by replacing data collected by
the human senses, by subjecting past experiences to laboratory
validity, and hence by denying the fact that “the body knows
about the world before the mind has a chance to turn it into

Odailso Sinvaldo Berté e Raimundo Martins . Pedagogias culturais e conhecimentos escolares (...) 147
signs representing things, situations, and relations.”8 School
knowledge, derived from sociocultural reference scopes, has
been stratified, classified, and separated from its context to
such an extent that, when approached or taught, sounds like
something from another planet.
Even though the curriculum is sometimes fetishized,
i.e. as if possessing extraordinary, transcendental, magic
powers from supernatural and superhuman sources that
enable it to perform miracles and feats, according to Silva
(2003), it is by no means a talisman. It is a socioculturally
established instrument that internalizes typically human
conflicts, powers, and interests. To quote Silva (2003, p. 10):
“the curriculum embodies the links between knowledge,
power, and identity.”9 The author explains that curriculum
policies define roles for teachers and students, the ways
these individuals relate to each other, as well as which valid
bodies of knowledge can verify whether learning has taken
place, all leading to “a process which includes certain forms of
knowledge and individuals whilst excluding others”10 (Silva,
2003, p. 11-12). Silva’s critique exposes ways in which school
knowledge expressed by the curriculum may value certain
contents, situations, contexts, and individuals over others.
This article proposes the following questions: if school
knowledge stems from reference scopes that make up the vast
sociocultural environment in which bodies and organizations
coexist and confront each other on a daily basis, to what extent
may it consider and relate to forms of knowledge established in
the contexts of cultural pedagogies? How can this dialogue help
to enhance students’ critical and creative thinking when faced
with the complexities of their sociocultural environment?

Cultural pedagogies
Slandered and often feared in certain educational environ-
ments, cultural pedagogies parade freely through many spaces,
contexts, and routines without asking for permission or autho-
rization from schools, universities or other institutions. These
pedagogies are present in the lives of children, teenagers, and
adults in highly engaging, effective, and affective ways.

Through the considerable economic and technological re-


sources they mobilize and their – generally – commercial
purposes, they [cultural pedagogies] come forth, unlike the
academic and school-based curriculum, in a seductive and

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irresistible way. They appeal to emotion and fantasy, to drea-


ms and the imagination: they mobilize an affective economy
[...]. The sheer force of such an investment on affection and
emotion is precisely what makes their “curriculum” such a
fascinating object.11 (SILVA, 2007, p. 140).

Comprising the vast multimedia apparatus of cultural


pedagogies are soap operas, films, programs, websites, social
networks, advertisements, images of various sources and
formats, characters, artists, celebrities, products like CDs
and DVDs, application programs, electronic devices, clothes,
accessories, and several other types of artifacts. In their
complexity, cultural pedagogies are not aimed solely at children
and teenagers, but affect different social and cultural groups,
contexts, and individuals. From a pedagogical point of view, as
stressed by Silva (2007, p. 140), “it is not simply a question of
information or entertainment”12, but, in both cases, of forms of
knowledge which influence people’s behaviour in crucial and
even vital ways.
Steinberg and Kinchloe (1997, p. 17) highlight that cultu-
ral pedagogy

[...] refers to the idea that education takes place in a variety of


social sites which include, but are not limited to, schooling.
Pedagogical sites are those where power is organized and deployed,
including libraries, TV, movies, newspapers, magazines, toys,
advertisements, video games, books, sports, etc.13

Steinberg and Kinchloe (1997) claim that education, far


from being restricted to the contours of the school as an insti-
tution, spreads through vast and complex cultural scenarios.
In sites where power relations are organized and brought to
the fore, such relations being different ways of influencing bo-
dies, particular forms of teaching i.e. pedagogical situations
arise. Steinberg and Kincheloe (1997) problematize a kind
of “cultural curriculum” through which cultural pedagogies
act, forming identities and producing as well as legitimating
forms of knowledge. Religious, political, and commercial ins-
titutions – the school ranking among them – share this bro-
ad cultural curriculum which strives to influence and seduce
bodies through different strategies, discourses, and images.
Kincheloe and McLaren (2010) reflect on how certain studies
often consider cultural production as a form of education. In
these studies, significant emphasis is given to the media, to

Odailso Sinvaldo Berté e Raimundo Martins . Pedagogias culturais e conhecimentos escolares (...) 149
social networks, to television, to product commercialization
and consumption, to marketing and advertising, to images and
their strategies of power, oppression, control, and domination.
Though we do not dismiss the ensuing implicit and explicit
power relations, we believe that such a critique fails to stress the
dominant and domineering roles played by institutions like the
school, art, the church, and politics (parties and governments)
through old and new ways to manoeuver, terrorize, abuse,
violate, dichotomize, and discriminate bodies and their various
forms. Little is said about perverse forms of cultural pedagogy,
i.e. castrating, elitist, and dominant forms bred by high culture,
because the media, the Internet, images, and popular and mass
culture have become the order of the day.
Given our understanding that cultural pedagogies go beyond
all that is popular and mass-oriented, an understanding in line
with Aguirre’s (2009, p. 165), we consider cultural pedagogy “a set
of formative contents which are not managed by the standard
means of formal education, but basically by mass media.”14 Like
Aguirre, we have come to perceive just how much the school and
other established institutions abominate these cultural contents
which currently instruct “ethical and aesthetic values in our
young people”15 and reveal to the juvenile imaginary the extent to
which school and life are distant scopes “which turn their backs
on each other”16 (AGUIRRE, 2014, p. 165).
Aguirre (2014, p. 250) points out that cultural pedagogies
may include not only products, images, and artifacts that are
commercialized and consumed, but also “practices of cultural
production”17 that may be visual, narrative, poetic, popular, ethnic,
etc. Forms of cultural production arise from the relationship
between equals, through learning strategies that take place “side
by side”. By alluding to the experiences of certain groups, ghettos,
movements, and communities with various backgrounds and
objectives, Aguirre (2014) stresses that such cultural practices act
towards challenging the conventional, dichotomous relations
between master and apprentice or between experienced and
novice. In line with Aguirre’s (2014) analysis, we understand that
cultural pedagogies are more than sociocultural strategies that
instruct and/or dominate bodies, for they may also be regarded
as a form of cultural production, i.e. “[a] way of producing
knowledge, identity, and values”18 (AGUIRRE, 2014, p. 250).
Like Aguirre (2014, p. 250), we believe these forms of cultural
production in line with cultural pedagogies, by involving
subjectification processes, may prove to be “a political response”19

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 140-165, jul-dez 2016

given by bodies (children, teenagers, adults) to “established


educational alternatives”20, given that they are “cultural
practices”21 that such bodies “fulfil and through which they fulfil
themselves.”22 Echoing Trend (1992), Aguirre (2014) states that
what we perceive – often in a general way – that culture may be
viewed as a set of productions which we, as bodies, shape and
adapt every day as ways of communicating, consuming, and
building the world around us. We construct culture, but it also
constructs us. Hence cultural pedagogies provide stimulating
and creative challenges for us to think about and review certain
pedagogical methods and curricular notions that separate school
knowledge from its reference scopes, distancing it from bodies’
lives, experiences, and affections.
Cultural production practices to be carried out using
elements from cultural pedagogies may be linked to art
lessons, but we have observed that they are not restricted to
this field of study. The ways through which cultural pedagogies
cover aesthetic, media, political, historical, economic, social,
geographical, and tourist issues, among others, lead to an
approximation and involvement between contents and bodies
of knowledge addressed by different subjects and fields of
study. However, what we conceive as pedagogical possibilities
for employing cultural production practices do not seek to
make curriculum-based school knowledge equate to or be
replaced by knowledge from cultural pedagogies. They involve,
rather, making associations, establishing interactions and
interconnections based on the premise that both cultural
pedagogy knowledge and school knowledge stem from the
sociocultural contexts in which the mediabodies in the
classroom – teachers and students – live in.
The standpoint of Cultural Studies and Education, and
particularly of curriculum theory (SILVA, 2007), helps us to think
of ways through which to bridge the gap between “academic
and school-based knowledge”23 and the “daily knowledge”24 of
popular and mass culture. In this respect, a television program,
an art exhibition, a history book, and a fashion magazine may
all be regarded as cultural artifacts which establish pedagogical
forms and may set in motion, each in its own way, processes
that (trans)form mediabodies. According to Silva (2007, p. 142),
it is important to employ forms of “permeability” capable of
regarding “both the cultural industry and the school curriculum
as cultural artifacts”25 as “signification systems involved in
producing identities and subjectivities.”26

Odailso Sinvaldo Berté e Raimundo Martins . Pedagogias culturais e conhecimentos escolares (...) 151
In line with Silva’s arguments, it should be stressed that one
of the distinctive sociocultural features of contemporariness
– strongly marked by revolutions in information and
communication systems, like the Internet – is: “[the] bringing
down of barriers between institutions and spheres previously
viewed as different and separate”27 (SILVA, 2007, p. 141). In
this sense, keeping apart bodies of knowledge produced in
daily life, in mass culture, and in the school or university may
be seen as problematic, as a source of cognitive asepsis, as a
chasm between school and life, as well as a haziness within
the reference scopes shared by knowledge and bodies even
before such knowledge is organized by the school curriculum.

Cultural pedagogies and school knowledge:


possible permeabilities
In this paper, we propose the possibility of establishing
permeability between school knowledge and cultural pedagogies
in order to bring together other forms of education that
acknowledge the body-environment relationship, affections, daily
routines, and various cultural artifacts involved in the experiences
and education of mediabodies – students and teachers. The
pedagogical propositions that emerge from this perspective seek
to “treat students as bearers of diverse social memories with a
right to speak and represent themselves in the quest for learning
and self-determination”28 (GIROUX, 1995, p. 85).
This educational proposition concerns itself less with
validating, assessing, and adapting cultural artifacts than
with the ways in which bodies of knowledge, texts, images,
and cultural products are used by individuals. We are
in agreement with Giroux’s (1995) claim that pedagogy
becomes a space in which students can share and challenge,
perceive and analyze, consider and recreate, critically and
creatively, their preferences, affections, and the meanings
they attribute or assimilate in their daily experiences with
discourses, practices, media images, advertising, Internet,
and other means. We see possibilities of “taking up pedagogy
as an act of decentering”29 (GIROUX, 1995, p. 94), a form
of transit, a dissolution of borders, dialogue, exchange,
and communication between different bodies. Therefore,
the educational process can be regarded as a space, among
many others, which reveals the body’s ability to be both
the contaminated and the contaminator, as well as exposes

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culture as “an open system capable of contaminating the body


and becoming contaminated by it”30 (GREINER; KATZ, 2001,
p. 72-73).
Conceiving an education that takes bodies and affections
into account involves, for instance, not turning curricular
content into a set of rules, formulas, and finished-off concepts
that are decontextualized from the body-environment
relationship. Giroux (1995, p. 97) emphasizes the need for
“linking curriculum to the experiences that students bring to
their encounter with institutionally legitimated knowledge.”31
The resulting pedagogical implication is a review of established
disciplines which merges them with knowledge comprising, for
instance, mass culture, pop culture, youth culture, among other
cultural traits and niches that make up students’ knowledge and
the underrated status of common sense. Reviewing discipline
borders which separate common sense from sensibleness,
cultural pedagogy knowledge from school knowledge, aims
above all to view these cultural phenomena, artifacts, and
interactions from new critical and creative perspectives.
These elements support the construction of other forms of
knowledge which go beyond the conventional forms, usually
based on prior theorization, on distancing between subject and
object, and on researcher “neutrality”. Knowledge construction
processes are not sets of decontextualized or intangible
representations. They are connected to the environment and
to bodies. They are actions organized by mediabodies through
the intense interaction, supplementation, and partnership
of their sensorimotor and mental procedures. Knowledge is
intimately linked to the meanings that bodies attribute to
the world and its elements. Whatever the field of study or
discipline, educational processes cannot do without bodies,
despite dualist discourse’s insistence in this regard.
Following Giroux (1995, p. 100), pedagogy may be viewed
and experienced as a “cultural practice” that is open to
textual, verbal, gestural, and numerical knowledge which give
evidence of their originating processes and contexts. These
are forms of knowledge through which people may learn
more about themselves, as well as widen their understanding
of their sociocultural contexts and of the ways they interact
with the “other”, with environments, and with the cultural
artifacts on which they invest their affections.
The permeable paths we have made out between cultural
pedagogies and school knowledge revolve around three

