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Caio Prado Júnior e a questão agrária no Brasil*

Rodne de Oliveira Lima * ,<

RESUMO

Este artigo examina as teses de Caio Prado Júnior expostas em seus artigos sobre a questão agrária no Brasil, com a
preocupação central de demonstrar o encadeamento existente entre elas e analisar as principais conclusões do autor.

PAlAVRAS-CHAVES: Questão agrária, Caio Prado Júnior, .."'t,,,.....,~ agrária, legislação rural brasileira.

INTRODUÇÃO De seu pensamento sistematizado podemos


definir seis grandes temas através dos quais Caio
N a obra de Caio Prado Júnior a questão Prado Júnior formulou sua interpretação da
agrária brasileira suscita a todo tempo como questão agrária no Brasil: 1) o debate contra as
questão de fundo de sua interpretação do Brasil. teses sobre o feudalismo no Brasil; 2) a definição
Para o autor, a questão agrária será linha da questão agrária brasileira, através da análise
condutora de suas investigações, em torno da da estrutura rural de produção; 3) a reforma
qual surgem os problemas e as respostas para agrária no Brasil; 4) a questão fundiária na
desvendar o caráter da economia, da politica e estrutura agrária brasileira; 5) o mercado de
da sociedade nacionais. Isso tanto em suas obras trabalho rural e a estrutura agrária no Brasil; e,
mais conhecidas "Formação do Brasil finalmente, 6) propostas de legislação social­
Contemporâneo", "História Econômica do trabalhista para a reforma agrária brasileira.
Brasil", "A Revolução Brasileira" quanto em sua Neste trabalho desejamos demonstrar como
pouco divulgada tese de doutoramento tais problemas se relacionam na constituição do
"Diretrizes Para Uma Política Econômica pensamento de Caio Prado Júnior, a partir da
Brasileira" . exegese da obra que selecionamos para análise.
Mas é em "A Questão Agrária", volume
publicado a postenon (1979), que reúne artigos
seus veiculados em periódico no período entre 1. O DEBATE CONTRA A TESE DO
março de 1960 e janeiro de 1964, onde vamos FEUDALISMO BRASILEIRO
encontrar sistematizadas as idéias de Caio Prado
Júnior sobre a questão agrária brasileira, desta Na formulação de suas teses sobre a questão
vez não mais como elemento complementar de agrária, as menções de Caio Prado Júnior
formulação da análise, mas como próprio objeto relacionadas às idéias sobre etapas feudais na
de investigação! . formação histórica da sociedade brasileira

Versão preliminar, destinada a apresentar a análise dos principais escritos do autor sobre o tema. Futuramente, desejamos
complementá-la, noutro trabalho que se de clique a examinar a atualidade da análise de Caio Prado Júnior para a questão
agrária contemporânea no país,
** Sociólogo, professor-assistente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina,

<TC'U>Jllt11it. Londrina, v, 8, n. 2, p.1 2.3-134, juIJdez. 1999 12.3


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ocorrem no sentido· de reafirmar aquilo que o estatuto pessoal do produtor e do proprietário
deixara patente nas obras anteriores de estudo nas formas de sociabilidade estabelecidas
do Brasil. O autor é direto e contundente na exceção feita, naturalmente, ao papel do estatuto
tarefa de dissociar qualquer interpretação de pessoal nas relações escravistas que perduraram
reforma ou transformações no campo brasileiro até as portas do século XX. Daí que o autor
como etapas de uma evolução para o capitalismo: mencione "restos escravistas e servis", mas jamais
os restos feudais no campo brasileiro. A questão
"Uma repartição melhor da propriedade para Caio Prado Júnior ficaria assim formulada
agrária, e o mais fácil acesso a ela para os no artigo de 1964:
trabalhadores rurais, constituiportanto a meta
principal de uma política orÍentada para a «(...) A economia agrária brasileira não se
transformação das relações de trabalho, e constituiu na base da produção individual ou
melhoria das condições de vida dos familiar, e da ocupação parcelária da terra,
trabalhadores. Mas nãohá que ver ai, por não como na Europa, e sim se estruturou na
ser o caso, nenhuma superação de pseudo­ grande exploração agrária voltada para o
etapa feudal ou semifeuda.!, e 'ascensiio J para mercado. (...) Não se constituiu assim uma
o capitalismo)) (PRADO JÚNIOR, 1979:6~ economia e classe camponesas, a não ser em
grifo nosso). restritos setores de importância secundária.
E o que tivemos foi uma estrutura de grandes
Não se trata, nessa questão, de algo menor unidades produtoras de mercadorias de
na formulação das teses sobre o Brasil. Tanto é exportação trabalhadas pela mão-de-obra
assim que outros importantes estudos publicados escrava. (".F'(PRADOJÚNIOR., 1979:170).
até a época dos textos que aqui analisamos
tocaram reiteradamente nos elementos desta Colonial, agro-exportadora, escravista. São
polêmica. Caio Prado Júnior apresentou seu estas as marcas com as quais Caio Prado Júnior
argumento situando-o no contexto da localização demonstrou ter a formação econômica e social
histórica do Brasil no processo da expansão do Brasil condicionado o surgimento da questão
colonial. Segundo seu raciocínio, o caráter agrária no país.
mercantilista da empresa agrária brasileira
afastava a validade da tese sobre o feudalismo
no Brasil, não existindo na raiz da estrutura 2. DEFINIÇÃO DA QUESTÃO AGRÁRIA
econômica do Brasil ou da propriedade agrária BRASILEIRA
no país o caráter camponês que a Europa
conheceu: a hegemonia da produção local e Infere-se, do que foi acima descrito, como
familiar, o império da economia de trocas Caio Prado Júnior iria situar a formulação da
limitadas, quando não de auto-suficiência, que questão agrária no Brasil: nem como momento
justificaria a comparação histórica que a tese do uma contestável interpretação etapista na
feudalismo sugere. formação do capitalismo brasileiro, nem como
Ao contrário, constituir-se-ia o Brasil, pela artifício de ação política nas reformas pretendidas
ausência imediata de riquezas minerais pelas correntes de esquerda no momento em que
disponíveis, em economia agro-exportadora cuja escrevia. E isso abriu campo para a formulação
dinâmica encontrou-se definida pelas da questão de modo realista, superando os limites
necessidades comerciais da Coroa portuguesa, e das palavras de ordem pela transformação da
que seriam, em última análise, as demandas do estrutura agrária, e procedendo à realização de
mercado internacional no período entre os diagnóstico concreto, que lhe permitisse
séculos XVI e XVIII. Nem mesmo as relações vislumbrar ações práticas para sua solução. Este
econômicas da empresa agrária fundavam -se no é exatamente o objetivo expresso pelo autor no
estatuto pessoal das partes. Era a impessoalidade de 1962: vislumbrar medidas práticas e
da relação capitalista, na qual a terra importava concretas que conduzissem, se realizadas, à
como mercadoria, e seus produtos como valores solução da questão agrária no Brasil (PRADO
de troca realizáveis no mercado, que JÚNIOR., 1979).
fundamentava estas relações, não intervindo aí Desse modo é que o autor enveredou pela

