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OSWALDO PORCHAT (1933)

Oswaldo Porchat Pereira nasceu em 1933, em Santos (SP). Graduou-se em Letras


Clássicas pela Universidade de São Paulo e em Filosofia pela Universidade de Rennes
(França), tendo obtido o título de doutor em Filosofia pela USP. Criou O Centro de
Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Universidade Estadual de
Campinas e as revistas Manuscrito, Cadernos de Filosofia e História da Ciência e
Journal of Non-Classical Logic. É professor aposentado da USP. Esta entrevista foi
realizada em dezembro de 1999.

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois


romances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri-
meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister,
enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo
com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de
sua formação intelectual?
Quando eu estava no fim da minha adolescência, no fim do colegial, minha ambição
era ser professor secundário de latim. Eu adorava a língua latina, tinha tido bons
professores, e queria fazer isso para o resto da vida. Então entrei na Faculdade de Letras
e fiz o curso de Letras Clássicas, onde aprendi também o grego. Estudei lite ratura grega
e latina, filologia grega e latina, e assim por diante. A paixão pelas lín guas clássicas era
muito forte, mas aconteceu que no último ano do curso de Letras, como eu podia fazer
matérias optativas fora do curso, fiz um curso que o professor Lívio Teixeira, do
Departamento de Filosofia, ofereceu sobre Platão. No mesmo ano, por coincidência, no
curso de literatura grega eu tinha aula sobre Platão, e no curso de didática geral tinha
um curso sobre a educação em Platão. Portanto, foi um ano platônico: fiz o quarto ano
de Letras estudando três disciplinas que versavam sobre Platão.
Eu já gostava de filosofia desde há muito, mas os meus conhecimentos eram mais
de filosofia tomista e neotomista: São Tomás de Aquino e Maritain. O pro fessor Lívio
Teixeira me incentivou para que eu me dedicasse à filosofia grega, e fiquei então
realmente desejoso de trabalhar em filosofia, mas eu já tinha ganhado uma bolsa de
pós-graduação para a França, onde ia estudar filologia grega. E com isso eu tinha
resolvido deixar a filosofia para mais tarde. Acontece que o Giannotti, que era meu
amigo desde o colegial, estava em Paris, e em nossas correspondências eu o informei
que ia para Paris estudar filologia grega. Ele me respondeu sugerindo que eu não fosse
para Paris, mas sim para Rennes, onde ele tinha estado um ano, porque em Rennes
havia um curso de filosofia grega dado por Victor Goldschmidt, c Gilles-Gaston
Granger estava lá também.

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Quando cheguei a Paris, o Goldschmidt, que era amigo do Giannotti, nos
convidou imediatamente para jantar em sua casa. Eu disse então ao Goldschmidt que ia
fazer o mestrado em filologia grega, mas que pretendia fazer um curso de filosofia
quando voltasse ao Brasil. E ele me propôs a alteração de minha bolsa, de bolsa de
mestrado em filologia grega para bolsa de graduação em filosofia. Aceitei, e em quinze
dias ele conseguiu a mudança. Eu tive então uma bolsa para fazer filosofia em Rennes.
Fiz o curso inteiro com o Granger e o Goldschmidt e, depois de terminar o curso, recebi
uma carta do Jean Hyppolite — a qual me surpreendeu bastante, já que ele era o diretor
da École Normale —, dizendo que eu havia sido aceito como aluno estrangeiro da École
Normale, com direito a morar na escola e utilizar os recursos da escola. É claro que
aceitei, e descobri em seguida que tinha sido uma travessura do Granger e do
Goldschmidt. Fiquei então dois anos em Paris, segui cursos de Goldschmidt e Granger,
que estavam dando aulas na École Normale nessa época, segui os cursos de Hyppolite,
conheci Althusser — todos os meus colegas de filosofia estavam no grupo do Pour
Marx —, e no refeitório comíamos na mesma mesa. Ao mesmo tempo, nesses dois anos
em Paris comecei a minha tese de doutoramento, cujo título inicial, A dialética em
Artistóteles, era sugestão do Goldschmidt. Mas foi só no Brasil, anos mais tarde, que
vim a terminá- la, sendo que a dialética em Aristóteles cedeu lugar à ciência em
Aristóteles. Embora o meu intuito inicial tivesse sido escrever um primeiro capítulo
sobre a ciência e o resto da tese sobre a dialética, esse capítulo cresceu demais, ficou
com mais de 200 páginas, o que me levou a mudar de idéia e fazer uma tese sobre a
ciência com um último capítulo sobre a dialética.

Como foi o seu contato com Jean Hyppolite?


O contato com Hyppolite foi um contato formal. Ele era o diretor da escola, extre-
mamente amável e simpático, e estava dando um curso sobre a interpretação heideg-
geriana de Hegel. Embora nem Heidegger nem Hegel fossem objeto do meu interesse
maior, eu segui esse curso e acho que aprendi bastante coisa. Lembro-me do Hyppolite
dizendo em aula que os textos heideggerianos sobre Hegel eram bastante difíceis,
sobretudo porque era muito difícil saber quem estava falando: se Hegel, se Heidegger,
ou se Hegel na interpretação de Heidegger. Nós, alunos, costumáva- mos brincar
dizendo que as aulas de Hyppolite eram muito difíceis porque nunca sabíamos se era
Hegel quem estava falando, se era Heidegger quem estava falando, se era Hyppolite
quem estava falando, e, assim por diante, todas as combinações que se pode fazer!
[risos] De qualquer maneira, foi um curso extremamente proveitoso.

Você poderia periodizar um pouco melhor essa fase de sua formação?


Eu comecei a graduação em filosofia em 1957. Fui dispensado das matérias não
filosóficas do curso, porque era formado em letras no Brasil, e isso me permitiu
terminar o curso rapidamente: em 1960 já o tinha terminado e comecei, ainda na
França, a trabalhar na minha tese de doutoramento. Voltei para o Brasil em 1961 e
nesse mesmo ano comecei a dar aulas no Departamento de Filosofia da USP.

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Oswaldo Porchat: “Essa perspectiva de adesão ao cotidiano, de valorização do
humano em contraposição ao filosófico, foi talvez o mote central de todas as minhas
incursões no domínio filosófico. O ceticismo é para mim a valorização, contra os dogmas, do
saber dos atos comuns”.
No ano seguinte à defesa do doutoramento, em março de 1968, você
profere a aula inaugural do Departamento de Filosofia da USP, em que
se afasta das posições estruturalistas de Guéroult e Goldschmidt, que
são facilmente reconhecíveis na redação de seu doutoramento, então
recém-defendido. Essa virada foi vivamente descrita em seu texto “Pre-
fácio a uma Filosofia”, de 1975, nos seguintes termos: “Desesperando
da filosofia e de seus problemas, renunciei a buscar-lhes soluções. Aba-
tido por um profundo desencanto, o temor me possuiu de que os dis-
cursos da filosofia não mais fossem que prodigiosos e sublimes jogos de
palavras. Um brinquedo dos filósofos com as palavras, do Logos com os
filósofos. O feitiço que me prendera se quebrava, desfazia-se uma
antiga servidão. E tomei, então, o partido do silêncio”. A impressão que
se tem é a d e que essa guinada existencial e teórica ocorreu num
período muito curto. Foi mesmo assim?
Não creio que tenha sido tão curto. Quando comecei a lecionar na Filosofia, em 1961,
eu era um estruturalista de carteirinha, e assim fiquei até 1967,1968. Eu nunca quis ser
historiador da filosofia, mas, porque pesava sobre mim a herança estruturalista, eu
entendia que a única maneira de fazer filosofia corretamente era fazer história da
filosofia. Portanto, eu pretendia estar fazendo filosofia, e não história da filosofia. Na
perspectiva estruturalista de Guéroult e Goldschmidt, não cabia mais o enveredar por
um caminho filosófico original; o importante era conhecer as estruturas do pensamento
filosófico, e o conhecimento das estruturas não pode ser conseguido senão pelo estudo
das obras dos filósofos e pela descoberta das lógicas internas que as estruturam. E fácil
ver que essa visão da filosofia pode conduzir a um ceticismo. Porque você deixa de
acreditar na possibilidade de construir uma filosofia original e fica preocupado
unicamente com o conhecimento das estruturas do pensamento filosófico, isto é, com
fazer história da filosofia — como se não houvesse mais condição de pensar
filosoficamente. Não sei se Goldschmidt tirava essas conseqüências da sua postura
histórico-filosófica, mas foram as que eu tirei.
Num sentido muito particular, sou estruturalista até hoje: penso que o método
estruturalista é o melhor método para uma primeira leitura de um pensador, para se
descobrir a lógica interna das razões, a estrutura da obra. Trata-se tão somente de um
instrumento de trabalho, um instrumento para pensar. Enquanto naquela época isso
para mim era tudo, hoje é apenas uma etapa, porque depois disso vem o diálogo pessoal
com o filósofo: tendo-se aprendido (supostamente) a sua filosofia, interage-se com ela,
toma-se posição em relação a ela, endossando-a — total ou parcialmente — ou não a
endossando. Enfim, não se está obrigado a ser um historiador. Pode-se ser um filósofo
por conta própria, ainda que, é claro, buscando na história da filosofia um alimento
precioso, como parte do desenvolvimento e da exposição de seu próprio pensamento.
Com relação à idéia de que não valia a pena tentar uma solução pessoal para os
problemas filosóficos, de que essa solução, além de não ser desejável do ponto de vista
de uma sólida posição estruturalista, seria apenas uma solução a mais sem qualquer
importância maior, eu comecei a tirar essas primeiras conclusões céticas quando travei
conhecimento com os textos dos céticos gregos, sobre os quais dei

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um curso na USP em 1968, no qual por sinal o Paulo Arantes foi meu aluno. A partir
das minhas posições anteriores e do meu contato com o ceticismo grego — de uma
interpretação do ceticismo grego que mais tarde eu reconhecería como incorreta —, eu
não via mais como filosofar, como poder filosofar. Julguei que o partido do silêncio
filosófico era a única solução que me era permitida, deixei de acreditar na validade de
qualquer projeto filosófico e passei a estudar lógica desesperadamente. Fui fazer curso
de lógica nos Estados Unidos, onde passei dois anos, 1969 e 1970, e estudei lógica,
fundamentos da matemática, álgebra, teoria dos conjuntos etc. Eu julgava ter
descoberto então que a lógica nos brindava com todas as qualidades que eu esperava, e
que muitos esperam, do discurso filosófico: a lógica é rigorosa, jus- tifica plenamente
cada proposição que avança, nos dá verdades. Embora, é claro, essas verdades não sejam
verdades sobre o mundo, mas sim verdades puramente formais, o fato é que a lógica me
dava o que eu queria da filosofia — ainda que me fazendo pagar o preço altíssimo de
me alienar do mundo, pelo fato justamente de não ter nada a ver com ele.
Foi a partir daí que um estudo mais aprofundado do ceticismo grego me levou a
descobrir que a minha primeira visão sobre ele era historicamente errônea, que na
verdade o ceticismo abria perspectivas filosóficas, ao mesmo tempo mantendo aquela
minha renúncia a todo pensamento especulativo. Com o passar dos anos, eu fui então,
progressivamente, descobrindo melhor o ceticismo, descobrindo melhor uma
interpretação que não é a comumente vigente nos meios acadêmicos, e me tornei um
cético. Mas isso só veio a acontecer uns quinze anos atrás.

