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LA TAILLE. para Um Estudo Psicológico Das Virtudes Morais PDF
LA TAILLE. para Um Estudo Psicológico Das Virtudes Morais PDF
Yves de La Taille
Universidade de São Paulo
Resumo
Palavras-chave
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.2, p.109-121, jul./dez. 2000 109
For a psychological study of moral virtues
Yves de La Taille
Universidade de São Paulo
Abstract
Keywords
110 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.2, p.109-121, jul./dez. 2000
Acreditamos que é possível defender a im- cotidiano, elas estão presentes, e isso ocorre
portância de pesquisas sobre as virtudes morais não somente entre os adultos, mas também
de três formas diferentes e complementares: 1) o entre as crianças. Com efeito, nossas pes qui-
interesse universal do tema; 2) sua inserção sas anteriores atestaram o fato de as crianças
numa possível definição do que seja moral ou pequenas, mesmo com o desconhecimento da
ética; e 3) sua relevância psicológica na constru- palavra que as nomeia, terem opi niões so bre
ção da moral por parte do ser humano em geral e se devemos ou não dar publicidade a nos sos
da criança em particular. Vamos desenvolver feitos (humildade), se de vemos ou não ceder
cada uma dessas razões, que nos levam a eleger nossa fruta predileta a um irmão (ge ne ro si da-
as virtudes morais como objeto de investigação de), se o tamanho de um desafio é medida
da psicologia do desenvolvimento. para a coragem, etc. (La Taille e ou tros, 1998).
Em resumo, não nos parece exagerado
Tema universal dizer que encontramos nas virtudes um tema
propriamente humano, um tema universal.
1) Existirá uma cultura na qual ca rac te- Só este fato, pensamos, justificaria inúmeras
rísticas humanas como coragem, fidelidade, pesquisas.
prudência e ou tras não sejam identificadas, Podemos nos perguntar por que esse
nomeadas e apreciadas? A res posta cabe à tema tem tanta relevância para o homem. Ve-
Antropologia, e a res posta desta certamente é mos três razões para o fato.
negativa. Nas di versas li teraturas, fi losofias e
religiões, encontram-se referências a elas. Na- 2) A primeira decorre da própria defini-
turalmente, em diversas culturas ou em di ver- ção geral da palavra virtude: qualidade pró-
sos momentos históricos tais características pria para que se produzam certos efeitos,
humanas podem receber um tratamento di fe- característica, propriedade (Dicionários Lexis
rente. O que era visto como coragem pelo ca va- e Aurélio). De acordo com esta definição, a
leiro feudal (arriscar-se em du elos, por virtude da faca é cortar e a do olho é en xer gar.
exemplo), pode ser visto como temeridade e Numa definição mais restrita, e mais fre qüen-
falta de humildade para um pai de famí lia con- te, a palavra virtude refere-se a qualidades
temporâneo; e o que é visto como prudência das pessoas. Trata-se, portanto, de um juízo
política para um so cial-democrata, pode ser in- de valor fei to sobre um indivíduo. Ora, sendo
terpretado como covardia para um re vo lu ci o- que as representações de si, que formam a
nário comunista. Porém, o fato de haver sérias identidade de cada pessoa, são sempre va lo ra-
discordâncias a respeito do que é a verdadeira tivas (ver Taylor,1998; Perron, 1991; Adler,
expressão da co ragem, da prudência ou da hu- 1992; La Taille, 2000), é fácil compreender
mildade, longe de de por contra a importância por que as virtudes são de suma importância
humana do tema, pelo contrário, a refor ça. Pa- para os homens: pelo fato de elas pos si bi li ta-
rece que cada cultura em ge ral e cada in di ví duo rem a todo homem uma le itura va lorativa de
em particular sentem a necessidade de pensar e si próprio e dos outros, elas fazem parte do
julgar tais ca racterísticas hu manas que res pon- quadro de referências a par tir do qual cada
dem pelo nome de virtudes. Portanto, não é a um se entende como ser humano.
