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MONTAIGNE

Michel de Montaigne foi um dos mais importantes filósofos do


Renascimento. Nascido na França em 1533, sua obra magna, Os
Ensaios compreende três volumes onde ele reflete sobre os mais variados temas,
como por exemplo: morte, amor, etc. Sua escrita é aguda e por vezes cômica,
mas nunca falha em nos fazer rever nossas convicções mais cristalizadas.

Em Dos Canibais, o 31º ensaio do livro I, ele critica os critérios europeus


para rotular os indígenas como “bárbaros” (lembremo-nos que o contato dos
europeus com os povos americanos era ainda recente). O termo "bárbaro" era
utilizado pelos gregos para designar todos aqueles que não pertenciam a seu
grupo étnico (bárbaro significa ao pé da letra "não grego") sendo, por isso, povos
inferiores que deveriam ser submissos aos gregos.

Michel de
Montaigne
Com a colonização das Américas, os europeus reeditaram a palavra
associando-a aos indígenas querendo dizer, naturalmente, que estes eram
inferiores e que era seu papel levar a civilização aos selvagens. O propósito de
Montaigne é justamente criticar a crença de que o europeu seja moralmente
superior aos índios, pois, segundo ele, os critérios que usamos para julgar os
outros são no mais das vezes calcados em preconceitos há muito interiorizados e,
por isso mesmo, errôneos.

Uma vez que Montaigne não chegou a conhecer as novas terras, como
poderia, afinal, afirmar tão categoricamente que estes não eram de fato atrasados
em relação aos europeus? De tal acusação, ele se defende afirmando que embora
não tenha visto as coisas de perto, ouviu o relato de um homem simples que se
hospedou em sua casa. Segundo ele, os homens rudes são mais honestos pois
falta-lhes instrução para enriquecer os fatos de modo leviano sendo suas palavras
mais dignas de fé. Assim, ele está autorizado a analisar a matéria, pois sua fonte é
confiável.

Dentre os diversos costumes que tornariam os índios inferiores estão o


canibalismo e a poligamia. Ao horror que eles provocavam em seus conterrâneos,
Montaigne responde que ambos não são mais terríveis do que a tortura ou os
exemplos bíblicos de "homens santos" que tinham várias esposas.

Montaigne afirma que "há mais barbárie em comer um homem vivo do que
em comê-lo morto", querendo dizer com isso que os europeus não possuem
autoridade para criticar o canibalismo. Afinal, o que enceta maior crueldade:
excruciar por dias a fio uma pobre alma, ou alimentar-se de um corpo que não
sente mais dor, pois encontra-se morto? Mas o mais importante para o filósofos
francês é que o canibalismo possui um significado, não se trata de mera
excentricidade gastronômica. Comendo a carne do guerreiro derrotado, absorve-
se sua vitalidade, torna-se mais forte, mais vigoroso. Não é uma iguaria a ser
servida aleatoriamente, existe um sentido por trás de sua ação, que demonstra
que seus costumes possuem uma racionalidade. Essa racionalidade, ainda que
distinta da dos europeus não permite dizer que os "selvagens" sejam inferiores.
A crítica seletiva à poligamia demonstra mais uma vez a incoerência atribuir
inferioridade aos índios. Afinal, se isso constitui problema tão grave, por que não
se diz o mesmo de Davi ou Salomão que tinham diversas mulheres? Ao contrário,
se imputa a eles grande virtude. O que isso evidencia é que os costumes oscilam
no tempo e lugar e, portanto, o diferente não deve ser considerado inferior ou
"bárbaro".

Na realidade, os índios seriam diferentes dos europeus basicamente por levarem


uma vida mais próxima da natureza sem pompas e luxos artificiais e, por isso, eles
seriam moralmente superiores, porque nenhum artifício humano pode jamais
alcançar a magnificência da natureza:

“É um povo, diria eu a Platão, no qual não há a menor espécie de comércio;


nenhum conhecimento das letras; nenhuma ciência dos números; nenhum título
de magistrado nem de autoridade política; nenhum uso de servidão, de riqueza ou
de pobreza; nem contratos; nem sucessões; nem partilhas; nem ocupações,
exceto as agradáveis; nem vestimentas; nem agricultura; nem metal; nem uso de
vinho ou de trigo. As palavras que designam a mentira, a traição, a dissimulação,
a avareza, a inveja, a maledicência, o perdão são inauditas. A república que
Platão imaginou, como a consideraria distante dessa perfeição!”

O ensaio Dos Canibais é uma crítica ferrenha aos costumes europeus do


século XVI, certamente. Mas também é um excelente lembrete de que nossas
ideias são produto da cultura em que somos educados e que se calcificam com o
tempo. Antes de nos arrogar a julgar os outros precisamos orientar nossa
investigação para dentro, para nós mesmos, a fim de demover nossos
preconceitos antes de impor nossos valores. Desse modo, Montaigne nos mostra
que nossos juízos são sempre limitados pelo meio e que é preciso examinar-se
atentamente antes de "etiquetar" aquilo que nos é estranho como inferior.

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