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In: Signorini, I. e Fiad, Raquel S.

(orgs) Ensino de língua : das reformas, das


inquietações e dos desafios. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011, p. 283-303.
ISBN: 978-85-7041-901-9

LETRAMENTOS MULTI-HIPERMIDIÁTICOS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES


DE LÍNGUA

Inês Signorini (UNICAMP)

Introdução

Nosso objetivo neste trabalho é apresentar e discutir a questão dos letramentos


próprios dos ambientes multi e hipermidiáticos, os chamados novos letramentos, em
função de dois aspectos que acreditamos serem constitutivos da questão, tal como ela se
apresenta hoje para a formação de professores de língua. O primeiro aspecto é o caráter
disruptivo de muitas das práticas de uso da língua aí envolvidas, em relação às do
letramento grafocêntrico convencional e, consequentemente, em relação a padrões de
uso da língua tidos como alvos visados pelo ensino. O segundo aspecto é o das
necessidades e oportunidades criadas simultaneamente por tais práticas, sem que, no
mais das vezes, se possa separar uma coisa da outra. A principal dessas necessidades
nos parece ser a da exploração sistemática da mediação tecnológica de base
computacional como condição para sua apropriação crítica, ou seja, como condição para
sua recriação enquanto recurso de empoderamento, e não apenas de dominação e
controle do indivíduo e dos grupos pela lógica do consumo, do poder econômico,
estatal, politico etc.
Considerando esses dois aspectos, fica mais fácil compreender porque a questão
dos letramentos multi-hipermidiáticos tem permanecido submersa, ou pelo menos
invisível, nos cursos de formação em Letras. Da mesma forma, fica mais evidente a
necessidade de uma inserção mais efetiva e esclarecida dos formadores e formandos em
Letras nos debates sobre os novos letramentos que invadiram o cotidiano, mas que
ainda não são efetivamente objetos de reflexão e de ensino. Acreditamos que tal
inserção poderá contribuir para uma melhor qualificação dos futuros profissionais que
enfrentarão (ou já estão enfrentando) o desafio de levar seus alunos a se apropriarem
desses letramentos enquanto cidadãos – ou seja, enquanto indivíduos e grupos capazes

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de fazer ligações mais profícuas entre linguagem, saber e poder -, e não apenas
enquanto consumidores de produtos tecnológicos.
A premissa mais geral que nos orienta é a de que a mediação tecnológica não é
fato novo na cultura e seus efeitos são bidirecionais, ou seja, a tecnologia modela as
práticas e as comunidades de usuários, mas também é modelada por elas (Bijker, 1995;
Pool, 1999). O estudos de tecnologias convencionais da escrita, como as que fizeram a
história do livro e da leitura (Chartier, 1992), bem como dos gêneros textuais
(Bazerman, 1988), já demonstraram isso no campo específico dos estudos da
linguagem. Sendo assim, em última análise, o desafio que se coloca hoje para
professores e formadores de professores é o da ação crítica, certamente, mas como
afirma Lemke (2006, p. 14), toda crítica é antes de mais nada “criação, autoria,
produção” em contexto de análise: “Precisamos ajudar os alunos a ver como poderiam
criar multimídia diferente da que é vendida para eles, ou que lhes é oferecida ‘de
graça’“. E, conforme pretendemos mostrar, esse é um desafio já bastante presente na
escola, mesmo sendo desconsiderado pela grande maioria dos agentes institucionais.
Nas seções a seguir, apresentamos inicialmente uma caracterização do que
estamos compreendendo por letramentos multi-hipermidiáticos e, em seguida,
focalizamos as relações entre esses letramentos e o convencional grafocêntrico,
principal objeto da formação em Letras e do ensino de Língua Portuguesa na escola. Na
última parte do trabalho, discutimos as necessidades criadas por esses novos
letramentos no contexto escolar, ou seja, no contexto de atuação dos forma(n)dos em
Letras. Apoiamo-nos nos estudos sobre multiletramentos (New London Group, 1996;
Cope e Kalantzis, 2000); sobre letramentos digitais e ensino (Lemke 2000; 2006;
Lankshear e Knobel 2006; 2008; entre outros); sobre língua, linguagem e mediação
tecnológica (Manovich, 2001; Signorini e Cavalcanti, 2010) e sobre inovação no ensino
de língua (Signorini, 2007).

1. Situando os letramentos multi-hipermidiáticos

Estamos compreendendo os letramentos multi-hipermidiáticos como conjuntos


de práticas socioculturais caracterizadas pelo uso de linguagens multimodais (verbais,
visuais, sonoras) associadas à hipermodalidade, ou seja, aos recursos de design e
navegação próprios dos ambientes de hipermídia, plugados ou não às redes

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computacionais. O que significa dizer que além de plurais, essas práticas são
contextualmente variáveis, envolvem a mídia eletrônica e as chamadas novas
tecnologias de informação e comunicação (as TIC), as quais dão à hipermidia um
caráter híbrido, interativo, não linear e metamórfico: linguagens multimidiáticas em
arquiteturas hipertextuais. Na contemporaneidade, são, portanto, práticas em
transformação acelerada, não podendo ser reduzidas a um conjunto específico e acabado
de conteúdos, saberes ou habilidades, nos moldes das práticas escolares estabelecidas.
Os letramentos multi-hipermidiáticos integram o conjunto maior dos
multiletramentos, termo cunhado em meados dos anos 1990 por um grupo de estudiosos
dos letramentos1 para “descrever” traços de uma nova ordem cultural, institucional e
global emergente e suas implicações para a “pedagogia do letramento”. Em seu
“manifesto programático”, apresentado como um ponto de partida para a discussão 2, o
New London Group (1996), como foi chamado, aponta os seguintes principais traços
identificadores dessa nova ordem emergente:

1. importância crescente da diversidade cultural e linguística (migração,


multiculturalismo e globalização no campo da economia, do trabalho e das
comunicações);
2. influência crescente das novas tecnologias de informação e comunicação e dos
modos multimodais de produção de sentidos;
3. mudança acelerada da dinâmica organizacional e tecnológica em ambientes de
trabalho e, consequentemente, nas demandas para a vida profissional dos
indivíduos;
4. mudança acelerada dos padrões de sociabilidade e cidadania (pluralismo).