Mas antes disso há o “Prefácio a uma filosofia”, em que você defende


uma promoção filosófica da visão comum do mundo...
É verdade, eu estava me esquecendo disso. Depois dessa minha passagem pela lógica e
desse meu primeiro ceticismo, fui levado a refletir sobre a vida comum, o senso
comum, o discurso comum, e julguei que aquela alienação em relação ao mundo, a que
eu parecia condenado, não cabia. Julguei que era preciso viver plenamente a vida, e a
filosofia não podia ser uma rejeição da vida; o divórcio esquizofrênico entre o filósofo e
o homem não tinha cabimento. Rejeitar o mundo comum, rejeitar as vicissitudes e as
contingências do mundo comum, rejeitar as paixões humanas em nome do
pensamento, era uma postura inaceitável, e eu, algo quixotescamente, julguei que era
preciso defender a vida contra a filosofia, entendida esta como uma gigantesca empresa
de alienação do homem em relação à vida comum. Eu queria recuperar a vida comum,
e achei então que uma promoção, não cética, mas filosófica, até mesmo metafísica,
dessa vida comum, era a maneira de enfrentar os problemas filosóficos.
O que vim a descobrir mais tarde é que o ceticismo fazia essa mesma defesa da
vida comum, essa mesma defesa do homem cotidiano, dessa perspectiva da vida e do
mundo que os filósofos disseram ingênua. Portanto, não era preciso fazer metafísica,
não era preciso entrar em conflito com o ceticismo. Ao contrário: descobri no ceticismo
a defesa da vida comum contra o pensamento especulativo. Fiquei muito impressionado
com uma passagem de Sexto Empírico em que ele diz que, se nós condenamos os
dogmas, em nenhum momento entretanto entramos em

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conflito com a vida comum. Ao contrário: nós somos os seus defensores; nós estamos
ao lado dela contra o pensamento dogmático.

Por que você decidiu se transferir da USP para a Unicamp em 1975 ? Naquele
momento eu não tinha ainda adotado uma posição cética. Eu tinha sempre gostado
muito de filosofia da ciência, de epistemologia, de lógica, como já disse, e na USP eu
formei um projeto de criar um centro dedicado aos estudos de teoria do conhecimento,
epistemologia, lógica e filosofia da ciência. A burocracia da USP, no entanto, fez com
que esse projeto ficasse extremamente atrasado: ele foi aprovado no Departamento,
mas depois se passaram anos de trâmites burocráticos até ele chegar ao Conselho
Universitário. Ocorreu, nesse meio tempo, que um amigo meu, o Rogério Cerqueira
Leite, que era algo como pró-reitor da Unicamp, e que várias vezes me tinha convidado
para ir trabalhar lá, disse que havia boas chances de o projeto ser aprovado pela
Unicamp, onde não havia um Conselho Universitário totalmente estruturado, onde
quem mandava realmente era o reitor, Zeferino Vaz. Então ele marcou uma entrevista
para mim com o Zeferino, pedindo que eu levasse um pequeno texto sobre o meu
projeto.
Bem, a entrevista ocorreu, se não me engano, no dia 9 ou 10 de setembro de
1975, e nesse projeto eu me propunha a criar um Centro de Lógica, Epistemologia e
História da Ciência na Unicamp, criar cursos de pós-graduação nessa área, fazer
seminários interdisciplinares, fazer colóquios e congressos, nacionais e internacionais,
e criar três revistas — uma de filosofia propriamente dita, uma de filosofia e história da
ciência e uma de lógica. Para minha surpresa, o Zeferino Vaz se entusiasmou pelo
projeto e me perguntou, nessa primeira entrevista, quantos professores eu pretendia
levar para a Unicamp, para que a gente começasse no mês seguinte — o que
obviamente eu não esperava. Eu citei então alguns nomes de professores da USP —
Luiz Henrique Lopes dos Santos, Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Andréa Loparic,
todos jovens doutorandos —, e citei o nome de alguns professores argentinos, cujos
currículos estavam comigo porque eu tinha sido chefe de departamento na USP e eles
almejavam ter uma vaga na universidade brasileira. Depois que eu dei os nomes, o
Zeferino disse: “Então, vamos nomeá-los”. Ao que respondí: “Mas os argentinos nem
sabem que a Unicamp existe!”. E ele disse: “Então você vai à Argentina e fala com eles,
porque nós temos pressa”. Acontece que eu não podia ir à Argentina imediatamente, e
ocorreu uma coisa interessante de que pouca gente sabe: como o Zeferino tinha
problemas de datas com relação ao orçamento e precisava nomear os professores até o
fim de setembro, ele me disse o seguinte: “Olha, é muito mais fácil para mim demitir
do que nomear. Para demitir, basta a minha vontade. Para nomear, preciso ter verbas,
ter orçamento, respeitar datas. Então vou nomear todo mundo e, se eles não puderem
vir, demito” [risos]. Assim ele fez, e quinze dias depois eu estava na Argentina
convidando os professores, que eram Carlos Alberto Lungarzo e o Ezequiel de Olaso.
Eles pediram três dias para pensar, ao final dos três dias disseram que aceitavam, e eu
disse que eles já estavam nomeados.
O fato é que dias depois nós desembarcávamos como pára-quedistas na Unicamp.
Fomos nomeados para o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para o
Departamento de Ciências Sociais, pois não havia ainda um departamento de filoso-

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fia — eu é que viria a criá-lo alguns anos mais tarde. E o pessoal das ciências sociais,
que não estava informado a respeito, assistiu estupefato ao desembarque de vários
filósofos brasileiros e dois argentinos no Departamento! Isso era o Zeferino! Mas eu
consegui fazer o que tinha prometido a ele, meu projeto se realizou plenamente: nos
fizemos trinta e cinco colóquios e congressos em sete anos, criamos as três revistas —
das quais duas, a Manuscrito e os Cadernos, continuam a existir —, e criamos o curso
de pós-graduação. Fiquei na Unicamp durante dez anos, e ao final de les voltei para a
USP.

No final de “Prefácio a uma Filosofia”, há uma caracterização do que


deveria ser o filósofo para você então: “Buscando o diálogo, o filósofo
construirá seu discurso com simplicidade. Não recorrerá a termos
esdrúxulos nem a um jargão complicado. Ele tem uma enorme descon-
fiança dos que falam difícil em filosofia”. Chama a atenção, no entanto,
o fato de que, no mesmo ano da publicação desse texto (1975), você se
transfere para a Unicamp e funda o Centro de Lógica e Epistemologia
(CLE), que tinha um ambicioso programa nessas áreas, do qual você
acaba de nos falar. O espírito de “Prefácio a uma Filosofia” é
plenamente compatível com a aridez própria das questões lógicas e
epistemológicasf
É claro que as questões lógicas envolvem um vocabulário técnico. Nesse texto eu estava
pensando não em lógica, propriamente, mas em filosofia. No que se refere à lógica,
seria então o caso de falar em filosofia da lógica. Acho que na filosofia da ciência, na
filosofia da lógica, na teoria do conhecimento em geral, em todo e qualquer ramo da
filosofia — filosofia moral, estética, metafísica —, é realmente necessário não escrever
em “filosofês”, mas conseguir ser claro usando os meios da língua vernácula e escrever
de tal modo que um homem de relativa informação e, é claro, com uma certa base
cultural possa compreender. Continuo desconfiado até hoje dos que falam difícil em
filosofia. Exprimir-se de modo difícil é na verdade deixar transparecer uma certa falta
de rigor intelectual. Conforme a frase de Wittgenstein, o que não se pode dizer, não
deve ser dito. Eu acho que o que não se pode dizer com clareza não deve ser dito.

Como você avalia hoje a experiência do CLE ? E u tenho impressão que o CLE
teve um papel bastante importante, graças aos colóquios e congressos que organizou.
Várias vezes eu tenho sido gratificado, ao par- ticipar de reuniões de filosofia em
diversos pontos do Brasil, pela lembrança, que publicamente colegas de outras
universidades trazem à tona, do significado que o CLE teve no congraçamento entre os
profissionais de filosofia das diferentes universidades brasileiras. Antes dele não havia
colóquios de filosofia. Os professores do Rio não conheciam os de São Paulo; os de São
Paulo não conheciam os do Rio Grande do Sul; os do Rio Grande do Sul não conheciam
os de Minas Gerais; e assim por diante. Como o CLE organizou, em alguns anos, trinta e
cinco colóquios e congressos, nós tivemos a possibilidade de convidar professores do
país inteiro, fora uns setenta do exterior. Com isso, ele tornou-se um lugar de reunião,
de encontro.

