Você está na página 1de 13

Para um estudo psicológico das virtudes morais

Yves de La Taille
Universidade de São Paulo

Resumo

O propósito des te artigo é de fender a importância de es tudos


psicológicos das virtudes mo rais (como generosidade, co ra gem,
humildade, fidelidade etc.). Tal defe sa é realizada de vá rias for-
mas.
Do ponto de vista filosófico, o tema das virtudes não somente é
clássico (Ver Aristóteles, por exemplo) como tem sido re dis cu ti-
do por autores contemporâneos descontentes com as li mi ta-
ções da ética mo derna, em geral baseada no con ceito de direito.
Do ponto de vista psicológico, o autor defen de a idéia segundo
a qual as virtudes morais não somente participam da gênese da
moralidade, como representam traços de caráter essenciais à
coesão da personalidade mo ral.
Tal perspectiva está, de certa for ma, anunciada na obra de
Piaget sobre o juízo moral, como em autores ou tros como
Tugendhat. Ela está também presente nos estudos sobre a re la-
ção entre o sen timento de vergonha e a ética.
Finalmente, aponta-se que, no que se refere à educação moral,
as virtudes podem representar um tema rico e sugestivo para a
reflexão das crianças e adolescentes.

Palavras-chave

Moral – Virtudes – Desenvolvimento – Caráter.

Cor res pon dên cia:


Yves de La Ta il le
Insti tu to de Psi co lo gia
Av. Prof. Melo Mo ra es, 1721
São Pa u lo, SP 05508-900
e-mail: yta il le@ori gi net.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.2, p.109-121, jul./dez. 2000 109
For a psychological study of moral virtues
Yves de La Taille
Universidade de São Paulo

Abstract

The purpose of this article is to advocate the importance of


psychological studies of the moral virtues (such as ge ne ro sity,
courage, modesty, faithfulness, etc.). This argument is
proposed by several ways.
From the philosophical viewpoint, the theme of virtu es is not
only classical (see Aristotle, for example), but has been
revisited by contemporary authors dissatisfied with the
limitations of modern et hics, largely ba sed on the concept of
rights.
From the psychological point of view, the author defends the
idea that moral virtues not only participate in the genesis of
morality, but also represent essential fe atures of character to
the cohesion of the moral personality.
Such perspective is, to some extent, announced in Pi aget’s
work about moral jud gement, as well as by other authors such
as Tugendhat. The same perspective is also presented in
studies on the relationship betwe en et hics and the feeling of
shame.
Finally, it is remarked that, in what concerns moral
education, the virtues can be a rich and suggestive topic for
reflection by children and adolescents.

Keywords

Moral – Vir tues – Development – Character.

Cor res pon den ce:


Yves de La Ta il le
Insti tu to de Psi co lo gia
Av. Prof. Melo Mo raes, 1721
São Pa u lo, SP 05508-900
e-mail: yta il le@ori gi net.com.br