Em função dos processos de globalização, a diversidade lingüístico-cultural se


verifica também em nível local, mas está, inevitavelmente, em conexão com o global; e
em função das TIC, a letra/escrita passa a ser um componente dentre outros que se
articulam em padrões multimodais de produção de sentidos. O que significa dizer que
os padrões grafocêntricos dos letramentos de base puramente lingüística dão lugar aos
padrões híbridos multi-hipermidiáticos. E a diversidade das atividades e práticas
letradas contemporâneas pode, assim, ser apreendida numa perspectiva mais ampla que
a do letramento grafocêntrico convencional com seus padrões textuais e gráfico-visuais
próprios da mídia impressa.

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Conforme também apontado pelo New London Group, as TIC deram visibilidade
à multiplicidade e à dinamicidade dos modos de representação e de produção de
sentidos em função de variáveis contextuais locais e culturais mais amplas. Desse
modo, favoreceram o surgimento de novos canais e espaços (multimídia e hipermídia)
susceptíveis de darem voz a minorias e subculturas.
Em sua crítica à pedagogia tradicional do letramento de base linguística, esses
mesmos autores afirmam que essa pedagogia tem sido um projeto “cuidadosamente
restringido” a formalizações linguísticas monolíngues, monoculturais e regradas (1996,
p.61), ao mesmo tempo em que tem ignorado o fato das novas mídias mudarem os
modos de se usar a lingua, comprometendo padrões e habilidades tadicionalmente tidos
como alvos finais do ensino (1996, p. 64).
Na perspectiva desses mesmos autores, uma nova ‘pedagogia do letramento’
deve enfatizar:

1. a “negociação” das múltiplas diferenças linguísticas e culturais como recurso


para a vida profissional, social e privada dos alunos: “Como assegurar que
diferenças de cultura, língua e gênero não sejam barreiras para o sucesso
educacional? E quais são as implicações dessas diferenças para a pedagogia do
letramento?” (1996, p. 61)
2. o duplo objetivo de:
 dar acesso à dinâmica e à multiplicidade das linguagens no campo
profissional, de poder e comunitário;
 promover o engajamento crítico necessário para o sucesso individual e
para o design, no sentido de arquitetagem, de “futuros sociais” (1966, p.
65): educadores e alunos devem se ver como participantes ativos das
mudanças sociais, como ativos “fazedores” de futuros sociais.

E essa noção de “pedagogia como design” (1996, p. 73) está fundada na crítica
às noções de acesso e mobilidade que sustentam o modelo pedagógico convencional,
fundado na partilha entre culturas e linguas hegemônicas e deficitárias e na economia da
escassez3. A analogia como o design ou arquitetagem de novas formas e significados dá
ênfase por um lado ao potencial produtivo e inovador dos novos modos de
representação e produção de sentidos a serem contemplados no ensino e, por outro, aos
processos de re-representação e de re-contextualização de recursos socioculturais já

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existentes, os quais também constituem a inovação. A esse respeito, conforme mostra
Perkel (2008), o “letramento do copiar e colar” em práticas rotineiras de adolescentes
na internet é um exemplo de como a mobilização criativa de recursos já dados pode
levar à produção do novo.

2. Bordas e fronteiras entre o letramento de base grafolinguística e os multiletramentos


de base multimodal e hipermidiática

Como o uso de dispositivos e tecnologias computacionais tanto pode integrar


antigas práticas quanto criar novas, o interesse não está em classificar práticas e eventos
de letramento multi-hipermidiático em novos ou convencionais, inclusive porque as
práticas e eventos atuais estão em efervescência, isto é, em processo acelerado de
mudança, e o que se tem muitas vezes é um trânsito intenso e cada vez mais bidirecional
entre práticas antigas e novas.
Fronteiras e delimitações tornam-se, então, muitas vezes pouco claras e pouco
significativas para a apreensão dos processos em curso. Nesse sentido é que nos parece
mais produtiva a metáfora espacial da borda (espaço comum e fluido entre domínios),
ao invés da da fronteira (linha nítida de demarcação entre domínios), para descrever as
relações que vão se construindo nesses processos. Se o uso do telefone celular plugado à
internet, por exemplo, continua sendo basicamente o mesmo do celular convencional,
ou mesmo do telefone convencional, em práticas de comunicação oral à distância, isso
não impede que se torne ao mesmo tempo outra coisa: uma espécie de prótese que
reconfigura por completo as relações espaço-temporais de seu usuário e,
consequentemente, o próprio conceito de comunicação à distância, a qual passa a ter
outros protocolos de acesso e privacidade, para citar os mais salientes.
No caso dos usos da linguagem verbal nos multiletramentos, o que se pode
verificar é que ao mesmo tempo em que os multiletramentos, como descrito na seção
anterior, não são uma somatória de letramentos de base grafolinguística, há
sobreposições e complementaridades entre eventos e práticas de diferentes tipos, mas há
também subversões e descontinuidades que se mostram significativas. O melhor
exemplo nesse sentido é o da passagem da “página” Web (Web 1.0) para o “portal”
(Web 2.0): se no primeiro caso a analogia com a página impressa realça a sobreposição
de um objeto semiótico bidimensional, estático e apreensível em função de