Odailso Sinvaldo Berté e Raimundo Martins . Pedagogias culturais e conhecimentos escolares (...) 153
pedagogical propositions: the “pedagogy of pleasure” (GIROUX,
1999); the “pedagogy of conflict” (SANTOS, 1996); the “pedagogy
of the question” (FREIRE; FAUNDEZ, 2008).
Conceiving possible ways of decolonizing the body by
understanding popular and mass culture as a pedagogy of
pleasure and meaning, Giroux (1999, p. 213) arguments: “pedagogy
must be attentive to ways in which students make both affective
and semantic investments as part of their attempts to regulate
and give meaning to their lives.”32 To include popular culture
within pedagogy, according to Giroux, provides us opportunities
to discover ways through which students can make affective
investments on certain sociocultural forms and practices; to
understand how a policy of pleasure can help students rebuild
their relationships – often contradictory ones – with education
and everyday life. In Giroux’s view, if pedagogy concerns itself
with understanding how students’ identities, cultures, and
experiences may offer solid grounds for learning, it must also
consider the range of elements that organize their subjectivities.
Giroux (1999, p. 219) goes on to emphasize how popular
cultural forms may help mark people’s place in history and
bring about experiences of “pleasure, affect, and corporeality.”33
Through combinations of “corporeal and ideological meanings”,
popular cultural forms – historically constructed practices –
may produce affective effects. Giroux (1999, p. 219) explains that
the ways through which popular cultural forms are mediated
and taken up, their ways of constructing particular forms of
investment, may depend less on the production of meaning
than on “affective relations which they construct with their
audiences.”34 Hence popular cultural relations should not
be dismissed as ideologically incorrect or simply as a reflex
of market-oriented systems. In the process of structuring
individuals’ affective investments on popular cultural forms,
Giroux (1999, p. 219) highlights the importance of the semantic
and the affective because they provide “new theoretical
categories for linking the domain of the everyday with the
pedagogical processes at work in the notion of consent.”35
In line with Giroux’s emphasis on the importance of affective
investments, desire, pleasure, and everyday experiences on
pedagogy, we aim to challenge pedagogy as it is solely based on
abstract rationalism and discourse acts. Giroux (1999, p. 226)
goes on to state: “pedagogy also constitutes a moment in which
the body learns, moves, desires, and longs for affirmation.”36
The author’s questions suggest “[a] rejection of the pedagogy
of modernism”37 in which “the tyranny of discourse becomes

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the ultimate pedagogical medium”38 and the embodied “talk”


becomes “a logic abstracted from the body itself”39 (p. 226).
Giroux firmly questions how the body and its affections have
been absent “in previous theorizing”40, as well as highlights the
body’s ultimate importance “for a critical pedagogy”41 (p. 226).
Santos (1996) seeks to fight back the banality of suffering,
oppression, and discrimination by stressing the importan-
ce of an education that promotes the abilities for resistance,
indignation, and defiance. By challenging the educational
systems which conform to modern science and its hegemo-
nic model of cognitive-instrumental rationality, he proposes
the pedagogy of conflict. This mode of seeing, thinking, and
making pedagogy is grounded on a “liberating educational
project”, in other words,

[…] a project of learning conflicting knowledge that aims to


produce, through it, radical and unsettling images of the so-
cial conflicts which they conveyed in the past, images capa-
ble of potentiating indignation and defiance. An education
oriented, hence, towards resistance, towards a kind of sub-
jectivity which submits the repeating present to a hermeneu-
tics of suspicion, which rejects the trivialization of suffering
and oppression, and sees in these the result of inexcusable
choices. (SANTOS, 1996, p. 17-18).42

Santos’ approach must be resistant itself, and learning,


in turn, must be conflicting. Therefore, the classroom must
be “[a] field of possibilities of knowledge”43 (SANTOS, 1996,
p. 18) within which students and teachers are allowed to
make choices, ones that may not overlap or be considered
irreversible. Choices are based on “emotions, feelings, and
passions that confer inexhaustible meanings to curriculum
contents”44 (p. 18). According to Santos, “knowledge only
inspires resistance insofar as it becomes common sense,
the evident knowledge that does not exist apart from the
practices which confirm it”45 (p. 18). Such an education will
raise awareness on the conflictuality between alternative
common senses, between non-resistant and resistant practical
knowledge, as well as between knowledge-as-regulation and
knowledge-as-liberation.
Also according to Santos (1996, p. 25), “[the] pedagogy
of conflict is a pedagogy of considerable risk, against which
there are no insurance policies.”46 The ensuing pedagogical
conflict arises between contradictory forms of knowledge,

Odailso Sinvaldo Berté e Raimundo Martins . Pedagogias culturais e conhecimentos escolares (...) 155
knowledge as order and colonialism and knowledge as
solidarity and chaos, which support alternative forms of
sociability and subjectivity. Santos (1996, p. 25) states: “it is
up to the pedagogical field to experiment, both by imagining
practice and by practicing the imagination, these alternative
sociabilities and subjectivities, broadening the possibilities
of the human.”47 According to him, pedagogy must install
conflicts at the heart of the curriculum, above all cultural ones
(cultural imperialism and multiculturalism).
The liberating pedagogical field evoked by Santos (1996)
consists in using the imagination to create a conflictuality
rejected by hegemonic models, as well as unsettling images
from cultures, groups, individuals, and issues that have been
dominated, marginalized, silenced, and made invisible.
According to Santos (1996), these images have the potential
to promote pedagogical spaces for an alternative model of
intercultural relation, that of multiculturalism. Santos (1996)
believes that the criteria for constructing good or bad learning are
the ways in which conflicts may have a place within pedagogical
experiences: destabilizing dominant epistemological models;
remembering inexcusable past injustices and sufferings so they
may not occur again in the present or in the future; creating
unsettling images capable of broadening the critical eye and
the defiance of students and teachers; encouraging emerging
models of enlightening, liberating, and multicultural relations
among bodies of knowledge, people, and social groups.
Freire and Faundez (2008, p. 54), by devising “a pedagogy
of the question”48, affirm the challenging nature of this
pedagogy which may be viewed as a provocation. Regarding
hierarchical relations, the authors put the notions of
authorship and authority into perspective and remark: “asking
questions is not always convenient”49 (p. 46). Questions
are disturbing, interrupt linearity, and cause processes to
acquire new nuances, as well as enhance and make flexible
the processuality of relations. The question “What does
asking mean?”50 is posed by Freire and Faundez (2008, p.
47) in their dialogue book on the pedagogy of the question.
According to them, “[the] heart of the matter does not lie in
producing an intellectual game with the question ‘What does
asking mean?’, but in living the question, living indignation,
living curiosity”51 (p. 48). Through dialogue form, Freire and
Faundez comment on topics like the origins of knowledge, of
the teaching process, of pedagogy.

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Knowing how to ask oneself, knowing which questions en-


courage and stimulate society. Essential questions which
stem from everyday life, because it is there that questions lie.
If we learned to ask ourselves about our own daily existence,
all the questions that demanded answers and all this ques-
tion-answer process which constitutes the path to knowledge
would begin with ordinary questions about our daily lives,
about these gestures, about these corporeal questions which
the body asks of us [...]. (FREIRE; FAUNDEZ, 2008, p. 48). 52

By challenging the transmission of knowledge as a ready-


answer pedagogy, Freire and Faundez (2008, p. 46) believe
that “the teacher should [...] teach students how to ask
questions [because this is] the start of knowledge.”53 Through
real-life examples based on students’ experiences, the authors
believe they should be encouraged “to ask questions regarding
their own practice”54 (p. 49). Therefore, in a pedagogy of the
question, the teacher is viewed as someone who encourages
students to create the habit of being amazed, of asking
questions, of taking chances, of imagining and being curious
about things. In the body, “a person’s permanent questions
about the world constitute the mass with which he/she shapes
him/herself”55 (KATZ, 2005, p. 16). Given that a question is an
action which causes actions, movements, and displacements,
the body-subject, by asking itself and by being asked about
the world, about its interactions with and in the world, shapes
itself and is shaped with questions, hence organizing, setting
in motion, and establishing modes of existence.
In summary, the pedagogy of pleasure, the pedagogy
of conflict, and the pedagogy of the question highlight the
importance of the body, of affections, of pleasure, of desire, of
daily experiences, and of cultural practices and their relations
with school knowledge included in the curriculum. Hence
resistance, debate, critique, curiosity, and creativity emerge as
pedagogical practices and procedures capable of broadening
individuals’ independence and/or liberation in relation to
dominant systems, epistemologies, and pedagogies. Cultural
pedagogies may contribute to defetishise the curriculum and
to raise awareness of the power and knowledge relations that
may promote school knowledge. Cultural pedagogies and the
cultural production practices stemming from them point to
ways in which knowledge, representations, and their meanings
may be constructed and modified by the relations that bodies
as subjects establish with their contexts and environments.

Odailso Sinvaldo Berté e Raimundo Martins . Pedagogias culturais e conhecimentos escolares (...) 157
According to Giroux (1999, p. 220), “the content of popular
culture cannot be understood as prespecified content”56, and
students’ affective investments on popular culture “cannot be
determined simply through an analysis of the meanings and
representations that we decode in them”57 (p. 228). Giroux
(1999) claims: “affective investments have a real cultural
capacity and may be indifferent to the very notion of meaning
itself as constructed through the lens of the ideological”58 (p.
228). The author also stresses that important political and
pedagogical principles arise from these investments, e.g.
attention to the policies that regulate, establish, constitute,
and express desire in order to understand students’ relations
with popular cultural forms; the political construction of the
idea and experience of pleasure, so that the body is a subject of
pleasure, not its object; acknowledgement of popular culture
as a field in which students are able to appropriate cultural
artifacts, questioning their tastes and ways of using these
artifacts, increasing their critical and creative possibilities.
In line with Greiner (2010), we believe that education can
be like friendship: it may establish a network of affections
and perceptions. Education stemming from the body is
profane, does not believe in pedestals and hierarchies or
delve deep into the master-student duality. Such form of
education is grounded on the principle that everybody learns
together, which indicates an autonomous literacy in which
we are all encouraged to discover and use our own words and
gestures without reproducing empty knowledge, ready-made
formulas, and stigmatized meanings. Moreover, this form
of education understands that the human body is neither
passive nor inert, because it acts even before an action is
under way; it communicates even before becoming aware
of its own communicability, and feels whilst processing its
thoughts (GREINER, 2010).
By emphasizing experiences, contexts and affections of
mediabodies (students and teachers), our investments in the
linking of cultural pedagogies and school knowledge do not
disregard the ways that some artifacts and advertising images
(SÉRVIO, 2015), such as film and television media, which are
proper of the cultural pedagogies, are projected to deliberately
capture our affections and get success in mobilizing
emotions (such as fear, boredom, loneliness) in favor of
various ideological interests, influencing behaviors. The
considerations about affection and pleasure proposed here
do not emerge armored against critical reviews, but envision

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to argue in favor of positions that go beyond depreciative


and rancid discourses aiming critical-creative actions that
questions, challenge and reinvent problems, situations
and experiences that contribute to impede separation and
hierarchies in the relations between subject, student, context,
and body, or yet, mind, nature, and culture.
According to Aguirre (2011, p. 73) the pedagogical
understanding that guides us is built upon the “recuperation
of the attention to emotional and affective questions for an
education centered in thework with visual culture”59, considering
ways of “political emancipation based on capacitation”60
and not only on forms of discursive “consciousness”, at times
disembodied. With Aguirre (2011, p. 72), we invest in the
perspective of “advance from a position”61 grounded only “in
the critical valorization of culture”62 to positions that open
spaces to the “diversity of uses and experiences”63 related to
affects and sensibility. By proposing teaching-learning relations
permeated by pedagogies of pleasure, questions and conflict,
we emphasize formal training as a space where students may
review their cultural experiences not as a kind of demonization
but through a critical and creative appropriation.
As we perceive the already existing crossings between
cultural pedagogies and school knowledge, the mediabodies
can: make new forms of crossings; attend and question their
tastes and ways of using and consuming different cultural
artifacts; broaden their meanings about those artifacts
analyzing how such artifacts may capture their affects, mobilize
their emotions, and influence their behaviors; perceive that not
all mediabodies react in the same manner towards cultural
pedagogies interests; understand that each mediabody,
through context/history/experiences, can receive, reconstruct,
and re-signify, in an unpredictable way, the cultural pedagogies
and school knowledge.
The debate we have brought forth seeks to encourage
alternatives to a messianic education, the only one capable of
saving humans from the evils of the world, the only one capable
of distinguishing between appropriate bodies of knowledge and
those to be demonized. We have devised certain propositions
which may create dialogical and pleasurable spaces for the
mediabodies to experience studying – a pedagogical act – i.e.
the teaching-learning process as a suitable environment for
establishing critical and creative negotiations between school
knowledge and cultural pedagogy knowledge, given that
these emerge from the vast sociocultural field which students,

Odailso Sinvaldo Berté e Raimundo Martins . Pedagogias culturais e conhecimentos escolares (...) 159
teachers, and the school belong to. In short, we believe in an
education that does not separate the five senses from the many
meanings bodies may produce, neither the educational from
the vital, nor school from life.

Notes

1. All translations are the authors’. The original texts are presented as end
notes.

2. “[alguns] indivíduos entram na sala de aula para ensinar como se apenas a


mente estivesse presente, e não o corpo”

3. “pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão”

4. “invalida o entendimento de que primeiro o corpo se forma e depois


começa a lidar com os traços sociais do entorno”

5. “a Teoria Corpomídia propõe a inexistência do corpo fora da cultura,


[porque] corpo e ambiente se codeterminam.”