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discussão da pobreza das massas de Portanto, não se tratava apenas de posicionar­
trabalhadores rurais no BrasiL Sem negar os se em relação às diferentes soluções perpetradas
efeitos ou a importância da clamada distribuição pelos governos regionais ou pelas escolas de
de terras aos trabalhadores do campo, mas pensamento econômico para a questão agrária.
alertando para a insuficiência da medida tomada Era preciso redefini-la, e desta vez com o
isoladamente, Caio Prado Júnior apontou como conhecimento empírico que propiciasse a correta
essa medida única não dava as respostas formulação dos problemas agrários do país. Com
necessárias à questão agrária no Brasil se esta essa intenção Caio Prado Júnior realizou logo no
fosse formulada de forma suficientemente geral princípio de seu primeiro artigo o diagnóstico da
e objetiva, a saber: situação econômico-social do campo brasileiro,
utilizando dados do Censo Demográfico de
com que a utilização da terra no 1950. A afirmação da miséria social no campo, e
Brasil se realize em benefício principal do grau de sua extensão, seria de imediato
daqueles que nela trabalham, e não constitua balizada por tais dados que, esclareça-se,
apenas} como é o caso presente} simplesmente referiam-se exclusivamente às áreas
um ~egócio} de pequena minoria (PRADO J)
economicamente organizadas, descartando-se
JÚNIOR) 1979:81). qualquer hipótese de desvio estatístico nas
distorções apresentadas.
Nesse sentido, a análise restrita ao papel do Mas o dado econômico bruto, se revelava a
dramatiddade da condição social de vida da
latifúndio improdutivo - isto é, simplesmente o
população trabalhadora rural daquela década,
aspecto fundiário da estrutura agrária do país
nada dizia sobre as causas de sua subordinação
era, na perspectiva do autor, insuficiente para
política e social. Novamente, o autor recorreria
iluminar as medidas de reforma desde então
à interpretação dialética da História do Brasil
necessárias à superação dessa estrutura, assim
para apontá-las. Demonstra então que a era da
como insuficiente para esclarecer seu caráter
colonização do país consistiu na expansão da
político.
empresa agromercantil sobre o solo nacional que,
Foi como um problema relativo aos conflitos como núcleo das atividades produtivas rurais,
de classe que a questão agrária emergiu na definiu o contorno da estrutura agrária, os limites
interpretação de Caio Prado Júnior. Ele a das regiões geoeconômicas primitivas e os papéis
formulou conscientemente como amálgama de SOClaIS dos proprietários-produtores
interesses contraditórios, sintetizados na (determinantes da estrutura econômica que
contradição maior identificada com a destinação operavam) e dos trabalhadores rurais
majoritária de terras cultiváveis do país em (subordinados ao mercado e estrutura agrária de
benefício de reduzida minoria, enquanto imensa seu "em torno"). Dessa interpretação histórica
maioria da população constituía o degenerado da colonização brasileira depreende-se a síntese
quadro de miséria social de 30 milhões de da questão agrária exposta pelo autor ainda no
brasileiros. Nesse sentido, primeiro artigo de 1960:

"(..) É natw-alportanto que antes de cuidar "(...) ela se resume nisto que a grande maioria
da solução deste problema se comece por da população brasileira, a sua quase totalidade,
distinguir o setor da população para que a com exclusão unicamente de uma pequena
solução se dirige (PRADO JÚNIOR.)
N minoria de grandes proprietários e fazendeiros,
1979:21). embora ligada à terra e obl'{!{ada a nela exercer
sua atividade, tirando daí seu sustento} se
Caio Prado Júnior assinalava, nessa passagem, encontra privada da livre disposição da mesma
não apenas o caráter contraditório das relações terra em quantidade que bastepara lhe assegurar
econômicas, políticas e sociais no campo, de onde um niveladequado de subsistência. Vê-se assím
emergia a questão agrária brasileira, mas forçada a exercer sua atÍVldade emproveíto dos
apontava também a existência de divergentes empreendimentos agromercantis de íniciatíva
interesses no conjunto da própria classe de daquela mesma minoria pn'vilegiada que detém
proprietários rurais, ainda que conjunturais e o monopólio virtual da terra. (...r (PRADO
passageiros. JÚNIOR, 1979:32)