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Por outro lado, as revistas do CLE, que estão vivas até hoje, também marcaram pontos
importantes no cenário brasileiro. Eu fiz questão, depois de abandonar a direção do
CLE, de não me imiscuir de modo algum na sua vida. Eu aceitei, e acei- tarei sempre
convites para participar deste ou daquele evento, mas achei que não cabia meter-me na
vida interna do Centro. Acompanho de longe, com atenção, as suas atividades, e espero
que ele prossiga por muito tempo e continue realizando o nosso projeto, mas de fato
estou distanciado dele atualmente.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as relações


entre a filosofia e a cultura brasileira?
Eu discordo do Paulo Arantes. Acho que ele é demasiadamente generoso para com os
filósofos brasileiros. A mim me parece que, apesar de certamente haver muitos filósofos
de excelente qualidade no Brasil, eles não tiveram ainda condições pessoais e culturais
para elaborar uma filosofia própria. Há alguns nomes, aqui e ali, dos quais se pode dizer
que têm uma contribuição filosófica própria, pessoal, e que produziram alguma coisa
que é uma filosofia brasileira em gestação. E eu acredito no porvir da filosofia
brasileira. Tenho a impressão de que os estudos filosóficos no Brasil neste momento são
surpreendentemente promissores, as gerações novas, que estão aparecendo cada vez
mais, em diferentes lugares do país, estão produzindo trabalhos filosóficos sérios.
Agora, o que é preciso, e essa é uma tecla em que tenho batido ultimamente, é libertar
o ensino brasileiro de certa ênfase exagerada na história da filosofia, de certa orientação
estruturalista radical. É irônico que eu diga isso, porque fui certamente um dos maiores
defensores dessa postura, mas há um momento em que a gente envelhece, passa a ter
mais juízo, e adquire uma perspectiva mais lúcida sobre os erros da juventude, sobre os
próprios erros e pecados.
Quanto à segunda parte da pergunta, os filósofos — vamos usar esse termo para
designar todas as pessoas que amam a filosofia, que se dedicam a ela, que trabalham
sobre assuntos filosóficos, e que, eventualmente, propõem idéias filosóficas originais
—, os filósofos brasileiros têm desempenhado certamente um papel importante. É claro
que não precisamos exagerar, mas eles têm tido algum papel importante, aqui e ali, na
vida cultural do país.

Como você avalia as críticas que Paulo Arantes dirigiu a você no livro
Um departamento francês de Ultramar?
O Paulo Arantes se dedica a uma estranha tarefa. Ele foi um dos melhores alunos que
tivemos no Departamento, é um sujeito brilhante, tem conhecimentos filosóficos
enormes, é de uma inteligência profunda. Enfim, ele tem tudo que se pode elogiar num
intelectual. Mas tem uma relação muito estranha com a filosofia, porque pretende,
insistente e sinceramente, não estar fazendo filosofia nos seus trabalhos. Eu concordo
com ele, acredito também que ele não está fazendo filosofia. O que ele faz é uma
extremamente inteligente interpretação não-filosófica das filosofias. Mas é difícil situar
essa interpretação. Afinal, que tipo de interpretação é ela? Não é uma interpretação
sociológica; não é uma interpretação antropológica. Talvez se pudesse dizer que é uma
forma muito particular de sociologia do conhecimento, mas não creio que essa
descrição caiba ao Paulo. O que ele procura é explicar cada

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mamifestação do pensamento filosófico dentro do universo cultural, dentro da si-
tuação histórica e econômica de cada época. Eu não tenho nada contra essas tentativas
de se explicar a obra filosófica a partir de um ponto de vista não-filosófico, de um
ponto de vista científico. Não tenho realmente nada contra: é uma coisa que se pode
fazer, e se for bem-feita é algo valioso. Embora eu nunca tenha conversado
com o Paulo sobre essa questão, o problema é que isso parece substituir a filosofia, que
passa a ser apenas um objeto, e jamais o ponto central, jamais o motor da ela- boração
de seu pensamento. Neste sentido, o Paulo Arantes não avança um pensamento
filosófico original, apesar de ter tudo para fazê-lo, e fazê-lo bem.
No caso particular do capítulo que ele me dedica em seu livro, que eu aliás
tive oportunidade de comentar no MASP, tenho a impressão — e eu diria isso, é claro,
com alguma maldade — de que o Paulo não sabe muito bem como explicar por que eu
digo o que estou dizendo. Ele acha que minhas idéias estão fora do lu- gar. Justamente
porque não vê, naquilo que digo, uma resposta a alguma necessi- dade ditada pelo
entorno cultural a partir do qual ele quer explicar as filosofias, isso o obriga a ver em
tudo o que digo algo estranho, que surge onde não tinha que ter surgido. O Paulo não
acredita na filosofia como uma proposta que um pensador, crítico e culto, possa ainda
alimentar, tentando resolver problemas. Ele vê na filosofia uma manifestação, uma
manifestação que ele procura estudar, compreender, conhecer e explicar. Posso estar
muito enganado, mas não creio que o Paulo Arantes esteja disposto a se engajar num
diálogo filosófico com alguém, isto é, a tomar uma posição diante de alguém que tome
uma posição contrária, discutir etc. Ele não toma posições em filosofia; ele é o crítico, o
intérprete, o conhecedor, mas não o praticante da filosofia. Enfim, não creio que Paulo
queira comprometer-se com um diálogo filosófico. Ele quer explicar o que você diz.

As propostas que você apresentou nos últimos anos no sentido de uma


reformulação do padrão pedagógico do Departamento de Filosofia da
USP tiveram grande repercussão e provocaram ásperas polêmicas na
imprensa. Qual foi o saldo, a seu ver, dessa discussão?
Eu não sei se podemos dizer que já haja um saldo a ser avaliado. Vários estudantes que
encontrei recentemente, aqui e ali, falaram-me do seu interesse pelas coisas que
eu disse, e me disseram também que é uma preocupação de muitos deles o querer
encontrar um lugar para ter opiniões pessoais, para começar a exprimir-se filosofi-
camente desde os anos escolares. Agora, a minha posição não deve ser mal inter-
pretada. Eu sei perfeitamente que, quando os estudantes começarem a expor suas
idéias, eles vão ser ingênuos, vão ser às vezes inadequados, vão às vezes dizer tolices,
vão exibir ignorância da problemática filosófica, e assim por diante. Mas aí me parece
que, quando eles entregarem seus textos e formularem suas posições, cabe ao professor
responder-lhes dizendo, por exemplo: “Olha, esta objeção que você está fazendo ao
filósofo já foi feita, foi feita ainda em vida dele. Fulano de Tal fez essa objeção, que é a
mesma que você fez, porém melhor formulada e bem mais desenvolvida. Portanto,
você deve ler esse autor, e ler também a resposta que aquele filósofo formulou”. Com
isto, o aluno adquirirá mais elementos para pensar o mesmo assunto e,
independentemente de em seguida abandonar ou reformular a

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objeção que havia feito, estará aprendendo a pensar. Não vejo mal nenhum no fato de o
aluno expressar suas próprias opiniões em sala de aula. Nós devemos permitir-lhe que o
faça, e que faça um trabalho em que afirme, por exemplo, “Platão disse uma bobagem
quando disse que as formas existem”. Neste caso, caberia dizer-lhe que muita gente já
disse a mesma coisa, e recomendar-lhe que leia tal texto, bem como a resposta dada por
um filósofo platônico posterior. Com isto o aluno toma consciência de que pode
começar a participar de um debate milenar e se sente incentivado a pensar. Do
contrário, acontece o que tem acontecido: um departamento como o de filosofia da
USP, que é de altíssimo nível — faço questão de enfatizar isto, porque houve quem
achasse o contrário —, produz excelentes historiadores da filosofia, mas não estimula a
produção de um pensamento original. Produzir um pensamento original significa
estimular os alunos a ter coragem de assumir posições, ao mesmo tempo mostrando-
lhes o quanto essas posições teriam que ser melhoradas para adquirir o status de
opiniões filosóficas sérias.

Em 1991, você publicou um artigo, “Sobre o que aparece”, em que se


afastava da posição de uma “promoção filosófica da visão comum do
mundo” que tinha caracterizado sua produção de 1975 até então, e
passava a uma posição cética que você definiu como “neopirrônica”.
Em “Sobre o que aparece”, você descreve esta nova guinada teórica nos
seguintes termos: “E como se, na vã tentativa de opor um dique ao
perigo cético, que vai levando de roldão todos os dogmatismos, se
recorresse a uma forma extremada e confessadamente injustificável de
dogma- tismo, na pia esperança de brandir contra o ceticismo uma
arma suprema e derradeira”. Seria esta nova guinada uma confirmação
da previsão de Bento Prado Jr., feita em 1978 no artigo “Por que rir da
filosofia?”, de que você acabaria voltando necessariamente a uma po-
sição cética?
O Bento foi realmente um bom profeta naquele momento! Talvez ele me tenha
compreendido melhor do que eu a mim mesmo! [risos] Nessa mesma passagem, porém,
ele dizia que esse movimento pendular do meu pensamento me faria voltar a uma
posição especulativa. E isso não aconteceu, nem creio que vá acontecer.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como mais represen-


tativo(s) de sua posição filosófica? Pediriamos que você nos contasse como ele(s)
surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Como eu disse no
prefácio a Vida comum e ceticismo, o meu problema sempre foi o do reconhecimento
da vida cotidiana, quer dizer, o estar junto à vida cotidiana, valorizar essa vida
cotidiana, valorizar as questões mais banais e triviais. Quando eu “desisti” da filosofia,
foi por achar, primeiramente, que não conseguia resolver dentro dela os problemas que
ela se propunha, e, por outro lado, também por ver nela um empreendimento de
alienação. Quando fiz o que chamei de “promoção filosófica da vida comum”, era uma
tentativa de salvar a vida comum dentro ainda de certos parâmetros definidos pela
filosofia tradicional. Eu ia contra a filosofia tradicional, mas julgava que podia manter
um certo quadro conceituai dessa mes-

128 Conversas com Filósofos Brasileiros


ma filosofia para fazer contra ela uma promoção filosófica da vida comum. Já quando
fui para o ceticismo, descobri que não era preciso manter quadros conceituais próprios
à filosofia tradicional. Era possível romper de uma vez com todos eles e ficar ao lado da
vida comum. Portanto essa perspectiva de adesão ao cotidiano, de valorização do
humano em contraposição ao filosófico, foi talvez o mote central de todas as minhas
incursões no domínio filosófico. O ceticismo é para mim a valorização, contra os
dogmas, do saber dos atos comuns.