presença ou a ausência do pensar sobre vir tu-
des que diferencia pes soas ou culturas, mas sim 3) A segunda razão complementa a pri -
a qualidade des se pen sar. Assim como a ra ci o- meira: não somente as vir tudes incidem so bre
nalidade e a moral, o tema das virtu des é uni- qualidades de cada pessoa, como elas apon-
versal. Tanto é verdade que, nas conversas do tam para qualidades apreciadas, ad miradas
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até. E são al mejadas também. Mais ainda: Os an ti gos an glo fô ni cos, e na ver da de os es cri-
apontam para a excelência, para um ideal. to res que re mon tam à Anti güi da de, não ti -
Como pensava Aristóteles, a pes soa virtuosa nham dú vi das so bre o sig ni fi ca do de ca rá ter: é
não é somente aquela que age bem, mas sim o va lor éti co que atri bu í mos aos nos sos pró -
aquela que quer o bem e, assim, é uma “boa pri os de se jos e às nos sas re la ções com os ou -
pessoa” (ver também Tugendhat, 1993). Escre- tros. Ho rá cio des cre ve que o ca rá ter de al guém
veu o Estagirita: de pen de de suas li ga ções com o mun do. Nes te
sen ti do, ca rá ter é um ter mo mais abran gen te
Não se po de ria dizer de um ho mem que é jus to que seu re ben to mais mo der no per so na li da de,
se ele não ex pe ri men ta a alegria de ações jus tas, pois este se re fe re a de se jos e sen ti men tos que
e nem que um ho mem é gene ro so se não tem po dem apos te mar por den tro, sem que nin -
pra zer na ações ge ne ro sas, e as sim por diante. guém veja. (1999, p.10 – gri fo nos so)
Assim, de ve mos con vir que as ações con for me a
vir tu de são agra dá ve is em si. (Aris tó te les, 1965, Aristóteles tam bém emprega o conceito
p. 36) de caráter, não para julgar se alguém é in te li-
gente ou apaixonado, mas sim se é “ge ne ro-
Logo, as virtudes não somente remetem a so”, “temperante” (1965, p.47). Dissemos que
uma leitura valorativa da pessoa hu mana (as- o conceito de ca ráter corresponde a uma le i -
sim como os vícios), como referem-se a qua li- tura ética da personalidade. Isso é válido no
dades de sejadas. senso comum: quando se diz de alguém que
Mas desejáveis de que ponto de vista: do tem caráter, trata-se de um elogio; o que tam-
prazer? da fe licidade? da ética? Isso nos leva à bém é valido para a ética: quando se diz de
terceira razão pela qual as virtudes têm re le- uma pessoa que é justa (e justiça é uma vir tu-
vância do ponto de vista hu mano: sua refe rên- de), está se fazendo uma avaliação a partir de
cia à ética. um valor éti co.1
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6) Tugendhat, em suas Lições sobre ética, veres decorrentes. Lembremos o clássico di le-
lembra que “o conceito de vir tude foi por mu i to ma de Heinz, formulado por Kohlberg: deve,
tempo de ixado de lado pela éticas mo dernas” ou não, um homem pobre roubar um remédio
(1993, p. 243). Cremos que a ausência das vir- de preço inacessível para salvar sua mulher da
tudes nas re flexões mo dernas da Ética deve-se morte? Entre outros elementos (como a le ga-
ao conceito de direito moral. lidade, a vida privada, a harmonia so cial etc.),
Escreve o mesmo autor que “respeitar al- tal dilema apresenta um conflito en tre o di re i-
guém significa reconhecê-lo como suje i to de to à propriedade privada (a do farmacêutico,
direitos mo rais” (p.391). O próprio autor su bli- inventor e dono do remédio) e o di reito à vida
nha que tal definição bá sica do respeito é pro- (a da mulher gravemente enferma). Mas seja
blemática: mais elementos estariam presentes. qual for a solução dada, pela própria for mu la-
Mas o fato é que o marco zero (ou mínimo ção do dilema, sempre prevalecerá um direito
denominador comum) do respeito é aquele de- e o de ver dele derivado.
