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História de Lince, manual da América1





Ao iniciar o majestoso Finale de O homem nu, Lévi-Strauss comenta o sujeito das
Mitológicas, aquele 'nós' que poderia ser tomado como pretencioso. Sua principal razão,
dizia, era o “cuidado [...] de fazer do sujeito o que, numa tal empresa, ele devia tratar de ser,
se é que não o é sempre: lugar insubstancial oferecido a um pensamento anônimo”... No
começo do trajeto das Mitológicas, afirmara que “dá no mesmo que, neste livro, o
pensamento dos indígenas sul-americanos tome forma sob a operação do meu pensamento,
ou o contrário”. Pouco importa, de fato, porque no final do trajeto sabemos que é isso
mesmo o que importa: "por em ressonância interna dois pontos de vista completamente
heterogêneos...experimentar contrastivamente duas imaginações", como diz Viveiros de
Castro.
Aquele ‘nós”, sujeito das Mitológicas, são Lévi-Strauss e os ameríndios. Ou franceses e
ameríndios – porque o mestre tem uma série de espíritos auxiliares franceses, perspectivas
que vivem nele, autores citados, louvados ou sutilmente evocados na obra. Falo em
franceses, de modo impreciso, já que pensam nele espíritos auxiliares de várias
nacionalidades. A razão dessa restrição deliberada talvez se esclareça adiante. A obra de
Lévi-Strauss não pode ser plenamente apreciada se a autoria ameríndia for desconsiderada.
É sobretudo verdade em relação às Mitológicas. Que afinal são a grande obra. Mas aplica-se
também, creio, a outros escritos de Lévi-Strauss. Já se comentou as mudanças que haveria
no pensamento de Lévi-Strauss ao longo de sua trajetória. Se algo muda, parece-me, é
decorrência da longa imersão no pensamento dos índios (acordava pensando em mitos, ia
dormir pensando em mitos, disse ele certa vez das décadas dedicadas às Mitológicas): a
reflexão de Lévi-Strauss fica cada vez mais amerindianizada.


1 Comunicação originalmente apresentada no Fórum "A dinâmica transformacional dos coletivos indígenas",

coord. Tânia Stolze Lima, 32ª. ANPOCS, Caxambu 29/10/08. Em 2010, uma versão curta foi em apresentada
na mesa “O legado de Claude Lévi-Strauss”, promovida pelo CERU (USP) e uma variante mais longa , na UFJF. A
presente versão foi revista em 2017.
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Pierre Clastres observou com clarividência, assim que O cru e o cozido foi publicado,
que a obra de Lévi-Strauss inaugurava "um diálogo com o pensamento primitivo", e assim
"[punha] nossa cultura no caminho de um novo pensamento". Esse pensamento novo,
porque revigorado, no caso de Lévi-Strauss, o é menos pelo de primitivos em geral do que
ameríndios, em particular. Mas talvez o termo não seja “diálogo”. Lévi-Strauss teria
escutado os índios (e portanto aprendido, no sentido ameríndio), e transmitido o que
aprendera. Atenção e respeito. Mais do que “embasado em solo ameríndio”, como observou
certa vez Anne-Christine Taylor, o pensamento lévi-straussiano deve ser pensado como
transformação do pensamento ameríndio. Anamorfose.
História de Lince é o livro que conclui Mitológicas. Tentarei, no que segue, mostrar que
expondo o sujeito franco-ameríndio de toda a longa viagem pela mitologia das Américas, na
forma da exposição, em seu desenrolar e formulação, esse livro das também ilustra
magistralmente uma das principais lições da antropologia estrutural de Lévi-Strauss: a
indissociabilidade de forma e conteúdo.
História de Lince é uma obra-prima. O último volume das Mitológicas contém todos os
outros. É toda a América, da Columbia Britânica no Pacífico norte à costa do Atlântico sul, o
Brasil Central, o Chaco e o planalto mexicano, Tupinambá e Kwakiutl, Jê e Astecas, ao longo
de séculos. Mas uma América aberta para comparações cada vez mais amplas, com o Velho
Mundo sobretudo, mas também em direção à Ásia. Ali estão, como que miniaturizados,
todos os grandes temas presentes nas Mitológicas — da origem do fogo de CC às feiras
intertribais de HN — e questões teóricas: relação entre mito e rito, alcance da análise
estrutural, dualismo, binarismo; volta a fórmula canônica. Lévi-Strauss dedicou páginas,
como se sabe, à miniaturização como procedimento lógico para revelação de relações
globais. Em pequeno, condensado, vê se algo que em outras escalas não se perceberia; é o
que ocorre em História de Lince.