O que é o neopirronismo?
O neopirronismo é uma expressão, talvez pedante, que inventei para designar minha
posição. É claro que o ceticismo grego pirrônico é uma postura filosófica da- tada,
situada num certo contexto — o helenístico —, tendo inclusive muito em comum com
o estoicismo, o epicurismo e as demais expressões do pensamento de então. Como toda
filosofia, o ceticismo surge numa certa época, respondendo a problemas culturais dessa
época, os quais podem ser estudados e explicados — como eu disse há pouco, não tenho
nenhuma objeção a esse tipo de estudo. Mas é verdade, também, que certas tramas
fundamentais do pensamento, das várias filosofias, podem ser preservadas ou
reatualizadas. Nós temos hoje um neo-aristotelismo, um neoplatonismo, um neo-
estoicimo, um neo-hegelianismo, um neokantismo etc.
Embora muito do que Kant, Hegel, Platão e Aristóteles disseram esteja datado,
corresponda às perspectivas da época, muito também pode ser utilizado atualmen- te, e
utilizado de maneira bastante profícua. Ora, o mesmo se pode dizer do ceti- cismo:
muito do pirronismo recende a helenismo, mas muito pode, mantendo-se uma certa
coerência e mantendo-se uma certa fidelidade, ser repensado, rearticulado e
reutilizado. O que me tenho proposto a fazer com o pirronismo é o que, mutatis
mutandis, os pensadores neo-hegelianos, neomarxistas ou neokantianos fizeram: trata-
se de aggiornare uma filosofia no mundo moderno, uma vez que todas as grandes
filosofias do passado têm ainda muito a nos dizer. O ser capaz de extrair delas isso que
elas podem nos dizer hoje é o que importa fazer. Ao me chamar de neopirrônico, quero
simplesmente realçar o fato de que o que proponho é mostrar como certos traços
importantes do pirronismo grego podem ser utilizados para pensar adequadamente os
problemas filosóficos do mundo contemporâneo.

Quais as diferenças e semelhanças entre o seu conceito de “o que apa-


rece” e o conceito kantiano de “fenômeno”? Penso particularmente na
afirmação de Kant: “Pois seria um disparate pensar em fenômeno sem
que algo apareça nele”.
Eu entendo que Kant deu uma contribuição extremamente importante para uma
postura cética. É claro que Kant querería tudo, menos isso! Mas de fato ele a deu,
porque pôs em xeque a metafísica clássica, pôs em xeque os dogmatismos ontológicos
tradicionais e a epistemologia dogmática tradicional. Kant mostrou que é possível falar
em verdade correspondencial, falar em realismo, falar em coisas no espaço e no tempo,
sem que se esteja pretendendo lidar com as coisas em si mesmas. A idéia kantiana de
fenômeno, que está, é claro, associada a toda uma teoria da representação, permitiu-nos
compreender que se pode pensar em conhecimento científico,

Oswaldo Porchat 129


que se pode pensar em verdades empíricas, que se pode pensar em matéria, tempo,
espaço, substância, sem que essas noções estejam contaminadas por uma especulação
metafísica à maneira tradicional. É evidente que em Kant essas noções todas se
associam, todos o sabem, ao idealismo transcendental, à perspectiva de um sujeito
transcendental. E é evidente que eu, como cético, suspendo o juízo sobre essa base
transcendental. Mas o fato é que Kant abriu um caminho decisivo, abalando pro-
fundamente os alicerces do pensamento especulativo clássico.
Num texto que escrevi, intitulado “Verdade, ceticismo e realismo”, utilizo a
noção kantiana de realismo empírico, no sentido em que Kant diz que o idealismo
transcendental é um realismo empírico: é claro que as coisas, que são reais no tempo e
no espaço, não são as coisas em si; é claro que lidamos com o mundo da representação,
mas isso não nos impede de falar da realidade das coisas, de chamar verdadeiras às
proposições que descrevem essas coisas. Segundo meu argumento nesse texto, há, de
um lado, um realismo clássico, de tipo aristotélico-tomista, que fala das coisas, das
verdades, da empiria, num registro realista, e há, de outro lado, o realismo de Kant, que
fala das mesmas coisas num registro idealista transcendental. Ambas as visões
descrevem o mesmo mundo, que dizem real, mas a palavra “real” tem um sentido
completamente diferente numa e noutra. O importante, a meu ver, é que o pirronismo
pode então perguntar-se: será que nós não podemos, deixando de lado a interpretação
filosófica última que Kant deu do fenômeno ou que Aristóteles deu do fenômeno, ficar
apenas com o fenômeno? Isto é, vamos falar em realidade das coisas, vamos falar em
verdade das coisas — o cético não tem razões para abandonar o vocabulário da verdade
ou da realidade —, mas vamos abandonar as interpretações derradeiras que se possam
oferecer desses conceitos. Neste sentido, o cético suspende o juízo sobre o idealismo
transcendental, suspende o juízo sobre a metafísica clássica. Mas ele saúda Kant como
aquele que foi capaz de mostrar que se podia falar do mundo da experiência, que se
podia falar de conhecimento, que se podia falar de ciência, que se podia falar do espaço
e do tempo, que se podia, enfim, salvar a lógica, a ciência, a epistemologia, sem por isso
ter o filósofo de comprometer-se com o pensamento metafísico tradicional. Desse
ponto de vista, creio que Kant é certamente um dos filósofos que o neocético mais tem
que admirar, respeitar e reverenciar.

Da sua noção de “o que aparece” segue-se a idéia de que bá “um uso


descritivo, próprio ao discurso fenomênico, e um uso interpretativo,
próprio ao discurso dogmático, por exemplo ao discurso dogmático dos
filósofos”. Há descrição que não seja já uma interpretação?
Essa pergunta é bastante interessante. Talvez eu só possa a ela responder da seguinte
maneira. O cético descreve o que lhe aparece, e não tem por que recusar que essa sua
descrição, espontânea, natural, imediata, esteja profundamente permeada e
influenciada por posturas e pontos de vista tradicionais, que nos fazem usar aquela
linguagem, falar daquela maneira e ver as coisas daquela maneira. Nada disso precisa
ser recusado ou negado por ele. Eu digo o que me aparece com espontaneidade e
naturalidade: eu descrevo. Mas posso perfeitamente acrescentar que me aparece
também que essa minha descrição está influenciada por características idiossincráticas
da minha época, da minha formação, da minha cultura, da civili-

130 (Conversas mm Filr»cr»fr>c Rrocil<=>ir/-»c


zação a que pertenço, da língua de que me sirvo etc. O que me aparece hoje não
necessariamente me aparecerá amanhã. Suponhamos que eu descreva algo que me
aparece hoje, e que amanhã você me aponte que essa minha descrição, que o con-
ceito de que me servia era na verdade um resquício de minha formação filosófica,
era um conceito que surgiu na história do pensamento de tal e tal maneira, em tal
e tal época, e que portanto, pelo simples fato de servir-me “espontaneamente” des-
se conceito, eu estava de algum modo comprometido com uma forma especulativa
de pensamento por mim condenada. Ora, se você me mostrar isso de maneira ade-
quada, não tenho razões para recusá-lo, e posso reconhecer que havia na minha des-
crição das coisas um dogmatismo oculto que me escapava. Deverei então reformular
minha descrição, de tal modo a reconhecer que o que me aparecia daquela forma
agora me aparece desta outra forma. A linguagem descritiva do fenômeno é uma
linguagem em permanente evolução. A autocrítica permanente é uma necessidade
para o cético: ele tem a todo o tempo, como o Blade Runner, que descobrir onde
estão ao os andróides, isto é, os dogmas, e muitas vezes ele se percebe gostando de um
dogma sem se aperceber de que é um dogma. E quando ele se dá conta disso a ruptura
se faz necessária e ele tem de reformular o seu modo de ver as coisas. É claro,
portanto, que toda descrição, nesse sentido, é interpretativa. Na medida, porém,
em que a descrição do cético não quer ser solidária de dogmatismos, em que não
quer estar comprometida com dogmatismos, sempre que ele se perceber compro-
metido terá de reformular o seu discurso.
Se, porém, quando você fala em interpretação, você está dizendo algo mais
simples, se está apenas, como muitos filósofos da ciência — entre os quais Popper
—, dizendo que não há termos puramente observacionais, que a teoria está sempre
impregnando a nossa linguagem, inclusive a descrição das coisas empíricas e coti-
dianas, então o cético pode concordar com isso e reconhecer que o que aparece está
permeado pelo discurso. Usando-se a palavra “teoria” nesse sentido, de que o dis-
curso está impregnando tudo de teoria e não podemos despir-nos do discurso para
lazer uma descrição, é evidente que não há como discordar, pois “descrição empírica
sem discurso” é uma contradição lógica. Seria uma tarefa absolutamente impensá-
vel, na verdade absurda, separar o que é discurso do que não é discurso em nossa
relação com o mundo. Portanto, desde que distinguidos os dois sentidos em que
uma descrição pode estar “comprometida”, o cético deve reconhecer tranqüilamente
o caráter interpretativo da descrição.

Os seus trabalhos têm como interlocutores importantes, entre outros,


D. Hume, R. Rorty e E. Gellner, autores nos quais você encontra afini-
dades e diferenças para com a sua posição. Você diria que as intenções
últimas desses filósofos seriam mais bem expressas por uma posição
neopirrônica como a que você defende?
Comecemos por Hume. Hume pretendia-se cético, se disse um cético, e defendeu
uma forma de ceticismo muito particular, um ceticismo mentalista. Ele tinha certa-
mente um conhecimento histórico imperfeito sobre o pirronismo, a descrição que ele
faz do pirronismo é caricatural. Por outro lado, a posição que ele atribui, ou mui-
tas das posições que ele atribui ao ceticismo mitigado ou acadêmico são de fato po-