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3. A REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL Para Caio Prado, o preço da terra,
inflacionado pela condição de reserva de valor
Em que consistiria, então, a refonna agrária que a propriedade rural assumiu na estrutura
pretendida por Caio Prado Júnior para o Brasil? agrária brasileira, sustentava as amarras primárias
Sua definição -limitada, na análise tradicional da produção agropecuária aos moldes mercantis.
da questão agrária, aos problemas da questão Adicionalmente, impossibilitava a proliferação da
fundiária - resultaria do caráter de classe da pequena unidade de produção, mesmo quando
questão agrária que foi acima demonstrado. Para ocorria a subdivisão de terras da grande
realizar-se no Brasil a forma clássica de reforma propriedade, constituía fator de retração do nível
agrária, através da apropriação imediata das terras de desenvolvimento agrário do país e
pela grande massa de trabalhadores determinava a imobilização massiva de grandes
despossuídos, fazia-se necessário, segundo o fatores de produção, pela inexistência de rendas
autor, a prévia mobilização social e imediata que os demandassem, uma vez que se
capacidade de empreendimento agrário em bases encontravam comprometidas com a pura e
econômicas alternativas à empresa agromercantil. simples aquisição do bem patrimonial imóvel.
Caio Prado Júnior não via a existência nem de De par com a questão fundiária, o baixo
um, nem de outro desses fatores. Daí que seu dinamismo do mercado de trabalho e da
esforço analítico fosse dirigido para a definição economia regional nas localidades
de objetivos econômicos e sociais concretos a predominantemente rurais complementava o
serem atingidos no processo de reforma agrária alicerce do monopólio mercantil da produção
que desejava ver instaurado no país. agrária. A disponibilidade continuamente
Do ponto de vista estritamente econômico, limitada de terras e continuamente ampliada de
era preciso remover as barreiras de acesso à força de trabalho possibilitara à empresa
produção competitiva que a moderna empresa agromercantil desenvolver culturas de
agromercantil impunha aos trabalhadores rurais produtividade incerta, negligenciando-se as
autônomos e pequenos produtores: tecnologias de cultivo intensivo, e até mesmo as
características naturais de fertilidade do solo
a(..) Economicamente, a compra da terra não necessárias às culturas menos resistentes. A baixa
constitui inversão de capit~ que somente se reinversão daí derivada era compensada pela
realiza com a aquisição do aparelhamento produção em larga escala, que possibilitava ao
necessário à produção (instrumentos de proprietário de terras aferir grandes lucros da
trabalhq maquinaria, gado... ), na instalação produção, ainda que menores do que aqueles que
de benfeitorias (construções, estradas e a modernização das culturas certamente traria.
caminho~ cercas divisórias...) e de culturas ou Do ponto de vista macroeconômico, entretanto,
pastagens (preparação do solo, plantações, etc.). o resultado permanecia invariável: a baixa
É nisso que propriamente consiste o produtividade no campo empobrecia a economia
empreendimento agropecuário, de que a compra regional, tornando mais largo o fosso entre a
da telTa não constitui mais que preliminar que condição social e econômica dos proprietários
nem mesmo e; a rigor, de ordem econômÍca, e de terras e os trabalhadores do campo, estes
sim jurídica, poís representa unicamente a últimos destituídos de condições para qualquer
simples obtenção do direito de realizar aquele iniciativa competitiva no conjunto da produção
empreendimento. agropecuária.
A agropecuária suporta assim, em confronto com Traçar as diretrizes que pennitissem inverter
outras atividades econômÍca~ um ônus que se os pólos dessa situação de desigualdade era o
toma considerávelquando a tCiTa atinge os altos objetivo de Caio Prado Júnior na sua formulação
valores no BrasJ4 e em São Paulo emparticular; de reforma agrária. Na resolução que encontrou
valores esses inteiramente desproporcionados para a questão, o autor assimilou três linhas
com relação à produtividade e, paralelas, nas quais consubstanda-se seu projeto
conseqüentemente, rentabilidade que a de reforma agrária: o equacionamento da questão
agropecuária pode normalmente oferecer nas fundiária; a consolidação do mercado de trabalho
condições gerais de nossa economia (' .. F' rural, com aumento da demanda por mão-de­
(PRADO JÚNIOR, 1979:133). obra e de seu preço relativo e expansão dos

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direitos dos trabalhadores e das obrigações do das médias e pequenas propriedades, sempre
empregadores; e, entre elas, a transformação da expostas às oscilações do mercado, tais como
economia agrária nacional, dinamizando-a e elevação de preços de insumos ou baixa abrupta
tornando-a competitiva. de preços atacadistas de comercialização dos seus
produtos. E ainda mais: o monopólio inicial da
propriedade rural permitiu aos capitalistas rurais
4. A QUESTÃO FUNDIÁRIA NA executarem unilateralmente a definição da forma
ESTRUTURA AGRÁRIA BRASILEIRA como ocorreria a futura divisão das terras,
facultando-lhes instalar a grande propriedade
Foi fazendo das conclusões teóricas extensiva nas porções mais e de maiores
anteriormente mencionadas pólos de sustentação riquezas naturais, relegando a pequena
para as respostas que tenciona perseguir que Caio propriedade a áreas menos vantajosas e de
Prado Júnior situou, concreta e historicamente, resultados produtivos mais limitados. Acrescente­
o problema fundiário no Brasil, e o relacionou se a isso a ampla e generalizada destinação de
com a questão agrária. recursos financeiros do fundo público nacional
A perspectiva do capitalista agricultor foi o - na forma de linhas de crédito, subsídios fiscais
ponto de partida da análise para desvendar os e de comercialização, etc. ao grande
mecanismos econômicos que resultavam na empreendimento monocultor, e poderemos
monopolização da propriedade agrária e de seus vislumbrar com alguma exatidão as condições
recursos produtivos. De fato, Caio Prado Júnior desfavoráveis à competitividade da pequena
concluiria que a mercantilização da terra e de seus produção, via de regra desprovida de recursos
produtos constitui o momento inicial da de toda ordem.
introdução do capitalismo no campo, do qual a No contexto da estrutura agrária especulativa
concentração da propriedade da terra nada mais a formação de latifúndios improdutivos ajustava­
é que seu resultado possível e necessário. Uma se como mecanismo ad hoc de ordenamento da
vez estabelecido, concede ao empreendedor produção capitalista, funcionando como
agromercantil a base territorial conveniente à momento de espera do capital, no qual a
produção monocultora e extensiva, ao mesmo exploração da grande propriedade extensiva era
tempo que proporciona à empresa agrária os arrefecida, sem que se desfizesse a base territorial
contingentes de força de trabalho necessários ao necessária ao futuro empreendimento expansivo.
desenvolvimento de suas atividades, em Tal prática econômica encontrava na legislação
condições de baixo custo. Complementam-se, recursos formais a proteger sua existência,
assim, os efeitos do monopólio da terra sobre a especialmente nas disposições de tributação sobre
organização da produção agropecuária. a produção rural, que pouco oneravam a grande
Historicamente, a estrutura agrária no Brasil, propriedade extensiva, possibilitando-lhe manter­
forjada sob as bases do capital mercantil­ se mesmo que mediante baixa rentabilidade:
monopolista, guardou desde seus primórdios, e
durante a sua expansão geográfica e econômica, ((. ..) É essa insigniBcante e praticamente
a característica fundamental da concentração da inexistente tributação da terra e seus
propriedade da terra. A "fronteira agrícola", rendimentos) uma das principais) senão a
consecutivamente reproduzida nas regiões de principal circunstância que permite a pessoas
expansão agrária, foi sempre formada, de grandes posses adquirirem e conservarem
inicialmente, como conjunto de grandes propriedades agrícolas semi-improdutivas.
propriedades resultantes, em parte, da inversão (. ..) Por pequeno que seja o rendimento
de grandes capitais privados no processo de relativo que proporcionam) o rendimento
colonização das novas áreas e, em parte, da absoluto) graças à extensão da propriedade)
apropriação extensiva de terras públicas ou é bastante avultado. E como se acha
devolutas pelos capitalistas empreendedores. O praticamente isenta de impostos) seja o
caráter especulativo da estrutura agrária territoria~ seja o de renda) os proventos que
resultante dessas práticas determinou a proporciona dão uma aceitável compensação
generalização dos sistemas de produção imediata ao capital imobilizado no valor da
extensivos no campo, e a fragilidade econômica terra. Compensação imediata essa a que se