rivado do reconhecimento do ou tro como pos- Antes de refletirmos sobre demais virtu-
suindo direitos. Por exemplo, como todo ser des, devemos verificar que as pesquisas em Psi-
humano tem direito à in tegridade física e psi- cologia Moral têm se limitado a esta definição
cológica, é moral tratá-lo respeitando seu cor- de moral: são morais as condutas que respei-
po e sua mente (por mais que seja um fa cí no ra). tam o direito alheio e o juízo que o considere.
Outro exemplo, como todo ser humano tem Mesmo sem remeter-se explicitamente a essa
direito a ser julgado segundo a Lei, e que esta definição, Piaget (1932) considera a moral
vale para todos, é moral julgá-lo sem privilégios como um conjunto de regras, e as histórias às
ou sem severidade sin gular. Os Direitos Hu ma- quais os sujeitos são submetidos tratam de
nos representam certamente a forma mais roubo (direito à propriedade), de mentira (di-
elaborada dos direitos morais ins pirados na reito à verdade), de justiça retributiva e distri-
máxima kantiana: devemos sempre tratar o butiva (direito a ser tratado a partir do ideal de
homem como um fim (é o seu direito) e nunca igualdade e eqüidade). Em relação a Kohlberg
como meio (o que iria de encontro ao im pe ra ti- (1981), basta lembrar que ele mesmo coloca a
vo ca tegórico mo ral). justiça como eixo de toda moral e que, se gun-
Isto posto, verifica-se que dos direitos do ele, esta não pode ser definida como um
morais decor rem deveres morais (mas a re cí pro- “saco de virtudes”. E Turiel, como vimos aci-
ca não é verdadeira, como veremos mais aba i- ma, define o domínio moral como referente à
xo). Trata-se de pura lógica: se é reconhecido a justiça e com regras que são julgadas como
alguém um direito, os outros têm o dever de universais pois correspondem a direitos de
respeitá-lo. Ora, entre as vir tudes, ape nas uma toda e qualquer pessoa. A voz destoante na
parece-nos corresponder ao binômio di re i- Psicologia (pelo menos a mais conhecida) é a
to/deveres: a justiça. Sendo imperativo que é de Carol Gilligan (1982, 1988) que, ao lado da
um direito de cada um ser tratado de forma jus- ética da justiça, propõe a existência de outra,
ta, é também imperativo que cada um aja de tão importante quanto, segundo ela: a do cui-
forma jus ta, ou que pelo menos procure pautar dado (care). Ora, a referida ética do cuidado re-
suas ações no ideal de justiça. Daí re sultar uma mete-nos a outra virtude: a da generosidade
moral de re gras (que podem ser inúmeras e (para maior análise das relações entre cuidado
sempre por ser criadas): os de veres tra du zem-se e generosidade, ver La Taille, 2000).
em re gras de conduta que podem ser for mu la-
das com razoável clareza. É claro que pode 7) Dificilmente alguém não julgará
haver conflitos en tre os próprios dire i tos e de- como moralmente ad mirável atos de ge ne ro-
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Vejamos agora o segundo problema que gras e deveres decorrentes de direitos) quan to
traz uma definição de moral que contém a exclusividade da de finição altruísta (que
exclusivamente condutas altruístas. Que a corresponderia mais ao domínio pessoal), so -
generosidade seja altruísta, não há dúvidas: mos, num primeiro mo mento, levados a ele ger
com ela, age-se exclusivamente por amor ao o conceito de relação social como orga ni za-
próximo, e o indivíduo generoso em nada se dor do que podemos chamar de moral. Assim,
beneficia materialmente de seu ato (pode ex pe- todas as virtudes que, por altruísmo ou por
rimentar prazer ou felicidade em ser generoso, contrato, dizem respeito ao outro são me re ce-
o que é diferente de uma retribuição so cial). doras de estudos psicológicos. É o caso, por
Mesma coisa pode-se di zer da gratidão e do exemplo, da justiça, da generosidade, da gra-
amor (colocado como virtude por Com- tidão, da fidelidade, da tolerância, da poli dez.