í ^c\xrcilrlr» Prtrrhdf 130


sições próximas ao pirronismo. Diferentemente de Rorty e Gellner, ele é sem dúvi-
da um filósofo cético, e é válido e importante estudar sua relação com o pirronismo.
Quanto a Gellner, ele certamente não era um filósofo cético, mas teve uma
visão do pensamento moderno e contemporâneo que em parte concorda com a
minha. Devo admitir que essa visão me influenciou, no sentido de que explorei di-
reções que ele desbravou — sobretudo quanto a enxergar uma influência difusa do
ceticismo no pensamento moderno e contemporâneo. Desde a “Primeira medita-
ção” de Descartes, e desde Hume, os motivos céticos se tornaram extremamente
importantes para a filosofia contemporânea. Basta dizer que todos os primeiros
filósofos modernos, que tinham sofrido a influência da crise pirrônica e da Renas-
cença, puseram-se como tarefa responder ao ceticismo, fazendo da epistemologia
o domínio fundamental do pensamento filosófico. Ao mesmo tempo, porém, eles
puseram sob suspensão de juízo a vida comum. Certamente não são muitos, na fi-
losofia moderna e contemporânea, aqueles que valorizam filosoficamente a vida
comum. Os filósofos dela se afastaram, como se o mundo comum tivesse sido pos-
to entre parênteses: faz-se filosofia num espaço extramundano. O mundo perdeu o
seu encantamento, o seu feitiço; não se pode mais falar na realidade do mundo. Na
visão de Gellner, se eu a interpretei corretamente, esse pôr o mundo entre parênte-
ses, essa épokhé sobre o mundo, expressa uma influência difusa do ceticismo no
pensamento moderno ocidental. Afinal, ele entendia, como eu na época também
entendia, que o ceticismo era um desafio filosófico ao saber da vida comum.
No entanto, eu mudei de opinião. Alguns anos mais tarde eu vim a descobrir
que, muito ao contrário do que eu pensava, o ceticismo é uma defesa da vida co-
mum contra o “pseudo-saber” filosófico. Se eu tinha estado de acordo com Gellner,
deixei de estar. Concordo que o ceticismo tem uma enorme influência no pensa-
mento filosófico contemporâneo, mas não pelos motivos enxergados por ele. Pois
o cético não põe o mundo entre parênteses. Na verdade o ceticismo tem essa influên-
cia porque, como conseqüência duradoura da “Primeira meditação” cartesiana, e
como conseqüência da influência de Hume, o pensamento moderno, e sobretudo o
contemporâneo, deixou de crer no Absoluto, deixou de querer fundamentar, dei-
xou de acreditar numa razão soberana capaz de justificar todo o discurso humano.
As filosofias contemporâneas, nos seus mais variados representantes, não são mais
filosofias fundamentacionistas, não são filosofias que persigam o velho ideal clás-
sico da verdade como correspondência. Tudo isso são coisas do passado para o
pensamento contemporâneo. Ele busca novos rumos, rumos que não dependem da
aceitação de realidades absolutas, de valores absolutos, de conhecimentos absolu-
tos. Ora, nesse sentido eu acho que, embora não se tenha talvez muita consciência
disso, nós somos céticos. O ceticismo foi pela primeira vez na história da humani-
dade uma escola filosófica que pôs o Absoluto em xeque. Afinal, qual é o sentido
fundamental da crítica filosófica do ceticismo ao dogmatismo? E que nós não te-
mos como justificar verdades absolutas, não temos como ter certezas absolutas, não
temos como dizer das coisas, no nosso discurso, como elas são. O discurso se tor-
na um instrumento, de um lado, para a denúncia do dogmatismo, e, de outro lado,
para a defesa da vida comum. Nesse sentido, muito particular, podemos dizer que
o mundo contemporâneo é cético. As propostas filosóficas do nosso século, na sua

1
3 Conversas mm Filósofos Brasileiros
grande maioria, são propostas que desbravam os caminhos do cotidiano, da vida, do
mundo, e que não mais comungam de uma crença no poder divino, numa razão
absoluta, como foi talvez o sonho do racionalismo clássico. Portanto, o sentido em que
o mundo contemporâneo é cético, para mim, é completamente diferente do sentido em
que o é para Gellner.
Passemos a Rorty, finalmente. Ele me parece demasiado radical na sua pers-
pectiva para poder dizer-se um cético. Se o ceticismo abandona o pensamento dog-
mático e o critica, em nenhum momento ele pretende ter podido demonstrar a fal-
sidade do dogmatismo. O cético, na posição que toma, é obrigado a considerar essas
questões como questões em aberto: justamente porque não acredita que possamos, pelo
nosso discurso, estabelecer verdades decisivas, ele entende que não podemos
demonstrar a falsidade do discurso especulativo. Rorty também acha que não podemos
fazê-lo, mas valoriza de tal maneira a contingência e a precariedade que ele vê, nas
diferentes manifestações filosóficas, instaurações de discursos novos, vocabulários
novos que se propõem. Tem-se a substituição de um vocabulário pelo outro, de uma
manifestação do pensamento por outra, no devir histórico. Nós estamos mergulhados
nessa contingência, e nós podemos, aqui e agora, submetidos que es- tamos à influência
de nossa época, adotar uma certa visão das coisas, ainda que a sabendo precária e
contingente como qualquer outra. Por um lado, Rorty se aproxima assim do ceticismo,
já que este, reconhecendo o primado da vida comum, tende obviamente a reconhecer a
precariedade e a contingência de seu próprio discurso. Por outro lado, o ceticismo não
se pretende capaz de explicar as transformações do pensamento humano, não se
pretende capaz de fornecer uma matriz que permita entender esse devir ou essa
precariedade, sendo por isso bem mais cauteloso que Rorty.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciências e


o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se
dá na atualidade?
Essa relação, de fato bastante estreita ao longo do tempo, tomou diferentes direções. É
inegável que a ciência exerceu profundo impacto sobre a filosofia, e vice- versa — a
filosofia exerceu uma enorme influência no desenvolvimento das teorias científicas.
Em concepções mais tradicionais, a filosofia é soberana, é primeira, e cabe a ela dizer o
lugar das ciências no mundo, cabe a ela julgar o pensamento científico. Num extremo
oposto, há as tentativas cientificistas de fazer filosofia: a ciência, sobretudo a ciência da
natureza, é tomada como padrão ou modelo, e os problemas da filosofia são pensados
numa linguagem científica, a partir de conceitos científicos, recusando-se valor e
importância a tudo aquilo que não possa ser tratado com métodos suficientemente
próximos ao método da ciência. São duas posições extremas: a da filosofia, que julga e
avalia a ciência, dando-lhe fundamentos e parâmetros, e a da ciência, que se torna uma
espécie de matriz à qual o pensamento filosófico terá de reduzir-se. Essas duas posições
extremas me parecem inaceitáveis.
Embora nenhum de nós possa querer dar uma definição de filosofia, eu tendo
muito a concordar com Quine, autor que estimo bastante, e com Popper, que estimo
menos, mas que sob esse aspecto diz algo parecido. Não se deve, mesmo porque não há
razões para isso, tentar introduzir uma solução de continuidade entre

Ocwíilrlr» Pr»rrFíit 1ü
filosofia, ciência, senso comum etc. Essas divisões rígidas são muito pouco rigorosas e
extremamente sujeitas a desconfiança. O que há é um discurso dos homens sobre o
mundo, e esse discurso pode num certo momento dizer-se discurso do senso comum,
num certo momento dizer-se discurso psicológico, científico, filosófico. Mas são os
homens que estão propondo idéias, que estão alinhando hipóteses, que estão
descrevendo coisas. Não há por que achar que distinções rígidas devam e possam ser
mantidas; não há sequer por que procurá-las. Se eu tentar pensar no que distin gue a
filosofia da ciência, eu diria que, quando o pensamento humano lida com questões que
ele consegue delimitar de uma maneira adequada, tratando-as até certo ponto dentro
de uma esfera limitada, sem precisar a cada momento recorrer a questões externas,
trata-se aí do que costumamos chamar de ciência — é o caso da antropologia, da
economia, da história, da física etc. Quer dizer, o discurso humano às vezes
particulariza mais o seu objeto e trabalha de uma maneira mais concentrada. Outras
vezes ele se aventura a tratar dos assuntos sob um prisma mais geral, sob um prisma
mais amplo, e aí nós diriamos que ele é mais filosófico. Quando estudamos as relações
entre linguagem e pensamento, entre pensamento e mundo, nos vemos diante de
questões tão amplas que não podem ser reduzidas a um capítulo da psicologia ou da
lingüística, por exemplo. Enfim, filosofia e ciência são nomes, nomes que podem ser
aplicados, e de que eu também me sirvo, quando estamos apenas querendo lembrar o
modo e a área de atuação do nosso pensamento. Não se trata, a meu ver, de distinções
entre compartimentos estanques.

Conhecemos pelo menos uma conseqüência importante da agenda de


investigação do texto “Sobre o que aparece”. Tal conseqüência é enun-
ciada nesse texto como: “O pirronismo parece-nos inteiramente com-
patível com a prática científica moderna e contemporânea”. Em res-
posta a uma crítica a esse artigo, você citou essa passagem, mas decidiu
acrescentar a ela um itálico, um grifo, à expressão “prática”. Você
poderia nos explicar como se dá essa compatibilidade do pirronismo
com a ciência moderna e qual a importância da ênfase na “prática”
científica?
Realmente essa passagem do texto, que é aliás muito curta, foi objeto de alguma
controvérsia. Mas o que eu quis dizer é na verdade algo simples. A idéia de que a
ciência conhece a realidade das coisas é uma idéia que foi deixada de lado por grande
parte das filosofias da ciência contemporâneas. Há propostas falibilistas, há propostas
pragmáticas, há propostas convencionalistas, mas muito poucos pensadores — entre as
exceções menciono por exemplo William Boyd — fazem hoje aquela conexão
tradicional entre ciência e metafísica. A atitude da maioria dos filósofos da ciência
contemporâneos, e de muitos cientistas que filosofam sobre as suas ciências
particulares, é uma atitude de alguém que abandonou completamente a concepção
tradicional e clássica de ciência. Ora, como lida o pirronismo com a ciência? Sexto
Empírico condenou a epistemé clássica e valorizou a tékhne, isto é, ele valorizou o
modo humano de lidar com as coisas, tanto prática como teoricamente, enquanto um
lidar com as coisas que não pretende ser domínio delas pela razão, descoberta da
estrutura e da essência íntima das coisas pelo pensamento, mas
134