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acrescenta a vultosa compensação futura especulativa. O desenvolvimento de suas formas


representada pela valorização da terra para preservava permanentemente o conteúdo de sua
que o esforço coletivo e o desenvolvimento regra fundamental: a reprodução no campo de
geral da economia nacional estão larga oferta de "mão de obra de fácil exploração
permanentemente contribuindo sem e custo mínimo" (PRADO JÚNIOR, 1979:9).
participação ativa alguma do feliz Com efeito, Caio Prado Júnior nos
proprietário;) (PRADOJÚNIOR, 1979:136). demonstrou como a expansão da agricultura
capitalista no Brasil se processou à custa de
Esta condição favorável à preservação da base contínua geração de modalidades de
territorial da grande propriedade rural era ainda remuneração da força de trabalho que permitiam
complementada por outros dois mecanismos da ao capitalista empreendedor o rebaixamento do
economia agrária especulativa, a saber, a montante de custeio da produção, pela
debilitação econômica do pequeno combinação de formas de remuneração
empreendimento agrário e o conseqüente adequadas à disponibilidade de seus capitais.
empobrecimento do pequeno produtor rural. Do Assim, Caio Prado Júnior nos explicou o colonato
conjunto dessas duas condições básicas emergiu e a parceria como relações de trabalho resultantes
uma pequena unidade produtiva fragilizada em da imposição, por parte dos proprietários
sua base econômica, suscetível aos acidentes do capitalistas, de formas de pagamento mistas
processo de produção agrário, economicamente (pagamento em espécie, repartição do produto
inviável no médio e longo prazo e desprovida de e permissão do uso da terra) em ciclos de retração
competitividade nos mercados de produtos e de econômico-financeira ou em fases intermediárias
trabalho rurais. Como conseqüência, a pequena da produção, nas quais os lucros da
unidade produtiva teve seu desenvolvimento comercialização não podiam ainda ser auferidos
estagnado e permaneceu espacialmente contida, pelos produtores de culturas perenes e anuais.
encontrando sua dissolução pela prática da Resumiam-se, portanto, a estratégias do
partilha sucessória - multiplicando-se o número empreendedor agrícola para diminuir os custos
de pequenas propriedades rurais à custa do de remuneração da força de trabalho, cuja
rebaixamento de suas áreas ou por sua proliferação nas unidades de produção possuía
conversão em área de reagrupamento de terras, seu ritmo definido pela dinâmica financeira dos
sendo então incorporada à grande propriedade ciclos de produção, correspondendo a tendência
extensiva. E tal é a perenidade do mecanismo de maior incidência de formas mistas de
de incorporação da pequena propriedade remuneração a momentos de menor
economicamente debilitada à grande rentabilidade e liquidez, e, inversamente, a sua
propriedade extensiva que sobre esta última substituição por formas puras de assalariamento
chegava-se a realizar, em momentos de ao aumento de ativos na composição de capital
prolongada retração econômica, o retalhamento das unidades de produção. Daí a conclusão a que
da grande propriedade extensiva mediante Caio Prado Júnior chegou de que nas formas
práticas especulativas de venda, para posterior mistas de remuneração a relação de prestação
recomposição de sua base territorial, em períodos de serviços funcionava como definidora do
de suficiente expansão econômica. caráter econômico real das relações de produção
O desenvolvimento agrário ocorrido sob a entre trabalhadores e proprietários: todas as
lógíca da concentração da propriedade da terra formas, variantes nas maneiras de
originava, deste modo, seus próprios mecanismos estabelecimento das obrigações das partes,
de reprodução. mantinham-se invariáveis na subordinação final
da força de trabalho à lógica e ritmo da unidade
extensiva de produção, possibilitando sua
5. O MERCADO DE TRABALHO RURAL E manutenção continuada independentemente da
A ESTRUTURA AGRÁRIA BRASILEIRA capacidade de emprego de força de trabalho
assalariada pelo proprietário capitalista:
As relações de trabalho no campo, por sua
vez, encontravam-se estritamente condicionadas "(..) outras modalidades de pagamento são
pela desigualdade reinante na economia agrária apenas substitutos eventuais ditados por