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conceitualizações e instrumentos analíticos familiares aos estudiosos de objetos de base
grafolinguística, no caso do portal, a analogia aponta para a subversão desse objeto
familiar (a página escrita), na medida em que realça a tridimensionalidade criada com a
interseção de múltiplos espaços ou planos acessíveis através dos pontos de linkagem
que constituem o portal e fazem dele um pórtico de passagem para o chamado
ciberespaço.
Uma conseqüência disso é que categorias de descrição e análise utilizadas para o
estudo dos letramentos de base grafolinguística podem não iluminar aspectos
importantes de um objeto como o portal, assim como de eventos e práticas emergentes
desde o advento da hipermídia. É o que já apontava Marcuschi (1999), por exemplo, ao
tratar da leitura hipermodal (leitura + navegação) e de categorias de análise produzidas
pela Linguística textual, no caso as de coesão e coerência:

A ‘leitura’ do hipertexto é caracterizada como uma viagem por trilhas.


Ligam-se nós para formarem-se redes. O autor não pode antecipar
todos os espaços possíveis que o leitor pode navegar. O problema é
muito mais de uma macrocoerência do que uma questão de
coesividade ou coerência local. (Marcuschi, 1999, p. 20).

Da mesma forma, Braga (2004) aponta a multisemiose (multimodalidade +


hipermodalidade) como um desafio para as categorizações de gênero até então
produzidas pelos estudos lingüísticos, conforme também demonstrado por Lemke
(2002). Segundo Braga,

A multiplicidade de sentidos permitida pela estrutura hipertextual é


ainda mais evidente nos ambientes de hipermídia, nos quais a
hipertextualidade é agregada à multimodalidade. (...) O texto
hipermodal, ao relacionar dentro de uma estrutura hipertextual
unidades de informação de natureza diversa (texto verbal, som,
imagem), gera uma nova realidade comunicativa que ultrapassa as
possibilidades interpretativas dos gêneros multimodais tradicionais.
(Braga, 2004, p. 149-150)

De fato, as categorias de descrição e análise da língua, do texto e do discurso


produzidas no âmbito dos estudos lingüísticos são problematizados pelos objetos
próprios da hipermídia de diferentes formas e em diferentes graus, em eventos e práticas
específicas. O modelo topográfico das estruturas multiniveladas articuladas em redes,
por exemplo, ilumina os componentes dos objetos semióticos próprios da hipermídia, no

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caso as estruturas hipertextuais (Lemke, 2002; 2006), ao mesmo tempo em que
problematiza e reconfigura o conceito propriamente lingüístico de texto como estrutura
auto-consistente de contornos definidos e recuperáveis através da leitura.
Voltando ao exemplo da passagem da página ao portal, já mencionado, a noção
de interface hipermidiática, enquanto espaço topológico de interação com a máquina ou
a tecnologia, ou de interação social mediada pelo objeto tecnológico (a esse respeito,
ver Signorini e Cavalcanti, 2010) é uma alternativa mais produtiva à de superfície
graficovisual no estudo das ecologias da escrita próprias da hipermídia. Interfaces
hipermidiáticas produzem e regulam ações individuais e coletivas, na medida em que
funcionam como dispositivos de acesso a redes sociotécnicas (Callon, 1998) de
produção e uso de recursos linguísticos e sociosemióticos relevantes do ponto de vista
do letramento hipermidiático. E a escrita de interface é uma escrita outra em relação à
das mídias convencionais: “dividida em dois espaços (tela e memória), a escrita passa a
ser ambivalente: invisível e legível, fugaz e durável...” (Souchier, 2004).
Trata-se, na verdade, como enfatiza Manovich (2001), de uma escrita sujeita aos
efeitos dos processos de transcodificação próprios do computador:

‘transcodificar’ algo é traduzi-lo em outro formato. A


computadorização da cultura faz gradualmente a mesma coisa em
relação a todas as categorias e conceitos. Isto é, categorias culturais e
conceitos são substituídos, em nível de significação e/ou de
linguagem, por outros novos, derivados da ontologia, epistemologia e
pragmática computacionais. A nova mídia funciona, portanto, como
predecessora desse processo mais geral de re-conceituação cultural.
(Manovich, 2001, p. 64-65)

Na perspectiva desse autor, o conceito de interface de usuário como


reconfiguração do de página escrita é um exemplo de transcodificaçào, nos termos
citados.
Mas além da escrita e do texto, as unidades de análise dos processos
sociointeracionais em práticas de letramento multi-hipermidiático também estão sob o
efeito da transcodificação prevista por Manovich: espaço-tempo real/ virtual, papéis e
identidades múltiplas, intercambiáveis e fluidas; altos níveis de interatividade. Anderson
(2010) assim descreve os impactos disso para sua atuação profissional como jornalista:

Com a Internet, meus pensamentos se desenvolvem ao serem


compartilhados com quem tem o mesmo interesse; tenho amizade
virtual de idéias com dezenas de pessoas que eu provavelmente nunca

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irei conhecer e cuja idade, origem e sexo, eu ignoro. A generosidade
delas é um deleite. Tudo o que eu escrevo agora é logo modificado.
Eu não penso sozinho. Mantenho uma conversação global forjada pela
Web. (Anderson, 2010, p. s/n; TRADUÇÃO MINHA)