Cnnvprçíjç rnm Pilncnfoc Rrocilpirnc


simplesmente interagir com o mundo que está em torno de nós, interagir de maneira a
dominar esse mundo para os fins humanos, e a pôr a natureza, dentro do possível, a
serviço da vida e da sociedade humana. Eu tenho a impressão de que assumir hoje uma
perspectiva, em relação à ciência, que a veja como uma atividade humana que lida
instrumentalmente com as coisas, que procura fazer com que o homem possa
assenhorear-se do mundo, é uma atitude pirrônica. E ela me parece muito próxima da
atitude de boa parte dos que lidam com ciência hoje.
E claro que há aí problemas complexos, como, por exemplo, o do realismo
científico: o êxito maravilhoso das ciências, em fazer previsões precisas, em conseguir
dominar o mundo, não seria exatamente uma prova de sua verdade, de que ela conhece
as coisas como elas são? Um cético, obviamente, não tem como concordar com essa
posição. Mas até que ponto não se poderia dizer, num sentido não-dog- mático, que as
ciências não se limitam a construir hipóteses úteis ou um discurso capaz de ser
instrumentalmente eficaz; que elas de algum modo estão conhecendo o mundo?
Quando eu digo, por exemplo, numa proposição empírica banal, “meus óculos estão em
cima da mesa”, estou descrevendo, em linguagem vulgar, como as coisas são neste
mundo. Seria então possível dizer, neste sentido não-dogmático, que uma teoria
científica é conhecimento do mundo? Para um pirrônico, esta questão só pode ser
tratada como uma questão interna ao domínio dos fenômenos. Isto é, até que ponto esse
mundo que nos aparece está sendo descrito de maneira adequada por teorias científicas
que funcionam bem? Como explicar o sucesso da ciência? Esse é um problema
importantíssimo para a filosofia da ciência contemporânea. Mas eu, pessoalmente, não
me vejo capaz ainda de tomar uma posição mais firme sobre a questão. Eu diria apenas
que, se o cético quiser propor uma solução, ela tem de dar-se num registro não-
especulativo, não-dogmático, não-metafísico.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre
um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda-
de. Como você se posiciona em relação a esse debate?
Eu devo confessar a minha enorme ignorância dos problemas estéticos em geral e dos
problemas de teoria da arte. Esta é uma das maiores lacunas em minha formação. Mas,
embora me sinta incapaz de responder a essa pergunta, eu diria que não acredito no fim
da arte, e ousaria afirmar que uma postura cética diante do mundo parece favorecer a
atitude estética. Afinal, a arte foi muitas vezes menosprezada na epistemologia
tradicional, porque não seria um instrumento adequado de conhecimento das coisas.
Na medida, porém, em que a noção de conhecimento das coisas se revela uma noção
problemática, complexa, extremamente discutível; na medida em que se deve valorizar
o que aparece, e a tentativa de lidar bem com ele, eu vejo aí um espaço aberto para uma
valorização da atividade artística e da manifestação artística. Pois ela não é, enquanto
manifestação do homem, inferior à ciência, à filosofia ou a qualquer outra coisa. Aos
olhos de um pirrônico, portanto, preconceitos epistemológicos contra a arte se tornam
ridículos.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar.


Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe-

Oe\*ro1rlr» Pnrrhat' 135


nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais
evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante
do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da
violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de
que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem
relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?
Quanto aos Estados Nacionais, em primeiro lugar, numa época de internacionalização
ou, como se diz, de globalização, é claro que os Estados Nacionais são postos em xeque.
Agora, uma coisa é o nacionalismo tradicional, freqüentemente dogmático, muitas
vezes fascista, pelo qual tenho profunda antipatia, e outra coisa é o reconhecimento da
vida e da importância das nações e das etnias, que é fundamental. Assim como o fato de
vivermos numa sociedade não precisa levar- nos ao desprezo das instituições familiares
— as quais perderam muito de sua importância —, não vejo por que o fenômeno da
internacionalização, que é inevitável, deva levar à recusa das etnias ou ao desprezo
pelas nações. Por outro lado, os problemas dessa internacionalização são extremamente
complexos e difíceis, e algumas vezes parecem representar perigos sérios para o bem-
estar de comunidades menores, de nações pequenas, de grupos particulares. Existe o
perigo, que é bastante grande, de que certas nações desenvolvidas e poderosas façam da
globalização um instrumento de afirmação de si próprias, de domínio sobre nações me-
nos desenvolvidas.
Agora, é claro que essas opiniões que estou dando não são opiniões filosóficas, e
sim opiniões de um ser humano comum que está sendo interrogado sobre esses
assuntos. E digo isso porque não acredito que o filósofo tenha uma capacidade maior do
que outros seres humanos para falar de política. Alguém pode até mostrar que estou
errado, que eu deveria reformular este ponto de vista, e talvez algum dia eu o
reformule. Mas sinceramente não acredito que um filósofo seja mais capaz de falar de
política do que um antropólogo, um economista, um matemático, ou mesmo um ser
humano qualquer, desde que possuidor de uma certa cultura e de uma certa
informação. Por este motivo, faço questão de realçar que isso que acabo de dizer não é
uma posição filosófica, mas uma posição minha, enquanto ser humano, sobre um
assunto que julgo fundamental.
Quanto à segunda parte da questão, eu também enxergo uma revivescência das
questões morais, bastante perceptível na juventude, que me parece hoje, mais do que
em décadas passadas, extremamente preocupada com elas. Inclusive é muito triste que
alguns departamentos de filosofia não dêem cursos sobre moral, sobre problemas
morais. E essa juventude é levada obviamente a estender suas preocupações morais
também para os grandes problemas da transformação econômica e social de nossa
época, o que me parece aliás perfeitamente legítimo. Mesmo nós, e não apenas a
juventude, ao refletir sobre esses grandes problemas da globalização e da
internacionalização, não podemos, ainda que reconhecendo sua origem nas
transformações econômicas, deixar de lado as questões morais; não podemos sim-
plesmente adotar a fria perspectiva de um economista. Embora o cético se posicione
sempre contra os dogmatismos morais, ele em nenhum momento renuncia a uma
perspectiva moral sobre as coisas.

136 Conversas mm Filósofos Rrasileiros


Entre os aspectos que fazem parte da prática cotidiana do cético pir-
rônico, regulada pelos fenômenos, você aponta a conformação à tradi-
ção das instituições e aos costumes (“Sobre o que aparece”). Isso não
implica um risco de favorecer o conservadorismo moral e, sobretudo,
político?
Em primeiro lugar, devo esclarecer que ao mencionar a conformação aos costumes,
nesse texto, estou me referindo a um texto de Sexto Empírico, ao cético tal como
descrito por Sexto Empírico. Mas Sexto Empírico, infelizmente, deixou muito pouca
coisa, ou quase nada, sobre política e moral. Aliás, ele não é um grande filósofo. Ide e
apenas um pensador menor, mas um pensador menor que se tornou representante, para
nós, do que penso ser uma grande filosofia. Quando ele diz que se- guir o fenômeno é
seguir as instituições, é porque entende que seguir o fenômeno é seguir a natureza,
deixar-se levar por ela, reconhecer o papel das paixões, seguir os ensinamentos da
cultura vigente, seguir as tradições e costumes. Esse assunto, do possível
conservadorismo do cético pirrônico segundo Sexto Empírico, foi várias vezes
levantado, por muitos estudos. Como Sexto Empírico não deixou quase nada sobre isto,
é difícil saber o que pensava exatamente a respeito.
Mas eu sou levado a pensar na figura de Pirro, que era um grande sacerdote em
sua cidade, Elis. A religião grega não era, como o cristianismo, uma religião de
consciência, mas sim uma religião de cultos, uma religião externa. Portanto, parti-
cipar do culto e fazer os sacrifícios devidos era o que importava para os gregos, e não a
consciência da pessoa. Se a pessoa estava ou não acreditando, isto não tinha muita
importância. Neste sentido, seguir as instituições e os costumes devia signi- ficar, para
Pirro, simplesmente aceitar que há uma tradição na cidade, que há um culto, que se for
necessário ele próprio pode fazer o culto, e assim por diante. Ao mesmo tempo ele diz
tudo o que pensa, a todo tempo, e todo o mundo sabe o que ele pensa. Esta me parece
ser uma forma de interpretar a questão, mas não há como ler certeza de que era isso
que Sexto Empírico tinha em vista. Por outro lado, quando ele fala em seguir as
instituições, também podemos pensar no fato de que todos nós seguimos as instituições.
Os nossos arroubos de infração das normas vigentes, pen- sando bem — com exceção
talvez de alguns revolucionários —, têm muito pouco a ver com uma oposição às
instituições e aos costumes em geral. Na vida prática, as instituições e normas a que nos
opomos são poucas se comparadas às instituições e costumes a que damos nossa plena
adesão.
Agora, independentemente de a posição de Sexto Empírico ser ou não con-
servadora, o que importa é que não vejo razões para o cético pirrônico ser conservador.
Ele simplesmente suspende o juízo sobre as chamadas verdades dogmáticas, e, assim
como não tem um dogma metafísico, nem epistemológico, não terá um dogma moral
ou um dogma político. Portanto ele não terá crenças absolutas em política. Mas isso
significa que ele não participará da vida política? Eu não vejo uma relação necessária
entre uma coisa e outra. Ele pode, por exemplo, a partir dos valores que tem, entender
que a situação social do Brasil é aberrante e trágica, e entender que há um certo partido
que mal ou bem representa melhor a denúncia disso, e a tentativa de melhorar isso. E
pode entrar para esse partido, dar a sua adesão a ele, ou até mesmo criar um novo
partido. O que não significa que ele tenha um dogma,

Oswaldo Porchat 137


que tenha certas verdades absolutas. Ele é simplesmente alguém que quer participar da
vida de seu país, juntando-se àqueles que têm valores em comum com ele. Se eu fosse,
portanto, reformular a idéia de viver segundo o fenômeno, eu não usaria fórmulas
aparentemente conservadoras — como as de Sexto Empírico de fato são,
independentemente da sua intenção. Eu falaria simplesmente em integrar-se na vida
social e em suas instituições, o que é uma fórmula neutra, que deixa espaço para uma
intervenção política, até mesmo para uma intervenção política apaixonada.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?