Comecemos pelo título. Os títulos de Lévi-Strauss sempre são reveladores. Muitas
vezes ecoam tanto mitos ameríndios como espíritos auxiliares franceses (e não-franceses).
Este, História de Lince, evoca Romance de Raposa, Roman de Renard, obra do século XII-XIII
composta por vários autores, que conta as histórias de Raposa e seu arqui-inimigo Isengrin,
o lobo. Lévi-Strauss refere-se a ele numa rápida nota em CC, nota em si intrigante, em que
ao mesmo tempo nos informa que certos mitos são considerados sagrados por tribos norte-
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americanas e que poderiam ser comparados ao Roman de Renard, perguntando se este não
seria, afinal, bom apenas para fazer rir. A conclusão de que o que faz rir é sagrado poderia
ser tirada dessa nota, como várias outras. Como sói acontecer, quando se trata de Lévi-
Strauss, muitas leituras são possíveis e há sempre mais. “Isso”, seja lá o que for, nunca é
tudo, para parafrasear o recorrente “Isso não é tudo” fórmula que, como notou com muita
argúcia Viveiros de Castro, expressa um movimento "necessário, intrínseco ao
procedimento lévi-straussiano".
Voltemos ao Roman de Renard. Seus personagens, além de raposa e lobo, incluem
gatos, cavalos, ursos, galinhas, reis e princesas. Em manuais de literatura francesa, ele é
descrito como uma obra aberta, um conjunto de variantes, num trabalho constante de
reescritura que evolui entre a repetição e a variação. Em forma escrita, a obra guarda o
movimento espiralado do mito, tal como revelado por Lévi-Strauss. O que não surpreende,
visto tratar-se, precisamente, de uma obra do momento da passagem, na Europa, da
tradição oral para a literatura escrita, como outras obras do período (todo o ciclo arturiano
guarda a espiral dos mitos). Noto que ambos os títulos privilegiam um dos membros dos
pares em questão, Raposa e Lince, deixando de mencionar Lobo e Coiote respectivos. Mas
Raposa é um enganador e Lince um personagem ambígüo, de modo que a dualidade já se
encontra num dos termos do novo dualismo que dele se desdobra. E esse movimento é a
própria mola-mestra do pensamento ameríndio, a “ideologia bipartite” que virá, no último
capítulo, concluir as Mitológicas.
As referências literárias estão espalhadas pela obra de Lévi-Strauss, umas mais
explícitas, outras bem mais sutis. Aqui em História de Lince, "Do lado do nevoeiro" e "do
lado do vento", nomes da primeira e da última parte, são evidentemente proustianos. Mas
vamos ao texto. O livro começa de repente: “pode parecer surpreendente”, inicia Lévi-
Strauss, e o leitor é surpreendido pela formulação, tanto quanto pelo jogo de xadrez do
analista contra os mitos que a segue. Então, a ciência é assimilada ao mito, como que
demonstrando que os mitos são, de fato "incansáveis" – não cessam de propor modos de
agenciamento de sentidos. Parece uma celebração da vitalidade do pensamento mítico, mas
um parêntese nos põe em dúvida: os cientistas, diz Lévi-Strauss, restauram um velho modo
de pensamento (o mítico) para tornar suas descobertas acessíveis a nós, leigos. E o
parêntese diz o seguinte: eles (cientistas) às vezes o fazem, "lamentavelmente", também
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para uso próprio. "Lamentavelmente"? O que fazer com isso? Talvez o mesmo que com a
exclamação de Montaigne a respeito da falta de calças dos canibais: tomar essa e as
inumeráveis outras afirmações desconcertantes da obra de Lévi-Strauss como marcas do
estilo retórico da declamação, que Frank Lestringant evidencia em Montaigne, como em
Rabelais, Erasmo e La Boétie. Discurso sem sujeito, livre, marcado por afirmações
surpreendentes e paradoxais. Exercício de pensamento - a declamação é, por sinal, um dos
principais exercícios aconselhados pelos mestres de retórica. A obra de Lévi-Strauss é cheia
de palavras e frases desconcertantes. E afinal Montaigne está aqui, no final das Mitológicas,
como uma das pistas (talvez a última) que o mestre teria deixado espalhadas pela obra.