Mas com a Web veio também a abundância dos fluxos informacionais, verbais,
sonoros e imagéticos (em contaposição à lógica da escassez do modelo grafocêntrico),
associada por um lado à imediatez na produção/consumo da informação e, por outro, à
externalização da memória individual e coletiva.
De fato, são significativos os efeitos dessa associação para a questão da
produção e circulação do conhecimento. Na tradição grafocêntrica, são importantes as
agências de letramento legitimadas, como a escola, a grande mídia e demais instituições
orientadas para a filtragem e distribuição dos recursos de capital simbólico, no sentido
dado a essa expressão por Bourdieu (1989). E são fundamentais nessas agências papéis
como os de professor, tutor, expert, especialista etc. No quadro dos letramentos
hipermidiáticos, porém, a lógica da abundância tornada fluida pela imediatez, associada
à da memória aumentada e distribuída, coloca em xeque tais mecanismos de filtragem e
distribuição de recursos simbólicos. Em primeiro lugar porque impõe a lógica
computacional dos sistemas automáticos de classificação e ranqueamento a partir do
tratamento de bases de dados; e em segundo lugar porque introduz as redes
sociotécnicas como ferramentas de cognição distribuída:

a Web não é só um poderoso reservatório com todo tipo de


informação, etiquetada e não etiquetada, mas também uma poderosa
ferramenta reputacional, que cria rankings, sistemas de classificação,
pesos e vieses no campo do conhecimento. (...) A boa nova é que em
nossa época, essa avaliação se faz através de ferramentas novas,
coletivas, que questionam as ideias pré-concebidas, desenvolvem e
aperfeiçam uma maneira inovadora e democrática de filtrar o
conhecimento. Mas não teríamos como escapar da criação de um
corpus de conhecimento ‘canônico’ – mesmo que sempre provisório e
sujeito a revisão. (Origgi, 2008, p. 20)

Mesmo se a lógica da filtragem de um conhecimento canônico “sempre


provisório” pudesse ser considerada, como defende Origgi na passagem acima, muda
inevitavelmente a configuração dos papéis acima mencionados, de professor, tutor,
especialista, ou expert. Como bem assinala Eno (2010, p. 41), se antes um expert era
“alguém com acesso a um tipo especial de informação”, “com tanta informação

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disponível igualmente para todos, um expert tornou-se ‘alguém com uma melhor
maneira de interpretar a informação’ “.
E o significado disso para um agente da mídia convencional é assim descrito por
Anderson (2010):

Meu trabalho não é cavar informações, mas fornecer o fio narrativo


que vai articulá-las. No dilúvio de bits, é a busca da visão de conjunto,
da perspectiva mais abrangente, o que importa. Você não mais
descobre coisas, mas busca o que elas significam. E esse novo modo
de pensar não é tão fácil. (2010, p. s/n)

E os impactos dos processos de transcodificação como “re-conceituação” no


campo sociocognitivo têm implicações importantes também no campo sociopolítico, ou
seja, não só mudam os modos de pensar e produzir conhecimento (a esse respeito ver
também Vass, 2008; Origgi, 2003), como também os modos de avaliar e tomar
decisões. Como bem assinala Shirky (2010):
Esse é o verdadeiro impacto da internet: ao permitir complexos e
versáteis sistemas operarem interativamente, a internet mudou nossa
maneira de tomar decisões. Cada vez mais, não são indivíduos
humanos que decidem, mas uma intrincada e versátil rede de humanos
e de máquinas. (Shirky, 2010, p. s/n).

3. Letramentos multi-hipermidiáticos na escola: desafios para quem?

Pelo exposto nas seções anteriores, pode-se compreender melhor porque os


letramentos multi-hipermidiáticos são geralmente vistos como perturbadores da ordem
escolar convencional, desde currículos e sistemas de avaliação até relações
organizacionais de poder, passando por papéis e padrões sociointeracionais em sala de
aula.
Mas a perturbação não veio só depois do advento da hipermídia, pois os
letramentos de base multimodal já não eram alvo da escola e as dificuldades já existiam.
No relato transcrito a seguir, de uma professora pesquisadora que desenvolvia uma
sequência de atividades voltadas para a escrita de relatórios numa quarta série do ensino
fundamental, I, temos um exemplo que consideramos representativo dos modos como
geralmente aparecem tais dificuldades no cotidiano escolar. A turma focalizada era de
uma escola pública de periferia de uma cidade do interior do Estado de São Paulo.
Os nomes são fictícios.

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Relato no. 1

Gilberto tinha doze anos na época em que os registros foram gerados.