Como quem leu meus textos sabe, eu tive uma formação religiosa. Na verdade, fui
religioso, no sentido tradicional da expressão, até os quinze anos. Depois, recebendo a
influência de um amigo de meu pai, eu me disse comunista, e, embora sem saber nada
de comunismo, fui comunista durante dois anos, sobretudo porque os argumentos
morais que me eram apresentados por esse amigo de meu pai eram para mim muito
importantes, e eu não sabia reagir a eles. Depois eu tive uma conversão, em que me
convertí novamente ao catolicismo, dessa vez por meio de uma opção cons ciente e não
por influência da família. Acho que muito pouca gente pode dizer que foi católico até
os quinze, comunista até os dezessete, e se converteu ao catolicismo aos dezessete, mas
esse foi meu itinerário! [risos] Eu me convertí, e então me tornei católico praticante,
estudioso da filosofia tomista, freqüentador assíduo dos cultos religiosos, membro da
Juventude Universitária Católica [JUC |. Guardo uma lembrança gostosa de muitas
dessas coisas, mas também uma lembrança menos gostosa, mais dolorosa, de outras,
como os imperativos morais cristãos. Eu levava muito a sério a moral cristã, e essa
moral, obviamente, entra em violento conflito com os instintos mais naturais do jovem.
E eu vivi isso dolorosamente. De qualquer maneira, o fato é que tive uma experiência
religiosa muito intensa, que durou mais ou menos até os vinte e quatro anos, quando eu
já tinha, como se diz, perdido a fé.
Eu não tenho, com relação às religiões, aquela posição marcada de alguns
intelectuais de esquerda, que vêem nela apenas um ópio do povo. Sem dúvida elas o são
muitas vezes, mas ao mesmo tempo, numa sociedade tão aterrorizadora como a nossa,
elas representam, para milhões de indivíduos, um fator de equilíbrio, de sossego. Já que
a sociedade não tem sido capaz, até agora, de dar nenhuma solução aos trágicos
problemas que afetam milhões e milhões de miseráveis no mundo, nós temos de
reconhecer que a religião representa um arrimo, um ponto de apoio. Mesmo aqueles
que não crêem em nada, como é o meu caso, e que percebem que essa influência
religiosa é contaminada por atitudes irracionais, autoritárias, aliena- doras, têm de
reconhecer que, se eles perdessem de repente esse ponto de apoio, seriam
profundamente infelizes. Neste sentido, é como se a religião fosse uma faca de dois
gumes: salvo exceções, como a Teologia da Libertação brasileira, ela de um lado ajuda a
manter o status quo, funciona como um obstáculo para as mudanças sociais; de outro
lado, representa uma solução imediata, um fator de amenização, para a tragédia de
milhões de pessoas.

Em “Prefácio a uma filosofia”, você escreveu: “Tantos anos passados


após a perda da fé, percebo que aqueles valores ainda se me impõem

138
1 O O
Conversas com Filósofos Brasileiros
com força tenaz e que a eles não renunciei. Continuo a ansiar pela
Verdade, tenho a paixão da Humanidade, acredito firmemente na Rea-
lidade das coisas e nos eventos da experiência cotidiana e tenho uma
consciência brutal da finitude de nossa razão. Reconhecendo a gênese
dessa minha postura, nem por isso me sinto obrigado a abandoná-la.
Nenhum argumento jamais encontrei que me persuadisse a fazê-lo”.
Esses valores nascidos primariamente com a fé são importantes para
você até hoje?
São. Mas farei uma pequena ressalva quanto à expressão “realidade”: é claro que
acredito na realidade das coisas, mas não no sentido metafísico de que talvez eu me
servisse então. De qualquer maneira, a minha iniciação à vivência de certos valores se
fez através da religião. Esse foi um aspecto positivo: sobretudo na época em que eu
fazia parte da Juventude Universitária Católica, havia uma insistência bastante grande
na Justiça, e no reconhecimento da situação absurdamente injusta da maioria das
pessoas de nossa sociedade; havia uma insistência bastante grande no amor ao próximo,
entendido não como uma atitude contemplativa, mas como querer trabalhar para
mudar o status quo, para que a situação deles melhorasse. Tudo isso são coisas
importantes, que eram valorizadas na experiência religiosa que tive.
E o tema moral é um tema que hoje me interessa especialmente. Eu acredito que,
ao suspender o juízo sobre os dogmatismos morais, o cético continua no mundo, e não
tem nenhuma razão para abandonar valores que antes cultuava. Ele pode se perguntar,
uma vez percebido o fato de que, em sua experiência moral dogmática, foi inculcado
nele, por exemplo, o não se conformar com a miséria, se há alguma razão, a partir do
momento em que ele não é mais um crente, para abandonar isso, para mudar o seu
íntimo, a sua personalidade. Essa preocupação com os outros é obviamente uma das
manifestações naturais do estar humano no mundo, quer dizer, aqui e ali as próprias
situações objetivas desenvolvem em alguns o desejo de transformação, de mudar, de
arrebentar com o status quo. Por que eu precisaria de valores absolutos, de verdades
atemporais, de conhecimento da realidade em si, para preservar aquela preocupação?
Se ela está em mim, se fui formado assim, se não a associo mais a crenças dogmáticas,
não há qualquer motivo para eu querer livrar-me dela, querer despir-me dela.

Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de


paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na
linguagem?
Realmente, essa é uma mudança que se efetivou no mundo contemporâneo. Como
muitos autores já disseram, a preocupação com o sujeito deu lugar a uma preocupação
com a linguagem. Sob certo aspecto, parece-me saudável essa transforma ção, no sentido
de abandonarmos certos dogmas — os dogmas do sujeito — e de privilegiarmos algo
que ocupa um lugar decisivo na própria constituição da espé- cie humana, que é o fato
de nos servirmos de uma linguagem. Portanto esse inte- resse pela linguagem me
parece algo bastante salutar. De outro lado, há, como em todas as transformações desse
tipo, o perigo de se hipostasiar aquilo que se está trabalhando, o perigo, em outras
palavras, de fazer da linguagem um mito, de achar

(tswaldo Porchat 139


que os problemas filosóficos são problemas lingüísticos. Alguns filósofos contem-
porâneos, infelizmente, enveredaram por essa trilha: eles fazem uma filosofia “
lingüisticista” e trabalham, ou pretendem trabalhar, os problemas filosóficos como se
fossem meros problemas de linguagem. E isso é evidentemente um dogmatismo, e um
dogmatismo extremamente perigoso, porque leva a filosofia a abandonar o mundo, as
questões reais, os homens, as pessoas. Enfim, essa idolatria da linguagem me parece
extremamente castradora em relação aos problemas filosóficos tradicionais. Se há algo
de saudável na virada lingüística, que devemos saudar, devemos ao mesmo tempo ser
cautelosos, e ser radicais na denúncia do radicalismo dogmático da filosofia lingüística.
Infelizmente, uma parte razoável da chamada filosofia analítica — palavra por sinal
extremamente vaga — deu à linguagem uma tal dimensão, uma tal importância, que foi
levada a abandonar todas as preocupações tradicionais da filosofia.
Mas, voltando à postura cética, o ceticismo em nenhum momento representa um
abandono da problemática filosófica. Num texto que escrevi recentemente, “O
ceticismo pirrônico e os problemas filosóficos”, procuro afastar uma idéia errônea a
respeito dos céticos: a idéia de que, se alguém assume uma posição cética, deve
considerar toda a filosofia uma perda de tempo, e achar que os problemas filosóficos
não têm mais significado. Ora, isto é uma aberração. Em primeiro lugar, por que os
problemas filosóficos, na sua maioria, são problemas do ser humano, problemas da vida,
e o fato de muitas vezes os filósofos terem dado soluções dogmáticas a eles não implica
que não lhes tenham dado um tratamento profundo, em muitos pontos reutilizável. Os
grandes filósofos contribuíram decisivamente para o estudo da problemática do ser
humano, e retraduzir a sua linguagem — para um registro fenomênico, diria eu — é de
fundamental importância. Mas retraduzir sua linguagem não significa, de modo algum,
tomar a atitude quixotesca e ridícula de afirmar que o que eles disseram não tem
importância — tal como tenderiamos, se conduzidos por uma excessiva valorização da
linguagem.

Como você vê o panorama filosófico atual? Penso, de início, numa


passagem de “Prefácio a uma filosofia” em que você afirma que “ra-
cionalismo e irracionalismo são apenas as duas faces de uma mesma
moeda”.
Eu creio que o racionalismo a que eu me referia aí perdeu a vez, no sentido puramente
empírico da expressão: não se faz mais racionalismo hoje, pouca gente se aventura a
querer ser racionalista no sentido tradicional e clássico da expressão — o que é bom.
Tenho a impressão, porém, de que não é preciso, nem desejável, que se renuncie à
razão. O irracionalismo é uma tragédia filosófica e cultural que tem, com grande
freqüência, lamentáveis conseqüências no plano prático, no plano da vida das nações,
dos povos e das pessoas. Por outro lado, o endeusamento da razão não tem mais sentido
no mundo contemporâneo. O ceticismo, a meu ver, não representa em nenhum
momento uma investida contra a razão; ele representa, e o é, uma investida contra o
endeusamento da razão. Mas o cético nasceu da filosofia ocidental, dela se alimenta, e
sempre se alimentou. Eu diria até que ele se pretende, algo imodestamente, o herdeiro
dessa filosofia, pois ele tem uma qualidade que é

140 Conversas com Filósofos Brasileiros


sem dúvida uma qualidade da filosofia ocidental: a qualidade de ter sempre o desejo de
pensar com rigor e espírito crítico, de tratar os seus problemas com espírito crítico.
Ora, isto é algo que o ceticismo leva às últimas conseqüências quando denuncia
justamente a inadequação dos empreendimentos filosóficos a esse projeto multissecular
de pensamento crítico. O ceticismo seria, neste sentido, uma espécie de legatário da
intenção primordial da filosofia, um filho e herdeiro da filosofia — jamais uma recusa
desta. Não há nada mais contrário ao ceticismo do que uma perspectiva irracionalista.

Como você avalia a obra de Wittgenstein?


Eu li Wittgenstein como todo filósofo lê, isto é, com atenção, interesse, admiração e
respeito. O Wittgenstein que mais me interessa, evidentemente, do ponto de vista das
posições filosóficas, é aquele que vê nas filosofias um desvio da linguagem em relação a
suas funções primordiais, que vê os problemas filosóficos não como problemas a serem
resolvidos, mas como problemas a serem desfeitos. Esse Wittgenstein das Investigações
filosóficas me é particularmente simpático. Embora haja bons conhecedores de
Wittgenstein que têm salientado a continuidade de certos temas fundamentais no
Tractatus logico-philosophicus e nas Investigações, as soluções propostas no Tractatus
me parecem absolutamente especulativas, enquanto o Wittgenstein das Investigações
me parece, sob certos aspectos, bastante aproximável de uma postura cética. Apesar de
ele ser muito mais radical do que os céticos foram, e assumir direções que um cético
não teria razões para assumir, creio que ele representa uma das vozes importantes, na
filosofia do século XX, que fazem a denúncia do dogmatismo filosófico.