Pistas, porque, ainda nesse prólogo, Lévi-Strauss situa as “pequenas Mitológicas” (A
Via das máscaras, A oleira ciumenta e História de Lince) a meio-caminho entre o conto de
fadas e o romance policial. Depois, apresenta, discute (e aparentemente despacha) a
questão dos etnônimos, refaz parte de sua trajetória intelectual, repensa o dualismo,
introduz as menção às fontes filosófica e ética do pensamento bipartite dos ameríndios e
sua famosa abertura para o outro. E nos convida a um ato de contrição e piedade pela
destruição do Novo Mundo. Isso é só o prólogo.
Então vem o livro, em clave meterológica, na forma daquilo de que fala. Começa
enevoado como as brumas cuja origem contam os mitos da Colúmbia Britânica que estão
sendo pensados. Dá uma clareada/esclarecida ao abrir as conexões para a América e
também, cada vez mais, para o Velho Mundo. Com os mitos de vento, varre certezas.
História de Lince é em espiral, como o pensamento mítico, voltando a velhos percursos,
retomando os fios da mitologia ameríndia, sempre para ir adiante – ou em tornado, já que é
questão de vento.
O livro tem três partes: começa com nevoeiro e acaba com ventania, passando pelo
bom tempo. E como todos sabem por experiência sensível, brumas e ventos se opõem. De
modo especial para quem experimenta o mundo na Colúmbia Britânica, aliás. O livro é todo
dual, na matéria, na forma, no movimento que efetua, nos exemplos que considera, nas
análises. Livro sobre a gemelaridade que se desdobra em todos os eixos possíveis. E se as
partes são três, note-se que o bom tempo se opõe tanto às brumas como à ventania (é esse o
eixo de oposições em que o livro se move), de modo que o “terceiro” é já uma abertura para
um novo dualismo, noutro eixo (bom tempo-mau tempo).
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Não vou evocar exemplos de dualismo nos mitos e em tudo quanto há nos mundos dos
índios das Américas. Afinal, essa é a matéria (ameríndia) do livro. Os dualismos proliferam
no texto de Lévi-Strauss. Mencionarei alguns deles. O movimento analítico de História de
Lince é composto de afirmações antitéticas que se desdobram em outras, de modo que o
leitor é conduzido no movimento entre opostos a experimentar a matéria explícita do livro:
dualismo em perpétuo desequilíbrio.
Em alguns casos é preciso reinserir História de Lince no conjunto das Mitológicas, a
que ele pertence, para apreciar certos detalhes. Os mitos são discursos sem sujeito, afirmou
ele certa vez. Mas eis que, de repente, lê-se: "a narradora da segunda versão fornece
indiretamente a resposta, tirando a moral do mito". Não só há um sujeito, como sabemos
que é mulher, e que sua agência ao narrar o mito é também parte do grupo de
transformação em questão. O fato de ser mulher incide no modo como ela conta o mito,
descrevendo uma heroína "modesta e comportada". Aqui, o sujeito agente da transformação
mítica é relevante. No outro milhar de casos, talvez não seja, ou talvez simplesmente não
disponhamos de dados para acrescentar mais esse aspecto. Isso é, em miniatura, uma
discussão mais longamente desenvolvida noutras passagens da obra (“Finale”, p.e).
Lévi-Strauss dissera também que os mitos sobrevivem a qualquer tradução, sendo
irrelevante a língua em que são contados. Mas esse livro, como todos os demais, refaz uma
série de conexões a partir de dados lingüísticos. Em História de Lince, é pelas línguas (da
Colúmbia Britânica) que passamos do nome do herói do mito a uma planta chamada
peucédano e daí a um cruzamento entre gregos e ameríndios, formas da planta e
explicações etimológicas, épocas de colheita e virtudes medicinais, receitas culinárias e usos
rituais. Ao que uma nota acrescenta saber botânico, ocidental e ameríndio emparelhados.
São três páginas estonteantes sobre o peucédano, e no final saberemos porque, quando ele
surge no cerne de conexões que ligam os antigos aos índios, associando a planta e suas
congêneres aos gêmeos. Mas então Lévi-Strauss nos diz que tal conexão não passa,
certamente, de ilusão de ótica. E em seguida aventa a possibilidade de a lente fornecida pela
análise estrutural ("poderoso instrumento", diz ele) revelar singularidades, no sentido que
os astrônomos dão ao termo. Uma ilusão pode bem ser uma revelação?