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circunstâncias de ocasião) e particularmente A concentração da propriedade fundiária,
pelas vicissitudes financeiras da grande entretanto, logo seria guindada à posição de
exploração. ( . .) determinante fundamental da dinâmica do
( ..) Isto é) são formas de retribuição de trabalho rural. De um lado, porque sua
serviços prestados em que por um motivo ou proliferação atuava como fator gerador de oferta
outro - mas sempre motivo de ordem contínua e ampliada de força de trabalho. De
circunstancial - o pagamento em dinheiro é outro porque, ao mesmo tempo, reduzia as
substituído por prestações de outra natureza. alternativas de seu emprego, facultando aos
(..r (PRADO JÚNIOR) 1979:64-66 - grifo trabalhadores rurais a possibilidade única de
nosso). submissão à unidade de produção extensiva.
Tinha por efeito imediato a retração do mercado
Há, certamente, um duplo sentido na de trabalho rural e sua definição como pólo da
afirmação de Caio Prado Júnior. Em primeiro economia nacional de baixos salários.
lugar, seu significado teórico remete-se Dessa caracterização do mercado de trabalho
obviamente à negação da consistência dessas rural Caio Prado Júnior elaborou a síntese
relações de trabalho implementadas na produção dialética que lhe serviria de conclusão. Nela
"por motivo de ordem circunstancial". Se são tratou de demonstrar, para a ampla compreensão
inconsistentes, são portanto mero das medidas estratégicas próprias à realização da
escamoteamento da relação de trabalho reforma agrária no Brasil, a relação complementar
fundamental do modo de produção dominante entre os fatores de expansão do capitalismo
na agricultura brasileira, o assalariamento rural. agrário e os fatores de disseminação da miséria
Em segundo lugar, pode-se concluir logicamente social no campo. De fato, correntemente tais
pela negação de outra idéia com a qual o autor já fatores identificaram-se em sua totalidade, o
se bateu nos fundamentos de sua tese sobre a baixo custo de remuneração da força de trabalho
questão agrária no Brasil, a recorrente tese do servindo como base permanente de sustentação
feudalismo brasileiro: se eram inconsistentes em da economia agrária especulativa, enquanto
suas formas as relações de trabalho de simultaneamente gerava o mercado de trabalho
remuneração mista, isto se devia à característica rural estático, o aumento da rentabilidade das
essencial de como e por que tinham sido geradas, unidades de produção correspondendo ao
isto é, ao fato de nada mais serem que formas desenvolvimento capitalista das regiões agrícolas,
capitalistas de adaptação da remuneração da mas não ao aumento do valor geral dos salários
força de trabalho à grande unidade de produção ou rendas da população trabalhadora rural.
extensiva, de baixa rentabilidade, componente Como resultado da dinâmica econômica
primeiro da economia agrária especulativa. concentradora de renda e de recursos de
Adaptação cujas matizes disseminavam-se através produção no campo, a qualificação da força de
de formas que variavam da semi-escravidão de trabalho rural possuíra natural propensão a
nativos nas regiões de fronteira agrícola à baixar, fosse como efeito do êxodo de grandes
emergência do volante nos pólos contingentes de população trabalhadora para a
capitalisticamente avançados de produção cidade, e sua integração ao mercado urbano de
monocultora. trabalho, fosse pela sazonalidade do emprego,
O mercado de trabalho resultante da que obrigava o trabalhador a revezar-se em
composição dessas formas híbridas de emprego diferentes ocupações parcelares do trabalho
e remuneração de força de trabalho teria de ser agrícola. Não se tratava, neste caso, do processo
condicionado, naturalmente, pelas formas clássico de especializaçao dos postos de trabalho
econômicas e sociais que as impunham. O autor ocorrido na indústria moderna, mas da supressão
nos apontou dois fatores essenciais a sua do trabalhador polivalente no mercado de
definição: a concentração da propriedade trabalho rural, sem que em contrapartida se
fundiária e a baixa densidade demográfica do tivesse produzido novas formas de qualificação
meio rural brasileiro. da força de trabalho rural:
Quanto ao último desses fatores, sua
importância seria minimizada por Caio Prado ((Trata-se) em regra) de trabalhadores
Júnior. temporários e sem raízes nos locais onde