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever a sua visão do


futuro da sociedade humana? Em que consistiría tal utopia?
Eu nunca senti nenhuma atração pelo pensamento utópico, e não saberia descrever o
que seria uma sociedade ideal, uma sociedade desejável. Mas me parece que todas as
construções propostas por pensadores, qualquer que seja a sua orientação, para
descrever o que seria a realização dos fins da humanidade, são sempre extremamente
especulativas, criticáveis e problemáticas. A riqueza do ser humano e a
imprevisibilidade da história nos fazem totalmente incapazes de dizer o que seria "a”
boa situação, o que seria a melhor situação, o que seria a situação ideal. Eu considero
inútil, e até mesmo perigoso, tentar transformar a sociedade a partir de uma idéia pré-
fixada do que seja o fim desejado. É evidente que os seres humanos, ou pelo menos os
seres humanos críticos e conscientes, têm uma consciência bastante grande das coisas
que são ruins, perversas, inaceitáveis, na sociedade de hoje, e nós queremos
naturalmente mudar essas coisas, queremos transformá-las, queremos fazer as pessoas
se encaminharem para o melhor. Acontece que esse melhor vai sendo definido, por nós
mesmos, aqui e ali, conforme as circunstâncias, con- forme as épocas. Não acredito que
se possa delinear a sociedade ideal, e esse mito, a meu ver, deve ser abandonado.

Há progresso na história?

Oswaldo Porchat 141


É difícil dizer, mas me parece que uma sociedade, por exemplo, em que mulheres e
homens têm igualdade de direitos, é muito melhor do que uma sociedade em que não a
têm. Uma sociedade em que o povo, de algum modo, participa das coisas do governo
me parece, de modo geral, muito melhor do que uma sociedade em que o povo não
participa. É verdade que essa participação muitas vezes é adulterada; é verdade que
certos meios de comunicação influem de tal maneira sobre a população, que somos
levados a perguntar se realmente é o povo que está escolhendo os candidatos ou se são
as empresas de televisão. De qualquer modo, porém, a participação das pessoas na
formação de seu governo é algo positivo. Assim como a extensão das preocupações com
o semelhante, que é talvez um dos poucos aspectos da globalização que podem ser ditos
de notável importância: o que acontece hoje na Bósnia, no Vietnã, no Daguestão, é
importante para muita gente, e não apenas para alguns intelectuais. Tudo isso é uma
vantagem em relação a épocas em que as coisas não eram assim, e portanto poderiamos
falar em progresso.
É claro que estou definindo esse progresso a partir de certos valores morais, e é
claro que esses valores morais são nossos, são valores em que fomos formados e que
endossamos. Mas não vejo mal nenhum em assumirmos a nossa particularidade, a nossa
contingência, e, ainda que reconhecendo que esses valores, como o da maior igualdade,
da maior justiça, da menor miséria, da menor desgraça, são valores em que fomos
formados, dar-lhes a nossa adesão. Eu diria portanto, desse ponto de vista, que houve,
sim, algum progresso. Inclusive tenho muita simpatia pela posição do Rorty com
relação a esse ponto, pois ele tenta mostrar justamente que a consciência de nossa
precariedade e de nossa contingência não nos impede, em nenhum momento, de lutar
por aquilo em que acreditamos.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos


como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em
larga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais
problemas?
Eu os vejo como trágicos, obviamente, e como conseqüências nefastas dessas trans-
formações globais por que passa a sociedade. A globalização é um fato inevitável, mas a
nenhum momento precisa ser tomada como um valor a ser cultuado. Trata- se de um
fato que não podemos evitar, mas ele traz no seu bojo problemas terríveis e seriíssimos.
O que se coloca para nós, como desafio, é tentar lidar com eles tentar minimizá-los, se
possível eliminá-los, conscientes da dificuldade que há nisso. Não se trata de aceitar a
globalização como um bem, nem de condená-la como um mal, mas de aceitar que ela
está aí, que as transformações tecnológicas e econômicas nos põem diante de um fato
consumado. Tudo que podemos é tentar transformar as coisas para que as suas
conseqüências ruins sejam fortemente diminuídas.

adjetivo “pré-modemo” para caracterizara sua atitude filosófica, tendo


em vista tanto a fase da promoção filosófica da visão comum do mundo
como a fase neopirrônica, em que você estaria navegando “a contra-
corrente do miolo cético do modernismo”. No entanto, a recusa da
tradição filosófica moderna é algo que você expressamente assume, por
consi-

142 Conversas com Filósofos Brasileiros


derá-la fundada na “concepção mentalista do conhecimento” que ten-
de a afastar o pensamento reflexivo da vida real — tendência à qual
mesmo os céticos modernos, como Hume, não escapariam. Como,
então, você se posicionaria em relação a essa caracterização de “pré-
moderno”?
Se pré-moderno quer dizer grego antigo, não tenho nada contra! [risos] O mundo
grego, e também o mundo medieval, que sob certos aspectos copiou o grego, tinham
uma postura diante dos problemas do conhecimento — não estou dizendo senão uma
trivialidade histórica — totalmente diferente da postura moderna. A postura moderna,
em Descartes, começa com a valorização do sujeito, com a valorização do pensamento
sobre a experiência do mundo, com a idolatria da razão. Eu acho que os gregos, mesmo
Platão, eram muito mais afeitos ao cotidiano, às coisas que se passavam imediatamente,
estando numa sintonia muito maior com o mundo do que o pensamento moderno. Pois
este último, mesmo quando se debruça sobre o mundo para pensá-lo, em geral o faz a
partir de uma razão idolatrada, a partir de uma razão hipostasiada, a partir de um culto
do sujeito. Ora, eu acho que devemos ter, nesse sentido, a coragem de dizer “não” ao
moderno. Isto é, não há por que colocar o sujeito em primeiro lugar, não há por que
aceitar uma filosofia que está enraizada em última análise no cogito. Uma das coisas
mais importantes, a meu ver, na consideração do cogito cartesiano, é que o sujeito se
pergunta: “Como posso saber que este mundo existe?”; “Como posso saber que isso é
uma verdade?”; “Eu não poderia estar enganado por esta ou por aquela razão?”. E eu
tenho vontade de perguntar: “Eu quem, cara pálida?!” |risos]. É claro que, se você
admite que pode haver pensamento sem mundo, a pergunta tem todo sentido. Mas, se
você não tem razões para acreditar que haja pensamento sem mundo, a pergunta não
quer dizer nada. Ora, essa hipóstase do sujeito, do pensamento, da razão, é a contribui -
ção genial de Descartes para a filosofia. Mas é ao mesmo tempo, a meu ver, a razão para
que um cético como eu desconfie de toda filosofia que daí se nutriu, que se nutriu da
hipótese de uma separação entre pensamento e mundo.
O sujeito, para o cético, é alguém chamado José, que tem carne, osso, dente, que
briga com a namorada etc. O sujeito é o ser humano quando nós centramos a atenção
sobre ele. O que são as filosofias? As filosofias são simplesmente exercícios de
pensamento de seres humanos no mundo. É preciso começar sempre por aí, começar
sempre por essa remissão ao humano vivido de cada dia. Enquanto a filosofia ocidental
se orgulha justamente de ter-se constituído sobre a não-aceitação disso como ponto de
partida para pensar, o cético grego é aquele que só tem isso para pensar, e não acredita
que se tenha outra coisa além disso. Neste sentido, a minha postura é totalmente
“antimoderna”.

Para terminar, uma pergunta um pouco mais jocosa. Será que há tanta
diferença assim entre Tales caindo no poço porque olhava os astros e
Pirro caindo no buraco e sendo abandonado lá por seus discípulos
imperturbáveis?
Isso sobre Pirro é intriga da oposição! |risos] É claro que se sabe muito pouco sobre a
vida de Pirro, há apenas umas historietas sobre ele, de Diógenes Laércio. Mas já na
antiguidade alguns pensadores céticos se queixavam dessas historietas, diziam

Oswaldo Porchat 143


que tinham sitio inventadas por opositores e que não eram verdadeiras. Há até quem
sustente que Pirro se permitia algumas vezes certas extravagâncias para chamar a
atenção para seus pontos de vista. Existe, por exemplo, a seguinte história. Quando o
amigo de Pirro, Anaxágoras, estava se afogando, diante de toda uma comitiva, e com
muita gente querendo salvá-lo, Pirro teria afetado indiferença, no sentido de que não
podemos estar totalmente seguros de nossas impressões sensíveis, ou algo assim. Se ele
de fato o fez, pode ter sido uma brincadeira, e uma brincadeira sem conseqüências,
porque os amigos correram para salvar Anaxágoras. O filósofo é levado às vezes a dizer
certas coisas que podem parecer muito extravagantes. Lembro-me, por exemplo, de
quando eu estava num colóquio em Curitiba e, na saída do colóquio, toquei num
assunto que se tinha discutido — eu tinha tentado mostrar, em minha comunicação,
que é totalmente ridícula a caricatura do cético como aquele que não sabe, por
exemplo, se essa mesa está aqui. Eu estava diante de uma árvore, na rua, e num
determinado momento fui levado, nesse contexto, a dizer, apontando: “Há uma árvore
aqui! Eu não posso recusar isto!”. E um casal que passava ficou olhando de maneira
muito espantada! [risos] Enfim, o fato é que aos olhos do senso comum uma afirmação
filosófica pode parecer uma coisa absolutamente extravagante.

Principais publicações:

1981 A Filosofia e a Visão Comum do Mundo (co-autor) (São Paulo: Brasiliense); 1993
Vida Comum e Ceticismo (São Paulo: Brasiliense);
1995 “Verdade, ceticismo e realismo”, Discurso, n° 25;
1999 “Discurso aos estudantes de filosofia da USP sobre pesquisa em filosofia”,
Dissenso, n° 2.
2001 A noção aristotélica de ciência (doutorado defendido em 1967; no prelo).

Bibliografia de referência da entrevista:

Descartes, R. Meditações, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.


Gellner, E. Relativism and the social Sciences, Cambridge University Press.
Hume, D. Tratado de la naturaleza humana, Madri: Tecnos.
_________. coleção Os Pensadores, Abril Cultural.
Kant, I. Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.
Popkin, R. A história do ceticismo de Erasmo a Spinoza, Francisco Alves.
Popper, K. A lógica da pesquisa científica, Edusp.
Quine, W. V. Relatividade ontológica e outros ensaios, coleção Os Pensadores, Abril
Cultural.
Rorty, R. A Filosofia e o espelho da natureza, Relume-Dumará.
Sexto Empírico. Pirronean hypotyposes, Harvard University Press (Loeb).
Wittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp.
______________. Investigações filosóficas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.

144 Conversas com Filósofos Brasileiros

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