Voltemos às duplas de afirmações antitéticas, agora internas a História de Lince, ainda
que a consideração conjunta das demais Mitológicas sempre revele novos aspectos. A uma
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dada altura, Lévi-Strauss termina um capítulo dizendo que "avançaríamos em direção ao


fechamento do sistema se pudéssemos demonstrar (mas essas são apenas hipóteses), que
um caminho à prova de fogo é o contrário de um forno de terra [...] e que um tronco
atravessado no caminho é o contrário de uma canoa esquiva". Fórmula que condensa e
conclui uma demonstração, de um tipo que viceja nas Mitológicas sem restrições como essa
de que não passariam de hipóteses indemonstráveis. A própria restrição é contrariada no
final do parágrafo, que fala assertivamente de "uma combinatória que os mitos exploram
metodicamente". É hipótese ou (conclusão de) demonstração? O leitor fica no suspense,
como ao ler um romance policial.
Num outro momento, Lévi-Strauss faz uma série de afirmações que, como ele mesmo
diz, podem nos incitar a "derrogar desta vez a regra fundamental da análise estrutural de
que nenhum detalhe do mito é fortuito", para em seguida expor longamente uma série de
mitos, que conectam Yaukekam dos Kutenai da Colúmbia Britânica a Aukê dos Jê do Brasil
Central, o Atlântico ao Pacífico, os Salish aos Tupinambá. Páginas adiante, o detalhe em
questão, a chamada "sentença fatídica", retoma toda a sua importância, como afirmação de
que "toda unidade contém uma dualidade e que, não importa o que desejemos ou façamos,
não pode haver igualdade entre as duas metades", uma máxima da filosofia ameríndia. Não
há porque abandonar a regra fundamental da análise estrutural, portanto. Mas a
demonstração contém sua possível negação. "Toda unidade contém uma dualidade"...
Noutros pontos, as análises vão-se transformando até se inverterem. Ao refletir acerca
do eventual interesse de uma mitologia geral, Lévi-Strauss (retomando o final de HN)
afirma que a análise estrutural dos mitos, aplicada a uma mitologia local, ensina muito
"sobre a sociedade de que provém, expõe seus mecanismos, esclarece o funcionamento, o
sentido e a origem de costumes... contanto que nunca se desligue dos fatos". Diz em seguida
que mesmo a comparação entre mitos de uma área geográfica e período histórico
circunscritos pode se tornar geral demais, para concluir que apesar disso, cito:
"nada está perdido, contanto que se esteja consciente de que esse movimento
reduz progressivamente o pensamento mítico a sua forma. Já não se trata de
saber o que os mitos dizem, mas de compreender como dizem, ainda que,
aprrendidos nesse nível, digam cada vez menos. Esperar-se-á, então, da análise
estrutural que esclareça o funcionamento − em estado puro, por assim dizer −
de um espírito que, emitindo um discurso vazio e porque nada mais tem a
oferecer, desvenda e revela o mecanismo de suas próprias operações.".
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Afirmações como essa condenam leituras rápidas segundo as quais o objetivo da
empreitada lévi-straussiana teria sido chegar às operações do espírito humano. É verdade
que ele mesmo disse isso em algumas passagens. Mas esta, concluindo a obra mestra da
etnologia americanista, reafirma (pelas avessas, mas isso é próprio do pensar em francês) o
interesse de valer-se do compartilhado espírito humano (que deixa de ser meta para ser
ponto de partida) para deixar-se pensar por uma de suas realizações (as tais “estruturas”,
vale lembrar, só são apreensíveis em suas efetivações particulares). Todo o trajeto das
Mitológicas é conexão de ditos e fatos e feitos americanos. Observe-se que a última frase da
citação acima dá margem a várias leituras: "esperar-se-á", diz ele. Quem é o sujeito?
“Esperar” no sentido de supor ou de desejar (francês e português coincidem aqui)? Não é
possível decidir. Pode ser declamação. Pode ser amerindianização: tudo feito de relação
entre algo e seu contrário, diz-se algo e seu oposto, ambos igualmente verdadeiros, sempre
contextuais. Mais do que isso, ambos necessários. A diferença fundante sem a qual, diz o
pensamento ameríndio, nada há. De todo modo, mesmo quando Lévi-Strauss parece
apresentar a explicitação de sua empreitada mitológica, numa passagem teórica com ares
definitivos, o leitor atento é colocado diante de um "isso não é tudo".
Descolado dos mundos dos índios da América, o assim chamado estruturalismo lévi-
straussiano nos exporia provavelmente apenas um discurso esvaziado, a matriz de
pensamento batizada de estrutura que é tudo quanto pode ser dito e por isso não diz nada.