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exercem suas atividades, seja porque se 6. PROPOSTAS DE LEGISLAÇÃO SOCIAL­
empregam apenas sazonalmente para a TRABALHISTA PARA A REFORMA
realização de certas e determinadas tarefas AGRÁRIA BRASILEIRA
como se dá na coDleita da cana-de-açúcar-}
seja porque transitam constantemente de uma Formuladas as bases explicativas da questão
para outra propriedade} de uma para outra agrária brasileira, tanto no que concerne ao
região à procura de ocupação e melhores aspecto fundiário da estrutura agrária, quanto no
condições de trabalho ('.J Não se pode, que diz respeito à dinâmica do mercado de
evidentemente) esperar num tipo desses de trabalho rural, Caio Prado Júnior se dispôs a
trabalhadores as condições necessárias para expor as diretrizes fundamentais de reformulação
agestão de empreendimentos em que eles não da legislação social-trabalhista no campo, com
se acham integrados e a que não se ligam vistas em preparar a reforma agrária no país. De
senão pelos débeis laços de um emprego que fato, tais propostas de mudança consubstanciar­
eles mesmos sabem precário. Emprego, aliás, se-iam para o autor no segmento inicial das
em que não passam de simples executores de medidas de reforma agrária no Brasil, sua
tarefa!>~ sem que nunca lhes tenha sido dada, introdução no contexto econômico do campo
nem podia ser dada, a oportunidade de brasileiro implicando a imediata transformação
deliberação sobre a maneira de executar essas da base das relações de trabalho e de produção
tarefas. preciso não confundil; como do setor agrário:
freqiientemente se faz, a situação do
trabalhador empregado na grande exploração "( ..) é na aplicação efetiva da legislaçiio
brasileira, com a do verdadeiro camponês, que trabalhista, sua ampliação e necessária
esse sim, como produtor que é, ou com essa correção em muitos pontos em que se vem
tradição de produtor (é o caso, por exemplo, mostrando insuficiente e defeituosa, bem
do camponês europeu) seja ou não como na adoção de providências
proprietário) é ao mesmo tempo um complementares destinadas a consolidar e
trabalhador e executor de tarefas) e um tirar todos os efeitos econômicos e sociais da
dirigente desse trabalho e dessa execução. nova situação criada pela melhoria das
(..r(PRADO JÚNIO~ 1979:152-3). condições de vida do trabalhador obtidas com
a aplicação daquela legislaçiio trabalhista, é
o quadro acima descrito era ainda agravado nisso sobretudo que deve consistil; no
pelo sistema de parcelamento das tarefas, cujo momento atuaL a luta pela reforma e
efeito determinava que os trabalhadores não se renovação de nossa economia agrária. É daí
encontrassem, do ponto de vista técnico e social, que se poderão esperar os melhores e mais
coletivamente organizados, o que apenas profundos e imediatos reflexos de ordem
enfraquecia ainda mais os vínculos que possuíam econômica e socia~ e mesmo política, no
estabelecidos com a unidade de produção: conjunto da situação brasileira. Pode-se
dizer que aíreside o centro nevrálgico e ponto
"(. .)Do ponto de vista do interesse gera~ o principal de partida da refonna que deve ser
sistema tem o grave inconveniente fazer imediata e intensamente atacado. Não é por
da agricultura uma ocupação precária e certo o único, mas sem dúvida o essencial e
prOldsória, com evidente prejuízo da produçiio que oftrece melhores perspectivas para a ação
agrícola e do fornecimento regular e reformadora e seu sucesso)) (PRADO
sustentado de gêneros de subsistência. Mas JÚNIOR,1979:162-3).
o que há nele de mais sério, é a situação a
que reduz grandes parcelas da população É preciso, portanto, retornarmos ao conjunto
trabalhadora rural que fica na dependência de reformas legislativas propostas por Caio Prado
de uma atividade precária e nômade, sempre Júnior para confrontarmos o conteúdo que
se deslocando em busca de terras disponíveis possuem aos objetivos acima mencionados, cuja
e abandonando-a a curto prazo para deixá-la síntese é o objetivo maior de empreender a
para trás ocupada pelos rebanhos de gado)) reforma agrária no país.
(PRADO JÚNIOR, 1979:109). Retomemos brevemente as principais

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características do quadro econômico rural que o propriedade da terra em regiões de fronteira
autor empregou como essenciais na elaboração agrícola davam margem à proliferação das
do conjunto de medidas legais para a reforma práticas de grilagem contra os trabalhadores
agrária no Brasil. Tratava-se, em suma, de uma rurais, resultantes via de regra em episódios de
estrutura agrária condicionada pela alta violência no campo, nos quais a força intimidativa
concentração de terras e recursos produtivos sob do grande proprietário prevalecia sobre a
a posse de pequeno número de proprietários­ resistência do trabalhador autônomo. Uma
capitalistas, e tipificada na existência legislação eficaz no trato com esta realidade
economicamente predominante da grande necessitaria, pois, regular simultaneamente os
unidade de produção extensiva, na qual baixos critérios econômicos e sociais de aptidão à
níveis de remuneração relativa de capital, apropriação de terras devolutas, o controle legal
oriundos de fatores de gestão entre os quais da propriedade agrária pelo Estado e a dissipação
encontram-se a sub-utilização do solo, o emprego dos focos de violência rural, pela administração
de técnicas não-intensivas de cultivo e a baixa eficaz da legislação penal.
qualificação da força-de-trabalho empregada, Permitir o acesso à terra por parte da
eram compensados por altos montantes população trabalhadora rural era o objetivo
absolutos de lucro, obtidos em virtude das central das reformas legais fundiárias propostas
dimensões dos recursos da grande propriedade por Caio Prado Júnior. Obviamente, não se
fundiária. Caracterizavam, deste modo, a resumia este objetivo na concessão por mera
economia agrária especulativa, cujo mecanismo medida legislativa da capacidade particular de
de reprodução de capitais consistÍa na exploração compra de terras por de todas as famílias
do monopólio da terra e na sobrevalorização de de trabalhadores rurais no campo brasileiro. O
seus preços de comercialização. autor apontou relações econômicas presentes na
O conteúdo das reformas legais pretendidas grande unidade de produção extensiva que,
por Caio Prado Júnior remeter-se-Ía frontalmente tendo seu emprego consagrado pela legislação
contra a lógica da economia agrária especulativa. em vigor, ocasionariam imediata modificação no
Abrangeria os aspectos da engrenagem equilíbrio do mercado de trabalho rural,
econômica na agricultura: a questão fundiária no convertendo-se em favoráveis aos trabalhadores
campo; as relações de trabalho no meio rural; e, rurais as condições de venda da força-de-trabalho
conseqüentemente, a própria dinâmica do no campo. Tratava-se das formas mistas de
mercado de trabalho rural, no que diz respeito emprego e pagamento que, originariamente
aos efeitos que a modificação de sua natureza concebidas como mecanismos de flexibilização
estática pudesse acarretar na economia regional da remuneração da força-de-trabalho, tomariam
agrária. por outro lado possível a prática sistemática da
As reformas à questão fundiária produção autônoma, se confirmadas pela
prinopIavam, para Caio Prado Júnior, no legislação como direito legal dos trabalhadores:
disciplinamento do uso do solo, através de
medidas tributárias que se mostrassem capazes a(.. .) Será preciso dar estabilidade aos
de desestimular a sub-utilização da propriedade trabalhadores) assegurando sua permanência
agrária e a sobrevalorização especulativa do preço e direito efetivo legalmente consagrado ao uso
das terras. A taxação progressiva sobre a da terra) não assistindo ao proprietário a
propriedade improdutiva possuiria o efeito de fáculdade de modiBcar o sistema a seu arbítrio
modificar as condições de comercialização das e exduir a utilização da terra pelo trabalhador;
terras, permitíndo ao adquirente com vistas na ou substituí-la sem o assentimento dele e
atividade produtiva minorar os encargos financeiros devida compensação monetária. Poder-se-á
referentes à aquisição do direito de cultivo. mesmo eventualmente ir adiante)
Consistiria também em medida de caráter estabelecendo uma copropriedade com uso
fundiário a regulamentação dos critérios de alternativo da o que asseguraria
apropriação das terras devolutas pelo produtor rota tivam en te} de forma definitiva) duas
individual. O critério de longo prazo para atividades econômicas que se complementam
caracterização do usucapião vigente à época e a e são ambas de gerar (PRADO
inexistência de controle legal eficaz sobre a JÚNIOR,1979:109).

