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1 Comunicação originalmente apresentada no Fórum "A dinâmica transformacional dos coletivos indígenas",
coord. Tânia Stolze Lima, 32ª. ANPOCS, Caxambu 29/10/08. Em 2010, uma versão curta foi em apresentada
na mesa “O legado de Claude Lévi-Strauss”, promovida pelo CERU (USP) e uma variante mais longa , na UFJF. A
presente versão foi revista em 2017.
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Pierre Clastres observou com clarividência, assim que O cru e o cozido foi publicado,
que a obra de Lévi-Strauss inaugurava "um diálogo com o pensamento primitivo", e assim
"[punha] nossa cultura no caminho de um novo pensamento". Esse pensamento novo,
porque revigorado, no caso de Lévi-Strauss, o é menos pelo de primitivos em geral do que
ameríndios, em particular. Mas talvez o termo não seja “diálogo”. Lévi-Strauss teria
escutado os índios (e portanto aprendido, no sentido ameríndio), e transmitido o que
aprendera. Atenção e respeito. Mais do que “embasado em solo ameríndio”, como observou
certa vez Anne-Christine Taylor, o pensamento lévi-straussiano deve ser pensado como
transformação do pensamento ameríndio. Anamorfose.
História de Lince é o livro que conclui Mitológicas. Tentarei, no que segue, mostrar que
expondo o sujeito franco-ameríndio de toda a longa viagem pela mitologia das Américas, na
forma da exposição, em seu desenrolar e formulação, esse livro das também ilustra
magistralmente uma das principais lições da antropologia estrutural de Lévi-Strauss: a
indissociabilidade de forma e conteúdo.
História de Lince é uma obra-prima. O último volume das Mitológicas contém todos os
outros. É toda a América, da Columbia Britânica no Pacífico norte à costa do Atlântico sul, o
Brasil Central, o Chaco e o planalto mexicano, Tupinambá e Kwakiutl, Jê e Astecas, ao longo
de séculos. Mas uma América aberta para comparações cada vez mais amplas, com o Velho
Mundo sobretudo, mas também em direção à Ásia. Ali estão, como que miniaturizados,
todos os grandes temas presentes nas Mitológicas — da origem do fogo de CC às feiras
intertribais de HN — e questões teóricas: relação entre mito e rito, alcance da análise
estrutural, dualismo, binarismo; volta a fórmula canônica. Lévi-Strauss dedicou páginas,
como se sabe, à miniaturização como procedimento lógico para revelação de relações
globais. Em pequeno, condensado, vê se algo que em outras escalas não se perceberia; é o
que ocorre em História de Lince.
Comecemos pelo título. Os títulos de Lévi-Strauss sempre são reveladores. Muitas
vezes ecoam tanto mitos ameríndios como espíritos auxiliares franceses (e não-franceses).
Este, História de Lince, evoca Romance de Raposa, Roman de Renard, obra do século XII-XIII
composta por vários autores, que conta as histórias de Raposa e seu arqui-inimigo Isengrin,
o lobo. Lévi-Strauss refere-se a ele numa rápida nota em CC, nota em si intrigante, em que
ao mesmo tempo nos informa que certos mitos são considerados sagrados por tribos norte-
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americanas e que poderiam ser comparados ao Roman de Renard, perguntando se este não
seria, afinal, bom apenas para fazer rir. A conclusão de que o que faz rir é sagrado poderia
ser tirada dessa nota, como várias outras. Como sói acontecer, quando se trata de Lévi-
Strauss, muitas leituras são possíveis e há sempre mais. “Isso”, seja lá o que for, nunca é
tudo, para parafrasear o recorrente “Isso não é tudo” fórmula que, como notou com muita
argúcia Viveiros de Castro, expressa um movimento "necessário, intrínseco ao
procedimento lévi-straussiano".