A obra de Lévi-Strauss diz muito, não pára de dizer e de propor desafios, porque mais do
que americanista, é uma variante, uma transformação, do pensamento americano. Feita de
saberes e seres do Novo Mundo. E feita, como a filosofia ameríndia, de movimento entre
diferenças, alternância e pares dessemelhantes.
Mais uma pista de História de Lince: os intercâmbios franco-ameríndios de histórias
na América do Norte, que já aparecem abrindo o último movimento (que chamei de
ventania), merecem um capítulo à parte, cujo título invoca outro par (duplo) de gêmeos
desiguais: "mitos indígenas, contos franceses". E é por essa relação entre mitos indígenas e
contos franceses que se volta, pela última vez nas Mitológicas, ao desaninhador de pássaros,
com quem começara a longa viagem pelos mitos ameríndios.
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A questão de fundo é a do empréstimo cultural, conectada à discussão do alcance da


base comparativa, duas grandes questões (ou dois aspectos de uma grande questão) que
pautam o livro. Nesse caso específico, por um lado sabe-se que viajantes canadenses
trocavam histórias com os índios ao longo dos meses que passavam juntos nas aldeias do
oeste, o que explica facilmente que mitos indígenas norte-americanos ecoem contos
medievais europeus. [E essas conversas são, aliás, de mão dupla: a mitologia indígena ecoa
no humor dos franco-canadenses; mito vira piada mas, como dizia Clastres, mitos são
também para fazer rir; como o Roman de Renard, por sinal] Voltemos. Por um lado, o
empréstimo é facilmente datável mas por outro – claro está que sempre há um outro lado –
esses mitos, tão evidentemente parecidos com contos europeus, invertem outros mitos,
alguns anteriores à invasão européia (como um que os Astecas diziam ter herdado dos
Toltecas) e com isso demonstram pertencer "ao mais autêntico patrimônio ameríndio".
Empréstimo? Invenção paralela? Conclui-se com a probabilidade de difusão, em escala
planetária e, ao mesmo tempo, com a possibilidade de termos aí fatos que decorrem "das
propriedades inerentes do pensamento mítico". Empréstimo e invenção paralela.
Mais uma volta na espiral e fala-se de mecanismos de empréstimo. Para expor várias
aproximações que levam à mesma in-conclusão quanto ao peso a ser atribuído à invenção
paralela, de um lado, e à difusão, do outro: "a depender da perspectiva adotada, o mesmo
motivo pode aparecer como empréstimo ou como estado de uma transformação que quase
poderíamos ter deduzido a priori".
E vem Montaigne. Capítulo denso, que não há como acompanhar aqui em todos os
seus meandros. Lévi-Strauss relê Montaigne, por assim dizer, como eu o estou relendo: em
seus paradoxos e contradições. E também como exceção num tempo em que a Europa não
se interessava pelo Novo Mundo – afirmação em si surpreendente, visto que fomos
habituados a crer que não só a Europa dedicou-se apaixonadamente a pensar a América
desde a sua "descoberta" como esse movimento fez com que os europeus repensassem o
mundo e a si mesmos. Os europeus estavam fechados, diz Lévi-Strauss. Pensavam-se como
o todo, quando eram apenas metade. Ao contrário dos ameríndios. E os empréstimos
voltam, facilitados pela abertura dos ameríndios para o outro, no lugar vazio reservado aos
brancos, "em sistemas de pensamento fundados num princípio dicotômico que a cada etapa
obriga a desdobrar os termos". Abertura que de certo modo também contribuiu para a
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destruição da América, evocada, como no ensaio "Dos Coches" de Montaigne, por


intermédio das chamadas altas civilizações do México e do Peru. Ato de contrição. E de
modéstia quanto a nossas possibilidades de conhecimento, Montaigne à l’appui.
Culmina-se então na "ideologia bipartite dos ameríndios". Gêmeos gregos e gêmeos
ameríndios, a diferença como problema ou como princípio, a busca da identidade ou o valor
da alteridade. Estávamos nos fundamentos da filosofia ameríndia, mas
(surpreendentemente?) não é pelos mitos de nevoeiro, que "expressam — segundo LS —
como que em microcosmo (miniatura) toda a mitologia ameríndia" que vamos prosseguir.
Invertendo, é pelos mitos de vento, que "condensam — diz ele — tudo o que os índios
sabiam do folclore europeu".