6. “tais processos necessariamente implicam o diálogo com os saberes disci-


plinares como com outros saberes socialmente construídos”

7. “produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econômico mais


amplo”

8. “o corpo sabe o mundo antes que a mente possa transformá-lo em signos


representativos de coisas, situações e relações”

9. “o currículo corporifica os nexos entre saber, poder e identidade”

10. “um processo de inclusão de certos saberes e de certos indivíduos,


excluindo outros”

11. Pelos imensos recursos econômicos e tecnológicos que mobilizam, por seus
objetivos – em geral – comerciais, elas se apresentam, ao contrário do currículo
acadêmico e escolar, de uma forma sedutora e irresistível. Elas apelam para a
emoção e a fantasia, para o sonho e a imaginação: elas mobilizam uma economia
afetiva [...]. É precisamente a força desse investimento das pedagogias culturais
no afeto e na emoção que tornam seu “currículo” um objeto tão fascinante.

12. “não se trata simplesmente de informação ou entretenimento”

13. [...] se remite a la idea de que la educación tiene lugar en diversos sitios
sociales que incluyen la escolarización pero no se limitan a ella. Los lugares
pedagógicos son aquellos donde el poder se organiza y despliega, incluidas
las bibliotecas, la televisión, las películas, los periódicos, las revistas, los
juguetes, los anuncios, los juegos de vídeo, los libros, los deportes, etc.

14. “[um] conjunto de conteúdos formativos que não são administrados


pelas vias tradicionais da educação formal, mas sim, pelos meios de comuni-
cação de massa, basicamente”

15. “em nossos jovens, valores éticos e estéticos”

16. “que se dão as costas mutuamente”

17. “práticas de produção de cultura”

18. “forma de produção de conhecimento, identidade e valores”


19. “uma resposta política”

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 140-165, jul-dez 2016

20. “alternativas educativas instituídas”

21. “práticas culturais”

22. “realizam e através das quais se realizam”

23. “conhecimento acadêmico e escolar”

24. “conhecimento cotidiano”

25. “tanto a indústria cultural quanto o currículo propriamente escolar como


artefatos culturais”

26. “sistemas de significação implicados na produção de identidades e


subjetividades”

27. “[o] apagamento das fronteiras entre instituições e esferas anteriormente


consideradas como distintas e separadas”

28. “tratar os/as estudantes como portadores/as de memórias sociais diver-


sificadas, com o direito de falar e de representar a si próprios/as na busca da
aprendizagem e da autodeterminação”

29. “assumir a pedagogia como um ato de descentramento”

30. “um sistema aberto, apto a contaminar o corpo e ser por ele contaminado”

31. “vincular o currículo às experiências que os/as estudantes trazem para


seus encontros com o conhecimento institucionalmente legitimado”

32. “a pedagogia deve estar atenta às maneiras pelas quais os alunos fazem
tanto investimentos afetivos quanto semânticos como parte de suas tentati-
vas de regulamentar e dar significado às suas vidas”

33. “prazer, afeto e corporalidade”

34. “relações afetivas que elas constroem com suas audiências”

35. “novas categorias teóricas para se vincular o terreno do cotidiano aos


processos pedagógicos que atuam no conceito do consentimento”

36. “a pedagogia também constitui um momento em que o corpo aprende,


se movimenta, deseja e anseia pela afirmação”

37. “[uma] rejeição da pedagogia da modernidade”

38. “a tirania do discurso torna-se o meio pedagógico fundamental”

39. “uma lógica abstraída do próprio corpo”

40. “na teorização”

41. “para uma pedagogia crítica”

42. […] um projeto de aprendizagem de conhecimentos conflituantes com


o objetivo de, através dele, produzir imagens radicais e desestabilizadoras
dos conflitos sociais em que se traduziram no passado, imagens capazes de
potenciar a indignação e a rebeldia. Educação, pois, para o inconformismo,
para um tipo de subjetividade que submete a uma hermenêutica de suspeita
a repetição do presente, que recusa a trivialização do sofrimento e da opres-
são e veja neles o resultado de indesculpáveis opções.

43. “[um] campo de possibilidades de conhecimento”

44. “emoções, sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares


sentidos inesgotáveis”

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45. “o conhecimento só suscita o inconformismo na medida em que se torna
senso comum, o saber evidente que não existe separado das práticas que o
confirmam”

46. “[a] pedagogia do conflito é uma pedagogia de alto risco contra o qual
não há apólices de seguro”

47. “ao campo pedagógico compete experimentar, pela imaginação da


prática e pela prática da imaginação, essas sociabilidades e subjetividades
alternativas, ampliando as possibilidades do humano”

48. “[uma] pedagogia da pergunta”

49. “perguntar nem sempre é cômodo”

50. “O que é perguntar?”

51. “[o] centro da questão não está em fazer com a pergunta ‘o que é pergun-
tar?’ um jogo intelectual, mas, viver a pergunta, viver a indignação, viver a
curiosidade”

52. Saber perguntar-se, saber quais são as perguntas que nos estimulam e
estimulam a sociedade. Perguntas essenciais, que partam da cotidianidade,
pois é nela onde estão as perguntas. Se aprendêssemos a nos perguntar
sobre nossa própria existência cotidiana, todas as perguntas que exigissem
resposta e todo esse processo pergunta-resposta, que constitui o caminho do
conhecimento, começariam por perguntas básicas de nossa vida cotidiana,
desses gestos, dessas perguntas corporais que o corpo nos faz [...].

53. “o professor deveria [...] ensinar a perguntar [pois este é] o início do


conhecimento”

54. “a fazer perguntas em torno da sua própria prática”

55. “as perguntas permanentes do homem sobre o mundo constituem a mas-


sa com que ele se molda”

56. “o conteúdo da cultura popular não pode ser compreendido como pré-
-especificado”

57. “não podem ser determinados simplesmente através de uma análise dos
significados e das representações que neles decodificamos”

58. “os investimentos afetivos têm uma capacidade cultural real e podem ser
indiferentes ao próprio conceito do significado em si, construído através das
lentes do ideológico”

59. “recuperação da atenção às questões emotivas e afetivas para uma educa-


ção centrada no trabalho com a cultura visual”

60. “emancipação política a partir da perspectiva da capacitação”

61. “avançar de uma posição”

62. “na valoração crítica da cultura”

63. “diversidade dos usos e das experiências”

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Recebido em: 02/02/16


Aceito em: 18/05/16

164 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 140-165, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 140-165, jul-dez 2016

Odailso Sinvaldo Berté


odaberte@yahoo.com.br
Professor of the undergraduate course in Dance Teaching from
Universidade Federal de Santa Maria, doctor in Art and Visual
Culture from Universidade Federal de Goiás, master in Dance from
Universidade Federal da Bahia, specialist in Dance from Faculdade
de Artes do Paraná, holds a degree in Phylosophy from Universi-
dade de Passo Fundo.

Raimundo Martins
raimundomartins2005@yahoo.es
Titular professor of Faculdade de Artes Visuais from Universidade
Federal de Goiás (FAV/UFG), holds two postdoctoral degrees: one in Art
and Cognition from University of London (England) and another in Art
and Visual Culture from Universitat de Barcelona (Spain).

Odailso Sinvaldo Berté e Raimundo Martins . Pedagogias culturais e conhecimentos escolares (...) 165
Narrativas híbridas: o estático e o móvel
no vídeo “911” do coletivo Cia de Foto

Rafael Castanheira

Resumo

Este artigo propõe-se a analisar o vídeo “911”, produzido pelo


coletivo de fotógrafos Cia de Foto, a fim de refletir sobre
as suas características técnicas e estéticas que apontam
para novas formas de edição e apresentação dos temas no
documentário fotográfico contemporâneo. Ao mesclar
fotografias estáticas e imagens em movimento, o coletivo
desafia o modelo tradicional da narrativa realista do
fotojornalismo e do documentarismo clássico empregado ao
longo de todo o século XX, assumindo abertamente a ficção
Palavras-chave:
Fotodocumentário,
como possibilidade para a construção de novas visualidades e
narrativas híbridas, Cia de Foto representações sobre as questões sociais no mundo hoje.

166 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016


Hybrid narratives: the static and the mobile
in the “911” Cia de Foto video

Rafael Castanheira

Abstract

This article aims to analyse the video “911” produced by the


collective of photographers Cia de Foto to reflect about
its technical and aesthetical characteristics that point
to new forms of editing and presenting the subjects in
contemporary documentary photography. When combining
static and moving images, the collective challenges the
traditional model of the realistic narratives made by
photojournalism and classic documentary throughout the
20th century. In “911”, the fiction is assumed by Cia de Foto as
Keywords:
a way of constructing news visualities and representations of Documentary photography,
the social issues in the world today. hybrid narratives, Cia de Foto

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016 167


Narraciones híbridas: lo estático y
el movimiento en el video 911 del
colectivo Cia de Foto

Rafael Castanheira

Resumen

Este artículo tiene el objetivo de analizar el video “911”,


producido por el colectivo de fotógrafos Cia de Foto, con
la intensión de reflexionar a respecto de sus características
técnicas y estéticas, apuntando en dirección a nuevas formas
de edición y presentación de los temas en el documental
fotográfico contemporáneo. Al mezclar fotografías estáticas
e imágenes en movimiento, el colectivo desafía el modelo
tradicional de la narrativa realista del fotoperiodismo y del
documental clásico usado a lo largo de todo el siglo XX,
asumiendo abiertamente la ficción para la construcción de
Palabras-clave:
Fotodocumental, narraciones
nuevas visualidades y representaciones sobre las cuestiones
híbridas, Cia de Foto sociales en el mundo actual.

168 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016

N os últimos anos, com a evolução tecnológica, ampliaram-se


não somente as possibilidades de produção de fotografias pelo
uso das câmeras digitais, como também as suas condições de
circulação pela internet. Se, por um lado, o advento da fotogra-
fia digital tornou ainda mais tênue a fronteira entre realidade e
ficção no campo fotográfico devido a sua facilidade de manipu-
lação, por outro, estes novos recursos técnicos contribuíram de
maneira significativa para o aumento da produção de imagens,
que passam a registrar e difundir realidades com uma profusão
nunca antes vista – incluindo a produção de vídeos que pro-
movem um diálogo entre a fotografia estática e as imagens em
movimento, ponto central a ser abordado nesse artigo.
Hoje, as câmeras fotográficas digitais também filmam em
alta resolução e, por isso, passam a ser amplamente utilizadas
por fotógrafos que buscam mesclar cenas estáticas com cenas
em movimentos a fim de produzir bens audiovisuais com dife-
rentes linguagens – escrita, musical, fotográfica e videográfica.
Trata-se, dessa forma, de deslocar funções particulares de cada
linguagem com intuito de criar narrativas híbridas, o que carac-
teriza de maneira significativa a produção imagética do começo
do século XXI e coloca em discussão os limites de uso e o espaço
da fotografia no mundo atual.
A produção de vídeos com fotografia estática tem se torna-
do uma prática comum entre fotógrafos que enxergam nessa
fusão novas possibilidades de criação e apresentação de suas
narrativas. E, mais especificamente no terreno da reportagem e
de conteúdos de caráter documental, o que se vê atualmente é
a presença da fotografia estática na tela do audiovisual se mis-
turando a imagens em movimento para criar formas expressi-
vas que toquem a sensibilidade do espectador contemporâneo

Rafael Castanheira . Narrativas híbridas: o estático e o móvel no vídeo “911” do coletivo Cia de Foto 169
– aquele mais conectado aos meios virtuais como sites, blogs
e redes sociais disponíveis nas plataformas multimidiáticas da
internet, do que aos meios noticiosos impressos.
Ao contrário das narrativas jornalísticas tradicionais que
apresentam, em meio aos textos, uma ou mais imagens im-
pressas nas páginas de jornais ou nas revistas ilustradas, as
narrativas híbridas potencializam a capacidade discursiva do
narrador ao conjugar diferentes suportes de comunicação e
demanda ao seus receptores – antes acostumados com o mo-
delo hegemônico das narrativas lineares entendidas como
pura representação da realidade – leituras interpretativas de
seus conteúdos como, por exemplo, o vídeo “911” produzido
pelo coletivo Cia de Foto, a ser analisado no presente trabalho.
Neste sentido, pode-se refletir, de maneira mais especí-
fica, sobre a construção das narrativas atuais no campo da
produção audiovisual de cunho documental. Quais são os
possíveis impactos provocados pelas novas tecnologias nos
conceitos tradicionais de fotografia como documento e como
se dá a relação do documentário fotográfico com o vídeo de
curta duração em uma época marcada pela liberdade de pro-
cedimentos e hibridismos destas linguagens?