Geografia, Londrina, v. 8, n. 2, 23-134, jul./dez. 1999 131


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Tomada esta medida legal restaria apenas, propriedades rurais, nos quais a população do
para a completa reformulação das bases da campo pudesse encontrar meios de realização de
questão fundiária no Brasil, o emprego de sua vida social, e da garantia a comerciantes e
legislação específica, pelas políticas agrícolas prestadores de serviços de nelas instalarem-se,
regionais, sobre a destinação do uso do solo, na possibilitando ao trabalhador rural livrar-se das
qual a escolha das culturas e atividades pecuárias amarras econômicas que lhe eram impostas pelo
em que fossem empregados os recursos naturais monopólio exclusivo de tais recursos por parte
da unidade de produção permanecesse vinculada do proprietário capitalista:
às menores margens de risco e ao melhor
acondicionamento às características naturais do "(. ..) É predso nunca esquecer que não há
solo, propiciando sua ocupação regular e o para o trabalhador empregado na
exercício normal e continuado do trabalho no generalidade das propriedades brasileiras, os
campo, ao mesmo tempo que dotaria a unidade contatos humanos e o convívio social
de produção agropecuária de flexibilidade e ordinários que são dados ao trabalhador
plasticidade econômica que, neste caso, a livre urbano; e que entre ele e a sociedade
concorrência por si não possui. propriamente se interpõem as grandes
Uma última medida referente à propriedade distâncias que separam os aglomerados de
agrária complementaria o conjunto de alterações trabalhadores das fazendas, dos centros
necessárias à nova estruturação fundiária do povoados onde se localizam as instituições
campo. Tal como estabelecida à época e até o sociais regulares e os órgãos públicos. Essa
presente momento - o estatuto da propriedade circunstância, aliada à autoridade exercida
fundiária rural ímpU11ha ao trabalhador residente peloproprietário em seus domínios, clta para
na unidade de produção relações de sujeição o trabalhador empregado uma situação toda
pessoal, em flagrante contradição com o caráter especial de dependência e constrangimento
capitalista das relações econômicas de produção que não existe para o trabalhador urbano.
em que se encontravam enredadas. Era este o Antes de maif,~ uma legislação que vise a
caso patente do impedimento do acesso de amparar aquele trabalhador e seus direitos,
çomerciantes e prestadores de serviços à vila de deve, a fim de se tornar operante; compensar
trabalhadores rurais, ou o controle permanente uma tal inferioridade relativa que não tem
e severo da rotina cotidiana dessa população, paralelo no caso do trabalhador urbano; e é
impostos pelo proprietário-capitalista aos específica do empregado rural. Toda a
trabalhadores rurais com base no direito de existência deste último, ou a maior ou
propriedade privada sobre a terra, que lhes principal parte dela, decorre no interior de
conferia poderes para determinar tudo o que se uma propriedade particulal; sujeita por isso
passava no interior dos limites da grande unidade mesmo ao direito do proprietário. (. ..) De
de produção extensiva. Diferentemente do (empregador' ele se faz insensivelmente, ou
operário urbano, o trabalhador rural residente tende a se fazer senhor'de seus empregados.
na propriedade não encontrava possibilidades de O direito privado de propriedade transborda
convívio social desvinculado da unidade de aí para o terreno das relações públicas, e
produção que pudessem compensar, ao menos assume feições de um direito público exercido
em parte, os mecanismos econômicos por um particular. O que aliás é de fácil
dominação e controle impostos pelo grande verificação no regime imperante na
capital. Caio Prado Júnior concluiu que a fixação generalidade das fazendas brasileiras e nas
do trabalhador na propriedade rural derivava de relações que aí se observam entre
uma necessidade própria das condições de proprietários e trabalhadores. A situação de
produção. Por isto o direito de propriedade fato é aí a do exercído, pelo proprietário, e
deveria sofrer limitação que restringisse os em maior ou menor grau segundo suas
mecanismos de dominação às relações disposições particulares) mas sempre de
econômicas capitalistas, excluindo a existência alguma forma efetivo) o exercício de
de qualquer resquício de sujeição pessoal do atribuições que competem normalmente ao
trabalhador ao proprietário-capitalista, através da poder público. (... )" (PRADO JÚNIOR;
criação de bens de domínio público nas 1979:96-1).