110 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.2, p.109-121, jul./dez. 2000
Acreditamos que é possível defender a im- cotidiano, elas estão presentes, e isso ocorre
portância de pesquisas sobre as virtudes morais não somente entre os adultos, mas também
de três formas diferentes e complementares: 1) o entre as crianças. Com efeito, nossas pes qui-
interesse universal do tema; 2) sua inserção sas anteriores atestaram o fato de as crianças
numa possível definição do que seja moral ou pequenas, mesmo com o desconhecimento da
ética; e 3) sua relevância psicológica na constru- palavra que as nomeia, terem opi niões so bre
ção da moral por parte do ser humano em geral e se devemos ou não dar publicidade a nos sos
da criança em particular. Vamos desenvolver feitos (humildade), se de vemos ou não ceder
cada uma dessas razões, que nos levam a eleger nossa fruta predileta a um irmão (ge ne ro si da-
as virtudes morais como objeto de investigação de), se o tamanho de um desafio é medida
da psicologia do desenvolvimento. para a coragem, etc. (La Taille e ou tros, 1998).
Em resumo, não nos parece exagerado
Tema universal dizer que encontramos nas virtudes um tema
propriamente humano, um tema universal.
1) Existirá uma cultura na qual ca rac te- Só este fato, pensamos, justificaria inúmeras
rísticas humanas como coragem, fidelidade, pesquisas.
prudência e ou tras não sejam identificadas, Podemos nos perguntar por que esse
nomeadas e apreciadas? A res posta cabe à tema tem tanta relevância para o homem. Ve-
Antropologia, e a res posta desta certamente é mos três razões para o fato.
negativa. Nas di versas li teraturas, fi losofias e
religiões, encontram-se referências a elas. Na- 2) A primeira decorre da própria defini-
turalmente, em diversas culturas ou em di ver- ção geral da palavra virtude: qualidade pró-
sos momentos históricos tais características pria para que se produzam certos efeitos,
humanas podem receber um tratamento di fe- característica, propriedade (Dicionários Lexis
rente. O que era visto como coragem pelo ca va- e Aurélio). De acordo com esta definição, a
leiro feudal (arriscar-se em du elos, por virtude da faca é cortar e a do olho é en xer gar.
exemplo), pode ser visto como temeridade e Numa definição mais restrita, e mais fre qüen-
falta de humildade para um pai de famí lia con- te, a palavra virtude refere-se a qualidades
temporâneo; e o que é visto como prudência das pessoas. Trata-se, portanto, de um juízo
política para um so cial-democrata, pode ser in- de valor fei to sobre um indivíduo. Ora, sendo
terpretado como covardia para um re vo lu ci o- que as representações de si, que formam a
nário comunista. Porém, o fato de haver sérias identidade de cada pessoa, são sempre va lo ra-
discordâncias a respeito do que é a verdadeira tivas (ver Taylor,1998; Perron, 1991; Adler,
expressão da co ragem, da prudência ou da hu- 1992; La Taille, 2000), é fácil compreender
mildade, longe de de por contra a importância por que as virtudes são de suma importância
humana do tema, pelo contrário, a refor ça. Pa- para os homens: pelo fato de elas pos si bi li ta-
rece que cada cultura em ge ral e cada in di ví duo rem a todo homem uma le itura va lorativa de
em particular sentem a necessidade de pensar e si próprio e dos outros, elas fazem parte do
julgar tais ca racterísticas hu manas que res pon- quadro de referências a par tir do qual cada
dem pelo nome de virtudes. Portanto, não é a um se entende como ser humano.
presença ou a ausência do pensar sobre vir tu-
des que diferencia pes soas ou culturas, mas sim 3) A segunda razão complementa a pri -
a qualidade des se pen sar. Assim como a ra ci o- meira: não somente as vir tudes incidem so bre
nalidade e a moral, o tema das virtu des é uni- qualidades de cada pessoa, como elas apon-
versal. Tanto é verdade que, nas conversas do tam para qualidades apreciadas, ad miradas

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.1, p.109-121, jan./jun. 2000 111
até. E são al mejadas também. Mais ainda: Os an ti gos an glo fô ni cos, e na ver da de os es cri-
apontam para a excelência, para um ideal. to res que re mon tam à Anti güi da de, não ti -
Como pensava Aristóteles, a pes soa virtuosa nham dú vi das so bre o sig ni fi ca do de ca rá ter: é
não é somente aquela que age bem, mas sim o va lor éti co que atri bu í mos aos nos sos pró -
aquela que quer o bem e, assim, é uma “boa pri os de se jos e às nos sas re la ções com os ou -
pessoa” (ver também Tugendhat, 1993). Escre- tros. Ho rá cio des cre ve que o ca rá ter de al guém
veu o Estagirita: de pen de de suas li ga ções com o mun do. Nes te
sen ti do, ca rá ter é um ter mo mais abran gen te
Não se po de ria dizer de um ho mem que é jus to que seu re ben to mais mo der no per so na li da de,
se ele não ex pe ri men ta a alegria de ações jus tas, pois este se re fe re a de se jos e sen ti men tos que
e nem que um ho mem é gene ro so se não tem po dem apos te mar por den tro, sem que nin -
pra zer na ações ge ne ro sas, e as sim por diante. guém veja. (1999, p.10 – gri fo nos so)
Assim, de ve mos con vir que as ações con for me a
vir tu de são agra dá ve is em si. (Aris tó te les, 1965, Aristóteles tam bém emprega o conceito
p. 36) de caráter, não para julgar se alguém é in te li-
gente ou apaixonado, mas sim se é “ge ne ro-
Logo, as virtudes não somente remetem a so”, “temperante” (1965, p.47). Dissemos que
uma leitura valorativa da pessoa hu mana (as- o conceito de ca ráter corresponde a uma le i -
sim como os vícios), como referem-se a qua li- tura ética da personalidade. Isso é válido no
dades de sejadas. senso comum: quando se diz de alguém que
Mas desejáveis de que ponto de vista: do tem caráter, trata-se de um elogio; o que tam-
prazer? da fe licidade? da ética? Isso nos leva à bém é valido para a ética: quando se diz de
terceira razão pela qual as virtudes têm re le- uma pessoa que é justa (e justiça é uma vir tu-
vância do ponto de vista hu mano: sua refe rên- de), está se fazendo uma avaliação a partir de
cia à ética. um valor éti co.1