As novas tecnologias e a fotografia


como documento
Em seu livro A fotografia: entre documento e arte contemporâ-
nea (2009), o teórico francês André Rouillé afirma que a foto-
grafia surge na metade do século XIX para reformar o “regime
de verdade” de uma época na qual as imagens manuais (pintura,
desenho, gravura) tinham a função de representar a realidade.
Para a sociedade daquele período, a fotografia tornava-se neces-
sária, pois trazia uma visão credível, uma verdade irrefutável, ge-
rando a confiança indispensável à ciência. Dessa forma, a foto-
grafia vai exercer um papel capital de mediação entre os homens
e o mundo, pois suas características, como a reprodutibilidade,
a fácil mobilidade, a rapidez de produção e a credibilidade do
seu conteúdo, vão mantê-la em “sintonia com o sistema, os valo-
res e os mais emblemáticos fenômenos da sociedade industrial:
a máquina, as grandes cidades e esta extraordinária rede que as
interliga, a estrada de ferro” (ROUILLÉ, 2009, p. 48).
O valor documental da fotografia baseia-se em seu dispo-
sitivo técnico (ótico e químico), mas isso não é suficiente para
garanti-lo, já que esse valor é oriundo de um caráter histórico
– portanto, momentâneo – estabelecido pela sociedade in-

170 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016

dustrial e “varia em função das condições de recepção da ima-


gem e das crenças que existem a respeito” (ROUILLÉ, 2009,
p. 28). Em razão do advento da sociedade pós-industrial, ou
sociedade da informação, na qual o sistema de comunica-
ção é dominado pela televisão, pelos satélites e, depois pe-
las redes digitais, as “imagens-documento” são substituídas
por imagens tecnológicas, muito mais rápidas e sofisticadas
(ROUILLÉ, 2009, p. 65).
O fotodocumentário do modelo paradigmático do come-
ço século XX, ou seja, aquele que usa a fotografia enquanto
imagem “objetiva” e “unívoca”, encontra-se em crise, em pleno
declínio histórico de seus usos práticos já que:

O documento fotográfico tornou-se incapaz de responder às


necessidades dos setores cultural e tecnologicamente mais
avançados – principalmente a pesquisa e a produção dos pro-
dutos, dos conhecimentos e dos serviços -, porque o real da
sociedade pós-industrial não é mais o mesmo real da socie-
dade industrial; porque em medicina, por exemplo, a fotogra-
fia e a radiografia não permitem acesso ao mesmo real do cor-
po que as ecografias, os dopplers, os escâneres, e sobretudo as
imagens por ressonância magnética nuclear (IRM); porque a
fotografia impressa não é capaz de rivalizar com a informação
televisiva difundida continuamente e ao vivo por satélite. O
novo real convoca novas imagens, novos dispositivos de ima-
gens para novos modos de crença (ROUILLÉ, 2009, p. 65).

Segundo Rouillé (2009), esse “novo real” impõe, conse-


quentemente, novas formas de produção de imagens para
“novos modos de crença”, haja vista que a partir dos anos 1970
as fotografias começam a suscitar desconfianças por parte da
sociedade devido ao controle de sua produção e divulgação: a
forma de editar e expor as imagens, a produção de legendas que
mudam o sentido da cena e, finalmente, a manipulação digital.
No que diz respeito às discussões acerca da relação da fo-
tografia com o real, a questão da manipulação sempre vem à
tona (BEAUMONT, 1997). Desde a sua invenção, a crença na
capacidade da fotografia de registrar o real foi desmistificada
por artistas que, ao produzir suas imagens, envolviam uma
carga de ficcionalidade por meio da construção de cenas, po-
ses e luminosidade previamente pensadas e da colagem de
negativos de situações diversas que, justapostos numa mes-
ma imagem, fraturavam, assim, a ideia de realidade na foto-
grafia (BEAUMONT, 1997).

Rafael Castanheira . Narrativas híbridas: o estático e o móvel no vídeo “911” do coletivo Cia de Foto 171
Entretanto, no contexto atual da fotografia digital, a mani-
pulação se tornou prática comum e quase indissociável de sua
produção. Para Machado (1997, p. 243), diferente da manipula-
ção “grosseira” do passado que “podia ser facilmente descober-
ta”, hoje a manipulação pode ser feita através do processamento
digital que adiciona ou suprime qualquer elemento na fotogra-
fia sem deixar nenhuma marca de alteração. Assim, “a conclu-
são lógica é que, no limite, todas as fotografias são suspeitas e
que, também no limite, nenhuma foto pode ser legal ou jorna-
listicamente provar coisa alguma” (MACHADO, 1997, p. 243).
É preciso dizer que Machado publicou seu livro Pré-cine-
ma e pós-cinema em 1997, sendo no Brasil um dos pesquisa-
dores pioneiros nos estudos sobre a hegemonia da eletrônica
no campo midiático. À época, Machado já afirmava que, ao
perder seu poder de produzir verossimilhança, a fotografia
poderia, dentro de mais algum tempo, ser excluída de nossos
documentos de identidade. Tal fato ainda não aconteceu, mas
ao dizer que “no tempo da manipulação digital das imagens,
a fotografia já não difere da pintura, já não está isenta de sub-
jetividade e já não pode atestar a existência de coisa alguma”
(1997, p. 242), toca numa importante questão sobre o fato de,
na contemporaneidade, o registro fotográfico ser explorado
mais pela suas capacidades gráficas do que pelas fotográficas,
ou seja, a fotografia, assim como a pintura, seria explorada
mais por suas qualidades pictóricas do que por aquelas do-
cumentais que supostamente a tornaria fiel ao mundo visível.
Machado (1997) chama de “pixelização” este movimento
de informatização dos sistemas de expressão e comunicação
do homem contemporâneo que se dá não apenas na fotogra-
fia, mas em todas as esferas da cultura, e que seria responsável
pela mudança dos hábitos perceptivos do público em relação
às novas características da imagem na era eletrônica ou, se-
gundo Rouillé (2009), na “era pós-industrial”, a era da infor-
mação. Assim, a imagem digital funcionaria como “texto”, tex-
to visual, e para ser lida precisaria ter seus códigos decifrados
por seus espectadores – ao contrário da fotografia, entendida
pelo público leigo por pelo menos 150 anos, como represen-
tação fiel da realidade a ser contemplada (MACHADO, 1997).
Dito de outra maneira, as imagens contemporâneas, mesmo
manipuladas, podem tratar da realidade, mas de uma realida-
de mediada e que agora passa a ser acessada por espectadores
cada vez mais familiarizados com os processos criativos de
seus produtores e, portanto, menos ingênuos acerca dos seus
processos de construção de sentidos.

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VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016

Nesse novo regime de visualidade, supostamente trans-


formado pelas tecnologias digitais, a fotografia (e o cinema)
teria tomado uma trajetória, como sugere Sutton (2009, p. 2,
tradução nossa), que culminou numa “estética unificadora
daquilo que muitos chamam de convergência”. Mas, no en-
tanto, prossegue Sutton (2009, p. 2, tradução nossa),

[...] na convergência, às vezes, a tecnologia altera a prática e


provoca um impacto como quando do advento da telefonia
móvel e da Internet as quais afetaram dramaticamente onde,
como e com quem nos comunicamos. Noutros tempos era a
prática que subordinava a nova tecnologia e isso é o que, de-
vido aos protestos acadêmicos pelo contrário, tem acontecido
com a fotografia e o cinema. 1

Ao citar Vidocq (PITOF, 2001) como o primeiro filme pro-


duzido inteiramente com tecnologia digital e que, nem por
isso, apresentou uma estética inovadora – ao contrário, Vido-
cq mostra uma Paris de 1930 com uma estética similar àque-
la dos filmes em 35 mm –, Sutton (2009) argumenta que a
tecnologia digital não seria tão importante nos dispositivos
artísticos quanto se pensou quando do seu advento, pois não
teria sido um fator determinante para as mudanças estéticas
na fotografia e no cinema.
Em seu livro Photography, cinema, memory: the crystal
image of time (2009), Sutton afirma que a “chegada das tec-
nologias digitais não foi apenas uma intervenção tecnológica
que muda a vida das pessoas, mas também as trouxe de volta
ao estado natural das relações em que a poética, representada
pela pintura, é o regime predominante” (p. 3, tradução nos-
sa).2 Esta ideia corrobora com a de Machado (1997) que com-
para a fotografia digital com a pintura, pois ambas estariam
marcadas pela capacidade de metamorfose ao permitirem
transformações de diversas ordens em suas superfícies. Sut-
ton (2009, p. 3), no entanto, é menos otimista com a propaga-
da “revolução” que as tecnologias digitais teriam causado no
mundo das imagens, pois acredita que elas não provocariam
mudanças em nível social. Mas poderiam apenas prover pos-
sibilidades potenciais ou precárias de mudança, já que a mu-
dança tecnológica não é tão significante como a mudança de
ideias que a acompanha.
Por outro lado, sugere Sutton (2009, p. 4, tradução nossa),
as tecnologias digitais nos trazem de volta ao regime poético
– antes representado pela pintura – e “este efeito do evento

Rafael Castanheira . Narrativas híbridas: o estático e o móvel no vídeo “911” do coletivo Cia de Foto 173
tecnológico sugere que a interface, ou a luta, entre o velho
e o novo aconteça não apenas na imagem, mas também no
tempo”. Essa convergência, ao permitir que formatos análogos
sejam tratados numa mesma informação, sugere que seja o
regime poético, e não o tecnológico, que organiza a concepção
popular de tempo e memória.
Assim, as tecnologias digitais não seriam um fator deter-
minante na mudança da estética das imagens, pois a mudança
das ideias seria mais importante do que a tecnologia para al-
terar as produções fotográficas e cinematográficas do mundo
contemporâneo.

Narrativas documentais híbridas


e o tempo da fotografia no vídeo
O manejo do tempo é uma questão crítica na produção de
narrativas, pois, como explica Motta (2013), é por meio da “su-
cessão de estados”, ou seja, do desenrolar das ações, que seus
sentidos são extraídos pelos seus receptores.

Narrar é relatar eventos de interesse humano enunciados em


um suceder temporal encaminhado a um desfecho. Impli-
ca, portanto, em narratividade, uma sucessão de estados em
transformação responsável pelo sentido. A palavra-chave é su-
cessão. Ela introduz a questão da sequenciação, ou o desenvol-
vimento temporal. [...] Narrar é, portanto, relatar processos de
mudança, processos de alteração e sucessão interrelacionados.
Pressupõe a existência de uma lógica narrativa própria, que
nos demanda uma gramática universal (MOTTA, 2013, p. 71).

Os processos de mudança em uma narrativa ocorrem na-


turalmente em perspectiva com o objetivo de que os aconteci-
mentos se relacionem no tempo, criando passado, presente e
futuro. No entanto, o desenvolvimento temporal numa narra-
tiva não precisa necessariamente respeitar essa ordem linear
dos acontecimentos assim como ocorre em nossas vidas, pois
aquele que narra está descrevendo-os a partir de critérios sub-
jetivos estabelecidos pela sua cultura, pelo seu modo de ver
o mundo. Ou seja, narrar implica se colocar na história e, a
partir de suas origens e de suas referências culturais, recriar os
acontecimentos (MOTTA, 2013, p. 71).
Se narrar implica necessariamente em reconstruir um acon-
tecimento testemunhado (ou imaginado no caso da ficção) a
partir dos valores pessoais do narrador, como encarar a narra-

174 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016

tiva jornalística diante de conceitos como verdade, credibilida-


de, objetividade e imparcialidade? Para Motta (2013, p. 82), “as
narrativas não são apenas, nem principalmente, puras represen-
tações da realidade, mas formas de organizar nossas ações em
funções de estratégias culturais em contexto”. É ressaltado ainda
que todas as narrativas, fictícias ou fáticas, são “construções de
sentidos sobre o mundo real ou imaginado”. Afinal:

[...] Se a narrativa relata uma estória inventada por alguém, um


conto, um romance, uma telenovela, uma história em quadri-
nhos, por exemplo, é uma ficção, uma construção sobre um
universo imaginado que não existe (embora verossímil). Se a
narrativa relata uma história verdadeira acontecida no mundo
real, uma reportagem sobre uma ocorrência em nossa cidade, a
biografia de um político, a descrição de um episódio histórico,
por exemplo, é igualmente uma construção discursiva sobre o
mundo, uma versão em tantas outras possíveis sobre os episó-
dios ou as pessoas reais (MOTTA, 2013, p. 83).

A fotografia no jornalismo vem enfrentando nas últimas


décadas uma grave crise de credibilidade, pois têm buscado,
na maioria dos casos, apresentar verdades absolutas em repor-
tagens que exploram temas como a violência, a miséria, o exo-
tismo. Esquecendo-se, por vezes, da vida do cidadão comum,
do banal, do cotidiano, do ordinário. Buscando produzir nar-
rativas visuais em linguagem “direta” e balizando-se ainda em
conceitos atualmente muitos questionáveis no contexto da
pós-modernidade, como imparcialidade e objetividade. Este
tipo de projeto documental, que visa à representação do real,
tem sucumbido às novas necessidades dos fotodocumenta-
ristas de pensar as diversas possibilidades de apresentação (e
construção) das realidades do mundo contemporâneo.
Com o surgimento das novas tecnologias digitais amplia-
ram-se os processos de produção, circulação e comercializa-
ção de fotografias, permitindo que alguns fotodocumentaris-
tas saíssem das redações de jornais para buscar sua autonomia
através da edição e veiculação independente de seus trabalhos
em sites pessoais, blogs, redes sociais etc. Direcionando-os,
muitas vezes, para um campo (e mercado) que tem acolhido a
fotografia: o campo da arte contemporânea, no qual podem se
pautar livremente a partir de temas que mais lhe interessam
e, principalmente, adotar abordagens subjetivas, desenvol-
vendo seus trabalhos de maneira criativa e sem restrições ou
imposições editoriais muito comuns nas redações.