Era bem mais alto que a maioria dos colegas, e já havia sido reprovado duas
vezes. Diferentemente do restante do grupo de alunos mais velhos, não demonstrava
haver perdido o interesse pela escola. Gostava bastante de participar em atividades orais,
mas quase não entregava trabalhos escritos, conforme relato da professora, em entrevista.
Pude comprovar isso ao entrar em contato com seu caderno de produção textual, que estava
praticamente em branco. Os pais de Gilberto trabalhavam como catadores de papelão e
nunca haviam frequentado a escola. Na entrevista individual, ele me disse não gostar de ler nem
de escrever. Na aula em que a turma produziu um texto sobre a árvore, Gilberto passou o
tempo da produção folheando um livro didático de Ciências antigo, recortando algumas
figuras.
Quando terminou, veio me mostrar:
- Olha aqui.
- Mas cadê o texto?
- Essa é a capa.
Era uma colagem bem feita, de figuras de árvores, folhas e flores. Quanto ao
texto, ele disse que faria em casa e traria depois, o que nunca de fato aconteceu. No relatório de
visita, feito em grupo, Gilberto se ocupou do que mais gostava de fazer: a capa. Quando
terminou de selecionar as gravuras que iria usar, veio me mostrar. Pedi que ele me
explicasse, e sua primeira reação muito me intrigou: ele apontava para as figuras e
balbuciava monossílabos e onomatopéias. Insisti, e só aí ele fez uso da linguagem
verbal.
A partir desse episódio, pude perceber que a linguagem verbal ocupava lugar
secundário nas estratégias de comunicação de Gilberto, especialmente quando fora dos
domínios da conversa cotidiana. Devo reconhecer que foi com surpresa que recebi a primeira
versão de seu relatório de experiência. E surpresa maior ainda ao receber as duas versões
posteriores.
(Nascimento, 2009, p. 121-123)

É preciso dizer que Gilberto integrava o grupo de alunos retardatários e


marginalizados daquela turma e que a primeira versão de seu relatório de experiência
sobre bons e maus condutores de eletricidade não tinha como referência os modelos
textuais que haviam sido estudados em sala de aula e sim um gênero multimodal, a
exemplo das capas que costumava fazer. No caso, ele reproduziu um tipo de tabela.
Conforme descreve a professora:

Para produzir um texto adequado aos padrões da escola, Gilberto usa


primeiramente a repetição como estratégia, e depois representa
graficamente a experiência através de uma espécie de diagrama
(...). Os resultados colocados no quadro durante a experiência
são transformados em tabela. (Nascimento, 2009, p. 124)

A segunda versão, orientada por um bilhete da professora, é mais próxima de um


texto convencional, mas com estrutura muito particular na avaliação da professora:

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Gilberto entregou sua segunda versão muito orgulhoso. Era o
maior texto que ele já havia produzido. (...) Gilberto parece não se
adaptar bem ao texto linear, mas trabalhar pela lógica da
imagem. O aluno superpõe as cenas da experiência, como numa
sucessão de fotogramas. Ao usar essa estratégia para apresentação
dos resultados, o primeiro parágrafo acaba ficando
demasiadamente repetitivo. Além disso, a falta de sinais de
pontuação leva a uma sentença enorme, que dificulta a leitura.
(...) Apesar da desorganização do texto e de sua construção
incomum, é possível, através da leitura, ter uma idéia geral a respeito
da experiência que foi realizada. (Nascimento, 2009, p. 125-126)

Na terceira e última versão de seu relatório, também orientada por um bilhete da


professora, Gilberto organiza melhor o texto e tenta articular o verbal escrito ao
desenho. O fato novo está justamente nessa melhor articulação, sendo que a função do
desenho não é meramente decorativa, como se costuma aprender na escola:

Acrescenta um comentário final e uma lustração, bem a seu estilo,


uma versão simplificada de um infográfico, em que o desenho é
utilizado para apresentar visualmente informações sobre a experiência,
no caso, sobre o funcionamento do aparelho. (...) O salto entre a
primeira versão, quase que totalmente constituída de cópia, e a última,
é considerável, mesmo que ainda não se equipare aos relatórios dos
colegas. (Nascimento, 2009, p. 127-128)

O percurso do aluno Gilberto, conforme descrito pela professora, nos parece


significativo tanto por chamar a atenção para a função que os multiletramentos podem
ter nos processos de ensino da escrita de gêneros convencionais (como via de acesso,
como ampliação de repertório, por exemplo) quanto por revelar as conseqüências
desastrosas de seu apagamento na escola (marginalização e exclusão do aluno). Nesse
sentido, o desafio trazido por esses letramentos de base não puramente lingüística não é
apenas para o professor, que nem sempre tem elementos para identificá-los e muito
menos para mobilizá-los como recurso de aprendizagem. É um desafio também para o
aluno, pois mesmo quando se envolve e consegue sair do lugar, como no caso relatado
acima, permanece submerso, pois o foco visado continua sendo o puramente lingüístico:
“Sua produção final ainda difere qualitativamente da média da turma.”
(Nascimento, 2009, p. 127)
No caso dos letramentos hipermidiáticos, costuma-se acreditar que estejam ainda
muito afastados das salas de aula de escolas como as de Gilberto. De fato, costumam
estar mais no cotidiano fora da escola, tanto para alunos quanto para professores. O que

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não impede que se façam cada vez mais presentes na escola e de forma às vezes
inusitadas para os agentes institucionais. É o que revela o relato no. 2, transcrito a
seguir, de um professor de uma escola pública de periferia, situada numa cidade
próxima à da escola referida no relato anterior.