4) Se pensamos em prazer no sentido fí si-


1. O fato de a Ciência Psicológica empregar a palavra personalidade
co ou imediatista da palavra, é claro que as vir-
para definir um campo de pesquisa é compreensível: ela precisa tender à
tudes pouco ou nada têm a ver com essa neutralidade. Assim, dizer de uma pessoa que ela é obsessiva ou
experiência humana. Mas se pensarmos num uso paranóica é remeter-se a traços psicológicos razoavelmente precisos que
equilibrado e harmonioso dos prazeres, aí sim as não dizem respeito ao certo ou ao errado. Curiosamente, tais conceitos
psicológicos têm adentrado a linguagem do dia-a-dia (essencialmente
virtudes podem ser evocadas, notadamente a entre as pessoas razoavelmente cultas), fato que permite a certas
temperança. Mas o que legitimaria a busca de pessoas serem mais tolerantes em relação a si próprias e aos outros. Mas
note-se aqui que tais conceitos da personalidade costumam tomar o
tal equilíbrio e harmonia? Ora, a felicidade.
lugar dos vícios. Assim, ao invés de acusar alguém de covardia,
Essa é a posição de Aristóteles e sua teoria nos compreender-se-á sua inconstância e fragilidade egóicas. Em
leva justamente a levantar a dimensão ética. compensação, traços como coragem e generosidade continuam sendo
Como se sabe, para o filósofo grego, a Ética de- assim chamados e admirados. Talvez pelo fato de as teorias de
personalidade terem nascido da clínica, os problemas (em geral
fine-se pela busca da felicidade (eu de mo nis- características pouco admiráveis e facilmente associadas a fraquezas de
mo). Portanto, des te pon to de vista, as virtudes caráter, portanto desprezíveis), os chamados vícios têm sido nomeados
de forma mais neutra, o mesmo não acontecendo com as virtudes. Além
não somente têm relevância hu mana por re fe ri-
do mais, faz sentido alguém procurar uma terapia por achar-se muito
rem-se a valores desejáveis, como adentram no medroso ou egoísta (mas preocupar-se com o fato, já demonstra a virtual
universo mo ral: elas definem o cará ter de uma presença das virtudes associadas) do que por preocupar-se com sua
pessoa e, por caráter, deve-se entender uma coragem e generosidade. Para finalizar, note-se também que alguns
estudos de personalidade têm como motivo uma leitura valorativa das
avaliação ética da per sonalidade. A esse res pe i- condutas humanas, como por exemplo, o estudo de Adorno sobre a
to escreveu judiciosamente Sennett: Personalidade Autoritária (1950).