Rafael Castanheira . Narrativas híbridas: o estático e o móvel no vídeo “911” do coletivo Cia de Foto 175
Questionando os dogmas do fotojornalismo e seu tradi-
cional conceito de “foto-verdade”, os projetos documentais
contemporâneos buscam registrar temas corriqueiros com
enfoques muito pessoais, resultando em imagens enigmáticas
e de significações instáveis que, ao invés de impor verdades
sobre tais temas, convidam o espectador a refletir sobre as
questões abordadas. Como, por exemplo, o vídeo “911”, do co-
letivo Cia de foto que, ao misturar cenas estáticas com movi-
mento, propõe novas formas de leitura da realidade de vida de
moradores que ocuparam um prédio abandonado na região
central de São Paulo.

O coletivo Cia de foto e o vídeo “911”


Uma tendência nos últimos anos são os coletivos fotográficos.
Reformulando o conceito de cooperativa de fotógrafos, tais
como as agências Magnum na França e a F4 no Brasil, o co-
letivo fotográfico é ainda um termo de difícil definição já que
representa muito mais do que um grupo de indivíduos que
fotografa e se reúne para discutir os próprios trabalhos.
Nos coletivos, a autoria individual do fotógrafo, muito
valorizada pelo mercado de arte, é desprezada pelos seus in-
tegrantes, que, independentemente do nome inserido como
crédito na fotografia, estão produzindo importantes trabalhos
no cenário da fotografia contemporânea brasileira, como os
fotógrafos do coletivo Cia de foto que “desenvolve trabalhos
em várias direções, aproximando linguagens e, assim, ques-
tionando o espaço das imagens e seu entendimento”. 3
Criado pelos fotojornalistas do jornal Valor Econômico, Ra-
fael Jacinto e Pio Figueiroa, o coletivo foi fundado em 2003, mas
anunciou sua separação em 2013. Durante 10 anos trabalhando
com produções autorais ou sob encomenda, em vídeo e fotogra-
fia, a Cia de Foto contava ainda com mais dois fotógrafos, Carol
Lopes e João Kehl; e a assistente administrativa Flávia Padrão.
Juntos, eles dispensavam a autoria de suas fotos e quebraram pa-
drões no meio fotográfico, publicando seus trabalhos como bem
entendiam em seu principal meio de divulgação: a internet.
Distribuídos em quatro links (publicidade, retrato, en-
saio/art. e blog) o site da Cia de foto, atualmente indisponível,
apresentava os mais diversos trabalhos, desde fotorreporta-
gens que abordavam temas políticos e sociais e cenas do co-
tidiano da cidade de São Paulo, até ensaios publicitários para
empresas, intuições e veículos jornalísticos do Brasil. Ainda
que realizadas pelos diferentes integrantes do coletivo, suas

176 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016

fotografias possuem características similares como, por exem-


plo, cores fortes, alto contraste, composições e enquadramen-
tos inusitados, personagens meigos em cenários idílicos e
personagens grotescos em meio ao caos da maior metrópole
brasileira. Trata-se de uma maneira única de documentar na
qual – tanto num ensaio autoral quanto num serviço enco-
mendado, ou seja, um trabalho comercial – as linguagens se
confundem e, mais uma vez, a personalidade do grupo se so-
bressai, seja pelo olhar dos fotógrafos, seja pela criatividade
no tratamento final das imagens.
Além das séries fotográficas, a Cia de foto produziu nar-
rativas documentais que misturam cenas em movimento, áu-
dio, textos e, principalmente, fotografias. Num momento em
que a “sociedade da informação” está cada vez mais baseada
na convergência de mídias para acesso a conteúdos informa-
tivos – sejam factíveis ou ficcionais – o coletivo Cia de foto
aproveitou as potencialidades das novas tecnologias digitais
para produzir narrativas não lineares de caráter documental
como, por exemplo, o vídeo “911”.
“911” documenta a ocupação de um prédio de 29 andares
que ficou abandonado por 12 anos. Localizado em uma área
de alto valor comercial no centro da capital paulista, mais pre-
cisamente no número 911 da Avenida Prestes Maia, o prédio
tinha suas fachadas usadas como suporte para propaganda
publicitária e durante quatro anos serviu de abrigo para 468
famílias: eram 1.680 latino-americanos e brasileiros das regi-
ões Sul, Norte e Nordeste do país que formavam a maior ocu-
pação vertical urbana da América Latina.
Produzido em 2006 por Alex Carvalho (Twinstudio), o
vídeo, com duração de 4 minutos e 57 segundos, apresenta
em sequência cerca de 20 fotografias estáticas e cenas em mo-
vimento do coletivo Cia de foto. Inicialmente, uma imagem
aérea noturna em movimento mostra a parte externa do pré-
dio em meio ao frenesi urbano da região central São Paulo.
Na fachada externa observa-se um grande painel expondo o
retrato de uma das moradoras do prédio e que pode ser visto
de longe por pedestres e condutores de automóveis que por
ali passam entre ruas, avenidas e viadutos. Após a apresen-
tação de um texto de introdução em inglês, o mesmo retrato
da moradora (Fig. 1), usado no painel preso à fachada externa
do prédio, abre a projeção das imagens sob uma melancólica
trilha sonora. Cenas estáticas da arquitetura interna do prédio
mostram as más condições de conservação do local: paredes
quebradas e sem reboco; corredores e banheiros sujos; rede

Rafael Castanheira . Narrativas híbridas: o estático e o móvel no vídeo “911” do coletivo Cia de Foto 177
Figura 1 hidráulica e elétrica precárias, expostas pelo teto sem forro; e
“911”, Cia de foto, 2006. divisórias de apartamentos feitas de improviso com pranchas
Vídeo disponível em: <http://
vimeo.com/5820275>. de madeira reaproveitadas.
Acesso em: 01 abr. 2016. Em meio a essa atmosfera de caos e não pertencimento,
uma série de retratos apresenta os moradores em poses que os
dignificam. Não são flagrantes de cenas fortuitas. Trata-se de fo-
tografias feitas com consentimento dos fotografados que estão
conscientes da presença do fotógrafo e, em sua maioria, olham
direto para a câmera. São mães e pais com filhos no colo, crian-
ças, jovens negros e pardos; todos numa relação de dialogismo
fotógrafo/fotografado, haja vista que estes são registrados em
seus afazeres cotidianos (mulher estende roupa no varal, ho-
mem carrega tapete, crianças brincam no pátio) e, em alguns
casos, estão em seus ambientes privados (mulher na janela, ho-
mem assiste televisão em seu quarto, criança brinca na sala).
Se não fosse a mistura de cenas estáticas com movimento,
“911” tratar-se-ia de mais uma projeção de fotografias com tri-
lha sonora. Mas, em sua narrativa, o hibridismo da linguagem
fotográfica e videográfica chamam a atenção do espectador
por meio do cruzamento da fotografia estática de uma mulher
que estende sua roupa no varal com a filmagem de uma se-
gunda mulher que caminha pelo pátio do prédio. Tudo se pas-
sa numa mesma cena dividida ao meio por duas personagens

178 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016

distintas: a primeira está “congelada” no instante fotográfico


e a segunda movimenta-se com o avanço dos frames do vídeo.
Dessa maneira, numa mesma cena mesclam-se foto e vídeo,
confundindo o espectador que, diante do inusitado, abre-se
para as novas possibilidades de abordagem da realidade sem
se preocupar com a manipulação digital das imagens e suas
possíveis interferências nas narrativas híbridas do mundo
contemporâneo dominado pelas tecnologias eletrônicas.
Com o vídeo “911”, o coletivo Cia de foto participou da
exposição coletiva Geração 00 – A Nova Fotografia Brasilei-
ra, inaugurada no dia 16 de abril de 2011 no Sesc Belenzinho,
em São Paulo, exibindo 170 trabalhos de 52 artistas divididos
em dois módulos – “Limites, Metalinguagem” e “Documental
Imaginário, Novo Fotojornalismo”. Utilizando-se dos zeros
dos anos em que os trabalhos foram produzidos, 2001 a 2010
(01-10), o nome da mostra, Geração 00, faz uma clara referên-
cia ao sistema binário, base de toda eletrônica dos computa-
dores e da formação dos pixels das imagens digitais que pro-
vocaram um profundo impacto na produção, na circulação e
na forma de se pensar a fotografia hoje.
Ao contrário de tentar sintetizar a produção fotográfica
recente no país e selecionar os artistas contemporâneos “mais
importantes” para essa mostra, o seu curador, Eder Chiodetto,
preocupou-se em “fazer um mapeamento das principais linhas
de força que surgiram na fotografia brasileira nesta última dé-
cada”.4 E o Cia de foto fez parte dessa seleção não apenas com o
vídeo “911”, mas também com a série intitulada “Guerra” (2008-
2011) produzida através de um particular processo de edição do
coletivo a partir de seu próprio arquivo do qual são extraídas
não imagens de conflitos bélicos, mas sim de seu “mundo ín-
timo, imaginado” que “termina por protagonizar um conflito”.
Afinal, para os seus integrantes “nossa casa, nossos filhos, nos-
sas viagens e paisagens, nosso bairro, as janelas de nossos vizi-
nhos, são lugares e onde essa guerra emana e se pauta não por
fatos mas pelo andar fictício de nossas imagens”.5
Sobre a escolha específica da série “Guerra” e do vídeo
“911” do Cia de foto para compor a mostra Geração 00, Chio-
detto argumenta que:

O surgimento da Cia de Foto na fotografia brasileira nos anos


00 trouxe discussões que ajudaram a refletir sobre tabus até
então intocáveis. Os três fotógrafos do coletivo criaram éti-
ca e estética próprias, causando polêmicas. Deixar de assinar

Rafael Castanheira . Narrativas híbridas: o estático e o móvel no vídeo “911” do coletivo Cia de Foto 179
trabalhos individualmente e agregar ao fotojornalismo refe-
rências à publicidade e ao cinema, rompendo com a cateque-
se do realismo e expandindo a reportagem para os limites da
ficção, foram algumas bandeiras do grupo. Em “Guerra”, a Cia
seleciona fotos de São Paulo de seu arquivo, e, por meio de
edição e tratamento, lhes adiciona uma dramaticidade extra.
Assim é possível, pelo viés da ficção, demonstrar o que há de
mais real: a sensação de guerra civil que se vive na cidade. No
vídeo “911”, a Cia faz uma reportagem de rara sensibilidade ao
misturar cenas estáticas com movimento.6

Os trabalhos desenvolvidos pela Cia de foto parecem ade-


quados para se discutir os conceitos abordados no presente
artigo, já que tratam dos limites de representação da fotogra-
fia e dos hibridismos presentes nas narrativas documentais
atuais, bem como das novas possibilidades de criação e apre-
sentação da realidade social no cenário da comunicação e da
arte contemporânea.
As narrativas, sejam elas reais ou imaginárias, buscam
descrever num determinado tempo e espaço, as ações e seus
personagens. Embora as narrativas ficcionais se diferenciem
das factuais por estabelecerem respectivamente relações lógi-
cas e cronológicas com coisas imaginadas e com coisas físicas,
ambas são, entretanto, “construções discursivas” que podem
tratar diretamente da realidade por meio das mais variadas
abordagens e linguagens. E, apesar de as tecnologias digitais
terem possibilitado a produção de novas formas de narrativas
criativas que tratam da realidade por meio técnicas ficcionais
como, por exemplo, a dos moradores registrados no vídeo
“911” da Cia de foto, Motta acredita que:

[...] Essa transmutação entre o mundo da estória narrada e


o mundo da vida não parece ter se modificado no ambiente
virtual das narrativas atuais, mesmo das narrativas voláteis
da Internet. As estórias virtuais, ainda que guardem distantes
características, seguem envolvendo os receptores e eles pros-
seguem recriando na imaginação suas próprias significações
a partir do que ouvem, leem ou veem nos blogs ou redes so-
ciais embora em moldes diferentes (MOTTA, 2013, p. 73).

Ao contrário da linguagem “direta” e “objetiva” emprega-


da no final do século XIX e início do século XX pelos pionei-

180 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016

ros do gênero, o documentário fotográfico contemporâneo é,


muitas vezes, produzido por autores que não acreditam em
registro sem criação e que assumem abertamente a ficção
em suas produções e, sobretudo, a subjetividade do olhar,
as relações sociais ou subjetivas do fotógrafo com as coisas
ou com as pessoas fotografadas e a subjetividade própria da
escrita fotográfica (a maneira, o estilo). Ou seja, esses novos
paradigmas vão desafiar nossa percepção sobre “a realidade”
e contribuir para a construção de uma nova visualidade sobre
as questões sociais no mundo.

Notas

1. “[...] digital life exemplifies the trajectory of photography (and cinema)


has taken, culminating in a unifying aesthetic of what many call conver-
gence. In convergence, sometimes technology alters practice, gives it a jolt,
such as in the advent of mobile telecommunication and the Internet, which
has dramatically affected where, how, and with whom we communicate. At
other times it is the practice that subsume the new technology and that,
despite the academic protest to the contrary, is what has happened in pho-
tography and cinema” (SUTTON, 2009, p. 2).