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Em conjunto com as reformas legais obviamente, de antemão compensado pela
referentes à questão fundiária e à propriedade fixação da força-de-trabalho na propriedade, o
da terra, Caio Prado Júnior concluiu também pela que permitiria ao proprietário-capitalista reduzir
necessidade de reformas referentes às relações as despesas de custeio da mão-de-obra, tanto
de trabalho no campo, tendo por objetivo último poupando recursos que seriam destinados ao
a modificação das diretrizes econômicas transporte dos trabalhadores, como antecipando­
reinantes, cujos resultados até então redundavam se à concorrência que fatalmente seria gerada na
na estagnação do mercado de trabalho rural. As hipótese de captação da força-de-trabalho em
reformas pretendidas não objetivavam, contudo, mercado aberto, que teria por efeito a
introduzir de imediato novas relações de trabalho possibilidade de elevação do valor médio da
e novas práticas econômicas na produção agrária. remuneração do trabalhador.
Limitavam-se, na forma inicial como eram Fixado este encargo básico da reprodução da
propostas, a regulamentar as relações ora força-de-trabalho às custas da unidade de
existentes, estendendo ao trabalhador rural produção agrária, Caio Prado Júnior chegaria
direitos cuja legislação de então não reconhecia, finalmente ao conjunto de medidas diretamente
e sequer previa. reguladoras do mercado de trabalho rural e de
Nesse sentido é que o autor apontou, no suas relações empregatícias. Formuladas
artigo de 1963 referente ao Estatuto do originariamente como formas de adaptação do
1i:abalhador Rural, as deficiências dessa legislação capitalismo agrário à economia especulativa, as
na regulamentação do trabalho rural, a começar especificidades das relações de trabalho rural
pelo caráter vago da definição de "trabalhador resumiam-se na criação de formas mistas de
rural", na qual a generalidade do conceito remuneração da força-de-trabalho, onde o
suprime as características das modalidades de pagamento de salários em dinheiro encontrava­
emprego geradas na unidade de produção agrária. se de vários modos combinado com a repartição
Como não se prendia a tais modalidades - o que de produtos e a permissão de uso autônomo da
importaria distinguir entre o trabalhador volante, terra concedida pelo proprietário-capitalista ao
o mensalista assalariado, o prestador de serviços trabalhador rural. Consagrar estas formas de
e o trabalhador autônomo, com características remuneração, regulamentando sua prática, foi a
de parceiro na produção - o Estatuto também maneira sugerida por Caio Prado Júnior para
não se referia a aspectos dessas relações de combater o poder discricionário do proprietário
trabalho que guardavam especificidade em fundiário que, ao sabor de suas prioridades,
relação ao assalariamento urbano, tais como a modificava as formas primeiramente contratadas,
regulação da quota-parte do trabalhador a cada safra ou período regular de realização de
remunerado em espécie, os direitos de lucros da unidade de produção. Com a
armazenagem e comercialização autônomas por regulamentação proposta a remuneração mínima
parte do trabalhador parceiro, a normatização do fixa, o estabelecimento de normas perenes para
uso autônomo do solo, a regulamentação do a repartição do produto, a equiparação dos
contrato de empreitada, etc. adiantamentos feitos por proprietários­
De modo similar à legislação sobre a capitalistas a salários e a normatização das regras
propriedade da terra, a primeira e mais imediata de comercialização da parcela de produtos que
mudança proposta por Caio Prado Júnior na coubesse ao trabalhador rural constituiriam
normatização das relações de trabalho no campo direitos básicos, garantidos ao trabalhador rural
prendia-se à condição de residente do em razão das especificidades de suas relações de
trabalhador rural. Recordando o fato de que tal trabalho. Finalmente, a criação de uma Justiça
condição possuía sua ocorrência determinada do Trabalho Rural, independente da Justiça do
pela necessidade da unidade de produção, Caio 1i:abalho então já existente, possibilitaria a resolução
Prado Júnior concluiu ser a moradia rural ítem de conflitos trabalhistas em bases diferenciadas,
de responsabilidade do empregador, fazendo-se resguardando por completo, ao menos
necessária a introdução de norma legal que o formalmente, a especificidade do trabalho rural e
responsabilizasse diretamente pelo baixo padrão de suas relações na ordem legal constituída.
de habitação rural na propriedade fundiária. O Com este conjunto de reformas encontrar-se­
encargo econômico resultante encontrar-se-ia, ia descortinado, do ponto de vista do autor, o

t Geografia, Londrina, v. 8, n. 2, p.1 23-134, jul./dez. 1999 133


horizonte para o processo de ampla reforma NOTA
agrária no país.
1 São os seguintes os artigos, todos publicados
na Revista Brasiliense: "Contribuição para a
7. CONCLUSÃO análise da questão agrária no Brasil", (nO 28,
março/abril, 1960), "A reforma agrária e o
O caráter preliminar deste artigo faz com que momento nacional", (nO 29, maio/junho, 1960),
nossa conclusão se remeta a possíveis "Nova contribuição para a análise da questão
desenvolvimentos da análise, antes que ao agrária no Brasil", (nO 43, setembr%utubro,
julgamento das teses de Caio Prado Júnior sobre 1962), "O Estatuto do Trabalhador Rural", (nO
a questão agrária brasileira. De fato, o exame 47, maio/junho, 1963) e "Marcha da questão
desta última questão requereria um vigoroso agrária no Brasil", (nO 51, janeirolfevereiro,
trabalho, que lograsse comparar as idéias defendidas 1964). Utilizaremos, por nos facilitar o
pelo autor à trajetória recente do desenvolvimento manuseio do material indicado, a edição
agrícola e agrário do país, e tal empreitada não se posterior dos artigos reunidos, conforme
encontra nos limites deste artigo. indicado na Referência Bibliográfica.
Desse modo, à guisa de conclusão desejamos
tão-somente mencionar três interfaces que nos
parecem profícuas para a realização de um futuro REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
trabalho: em primeiro lugar, a relação entre as
teses aqui analisadas e as demais obras do autor; PRADO JR., Caio. A QuestãoAgráría. 4.ed. São
em segundo lugar, o exame da influência do Paulo, Brasiliense, 1979.
pensamento de Caio Prado Júnior sobre os
autores e correntes que se dispuseram a estudar
a evolução do meio rural brasileiro; e, por último,
mas não menos importante, a comparação entre
os determinantes da questão agrária no momento
atual e as condicionantes históricas apontadas por
Caio Prado em seus artigos.

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