Relato no. 2

Tudo aconteceu em 2006, ano em que dei aulas para uma turma de 16 alunos (de um
total inicial de 28) no Ensino Médio. A turma era composta em sua maioria por meninas. As
idades variavam muito, já que havia três que vinham do EJA [Educação de Jovens e Adultos],
pois como não havia mais turmas montadas para o noturno (minha escola está perdendo alunos
nesse período), tiveram que ficar na classe regular.
Alguns meses antes de tudo vir à tona, alguns alunos da escola, que não pertenciam
àquela sala de 3º ano, começaram a deixar um endereço eletrônico nas lousas, ao término das
aulas.
Nós não percebemos nada de errado até então. Mas soubemos pelo diretor que algumas
alunas do 2º ano vieram-lhe dizer que havia um blog em que os alunos entravam e postavam
fotos de professores, tiradas sem consentimento, e faziam comentários muito maldosos.
O diretor então chamou alguns alunos do 3º ano para esclarecer algumas coisas. Três
dos quatro alunos que montaram o blog inventaram que tinham que sair em horário de aula para
ir à papelaria, mas, ao que parece, foram apagar o conteúdo do blog. Não apagaram tudo, já que
o diretor conseguiu entrar e imprimir parte de uma série de comentários sobre uma professora
de Biologia que, sem saber, tinha sido fotografada por trás.
Ela então levou o material até a Delegacia e registrou um B.O. contra os pais dos alunos
envolvidos.
Do grupo que montou o blog, as idades não ultrapassavam os 18 anos. Os professores
reclamavam desse grupo específico porque eles ficavam quase o tempo todo ouvindo walk-man
ou MP3. Debruçavam-se uns sobre os outros no fundo da sala e raramente participavam das
discussões. A exceção era uma aluna que participava quando os assuntos tendiam mais para a
questão dos papéis e identidades sexuais.
Durante a reunião do Conselho de Escola, na presença dos pais, os quatro acabaram
confessando. Lembro-me bem de quando uma das mães disse que a partir dali o filho dela seria
perseguido pelos professores por uma “besteira de adolescente”.
Ficou combinado que nenhum deles sofreria punição mais severa, como um expulsão,
por exemplo, o que fez com que a professora de Biologia deixasse o cargo no meio do ano.
(Ruivo, 2010, p. 1)

No caso relatado acima, tão ou mais importante que o episódio em si,


acreditamos ser a contextualização do relato, inicialmente oral, numa discussão entre
pesquisadores. O professor se mostrava indignado tanto com a existência do blog
quanto com o desfecho da estória. Os que o ouviam, porém, indignaram-se mais com o
fato da escola ter perdido a oportunidade de apropriar-se do episódio para não só
inteirar-se do que os alunos podiam fazer com os recursos da hipermídia quanto ensinar-
lhes a fazer crítica de forma ética, a explorar melhor e expandir os recursos de
linguagem utilizados, a selecionar e avaliar com critérios mais claros as redes de

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circulação dos conteúdos exibidos, a fazê-los compreender melhor os significados e as
implicações do que estavam produzindo, entre tantas outras coisas.
Com relação ao relato em si, é interessante observar a caracterização dada ao
grupo de alunos que havia montado o blog. Os traços de comportamento considerados
relevantes para caracterizar o grupo são sobretudo o desinteresse pelas atividades de
sala de aula e o uso constante de artefatos tecnológicos portáteis: “eles ficavam quase o
tempo todo ouvindo walk-man ou MP3. Debruçavam-se uns sobre os outros no fundo
da sala e raramente participavam das discussões.”
É interessante observar ainda que embora nesse episódio um só grupo seja
destacado e tenha número reduzido de alunos, em outros relatos do mesmo professor,
sempre são feitas referências a turmas feitas de “grupinhos” de alunos que estão sempre
conversando entre si ou absortos com seus dispositivos nos ouvidos, e que ora parecem
ignorar o que se passa em volta, ora se manifestam pontualmente quando o assunto é de
seu interesse, como no caso da aluna citada no relato acima (“A exceção era uma aluna
que participava quando os assuntos tendiam mais para a questão dos papéis e
identidades sexuais.”)
Embora a questão da ordem sociointeracional em sala de aula escape ao escopo
deste trabalho, a divisão em grupos e a relação de alguns grupos com as novas
tecnologias, como ocorre no episódio da criação do blog, nos parecem sintomáticas de
uma questão mais abrangente e que foi colocada de forma polêmica por Prensky (2005)
como sendo uma questão de descompasso incontornável entre o que procuram (e
necessitam) os jovens e o que oferece a escola contemporânea. Mesmo se o professor
hoje conta com alguns (cada vez menos, segundo o autor) alunos “auto-motivados”, ou
seja, que fazem todas as tarefas e acham interesse no que é ensinado; com muitos alunos
movidos apenas pela nota, ou seja, que aprenderam a fazer o mínimo para se dar bem na
escola porque acreditam que isso pode influir em seu futuro; conta também com um
número cada vez maior de alunos que o ignoram completamente, como os descritos no
relato acima. Como afirma o autor, são alunos que vêem menos interesse no que lhes
oferece a escola que nas inúmeras bugigangas que carregam nos bolsos.
A razão apontada – não só por Prensky (2005), como também pela maioria dos
autores que têm a dinâmica dos jogos (games) como objeto de estudo – é a incapacidade
da escola de envolvê-los de fato, uma vez que eles já demonstraram que quando se
envolvem são capazes de controlar sistemas “dez vezes mais complexos” que qualquer
conteúdo ensinado na escola, sem contar que não apresentam déficit de atenção quando

273
estão jogando, vendo filmes ou surfando na internet. E para Prensky, envolvê-los não é
uma questão de pirotecnia visual ou tecnológica, renovação do “plano de aula” ou
currículo on-line, e sim de idéias:

ironicamente, criar envolvimento não requer uma computação gráfica


fantástica e cara, mas sim idéias. Claro que os videogames de hoje
exibem a melhor computação gráfica já criada, mas o envolvimento de
mais longo termo dos jovens nos jogos depende muito menos do que
eles vêem que do que eles fazem e aprendem. (Prensky, 2005, p. 64)