2. […] the arrival of digital not only is a life-changing technological interven-


tion but returns us to a natural state affairs in which poetics, represented by
painting, is the predominant regime (SUTTON, 2009, p. 3).

3. Texto de apresentação do coletivo em seu site (www.ciadefoto.com), que


no entanto, encontra-se atualmente indisponível.

4. Eder Chiodetto, curador da exposição, em entrevista ao blog Paraty em


Foco no dia 11 de abril de 2011. Ver: <http://paratyemfoco.com/blog/2011/04/
geracao00/>. Acesso em: 10 maio 2014.

5. Ver: <http://www.ciadefoto.com/filter/ensaio/GUERRA>. Acesso em: 01


abr. 2016.

6. Texto de apresentação dos trabalhos “Guerra” e “911” da Cia de foto duran-


te a exposição Geração 00, realizada entre os dias 16 de abril de 12 de junho
de 2011, no SESC Belenzinho, em São Paulo.

Referências
BEAUMONT, Newhall. The History of Photography. 5. ed.
New York: MOMA, 1997.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinema e pós-cinema. Campinas,
Papirus, 1997.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise Crítica da Narrativa. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2013.
PITOF, Jean-Christophe Grange. Vidocq, 2001. (100 min),

Rafael Castanheira . Narrativas híbridas: o estático e o móvel no vídeo “911” do coletivo Cia de Foto 181
France, dir. Pitof, RF2K/Studio Canal/ TF1, 2001.
ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte con-
temporânea. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.
SUTTON, Damian. Photography, cinema, memory: the crystal
image of time. Minneapolis: Minnesota Press, 2009.

Recebido em: 08/03/16


Aceito em: 07/05/16

Rafael Castanheira
rafaelcastanheira@hotmail.com
Rafael Castanheira nasceu em Goiânia, GO, 1977. Vive e trabalha em
Brasília, DF. Fotógrafo e pesquisador, é doutorando em Comunicação
pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Artes e Cultura Visual
pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Atuou como fotojornalista e
assessor de comunicação no Rio de Janeiro, Brasília, Amazonas e Mato
Grosso. Desde 2007 trabalha como professor de fotografia, tendo lecio-
nado na UFG, PUC (GO) e no Instituto de Ensino Superior de Brasília
(IESB). Atualmente, desenvolve projetos pessoais em fotografia, como
ensaios, pesquisas e curadorias. 

182 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 166-182, jul-dez 2016


ENSAIO VISUAL

Arte fora da norma


Moacir
Arte fora da norma: a obra de Moacir,
o Nô, da Vila de São Jorge

Carla de Abreu

N a década de 1980 fui incontáveis vezes à Chapada dos Ve-


adeiros, especificadamente à Vila de São Jorge, que naquela
época não passava de um pequeno povoado no cerrado goiano,
sem luz elétrica e nenhuma estrutura para turistas, cercado de
misticismo, histórias sobrenaturais e uma natureza majestosa.
Moacir Soares de Farias, ou Nô, como é conhecido, já
era considerado um personagem da Vila. Vivia em extrema
pobreza e era tido como louco e maldito pelos moradores de
São Jorge, além de ser o alvo preferido das brincadeiras pouco
amistosas das crianças do povoado.
Moacir nasceu com má formação óssea, tem baixa estatu-
ra, é surdo do ouvido esquerdo e se comunica com dificuldade
por ser fanho. Desde criança até por volta dos 30 anos portava
consigo um cobertor que lhe cobria o rosto e parte do corpo.
Por um pequeno orifício enxergava o mundo.
O motivo da rejeição por parte da população da Vila de
São Jorge estava em seu aspecto físico, no jeito arredio, e, prin-
cipalmente, nas figuras enigmáticas que costumava pintar
com carvão e pigmentos da natureza sobre postes, calçadas
ou caixas d’água. Entre as imagens, vários capetas com falos
enormes espalhados pela pequena Vila.
Moradores mais antigos do povoado relatam que certa
vez, após uma queixa formal à administração da Vila, todas
suas pinturas foram apagadas com tinta branca, e a polícia lo-
cal reprimiu o artista. Nos dias seguintes, seus desenhos res-
surgiram na Vila com homens fardados copulando com seres
fantásticos, facas e sangue. É bem possível que Moacir tenha
gostado da tinta branca para realçar ainda mais seus desenhos.
Na verdade, Nô desenhava em qualquer suporte que esti-
vesse a seu alcance – sacos de papel, o verso de capas de revis-
tas, papéis que encontrava no povoado e, até mesmo, as pare-
des de sua casa, construída com as próprias mãos. Em 1986,

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 185-195, jul-dez 2016 193


levei meus pais para conhecerem a Chapada e contei-lhes a
história de Moacir. Decidimos levar resmas de papel, lápis de
cor e giz de cera para presenteá-lo. Nesta época, Moacir de-
veria ter aproximadamente 27 anos e já vendia seus desenhos
aos poucos turistas que apareciam por lá.
Para minha surpresa, ele e minha mãe tiveram uma afini-
dade à primeira vista, e Moacir até retirou o cobertor da ca-
beça, deixando seu rosto visível. O artista presenteou minha
mãe com uma série de desenhos, incluindo um em especial:
o retrato dela. Nestes desenhos, as temáticas de sua arte já
estavam presentes: híbridos de animais e humanos, vaginas,
falos gigantes, a natureza crua, facas, sangue, cobras, anjos,
demônios... Eram imagens com elevado conteúdo simbólico,
referente a um imaginário completamente íntimo, elementos
de um mundo fantástico, crenças religiosas e seres sexuais.
A partir de 1990, São Jorge, que é porta de entrada do Par-
que Nacional da Chapada dos Veadeiros, passou a receber
cada vez mais turistas. Não demorou muito para a arte de Mo-
acir despertar a atenção de algumas pessoas influentes, dentre
as quais o fotógrafo goiano João Fernandes, que mais tarde o
apresentou ao professor e pesquisador Carlos Sena, falecido
em 2015. Tornaram-se amigos e Sena ganhou de Moacir uma
pasta com centenas de desenhos que hoje integram o acervo
do Centro Cultural Universidade Federal de Goiás (CCUFG).
Depois desse período, Moacir tornou-se conhecido em um
seleto círculo de artistas, curadores, críticos e intelectuais.
Abandonou definitivamente o pano que lhe cobria o rosto,
tornou-se mais sociável, começou a vender com mais facilida-
de seus trabalhos e, desde 1998, integra a identidade visual do
Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros,
um dos principais acontecimentos da região, trabalho pelo
qual recebe direitos autorais.
Há muitas obras de Moacir espalhadas em mãos de par-
ticulares, turistas ocasionais ou colecionadores individuais.
Atualmente, o CCUFG é a única instituição pública que pos-
sui, em seu acervo, uma coleção do artista: os desenhos doados
por Carlos Sena. Em 2013, essa coleção fez parte da exposição
“Arquipélago”, uma mostra coletiva que reuniu um conjunto
heterogêneo de obras do acervo do CCUFG assinadas por mais
de vinte artistas brasileiros: além de Moacir, Beatriz Milhazes,
Cildo Meireles, Tomie Ohtake, Siron Franco, entre outros.
Recentemente, discursos mais conservadores e a onda
moralista que têm ocupado cada vez mais espalho no país não

194 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 185-195, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 185-195, jul-dez 2016

deixaram a pequena Vila de São Jorge impune: a casa de Mo-


acir foi alvo de pichações grosseiras. Provavelmente tenham
sido feitas por turistas que não compreendem a importância
de Moacir para a identidade local e tampouco entendem o
universo mágico estampado nas obras de Nô. Mais recente-
mente a doença degenerativa de Moacir vem se agravando, e o
artista tem enfrentado, progressivamente, maiores dificulda-
des para produzir sua arte.
Moacir é um resistente. Resistiu à pobreza, ao bullying,
aos ataques, à censura, à esquizofrenia, à solidão, ao mora-
lismo ignorante. Sua arte não tem condicionantes, não segue
normas, padrões ou convenções acadêmicas, é livre de atadu-
ras culturais e morais. Mas, Nô também é uma vítima. Vítima
da tirania de uma sociedade que não o apoia e o transformou
em atrativo turístico de São Jorge. Continua pobre, considera-
do louco e marginalizado.
A revista Visualidades, atenta à envergadura da produção
de Moacir e reconhecendo a importância do artista no cenário
nacional, publica este ensaio visual com parte dos desenhos
doados ao CCUFG. As fotografias foram feitas por Alice Fáti-
ma Martins, professora da Faculdade de Artes Visuais (FAV/
UFG) e editora da revista Visualidades de julho de 2014 a de-
zembro de 2016.

“Os loucos são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois


metros do chão.”
(Arthur Bispo do Rosário)

Carla de Abreu
Profa. da Faculdade de Artes Visuais (FAV/UFG) e Coordenadora do
Núcleo de Intercâmbio e Ações Educativas do CCUFG.

Moacir . Ensaio Visual 195


RELATO DE PESQUISA
“2086”: a imagem entre a vigilância
e a contemplação1

Fernando Gerheim

Resumo

Este artigo relata o processo de concepção e realização do


vídeo “2086” (2012) com os alunos de um curso de graduação
na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Isolamos
um dos elementos que inscrevem a imagem – a sua captação
pela câmera – e o utilizamos como um componente de
linguagem. Em oposição à “imagem imersiva” da Realidade
Virtual, nomeamos essa imagem “emersiva”. Contradizendo a
ideia de transmissão imediata, ela torna a imagem em vídeo
Palavras-chave:
Vídeo-vigilância, imagem em um momento de transformação. Chamamos o grupo de
emersiva, Perímetro Móvel Perímetro Móvel.

198 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016


“2086”: the image between surveillance
and contemplation

Fernando Gerheim

Abstract

This article reports the conception and production process


of the video “2086” (2012) with students in an undergraduate
course at Universidade Federal do Rio de Janeiro. We
isolate one element that inscribe the image - its capture
by the camera - and used it as a language component. As
opposed to “immersive image” of virtual reality, we name
this “emerging image”. Contradicting the idea of immediate
transmission, it makes capturing video a moment of Keywords:
Video surveillance, emerging
changing image. Mediation is the foundation of the image. image, Perímetro Móvel
We call the group Perímetro Móvel (Perimeter Mobile). (Perimeter Mobile)

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016 199


“2086”: la imagen entre la vigilancia
y la contemplación

Fernando Gerheim

Resumen

Esta investigación relata el proceso de concepción y


realización del video “2086” (2012) con alumnos de un curso
de graduación de la UFRJ. Aislamos uno de los elementos
que inscriben la imagen – su captación por la cámara – y lo
utilizamos como un componente del lenguaje. En oposición a
la “imagen imersiva” de la Realidad Virtual, denominamos esa
imagen de “emersiva”. Contradiciendo la idea de transmisión
Palabras-clave:
Video-vigilancia, imagen
inmediata, ella convierte la imagen en video en un momento
emersiva, Perímetro Móvel de transformación. Llamamos al grupo de Perímetro Móvel.

200 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016

Em Imagens técnicas: uma questão de linha geral, Philippe


Dubois enumera cinco ordens de imagens técnicas. A câmera
obscura intervém na concepção da imagem; a fotografia na
sua inscrição (que passa a ser automática); o cinema na sua
visualização (a imagem passa a depender do projetor); a TV/
vídeo na transmissão/difusão da imagem (que passa a ser ao
vivo). Com a imagem digital, é o próprio objeto a se “represen-
tar” que passa a pertencer à ordem das máquinas. Surge uma
nova forma de concepção, que para Dubois zera e recomeça,
como simulação, todas as anteriores (GERHEIM, 2016).

Até então, os outros sistemas pressupunham todos a existên-


cia de um Real em si e para si, exterior e prévio, que cabia às
máquinas de imagem reproduzir. Com a imagerie informática,
isto não é mais necessário: a própria máquina pode produzir
seu “Real”, que é a sua imagem mesma (DUBOIS, 2004, p. 47).

Ao invés de evoluir, o grosso da imagem informática, se-


gundo Dubois, retrocede à iconografia renascentista, cujo so-
nho de ser uma imagem de cálculo enfim se realiza. O autor
mostra que o discurso de maior realismo, que se ampara na
transmissão em tempo real, contradiz o que a imagem infor-
mática de fato é: uma imagem imaterial, composta de dados
algoritmos (GERHEIM, 2016).
Esse discurso, no entanto, parece traduzir a versão con-
temporânea de certo mito antigo:

Velho mito da imagem total, que remonta a um passado dis-


tante, talvez ao nascimento mesmo das imagens, às origens

Fernando Gerheim . “2086”: a imagem entre a vigilância e a contemplação 201


da ideia de representação (‘Um mundo à sua imagem’). Uma
ideia divina, como todos sabem (DUBOIS, 2004, p. 53).