E com eles vem o chinook, vento sudoeste que em janeiro-fevereiro sopra
tempestuoso e molhado na costa da Colúmbia Britânica, vindo do Pacífico, seca e esquenta
ao passar por duas cadeias de montanhas e, soprando nas planícies, provoca altas
espetaculares de temperatura em algumas horas, derretendo a neve que tinha ficado do
inverno. Espetacular em clave de água ou em clave de seca, capaz de operar em si e no
horizonte uma virada de estação, o chinook é mesmo bom para pensar. Em História de
Lince, ele é longamente descrito e os últimos mitos das Mitológicas falam dele. História de
Lince é em chinook.
Porque o chinook é mesmo muito bom para expressar a matéria do livro: bipartição,
movimento entre-dois, transformação. E os caminhos duplicados e invertidos das
afirmações e análises de Lévi-Strauss. E o derretimento de certezas operado por Montaigne.
Ao terminar, o último das Mitológicas nos deixa diante de uma possibilidade
inatingível. Os grandes finais magistrais de Lévi-Strauss são bem conhecidos: uns nos
abismam no silêncio, outros no nada, no pudor e na moderação, na inanidade e poder do
evento, nos olhos de um gato.
História de Lince nos deixa diante de algo, uma revelação (ou ilusão?), um mundo no
qual não devemos ter a ambição de entrar. É um livro que fala de abertura para o outro e de
paralelismos entre o Velho e o Novo Mundo. Operando assim também uma abertura
"reversa", por assim dizer: ao acabar a viagem das Mitológicas, as comparações com o Velho
Mundo, que sempre pontuaram a obra, passam para o primeiro plano. Chinook. O
movimento é ao mesmo tempo dilatação – ampliação do alcance da comparação — e
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retração. Resta uma dupla verdade: "toda certeza tem a forma a priori de uma contradição"
como ensina Montaigne.
Contradição que a ideologia bipartite dos ameríndios toma também como dado
primeiro. Que os mundos ameríndios exploram e desdobram em outras diferenças,
continuamente. Entre dia e noite, cru e cozido, afins e consanguíneos, metades da aldeia,
vermelho e preto, ventos do leste e do oeste, lince e coiote... São assimetrias
consistentemente revertidas, associações contextualmente invertidas, gente que tem a
prerrogativa de fazer o que não tem o direito de usar e, do outro lado, gente que tem a
prerrogativa de usar o que não tem o direito de fazer, grupos que se alternam, se
multiplicam e se deslocam, pessoas feitas com desenhos, cantos e posições de inimigo,
caçadores que não comem o que caçam, chefes sem poder. Transformações. Alternâncias.
O dito Ocidente tende, como se sabe, a pensar o mundo em isso ou aquilo, identidades
e permanências. Os índios nos apresentam incessantemente isso e aquilo, ora isso, ora
aquilo, variações disso e daquilo. Lévi-Strauss também: ora diz que os mitos são incansáveis
e sua espiral interminável, ora que os mitos morrem, é um cientista que não estabelece
distância (objetiva) entre sujeito cognoscente e objeto do conhecimento, clássico e
romântico, racionalista sensual, academicista e surrealista, para mencionar alguns dos
epítetos a ele aplicados ao longo dos anos.
E se proliferam os mesmos adjetivos nas descrições dos mundos ameríndios e nas
apreciações da obra e das declarações de Lévi-Strauss (paradoxal, contraditório, fluido,
variável, múltiplo), talvez seja esse um caso comparável ao das conversas entre franco-
canadenses e índios. Pode ser coincidência o fato de "relatos de inspiração" aparentemente
"tão dessemelhante se ajust(ar)em espontaneamente", como ele diz dos mitos ameríndios e
contos europeus. Ameríndios, Lévi-Strauss, Montaigne e a declamação podem ter-se
ajustado espontaneamente, por estarem todos constrangidos pelas matrizes do pensável (a
estrutura do espírito). Ou pode esse aspecto dual que se apresenta para nós como
paradoxal tanto nos ameríndios como em Lévi-Strauss resultar do intuito deliberado da
parte do mestre de abrir um para o outro os pensamentos francês e ameríndio. Certo é que
Lévi-Strauss pensa como o pensamento que expõe, e certo também que abre para nós o
Novo Mundo.
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As proximidades e cruzamentos entre o pensamento ameríndio e o pensamento lévi-


straussiano podem ser mera coincidência. Isso tudo pode ser ilusão. E pode não ser. De todo
modo, ele já nos dissera que entre ser e não-ser, não cabe a nós escolher. Uma lição bem
ameríndia. Numa versão bem francesa. E vice-versa.

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