Apesar de levantar questões importantes relacionadas aos interesses, capacidades


e comportamentos de muitos jovens na atualidade, as hipóteses com que trabalha
Prensky para explicar as dificuldades deles na escola são sobretudo de ordem
neurológica e psico-cognitiva e não estão embasadas em estudos empíricos sistemáticos
e extensivos, como insistem seus detratores 4. Sua hipótese mais conhecida é a de que os
jovens criados em ambientes tecnologicamente saturados (os “nativos digitais”,
nascidos desde a década de 1980) pensam, agem e avaliam diferentemente em relação
às gerações anteriores (os “imigrantes digitais”, nos termos do autor) basicamente
porque seus cérebros já foram modificados sob os efeitos dos usos da tecnologia em seu
cotidiano extra-escolar (Prensky, 2001a e b; 2008):

Nativos digitais estão habituados a receber informação muito, muito


rápido. Gostam de processamento paralelo e múltiplas tarefas.
Preferem gráficos a textos e não o oposto. Preferem acesso aleatório
(como no hipertexto). Funcionam melhor quando conectados. Sentem-
se gratificados com retorno imediato e reforço constante. Preferem
jogos ao trabalho 'sério'. (Prensky, 2001a, p. 2)

A principal implicação da dicotomia assim criada é a de uma intransponível


divisa entre gerações, e no caso da escola, além da divisa entre alunos “nativos digitais”
e seus professores “imigrantes digitais”, a hierarquização em termos de proficiência no
uso da tecnologia. E, em conseqüência disso, a inversão das relações de poder, o que
explicaria, num episódio como o focalizado no relato no. 2, acima, a atitude alienada de
uns em relação aos outros no dia a dia da sala de aula e a indignação da professora
retratada pelos alunos no blog, diante do que avalia como falta de autoridade da escola
para puni-los por terem violado a ordem convencional. Esse é um cenário de fato
paralizante, não só para os agentes institucionais, que estariam impossibilitados de
interagir de fato com seus alunos, quanto para os próprios alunos, que embora dados

274
como “nativos”, não constituem um grupo homogêneo sob nenhum aspecto, nem
mesmo o dos graus de familiaridade e proficiência no uso de TIC.
Outra implicação a ser considerada, como também aponta Helsper (2008), é a de
que essa divisa seria constitutiva das relações intergeracionais, uma vez que o
desenvolvimento tecnológico acelerado transformaria sistematicamente nativos em
imigrados ao mesmo tempo em que faria sugir novos nativos numa cadeia interminável.
Nesse cenário, uma escola nos moldes que conhecemos não estaria apenas paralisada,
como no cenário anterior, mas tenderia a desaparecer, conforme de fato prevê Prensky
(2008).
São muitos os trabalhos, sobretudo na área de educação, que se propõem a
examinar criticamente as hipóteses e metáforas de Prensky (a esse respeito, ver
Margaryan e Littlejohn, 2008; Jones et al, 2010; entre outros) e evitar os riscos
apontados por Bayne e Ross (2007), por exemplo: o de colocar o professor em posição
estruturalmente desfavorável frente a um suposto determinismo tecnológico e sobretudo
o de “sobredeterminar nossa futura compreensão das complexas relações entre
professor, aprendiz, tecnologia e educação superior” (2007, p. 5).
Num trabalho mais recente, porém, Prensky (2009) reorienta a discussão inicial,
considerando que num futuro bem próximo todos terão crescido na era digital e que a
dicotomia entre “nativos” e “imigrantes” perderá seu poder explicativo das “diferenças
culturais” entre gerações. Numa entrevista à Revista Época, de 12 de julho de 2010 5,
chega a afirmar que “nos Estados Unidos, quase todas as crianças em idade escolar
cresceram na era digital. Pode ser que em alguns lugares os nativos sejam separados dos
imigrantes por razões sociais.” (2010, p. 50).
E valendo-se das mesmas hipóteses iniciais sobre os impactos neurológicos e
cognitivos dos usos das TIC, bem como da convicção de um ineroxável avanço da
chamada computação ubíqua ou pervasiva, que se tornará tanto mais invisível quanto
mais presente, não só nos objetos como também nos corpos, ele vislumbra uma outra
ordem, não só para as redes sociotécnicas, como também para a produção do
conhecimento:

Estamos a caminho de algo novo: a era do Homo sapiens digital ou a


era do indivíduo com sabedoria digital. Para compreender o mundo
será preciso usar ferramentas digitais para articular o que a mente
humana faz bem com o que as máquinas fazem melhor. (Prensky,
2010, p. 50)

275
E nessa nova ordem, a sabedoria digital “transcende” a divisa geracional descrita
pela dicotomia entre “nativos” e “imigrantes”, na medida em que o digitalmente sábio,
nos termos do autor, é todo aquele que expande sua capacidade de discernimento,
avaliação e planejamento em qualquer campo (prático, teórico, ético, político) valendo-
se das possibilidades abertas pelas TIC para o acesso a dados de memória e ferramentas
analíticas de alcance muito superior aos que dispõe hoje o homem não “incrementado”
[enhanced] pela associação entre cérebro e “inteligência” de base computacional. Ainda
segundo o autor, o grande desafio do sábio digital é colocar as TIC a serviço de suas
necessidades, ou seja, controlá-las:

Os digitalmente sábios também compreendem que a habilidade para


controlar a tecnologia digital, fazê-la adequar-se às suas necessidades,
é a habilidade chave na era digital. Consequentemente, eles se
interessam por programação em sentido amplo, ou seja, por fazer as
máquinas fazerem o que as pessoas querem que elas façam. (Prensky,
2009, p. s/n)

Nessa perspectiva, portanto, a questão estratégica, ou crítica, é a de como fazer


uso das TIC como instrumento, como meio, e não como fim. E o que muda na sala de
aula são os papéis: o aluno continua sendo o de maior proficiência no uso da tecnologia
e dispondo, portanto, de autonomia para buscar respostas para as perguntas que lhe
forem propostas (por ele mesmo ou por outrem), enquanto o professor assume “o papel
de guia, de ‘treinador’. Ele estabelece metas para os alunos e os questiona, garantindo o
rigor e a qualidade da produção da classe.” (Prensky, 2010, p. 50) Na escola de modo
geral, a mudança é de foco:

Um professor me disse uma vez: ‘Eu costumava ensinar um assunto.