te-Sponville, 1995). Não há interesse em ser Todas elas são, segundo a ex pressão inglesa,
grato, amoroso ou generoso. E se houver, sig- other-regarding e, se algumas traduzem-se
nifica que não houve nem amor nem gratidão por regras, ou tras são tra duzidas apenas por
nem generosidade. Perguntemo-nos agora se a atitudes (é o complemento que quer fazer
justiça é ge nuinamente altruísta. A resposta é Tugendhat à ética moderna).
negativa pelo simples fato de o ato de justiça E as outras, como a humildade, a co ra-
beneficiar tanto quem é justo como quem é ob- gem, a prudência, o humor e a temperança?
jeto da justi ça. Por exemplo, se somos justos Numa de fi ni ção other-regarding da moral,
com um aluno, é claro que o benefício ime diato elas não têm lugar, a não ser vinculadas a re-
é dele. Porém, virtualmente, também nos be ne- lações sociais (por exemplo, ser corajoso para
ficiamos porque é de nosso interesse que a so- salvar uma pessoa). Não seriam, portanto, vir -
ciedade seja regida por regras justas. Dito de tudes mo rais em si, e deveriam ser deixadas de
outra forma, na justiça não é a particularidade lado pelo psicólogo interessado pela moral
de ou trem que está em jogo, não é o des pren di- humana.
mento (como no caso da generosidade), mas Todavia, se ria precipitação chegar a
sim a reciprocidade, vale di zer, o contrato. essa conclusão. To memos o exemplo do di le-
Assim, faz sentido alguém ao mesmo tempo ma de Heinz. Uma coi sa é ser colocado no pa-
sentir-se no de ver de ser justo e no direito de pel de juiz e avaliar se Heinz agiu bem ao
exigir que o tratem jus tamente. Não faz tanto roubar o remédio para sal var sua mulher.
sentido alguém sentir-se no de ver de ser ge ne- Concordamos com Kohlberg: a virtude jus ti-
roso ou grato ou, ao mesmo tempo, exigir que ça, nesse caso, domina a cena. Mas agora fa-
o tratem generosamente e com gratidão. Em çamos a per gunta que muita gente já se fez:
uma palavra, o fato de a justiça confe rir di re i- será que um sujeito, classificado como
tos retira-lhe o cará ter pu ramente altruísta. É pós-convencional na entrevista e que, por
melhor dizer que a justiça (e talvez a fi de li da de) conseguinte, apoiaria a decisão de Heinz por
pertence a uma definição contratual de moral considerá-la jus ta, agiria como Heinz?
(como o fez Piaget). Tal pergunta cos tuma ser feita para sus-
peitar da possível desvinculação entre juízo e
8) Se o que acabamos de analisar fi zer ação, notadamente em relação à chamada
sentido, temos uma primeira autorização teó ri- dupla mo ral. Mas nossa pergunta aqui é di fe-
ca para in cluir outras vir tudes, além da justiça, rente. Vamos imaginar alguém plena e ho nes-
no campo da Psi cologia Moral. E como pro ble- tamente convencido de que o moralmente
matizamos tanto a ex clusividade da de finição certo é roubar o re médio e que, em situação
contratual da moral (o domínio moral, com re- semelhante, não o faz porque tem medo.