Consideramos a imagem técnica de ordem número cinco


inscrita como linguagem não só materialmente, mas também
pelo que se diz a seu respeito, ou seja, discursivamente. Nossa
intenção, ao negar esse discurso, foi negar a imagem como du-
plicação do real. Ao invés da ideia de uma mídia, concebemos
a imagem como um acontecimento. Dela não faz parte apenas
a materialidade do meio, mas também, como disse, os discur-
sos que determinam suas formas (seus usos).
Utilizamos a imagem sob a inspiração do modo como Du-
bois compreende a imagem técnica de ordem número cinco
em sua relação mimética: “espiral infinita”, “analogia circular”,
“uma serpente que morde a própria cauda”. A relação miméti-
ca aí funciona como “dois espelhos paralelos que se refletem e
se repercutem ao infinito sem que saibamos qual foi o ponto
de partida.” (2004, p. 53).
Decidimos interpor alteradores de imagem entre a obje-
tiva e os objetos a serem captados a fim de revelar a câmera
como um elemento de linguagem.
Embora a imagem numérica, constituída de bits de 0 e
1, não tenha necessariamente a realidade como referente ori-
ginário, o grosso do investimento nessa área tecnológica e do
seu uso parece destinado a simular três dimensões e a criar
uma imagem com maior grau de analogia e poder mimético
(GERHEIM, 2016). Mas isso não é determinado por sua nature-
za técnica. Nosso objetivo foi fazer aparecer, como diz Dubois,
a margem de indeterminação em que se situa a decisão estética.

Em suma, a dimensão mimética da imagem corresponde a


um problema de ordem estética, e não é sobredeterminada
pelo dispositivo tecnológico em si mesmo. Todo dispositivo
tecnológico pode, com seus próprios meios, jogar com a dia-
lética entre semelhança e dessemelhança, analogia e desfigu-
ração, forma e informe. A bem da verdade, é exatamente este
jogo diferencial e modulável que é a condição da verdadeira
invenção em matéria de imagem: a invenção essencial é sem-
pre estética, nunca técnica. (DUBOIS, 2004, p. 57).

Assim, não trabalhamos a linguagem simplesmente como


meio, mas pelo modo como ela é inscrita na e pela cultura.
Ao interpormos alteradores de imagem entre a realidade e a
objetiva trocamos a transmissão em “tempo real”, do discurso

202 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016

dominante sobre a imagem numérica (GERHEIM, 2016), pela


“mediação” como fundamento, questão cara à videoarte pio-
neira das décadas de 1960 e 70.
A questão mimética se colocou para nós como uma velha
aporia: se a linguagem não reconhece unidades prévias dadas
no Real, qual o seu fundamento? A linguagem deve saltar no
vazio de ser o seu próprio pressuposto? Nossa resposta foi que
o vazio é a condição de possibilidade do contato com a ma-
téria, o toque. Postulamos assim um salto na matéria como
princípio para acessar a linguagem além ou aquém das formas
discursivas – enquanto determinantes dos usos – dominantes
que a inscrevem. Nosso método, acreditávamos, produziria o
“jogo modulável e diferencial” da invenção estética.
O discurso que inscreve a imagem numérica foi subver-
tido com a alteração das próprias condições de captação da
imagem impostas pelo dispositivo câmera. Cada aluno traria
um elemento para interpor entre a câmera e a imagem. Gra-
varíamos as imagens que seriam colocadas para passar on-line
na TV da sala, em “tempo real”. A soma delas resultaria no
vídeo. Ou seja, a soma dos trabalhos individuais resultaria
num trabalho coletivo. Substituímos a estrutura industrial do
cinema por uma tecno-artesania conceitual que tomava o au-
diovisual como campo de cruzamentos entre cinema, vídeo e
imagem informática (GERHEIM, 2016) (a imagem técnica de
ordem número cinco pode retomar todas as outras).

II

Incorporando as tecnologias da comunicação, a imagem


digital é telemática. A transmissão em tempo real faz dela
uma imagem indexada no tempo presente. Não uma imagem-
-memória, como a do cinema ou a da fotografia, mas uma
imagem em que o efeito de realidade fotográfico é substituído
por um efeito de presença em que a própria simulação deseja
ser vivida como um real.
Para o teórico da mídia Thomas Y. Levin, o discurso de
indicialidade temporal da imagem de vigilância é uma “com-
pensação” para sua falta de indicialidade espacial.2 No circuito
fechado de TV, com seu tempo contínuo, a imagem adere e
parece se identificar integralmente ao real em sua quase eter-
nidade visual (GERHEIM, 2016).
Ao usarmos imagens em tempo real nos aproximamos es-
teticamente da televisão: “enquanto a categoria primária do
cinema é a do espaço (espaço pró-fílmico, espaço fotográfico,

Fernando Gerheim . “2086”: a imagem entre a vigilância e a contemplação 203


espaço narrativo), a marca semiótica da televisão é, evidente-
mente, a do tempo”. (LEVIN, 2009, p. 190). A indexicalidade
espacial que orientava as condições fotográficas anteriores foi
substituída pela indexicalidade temporal. “A retórica indexi-
cal do passado fotoquímico pré-digital do cinema, portanto,
sobrevive na era digital, ainda que relançada sob a forma da
indexicalidade temporal da imagem vigilante em tempo real.”
(LEVIN, 2009, p. 190)3.
Uma vez decidido que captaríamos imagens em tempo
real - fossem reais ou encenadas -, montamos um set na sala:
de um lado a smart-TV, de outro a câmera num tripé, e entre
os dois o espaço para os gestos. “2086” é um vídeo feito com
imagens de segunda geração, captadas de uma tela.
O vídeo, lugar da transmissão ao vivo, hoje já não é, como
nos tempos analógicos da videoarte histórica, o imediato em
caracol de TV Budha ou o mis-en-abyme de efeitos de feedback
de Global Groove, para citar dois trabalhos de Nam June Paik
da década de 1970. Para Dubois (2004), o vídeo pós-digital
tende a tornar-se, em sua concepção hegemônica, o imediato
literal e sem ambiguidade da comunicação. A utopia da me-
trópole inteiramente transparente de Dziga Vertov em Um
homem com uma câmera (1929) tornou-se, no século XXI, a
paranoia de espaços observados 24 horas por câmeras de vigi-
lância (GERHEIM, 2016).
Alteramos imagens em tempo real de câmeras de segu-
rança do tráfego de várias cidades do mundo captadas em
tempo real na TV da sala; interceptamos também imagens
pré-gravadas, filmadas para parecerem de câmeras de vigi-
lância. Com o dispositivo ótico que cada aluno trouxe, exe-
cutamos os gestos. Foram utilizadas nas ações: uma taça com
água; uma garrafa de plástico transparente amassada com
água; pingentes de cristal; uma tampa de plástico de caixa de
bombom imitando cristal sextavado; um aquário com peixe
Beta; um caco de vidro convexo âmbar; uma fictícia “bomba-
-microchip” feita com um chip de computador. Numa placa de
acrílico transparente, colocada entre a câmera e a tela de TV,
“pichamos” frases e palavras de ordem: “O Olhar no Poder”,
“Greve Ocular”, “The End”, “Abaixo a vigilância!” Fizemos nas
placas grafismos e manchas que obstruíam partes da imagem.
As mãos que intrometiam o dispositivo na frente da câmera
eram os “personagens”. Reduzidos a esta parte do corpo e a
essa ação, eles formavam um coletivo. O gesto dramático rea-
lizava a inscrição ficcional da imagem muitas vezes real numa

204 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016

1 2

3 4

Figura 1
Intervenção em câmeras de
vigilância das ruas do Rio de
Janeiro. Videostill de 2086, 2012.
Perímetro Móvel

Figura 2
Intervenção em câmeras de vigi-
lância. Video still de 2086, 2012.
Perímetro Móvel

Figuras 3, 4 e 5
Video still de pichação em obje-
tiva de câmera de vigilância. Ae-
5 roporto Internacional de Lisboa.
2086, 2012. Perímetro Móvel

narrativa inseparável da própria estrutura visual. O tempo


real, além de diegético, era um acontecimento da imagem
(GERHEIM, 2016).
Na ficção, intervíamos num cctv (close circuit TV) pla-
netário (GERHEIM, 2016). O gesto de intervir era uma obra-
-atentado cometida-criada por um grupo de ativistas-artistas
sem condições de migrar para uma colônia do sistema solar
ou para um programa de computador, e que não tolerava mais
permanecer na Terra sendo vigiado 24 h por um circuito fe-
chado de câmeras de segurança. No dia 12 de maio de 2086 -

Fernando Gerheim . “2086”: a imagem entre a vigilância e a contemplação 205


como pode ser lido no canto da imagem -, sincronizados pelo
horário de Greenwich, o grupo colocou seu plano em ação.
O propósito é estético-político – transformar a vigilância
em contemplação – e ao mesmo tempo pragmático – pôr em
pane o sistema de vigilância global e fugir. A fim de representar
a visão subjetiva das câmeras de vigilância fizemos coincidir as
bordas da TV com o quadro, e inserimos no canto das imagens
(a maior parte delas em contra-plongée) time code, data e nú-
mero de canal. Emancipamos as imagens e ao mesmo tempo as
exploramos como signos simbólicos e, portanto, legíveis. Elas
se prestam à contemplação e à decifração. A ação produzia as
imagens na medida mesma em que antagoniza com elas.
O que vemos é, diegeticamente, o instante sincronizado
em que os ativistas, numa ação coordenada global, enfiam os
alteradores óticos diante das câmeras do cctv planetário. De-
legávamos o registro da performance ao sistema de vigilância
global. Assim, a vigilância passava não só para a estrutura vi-
sual como temporal da imagem. O que em 2086 é mostrado
sequencialmente - uma intervenção após a outra - é simultâ-
neo no nível diegético da narrativa.
“2086” junta videoarte, ficção científica conceitual e falso-
-documentário (found-footage). Perturbando o discurso sobre
a vigilância amparado na indexicalidade temporal da TV/ví-
deo, a imagem em “2086” não é nem indicial, nem virtual. Ela
é uma alteração transformadora provocada pela intervenção
no seu dispositivo de captação. O suposto realismo à prova de
manipulações da mimese do tempo real, atribuído à imagem
de vídeo é tornado ficcional por uma espécie de “antecipação”.

O realismo da simultaneidade vem se acrescentar ao do mo-


vimento para formar uma imagem que nos parece cada vez
mais próxima e decalcada no real, a ponto de gerar por vezes
confusão, como nos muitos ‘acidentes’ das (de certo modo)
falsas transmissões ‘ao vivo’ da televisão, em que a preocupa-
ção de colar ao acontecimento é tanta que se transforma em
antecipação, isto é, em trapaça. (DUBOIS, 2004, p. 52).

Podemos dizer que a expressão filosófica dessa “antecipa-


ção” ou “trapaça” é a “mediação como fundamento”. Diante do
vazio, a linguagem não conta com nenhuma entidade abstra-
ta e universal como lastro essencial ou unidade prévia. Isso
quase a obriga a considerar como suas partes integrantes, os

206 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016

6 7

8 9

elementos que a inscrevem, sua exterioridade. Assim como a Figura 6


Vídeo still de intervenção com
reflexão sobre a materialidade da linguagem e sobre o vídeo, garrafa plástica amassada com
enquanto imagem técnica, serviu de base para a realização de água em câmera de vigilância.
Rio de Janeiro. 2086, 2012.
“2086”. Esta produção nutriu a teoria, complementando-a Perímetro Móvel
com a dimensão da experiência. Nessa via de mão dupla entre
Figuras 7, 8 e 9
as considerações teóricas e práticas, criamos em “2086” uma Vídeo still de pichação em
fictícia vídeo-instalação em escala planetária um tanto mais câmera de vigilância. Terraço na
cidade do México. 2086, 2012.
sombria que a arte satélite de Nam June Paik. Perímetro Móvel

Considerações finais
A ação em “2086” altera o dispositivo de captação, que ao
tornar-se um elemento constitutivo da imagem incorpora à
linguagem o seu “exterior”. A linguagem é concebida menos
como conhecimento do mundo do que como uso construído
ou como ação sensível. Nomeamos nossa concepção estética
de “Imagem Emersiva”, em oposição à imagem imersiva da Re-
alidade Virtual. Usamos a linguagem em sua dimensão mate-
rial, considerando que a própria linguagem é imediata, ou, o
que dá no mesmo, a mediação é o seu fundamento.
“2086” resultou da ideia bastante situacionista4 de que a
teoria manejada por artistas pode e deve ser lugar de ações
estéticas. Nomeamos o grupo “Perímetro Móvel”, assinatura

Fernando Gerheim . “2086”: a imagem entre a vigilância e a contemplação 207


10 11

12

Figuras 10, 11 e 12 que se referia tanto aos seus membros, que mudariam a cada
Vídeo still de intervenção com semestre, quanto aos limites do audiovisual e ainda à ausência
aquário com peixe em câmera de
vigilância de estação de metrô de fronteira entre reflexão teórica e prática.
do Rio de Janeiro. 2086, 2012. É possível traçar um paralelo entre “2086” e o que Dubois
Perímetro Móvel
chama de “vídeo metacrítico” (2006, p. 110). O autor define o
vídeo como um “estado da imagem”, uma maneira de pensá-la
mais do que uma nova categoria da imagem. No vídeo, ima-
gem e dispositivo são inseparáveis, e a imagem deve ser pensa-
da “junto com o dispositivo, ou como dispositivo”. Ao conside-
rar a própria captação e a transmissibilidade da imagem, que
confunde o vídeo com uma simples mídia, como elementos
componentes da linguagem, “2086” é uma meta-captação e
uma meta-transmissão. Isso parece de acordo com a ideia de
que o vídeo é “uma forma que pensa” toda e qualquer imagem
(2006, p.116).5 No caso de “2086”, pensa o vídeo, a imagem di-
gital, o cinema e a própria linguagem.