Voltemos ao Roman de Renard. Seus personagens, além de raposa e lobo, incluem
gatos, cavalos, ursos, galinhas, reis e princesas. Em manuais de literatura francesa, ele é
descrito como uma obra aberta, um conjunto de variantes, num trabalho constante de
reescritura que evolui entre a repetição e a variação. Em forma escrita, a obra guarda o
movimento espiralado do mito, tal como revelado por Lévi-Strauss. O que não surpreende,
visto tratar-se, precisamente, de uma obra do momento da passagem, na Europa, da
tradição oral para a literatura escrita, como outras obras do período (todo o ciclo arturiano
guarda a espiral dos mitos). Noto que ambos os títulos privilegiam um dos membros dos
pares em questão, Raposa e Lince, deixando de mencionar Lobo e Coiote respectivos. Mas
Raposa é um enganador e Lince um personagem ambígüo, de modo que a dualidade já se
encontra num dos termos do novo dualismo que dele se desdobra. E esse movimento é a
própria mola-mestra do pensamento ameríndio, a “ideologia bipartite” que virá, no último
capítulo, concluir as Mitológicas.
As referências literárias estão espalhadas pela obra de Lévi-Strauss, umas mais
explícitas, outras bem mais sutis. Aqui em História de Lince, "Do lado do nevoeiro" e "do
lado do vento", nomes da primeira e da última parte, são evidentemente proustianos. Mas
vamos ao texto. O livro começa de repente: “pode parecer surpreendente”, inicia Lévi-
Strauss, e o leitor é surpreendido pela formulação, tanto quanto pelo jogo de xadrez do
analista contra os mitos que a segue. Então, a ciência é assimilada ao mito, como que
demonstrando que os mitos são, de fato "incansáveis" – não cessam de propor modos de
agenciamento de sentidos. Parece uma celebração da vitalidade do pensamento mítico, mas
um parêntese nos põe em dúvida: os cientistas, diz Lévi-Strauss, restauram um velho modo
de pensamento (o mítico) para tornar suas descobertas acessíveis a nós, leigos. E o
parêntese diz o seguinte: eles (cientistas) às vezes o fazem, "lamentavelmente", também
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para uso próprio. "Lamentavelmente"? O que fazer com isso? Talvez o mesmo que com a
exclamação de Montaigne a respeito da falta de calças dos canibais: tomar essa e as
inumeráveis outras afirmações desconcertantes da obra de Lévi-Strauss como marcas do
estilo retórico da declamação, que Frank Lestringant evidencia em Montaigne, como em
Rabelais, Erasmo e La Boétie. Discurso sem sujeito, livre, marcado por afirmações
surpreendentes e paradoxais. Exercício de pensamento - a declamação é, por sinal, um dos
principais exercícios aconselhados pelos mestres de retórica. A obra de Lévi-Strauss é cheia
de palavras e frases desconcertantes. E afinal Montaigne está aqui, no final das Mitológicas,
como uma das pistas (talvez a última) que o mestre teria deixado espalhadas pela obra.
Pistas, porque, ainda nesse prólogo, Lévi-Strauss situa as “pequenas Mitológicas” (A
Via das máscaras, A oleira ciumenta e História de Lince) a meio-caminho entre o conto de
fadas e o romance policial. Depois, apresenta, discute (e aparentemente despacha) a
questão dos etnônimos, refaz parte de sua trajetória intelectual, repensa o dualismo,
introduz as menção às fontes filosófica e ética do pensamento bipartite dos ameríndios e
sua famosa abertura para o outro. E nos convida a um ato de contrição e piedade pela
destruição do Novo Mundo. Isso é só o prólogo.
Então vem o livro, em clave meterológica, na forma daquilo de que fala. Começa
enevoado como as brumas cuja origem contam os mitos da Colúmbia Britânica que estão
sendo pensados. Dá uma clareada/esclarecida ao abrir as conexões para a América e
também, cada vez mais, para o Velho Mundo. Com os mitos de vento, varre certezas.
História de Lince é em espiral, como o pensamento mítico, voltando a velhos percursos,
retomando os fios da mitologia ameríndia, sempre para ir adiante – ou em tornado, já que é
questão de vento.