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direitos e deveres. Mais ainda, se tivermos ra- própria teo ria, a autonomia representa a vi tó-
zão em afirmar que um ato covarde de injus ti ça ria do princípio de jus tiça sobre a mera obe-
traz di mensões ou tras que a injustiça por si só, diência à autoridade. Vale di zer que podemos
e se também tivermos razão em afir mar que, levantar a hipótese de que, no caminho para a
para a maioria das pessoas, tais dimensões têm construção do ideal de jus tiça, a ge nerosidade
relevância mo ral, cabe ao psicólogo, não (e outras virtudes altruístas, que levam em
somente comprovar o fato, como melhor com- conta o ou tro na sua especificidade) de sem-
preender que lugar ocupam vir tudes como co- penha um papel. Na au tonomia (sobretudo
ragem e hu mildade no universo moral dos como definida por Kohlberg), a justiça pre ce-
indivíduos. Ora, quase nada sabemos sobre esse derá, do ponto de vista lógico (implicações), à
lugar, como sobre o lugar das outras virtu des, generosidade, mas esta talvez preceda à jus ti-
mesmo as altruístas como generosidade e gra ti- ça, moralmente falando, do ponto de vista
dão. Se gundo Flanagan: “Ignoramos, do ponto cronológico.
de vista psicológico, o que é uma virtude” Vamos pensar ou tro exemplo. Tu gend-
(1996, p.15). Pensamos que está na hora de hat, em suas Lições so bre ética discorda de
preencher esta lacuna. Piaget quando este baseia a moral he te rô no-
Uma outra maneira de defender a hipó te- ma sobre o respeito pela autoridade. Para ele,
se de que as virtudes devem compor o campo um dos pontos essenciais a se rem pensados
da Psi cologia Moral é pensarmos a par tir da na relação filhos/pais não é o fato de os se-
perspectiva genética. gundos terem autoridade so bre os primeiros,
mas sim a confiança que eles despertam. O
11) Reflitamos sobre a se guinte cita ção, moral sense, condição ne cessária ao pensar e
extraída do Le Jugement Moral de Piaget: “É agir morais segundo o filósofo, teria suas ra í -
quando a cri ança ha bitua-se a agir do ponto de zes na confiança que as crianças desen vol vem
vista dos próximos, e preocupa-se mais em em relação a seus progenitores e ou tras pes -
agradá-los do que a eles obedecer, que ela che- soas significativas. Nomeando o processo por
ga a julgar em função das intenções” (1932. meio das virtudes, teríamos o lugar im por tan-
p.105). Esta frase traz um ponto clássico da te da fidelidade: é porque os pais mostram-se
perspectiva pi agetiana: a passagem de uma fieis a seus fi lhos e às palavras que em pe nham
moral da obediência (nome que também de sig- em relação a eles que as crianças penetrariam
na a heteronomia) para outra, su perior, que no mundo da moral, não permanecendo no
leva em conta as intenções dos agentes, a mo - puro medo das sanções. É evidente que a fi de-
ral autônoma, na qual o realismo mo ral é su pe- lidade so frerá radicais mudanças de in ter pre-
rado. Mas a citação traz mais do que isso. Por tação no decorrer do desenvolvimento moral,
um lado, refere-se a uma explicação ca usal mas o fato é que, segundo a perspectiva de
para dar conta da evolução moral. Por outro, e Tugendhat, tal virtude encontrar-se-ia pre co-
é os que nos interessa aqui, nela está afirmado cemente na gênese da moralidade hu mana.
que o que explica a passagem da heteronomia Vamos a um último exemplo, agora reti-
para a autonomia não é tanto uma tomada de rado das pesquisas que já realizamos sobre as
consciência do outro como suje i to de dire i tos, virtudes morais segundo as crianças (La Taille e
mas antes a ten dência a considerá-lo na sua outros, 1998). Verificamos que as crianças me-
singularidade: é o que sugere o emprego do nores interpretam a boa-educação (polidez)
ver bo agradar (faire plai sir). Em uma palavra, como recobrindo praticamente todo o campo
Piaget nos fala mais, nesta citação, em ge ne ro- da moralidade, embora reconheçam que o cas-
sidade do que em justiça, embora, na sua tigo não se coloca para a ausência de polidez.