208 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016

Notas

1. A primeira versão do vídeo, realizada em 2012, pode ser assistida em:


https://vimeo.com/170514390?utm_source=email&utm_medium=vimeo-
-cliptranscode-201504&utm_campaign=28749. A segunda versão do vídeo,
realizada em 2016 e exibida publicamente no evento “Videoarte Clube -
Travessias e Fronteiras” (1ª Edição) pode ser acessada em: https://vimeo.
com/173158147. O presente artigo é a etapa final de uma pesquisa iniciada
em 2012, que foi objeto de discussão, em suas etapas anteriores, nos artigos
“2086: Da vídeo-vigilância à imagem emergente” (atas do V Encontro Anual
da AIM, 2016. Disponível em: http://www.aim.org.pt/atas/pdfs/Atas-VEn-
controAnualAIM-06.pdf) e “Entre a imagem e a escrita: fronteiras da cena
num roteiro e num vídeo”, escrito em parceria com Rafael Leal (anais do VIII
Congresso da Abrace, 2014 http://portalabrace.org/viiicongresso/resumos/
territorios/GERHEIM%20Fernando%20LEAL%20Rafael.pdf). De acordo
com o caráter processual da pesquisa, cada uma de suas diferentes etapas
tem valor autônomo.

2. LEVIN, Thomas Y. Retórica do índex temporal: narração vigilante e o cine-


ma de “tempo real”. In: MACIEL, Kátia (Org.) Transcinemas. Rio de Janeiro:
Contra Capa, 2009. p. 175.

3. Levin fala da passagem da vigilância da diegese para a estrutura dos filmes


no cinema narrativo a partir da década de 1990.

4. Movimento francês de cunho político e artístico, ativo no final da década


de 1960, no qual se destaca o pensador Guy Débord. Ver MARCOLINI,
Patrick. Le Mouvement Situationiste - une histoire intellectuelle. Paris:
L’échapée, 2013.

5. Ver o capítulo O estado-vídeo: uma forma que pensa, em Cinema, vídeo


Godard. p. 97-116.

Referências

BARTHES, Roland. Mitologia hoje. In:______. O rumor da


língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem humana e a linguagem
em geral. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São
Paulo: Livraria Duas Cidades e Editora 34, 2011.
CASSAGNAU, Pascale. ‘TV as a creative medium’: vidéo et té-
lévision, in Qu’est-ce que l’art vidéo aujourd’hui?. Direção
Stéphanie Moisdon. Paris: Beaux Arts édition, 2008.
DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac
Naify, 2004. p.31-67.
GERHEIM, Fernando. 2086: Da vídeo-vigilância à imagem
emergente. In: ENCONTRO ANUAL DA AIM, 5, 2016,
Lisboa. Atas... Lisboa: AIM. ISBN 978-989-98215-4-5. Dis-
ponível em: <http://www.aim.org.pt/atas/pdfs/Atas-VEn-
controAnualAIM-06.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2016.
GERHEIM, Fernando. Linguagens inventadas - palavra ima-
gem objeto: formas de contágio. Rio de Janeiro: Ed. Zahar,
2008.

Fernando Gerheim . “2086”: a imagem entre a vigilância e a contemplação 209


LEVIN, Thomas Y. Retórica do índex temporal: narração vigi-
lante e o cinema de “tempo real”. In: MACIEL, Kátia (Org.).
Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009. p. 175.
THÉLY, Nicolas. ‘My space is youtube’: vidéo et internet. In:
Qu’est-ce que l’art vidéo aujourd’hui? Direção Stéphanie
Moisdon. Paris: Beaux Arts édition, 2008

Recebido em: 21/10/15


Aceito em: 18/05/16

Fernando Gerheim
fernando.gerheim@gmail.com
Professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ/ ECO), professor do Programa de Pós-Graduação em
Artes da Cena (PPGAC/ ECO) e professor do Programa de Pós-Gradua-
ção em Artes Visuais (PPGAV/ EBA).

210 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 198-210, jul-dez 2016


Teses e dissertações
O renascimento da relação entre a arte e a ciência:
discussões e possibilidades a partir do Codex entre
Galileo e Cigoli no século XVII

Josie Agatha Parrilha da Silva

Resumo

A pesquisa compreende a relação entre a arte e a ciência no


Renascimento a partir das relações maduras entre Galileo Ga-
lilei (1564-1642) e Lodovico Cardi (1559-1613), conhecido como
Cigoli. Iniciamos os estudos com Madonna Assunta, pintada
num afresco por Cigoli na cúpula da capela Paolina na Basíli-
ca Papale di Santa Maria Maggiore (1610-1613), em Roma, por
intermédio da análise de três fontes primárias: o Sidereus nun-
cius (1610) e o Istoria e Dimostrazione sulle Macchie Solari e
loro Accidenti (1613), de Galileo Galilei, o carteggio fra Cigoli e
Galileo (1609-1613) e imagens obtidas in loco (fotografias e fil-
magens realizadas pela autora). O objetivo geral da pesquisa
foi compreender a relação entre a arte e a ciência e, por meio
desta compreensão, repensar propostas teórico-práticas de
reaproximação entre elas. Acreditamos que, ao analisar com
profundidade o relacionamento entre arte e ciência com base
na obra de Cigoli, na sua lua craterada, poderemos compre-
ender como se deu esse processo e repensar a complexidade
da questão do conhecimento fragmentado que encontramos
hoje. A hipótese principal levantada é a de que o relaciona-
mento arte-ciência no Renascimento pode apontar caminhos
para se realizar propostas efetivas para que a ciência e a arte
novamente se reaproximem e forneçam a construção de novos
conhecimentos. Pela análise da imagem da Madonna, verifi-
camos que no afresco de Cigoli, houve a representação da lua
não mais sob as imposições dos cânones religiosos, mas sim,
a partir de um quadro de uma nova ciência. A fundamentação
teórica adotada para a pesquisa foi a Fenomenologia pelo fato
de privilegiar a compreensão e a análise crítica dos fenôme-
Palavras-chave:
nos com procedimentos adequados e adaptados para a ciência Arte-ciência, Galileo
e a arte. Para a análise da imagem utilizamos a metodologia Galilei, Cigoli

VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 213-215, jul-dez 2016 213


de Panofsky (2007). Mediante a análise das cartas, desenhos
e pinturas, podemos entender como se desenvolveu o conhe-
cimento de ambos: Cigoli e Galileo. As cartas fazem parte de
uma correspondência particular entre os dois personagens.
Nestas discutiam vários assuntos, mas o foco repousava nas
questões das descobertas realizadas por Galileo utilizando
o telescópio e de como seu amigo Cigoli acompanhava tais
descobertas. Esta pesquisa contribuiu com questionamen-
tos sobre propostas teórico-práticas embasadas na reaproxi-
mação entre a arte e a ciência, a exemplo do que ocorreu no
Renascimento. Entre as propostas que construímos baseadas
na pesquisa realizada, destacamos: introdução de discipli-
nas ligadas a Ciência no currículo do curso de Licenciatura
em Artes Visuais (Diálogos Interdisciplinares Arte-Ciência I
e II); criação de linhas de pesquisas em Pós-Graduação stric-
to sensu de Ensino relacionando Arte e Ciência; organização
de Grupo de Pesquisa Interdisciplinar certificado pelo CNPq;
ampliação do evento Workshop Paranaense de Arte-Ciência
(hoje em sua sexta edição regional e quarta internacional);
desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares a partir da
relação Arte e Ciência.

Recebido em: 05/06/15


Aceito em: 10/05/16

214 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 213-215, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 213-215, jul-dez 2016

Josie Agatha Parrilha da Silva


japsilva@uepg.br
Doutora em Educação para Ciência e Matemática pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM). Mestra em Educação, especialista em
Educação Pública e licenciada em Pedagogia pela mesma Universidade.
Também possui licenciatura em Artes Visuais pelo Centro de Ensino
Superior de Maringá (CESUMAR) e é especialista em Docência no
Ensino Superior. Atualmente é docente do Departamento de Artes da
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Atua em disciplinas
ligadas a formação pedagógica para o curso de Licenciatura em Artes
Visuais e coordena a disciplina articuladora.  Docente do corpo perman-
ente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Ensino de Ciência
e Tecnologia (PPGECT) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR). Líder do grupo de pesquisa INTERART - Interação entre arte,
ciência e educação: diálogos e interfaces nas Artes Visuais (CNPq)

Josie Agatha Parrilha da Silva . O renascimento da relação entre a arte e a ciência: discussões (...) 215
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por revisores ad hoc. El consejo editorial se reserva el derecho
de solicitar modificaciones en aras de adecuar los textos al pa-
trón editorial y gráfico de la revista.
Los artículos y las entrevistas deberán tener entre 4.000 y 9.000
palabras. Serán admitidas reseñas que contengan hasta 2.000
palabras y resúmenes de tesis de postgrado con 400 palabras. Los
resultados de investigaciones podrán tener hasta 3.000 palabras.
Serán aprobadas reseñas de libros publicados en Brasil en los dos
últimos años y publicados en el exterior en los últimos cinco años.
También se recibirán reseñas de películas y exposiciones.
Adicional al texto, se deben adicionar las biografías aca-
démicas del autor o los autores, máximo cinco líneas con los
siguientes datos: dirección residencial completa del autor o
autora principal, institución a la que pertenece y dirección de
correo electrónico.
Los trabajos deben estar precedidos por un resumen que
contenga entre 5 y 8 líneas y 3 palabras clave, ambos en inglés
y portugués (los “abstract” deben ser acompañados por el tí-
tulo del artículo en inglés). Las reseñas deberán tener título
propio y diferente del título del trabajo reseñado, incluyendo
también las referencias completas del texto analizado.
Las contribuciones deben ser digitadas en el editor Micro-
soft Word (Microsoft Word 6.0 o superior), guardadas en for-
mato RTF (Rich Text Format). El tamaño de la página deberá
ser A4, fuente Times New Roman, tamaño 12 pts, interlineado
1,5 y párrafos justificados.
Las notas al pie deben ser breves, no tener referencias bi-
bliográficas y sólo ser usadas para informaciones complemen-
tarias. Éstas aparecerán al final del texto, antes de las referen-
cias bibliográficas y numeradas secuencialmente.

222 VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 218-223, jul-dez 2016


VISUALIDADES, Goiânia v.14 n.2 p. 218-223, jul-dez 2016

Referencias:
Cuando el autor citado hace parte del texto se debe usar el si-
guiente formato: Autor (año, p.). En citas al final de los párrafos
usar el siguiente formato: (APELLIDO DEL AUTOR, año, p.).
Cuando aparezcan varios textos de un autor publicados en el
mismo año, éstos serán identificados por una letra después de
la fecha: (SILVA, 1980a), (SILVA, 1980b). Las referencias biblio-
gráficas completas deben ser relacionadas únicamente al final
del texto y en orden alfabética de acuerdo con las normas ABNT
(NBR-6023/2000):
APELLIDO, Nombre. Título del libro en cursiva: subtítulo.
Traducción. Edición, Ciudad: Editorial, año, p.
APELLIDO, Nombre. Título del capítulo o apartado del libro.
In: APELLIDO, Nombre del organizador (Org.). Título del libro en
cursiva. Traducción. Edición, Ciudad: Editorial, año, p. X-Y.
APELLIDO, Nombre. Título del artículo. Título de la revista
en cursiva. Ciudad: Editorial, vol., número, p. X-Y, mes, año.

Documentos electrónicos:
Para referenciar cualquier tipo de documento obtenido por
medio electrónico, se debe proceder de la misma manera
como fue indicado para las publicaciones convencionales,
adicionando la URL completa del documento en la internet,
entre los signos < >, antecedida por la expresión Disponível
em: y seguida por la información Acesso em:
APELLIDO, Nombre. Título del artículo. Título de la re-
vista en cursiva. Ciudad: Editorial, vol., número, p. X-Y, mes,
año. Disponível em: <http://www>. Acesso em: día mes año.
Los originales, el currículo resumido del autor o autores, las
imágenes y un documento firmado con la autorización del uso de
imágenes, en los casos que sea necesario, deben ser enviados vía
e-mail en archivos separados. Las imágenes deben ser guardadas
en formato TIFF o JPEG con una resolución mínima de 300 dpi. El
permiso para el uso de las imágenes es de entera responsabilidad de
quien o quienes envían el texto. Cada autor recibirá 3 (tres) ejem-
plares del número en que sea publicada su contribución.
La revisión ortográfica, gramatical y la adecuación a las nor-
mas ABNT, también son de entera responsabilidad de los autores.
E-mail: revistavisualidades@gmail.com

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224

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