O livro tem três partes: começa com nevoeiro e acaba com ventania, passando pelo
bom tempo. E como todos sabem por experiência sensível, brumas e ventos se opõem. De
modo especial para quem experimenta o mundo na Colúmbia Britânica, aliás. O livro é todo
dual, na matéria, na forma, no movimento que efetua, nos exemplos que considera, nas
análises. Livro sobre a gemelaridade que se desdobra em todos os eixos possíveis. E se as
partes são três, note-se que o bom tempo se opõe tanto às brumas como à ventania (é esse o
eixo de oposições em que o livro se move), de modo que o “terceiro” é já uma abertura para
um novo dualismo, noutro eixo (bom tempo-mau tempo).
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Não vou evocar exemplos de dualismo nos mitos e em tudo quanto há nos mundos dos
índios das Américas. Afinal, essa é a matéria (ameríndia) do livro. Os dualismos proliferam
no texto de Lévi-Strauss. Mencionarei alguns deles. O movimento analítico de História de
Lince é composto de afirmações antitéticas que se desdobram em outras, de modo que o
leitor é conduzido no movimento entre opostos a experimentar a matéria explícita do livro:
dualismo em perpétuo desequilíbrio.
Em alguns casos é preciso reinserir História de Lince no conjunto das Mitológicas, a
que ele pertence, para apreciar certos detalhes. Os mitos são discursos sem sujeito, afirmou
ele certa vez. Mas eis que, de repente, lê-se: "a narradora da segunda versão fornece
indiretamente a resposta, tirando a moral do mito". Não só há um sujeito, como sabemos
que é mulher, e que sua agência ao narrar o mito é também parte do grupo de
transformação em questão. O fato de ser mulher incide no modo como ela conta o mito,
descrevendo uma heroína "modesta e comportada". Aqui, o sujeito agente da transformação
mítica é relevante. No outro milhar de casos, talvez não seja, ou talvez simplesmente não
disponhamos de dados para acrescentar mais esse aspecto. Isso é, em miniatura, uma
discussão mais longamente desenvolvida noutras passagens da obra (“Finale”, p.e).
Lévi-Strauss dissera também que os mitos sobrevivem a qualquer tradução, sendo
irrelevante a língua em que são contados. Mas esse livro, como todos os demais, refaz uma
série de conexões a partir de dados lingüísticos. Em História de Lince, é pelas línguas (da
Colúmbia Britânica) que passamos do nome do herói do mito a uma planta chamada
peucédano e daí a um cruzamento entre gregos e ameríndios, formas da planta e
explicações etimológicas, épocas de colheita e virtudes medicinais, receitas culinárias e usos
rituais. Ao que uma nota acrescenta saber botânico, ocidental e ameríndio emparelhados.
São três páginas estonteantes sobre o peucédano, e no final saberemos porque, quando ele
surge no cerne de conexões que ligam os antigos aos índios, associando a planta e suas
congêneres aos gêmeos. Mas então Lévi-Strauss nos diz que tal conexão não passa,
certamente, de ilusão de ótica. E em seguida aventa a possibilidade de a lente fornecida pela
análise estrutural ("poderoso instrumento", diz ele) revelar singularidades, no sentido que
os astrônomos dão ao termo. Uma ilusão pode bem ser uma revelação?
Voltemos às duplas de afirmações antitéticas, agora internas a História de Lince, ainda
que a consideração conjunta das demais Mitológicas sempre revele novos aspectos. A uma
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Afirmações como essa condenam leituras rápidas segundo as quais o objetivo da
empreitada lévi-straussiana teria sido chegar às operações do espírito humano. É verdade
que ele mesmo disse isso em algumas passagens. Mas esta, concluindo a obra mestra da
etnologia americanista, reafirma (pelas avessas, mas isso é próprio do pensar em francês) o
interesse de valer-se do compartilhado espírito humano (que deixa de ser meta para ser
ponto de partida) para deixar-se pensar por uma de suas realizações (as tais “estruturas”,
vale lembrar, só são apreensíveis em suas efetivações particulares). Todo o trajeto das
Mitológicas é conexão de ditos e fatos e feitos americanos. Observe-se que a última frase da
citação acima dá margem a várias leituras: "esperar-se-á", diz ele. Quem é o sujeito?