Agora eu ensino meus alunos.’ O professor eficiente faz as duas coisas
e ainda prepara seus alunos para um futuro desconhecido priorizando
habilidades, não o conhecimento. (2010, p. 51)

Apesar da visão por vezes homogeneizante e genérica, e portanto redutora, das


TIC, de seus usuários e dos processos de “incrementação” tecnológica, as intervenções
de Prensky têm cumprido um papel que nos parece fundamental no debate
contemporâneo sobre tecnologia e ensino, que é o de dar a dimensão do desafio (que
não é só de professores e alunos), sacudir a inércia das análises e diagnósticos prontos (a
esse respeito, ver Bennett, Maton e Kervin, 2008) e provocar a reflexão sobre como
introduzir no debate a questão da crítica; no contexto de ensino, a questão das práticas

276
pedagógicas de letramento crítico. Estamos compreendendo a crítica no sentido
proposto por Lemke (2006, p.13):

Ser crítico (...) não é só ser cético ou identificar operações de


interesses ocultos. É também criar alternativas, fornecer bases
analíticas para a criação de novos sentidos que possam encarnar as
esperanças e sonhos de quem escolher não aceitar convenções
tradicionais de letramento, gêneros comerciais, ou o modelo
consumista de futuro. Um currículo de letramento multimidiático
crítico não terá sucesso entre os alunos se for apenas sobre análise e
crítica. (...) Letramento multimidiático crítico precisa ser ensinado
como criação, como autoria, como produção em contexto de análise
dos modelos e gêneros já existentes.

4. Considerações finais

Apesar dos aspectos focalizados nas seções anteriores não esgotarem o grande
número de questões que atravessam os debates contemporâneos sobre os novos
letramentos e seus impactos na vida social, cultural e política, bem como nas práticas de
ensino de língua, acreditamos que possam contribuir para chamar a atenção de
formadores e formandos em Letras para a necessidade e o interesse de se aprofundarem
no tema e, sobretudo, participarem da discussão enquanto “fazedores” de futuros
sociais, como sugere o New London Group.
E para que se avalie a urgência das necessidades e das possibilidades criadas por
esses novos letramentos, transcrevemos abaixo o apelo de um internauta num blog
jornalístico bastante frequentado:

Com o advento da internet nós jovens temos o mundo a um click e ao


mesmo tempo não sabemos como agir, que rumo tomar para que as
coisas comecem a acontecer. Ainda não vi um artigo que me ajude
com esse dilema. Se vc se encontra na mesma situação, comenta.
Acho que teremos muita pauta pra debater. (Souza, 2010)

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Este trabalho integra os Projetos “O escolar grafocêntrico e o hipermidiático em práticas letradas
contemporâneas” (CNPq no. 475305/2010-8), “Letramentos hipermidiáticos na escola/letramentos
escolares na hipermídia” (FAPESP no. 10/51597-9) e se reporta a atividades desenvolvidas pelo Grupo
de Pesquisa CNPq “Práticas de escrita e de reflexão sobre a escrita em diferentes mídias”.
1
Esse grupo de pesquisadores educadores reuniu-se entre 1994 e 1996 na Inglaterra, EUA e Austrália e,
ao final dos trabalhos, publicou um documento intitulado A Pedagogy of Multiliteracies: Designing
Social Futures. Seus participantes foram: Courtney Cazden, Harvard University, EUA; Sarah Michaels,
Clark University, EUA; Jim Gee, Clark University,EUA; Norman Fairclough, Lancaster University,
Inglaterra; Gunther Kress, University of London, Inglaterra; Bill Cope, University of Technology,
Austrália; James Cook University of North Queensland, Austrália; Mary Kalantzis, James Cook
University of North Queensland, Austrália; Allan Luke, University of Queensland, Austrália; Carmen
Luke, University of Queensland, Austrália; Martin Nakata, James Cook; University of North Queensland,
Austrália (cf. 1996, p. 60).
2
Nos termos dos autores: “Esperamos que este artigo construa a base para um diálogo aberto com
colegas educadores em todo o mundo; que ele possa lançar idéias para novas possíveis áreas de pesquisa;
e que ele possa ajudar a formular uma experimentação curricular que busque contemplar nosso contexto
educacional em transformação.” (1996, p. 63)
3
“[os] antigos significados de ‘acesso’ e ‘mobilidade’ baseiam modelos pedagógicos que partem da idéia
de que culturas e línguas outras em relação às dominantes representam um déficit.” (1996, p. 72)
4
“o alcance e a natureza da expansão tecnológica, bem como das transformações cognitivas dela
advindas, sobretudo entre adolescentes e jovens adultos não estão nada claros.” (Margaryan e Littlejohn,
2008, p. 2).
5
Também disponível através do site do autor: http://www.marcprensky.com/writing/default.asp Último
acesso em 30.10.2010.

281

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