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si decorrentes de tal tomada de consciência Se definirmos mo ral como apenas atinente à
são sempre valorativas; virtude jus tiça, o au to-respeito será apenas
• a busca de representações de si positivas é a efetivado quando a pes soa realizar ações jus-
uma das motivações bá sicas das condutas tas ou se abster de atos injustos (no sentido
humanas; em que ferem di reitos hu manos alheios). Po-
• tais representações de si estão, na sua gê ne se rém, se aceitarmos considerar as virtudes ge-
e manutenção, vinculadas aos juízos alheios, nerosidade, gratidão, compaixão e outras
porém tal vínculo não implica sua total de- como morais, o auto-respeito poderá receber
pendência a esses juí zos: há um constante uma definição ampliada.
embate en tre as imagens que a pessoa tem de Dois novos cenários devem então ser
si e os juízos positivos e ne gativos de ou trem, pensados. Num, a pessoa coloca no núcleo
o julgar-se interage com o ser julgado; das re presentações de si vir tudes altruístas.
• sentimento de vergonha aparece como fun- Retomando a tese de Gilligan, algumas pes-
damental para a presente perspectiva teórica soas poderão se ver como essencialmente ge-
uma vez que, com a exceção da “vergonha de nerosas e, assim, cumprir a pauta de uma ética
exposição”: 1) implica num auto-juízo ne ga- do cuidado; e outras poderão se ver como
tivo doloroso (dor decorrente da incessante principalmente jus tas e agirem se gundo a éti-
busca de representações de si de valor posi ti- ca da justiça. Nou tro cenário, as co isas se
vo); 2) diz respeito ao “ser”, portanto às re- complicam do ponto de vista ético. Ima gi ne-
presentações de si; e, 3) embora ocorra em mos alguém cu jas representações de si in-
decorrência de alguma “falha”, real ou an te- cluem, em lugar pri vilegiado, a virtude
cipada, mo ral ou não, sua presença pode ser coragem, mas que tal virtude esteja associada
vista como sinal de valor por parte de quem o não à justiça soci al, mas sim à violência.
experimenta; Como previsto no quadro teórico colocado
• tal fato é sobretudo notado no âmbito da acima, tal pessoa senti rá vergonha se não
vergonha de corrente de uma falha mo ral (La conseguir concretizar a boa imagem que se
Taille, 2000, p. 70). associa à coragem e, sendo ela vista como for-
ça, virilidade e agressão, a presença dessa vir-
A re presentações de si, como exposto aci- tude dentro das representações de si terá o
ma, são sempre va lorativas. Ora, podem então efeito de afastar o indivíduo da moral. Raciocí-
acontecer vá ri os cenários. nio semelhante pode ser feito com a virtude fi-
Num deles, o indivíduo associa so bre tu do delidade: se tal virtude for entendida como
às re presentações que tem de si valores que não revestindo um valor absoluto, a pessoa poderá
são morais, como a bele za fí sica, a posse do di- até cometer atos injustos para se manter fiel a
nheiro, o status social etc. Quando tais va lores contratos passados com certas pessoas do gru-
constituem as representações de si, falamos em po. E poderíamos multiplicar os exemplos.
auto-estima. E falamos em auto-respeito jus ta- O que deve ser ressaltado a partir deste
mente quando tais valores são mora is. É um último cenário hipotético é que as virtudes (ou
possível se gundo cenário: o indivíduo se vê pelo menos algumas), dependendo da inter-
como essencialmente ético. Dito de outra for - pretação ética que a elas se dê e do lugar que,
ma, neste cenário ser “eu” e ser moral é equiva- enquanto valor, ocupam nas representações de
len te (daí a vergonha re trospectiva quando se si, podem se transformar em fatores complica-
comete algo que fere a ética e a vergonha pros- dores do pensar e agir morais. Ora, tal possibi-
pectiva quando se antecipa a pos sibilidade da lidade deve ser levada em conta, notadamente
transgressão – ver Harkot-de-La-Taille, 1999). na educação. Será que algumas crianças (e
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