“Esperar” no sentido de supor ou de desejar (francês e português coincidem aqui)? Não é
possível decidir. Pode ser declamação. Pode ser amerindianização: tudo feito de relação
entre algo e seu contrário, diz-se algo e seu oposto, ambos igualmente verdadeiros, sempre
contextuais. Mais do que isso, ambos necessários. A diferença fundante sem a qual, diz o
pensamento ameríndio, nada há. De todo modo, mesmo quando Lévi-Strauss parece
apresentar a explicitação de sua empreitada mitológica, numa passagem teórica com ares
definitivos, o leitor atento é colocado diante de um "isso não é tudo".
Descolado dos mundos dos índios da América, o assim chamado estruturalismo lévi-
straussiano nos exporia provavelmente apenas um discurso esvaziado, a matriz de
pensamento batizada de estrutura que é tudo quanto pode ser dito e por isso não diz nada.
A obra de Lévi-Strauss diz muito, não pára de dizer e de propor desafios, porque mais do
que americanista, é uma variante, uma transformação, do pensamento americano. Feita de
saberes e seres do Novo Mundo. E feita, como a filosofia ameríndia, de movimento entre
diferenças, alternância e pares dessemelhantes.
Mais uma pista de História de Lince: os intercâmbios franco-ameríndios de histórias
na América do Norte, que já aparecem abrindo o último movimento (que chamei de
ventania), merecem um capítulo à parte, cujo título invoca outro par (duplo) de gêmeos
desiguais: "mitos indígenas, contos franceses". E é por essa relação entre mitos indígenas e
contos franceses que se volta, pela última vez nas Mitológicas, ao desaninhador de pássaros,
com quem começara a longa viagem pelos mitos ameríndios.
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retração. Resta uma dupla verdade: "toda certeza tem a forma a priori de uma contradição"
como ensina Montaigne.
Contradição que a ideologia bipartite dos ameríndios toma também como dado
primeiro. Que os mundos ameríndios exploram e desdobram em outras diferenças,
continuamente. Entre dia e noite, cru e cozido, afins e consanguíneos, metades da aldeia,
vermelho e preto, ventos do leste e do oeste, lince e coiote... São assimetrias
consistentemente revertidas, associações contextualmente invertidas, gente que tem a
prerrogativa de fazer o que não tem o direito de usar e, do outro lado, gente que tem a
prerrogativa de usar o que não tem o direito de fazer, grupos que se alternam, se
multiplicam e se deslocam, pessoas feitas com desenhos, cantos e posições de inimigo,
caçadores que não comem o que caçam, chefes sem poder. Transformações. Alternâncias.
O dito Ocidente tende, como se sabe, a pensar o mundo em isso ou aquilo, identidades
e permanências. Os índios nos apresentam incessantemente isso e aquilo, ora isso, ora
aquilo, variações disso e daquilo. Lévi-Strauss também: ora diz que os mitos são incansáveis
e sua espiral interminável, ora que os mitos morrem, é um cientista que não estabelece
distância (objetiva) entre sujeito cognoscente e objeto do conhecimento, clássico e
romântico, racionalista sensual, academicista e surrealista, para mencionar alguns dos
epítetos a ele aplicados ao longo dos anos.
E se proliferam os mesmos adjetivos nas descrições dos mundos ameríndios e nas
apreciações da obra e das declarações de Lévi-Strauss (paradoxal, contraditório, fluido,
variável, múltiplo), talvez seja esse um caso comparável ao das conversas entre franco-
canadenses e índios. Pode ser coincidência o fato de "relatos de inspiração" aparentemente
"tão dessemelhante se ajust(ar)em espontaneamente", como ele diz dos mitos ameríndios e
contos europeus. Ameríndios, Lévi-Strauss, Montaigne e a declamação podem ter-se
ajustado espontaneamente, por estarem todos constrangidos pelas matrizes do pensável (a
estrutura do espírito). Ou pode esse aspecto dual que se apresenta para nós como
paradoxal tanto nos ameríndios como em Lévi-Strauss resultar do intuito deliberado da
parte do mestre de abrir um para o outro os pensamentos francês e ameríndio. Certo é que
Lévi-Strauss pensa como o pensamento que expõe, e certo também que abre para nós o
Novo Mundo.
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