112 Yves de La TAILLE. Para um estudo psicológico das virtudes morais


Em re su mo, as vir tu des re me tem-nos a condena sacrificar inocentes em nome de que
di men sões uni ver sa is, pois es sen ci al men te hu- causa for, tal coragem não será moral, será
ma nas, a sa ber: qua li da de atri bu í da à pes soa, imoral. Outro exemplo, sempre com a mes ma
va lor de se já vel e ad mi rá vel, le i tu ra éti ca da virtude: todo mundo concordará que em ge ral
per so na li da de. Pen sa mos que isso já bas ta é preciso coragem para re agir a hu milhações
para ava li zar um es tu do psi co ló gi co das praticadas por pessoas poderosas (ima gi ne-
vir tu des. mos um aluno que reaja à hu milhações de um
Todavia, ainda falta es colher em que professor), e certamente todo mundo (me nos
campo da Psi cologia vamos realizar tais in ves- o agressor!2) ad mirará tal determinação e re-
tigações. Um campo que nos parece adequado conhecerá no valente combatente uma pes soa
é o das Representações So ciais. De fato, por de ca ráter. No en tanto, uma vez que de fen-
que não eleger algumas virtudes e ve rificar que der-se de humilhações é seguir seu próprio in-
significações e valores são a elas associadas por teresse, não sendo portanto uma atitude
determinados grupos so ciais? Outro campo da altruísta, poder-se-á dizer que, embora ad mi-
Psicologia que também pa rece colocar-se, no - rável, não se trata de uma ação moral. A co ra-
tadamente em razão do que foi acima exposto, gem para defender outrem de humilhações,
é o da Psi cologia Mo ral. Com efeito, se as esta sim seria uma atitude mo ral. Em suma, a
virtudes permitem uma leitura éti ca da per so- coragem em si nada teria de mo ral e, por tan-
nalidade, seu estudo pode, em aparência, per- to, chamá-la de vir tu de moral tra duziria uma
feitamente integrar-se a este clássico campo da generalização indevida e perigosa. E, se guin-
Psicologia. No entanto, as co isas não são tão do este raciocínio, a única virtude que re al-
simples as sim, não só porque nem todos os pes- mente mereceria o referido ad jetivo seria a
quisadores dessa área são seguidores de Aris tó- justiça: como dizia o próprio Aristó te les, ela é
teles! Longe disso aliás, pois são, em sua sempre boa. Nela, forma e con teúdo fun -
maioria, kantianos, fato que explica a quase dem-se.
inexistência de pesquisas sobre vir tudes outras Ora, esta tem sido a posição da Psi co lo-
que a justi ça. É sobre essa difícil re lação en tre gia Moral: eleger a justiça como objeto de
virtudes e ética que va mos nos de bruçar ago ra. seus estu dos e, como o fez Turiel (1993), de fi-
nir em torno dela (justice and fairness) o do-
Virtudes e ética: axiologia mínio mo ral. O res to pertenceria ao do mínio
convencional (ritos religiosos, por exemplo)
5) O leitor terá reparado que colocamos ou ao domínio pesso al (beber Coca-Cola ou
no título de nosso tex to o ad je ti vo moral para Guaraná). Em suma, não podemos propor um
qualificar as virtudes que vamos es tudar. Nada estudo das virtudes dentro do campo da
mais fizemos do que seguir Aristóteles, que faz Psicologia Moral sem nos debruçar sobre o
uma distinção entre vir tudes intelectuais (como objeto de es tudo dessa área do conhe ci men to.
a in teligência) e as morais (como a ge ne ro si da- Tal objeto deve ser abordado de duas formas:
de e a temperança). Vimos que o conceito de a axiológica e a ca usal (ver Piaget, 1965). Co-
caráter corresponde a tais virtudes morais. Mas mecemos pela di mensão axi ológica e vol te-
alguém poderá dizer que o emprego do ad je ti vo mos, portanto, à definição do que é moral (ou
moral é abusivo. Por exemplo, uma pessoa ética, ambos os conceitos sendo aqui em pre-
pode ser corajosa (é um traço de caráter) e por gados como sinônimos).
essa razão acei tar arriscar-se em atos ter ro ris-
tas: neste caso, a co ragem é uma virtude mo-
ral? Pelo menos do ponto de vista de quem 2. E mesmo este pode, secretamente, admirar seu inesperado rival.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.2, p.109-121, jul./dez. 2000 113
6) Tugendhat, em suas Lições sobre ética, veres decorrentes. Lembremos o clássico di le-
lembra que “o conceito de vir tude foi por mu i to ma de Heinz, formulado por Kohlberg: deve,
tempo de ixado de lado pela éticas mo dernas” ou não, um homem pobre roubar um remédio
(1993, p. 243). Cremos que a ausência das vir- de preço inacessível para salvar sua mulher da
tudes nas re flexões mo dernas da Ética deve-se morte? Entre outros elementos (como a le ga-
ao conceito de direito moral. lidade, a vida privada, a harmonia so cial etc.),
Escreve o mesmo autor que “respeitar al- tal dilema apresenta um conflito en tre o di re i-
guém significa reconhecê-lo como suje i to de to à propriedade privada (a do farmacêutico,
direitos mo rais” (p.391). O próprio autor su bli- inventor e dono do remédio) e o di reito à vida
nha que tal definição bá sica do respeito é pro- (a da mulher gravemente enferma). Mas seja
blemática: mais elementos estariam presentes. qual for a solução dada, pela própria for mu la-
Mas o fato é que o marco zero (ou mínimo ção do dilema, sempre prevalecerá um direito
denominador comum) do respeito é aquele de- e o de ver dele derivado.
rivado do reconhecimento do ou tro como pos- Antes de refletirmos sobre demais virtu-
suindo direitos. Por exemplo, como todo ser des, devemos verificar que as pesquisas em Psi-
humano tem direito à in tegridade física e psi- cologia Moral têm se limitado a esta definição
cológica, é moral tratá-lo respeitando seu cor- de moral: são morais as condutas que respei-
po e sua mente (por mais que seja um fa cí no ra). tam o direito alheio e o juízo que o considere.
Outro exemplo, como todo ser humano tem Mesmo sem remeter-se explicitamente a essa
direito a ser julgado segundo a Lei, e que esta definição, Piaget (1932) considera a moral
vale para todos, é moral julgá-lo sem privilégios como um conjunto de regras, e as histórias às
ou sem severidade sin gular. Os Direitos Hu ma- quais os sujeitos são submetidos tratam de
nos representam certamente a forma mais roubo (direito à propriedade), de mentira (di-
elaborada dos direitos morais ins pirados na reito à verdade), de justiça retributiva e distri-
máxima kantiana: devemos sempre tratar o butiva (direito a ser tratado a partir do ideal de
homem como um fim (é o seu direito) e nunca igualdade e eqüidade). Em relação a Kohlberg
como meio (o que iria de encontro ao im pe ra ti- (1981), basta lembrar que ele mesmo coloca a
vo ca tegórico mo ral). justiça como eixo de toda moral e que, se gun-
Isto posto, verifica-se que dos direitos do ele, esta não pode ser definida como um
morais decor rem deveres morais (mas a re cí pro- “saco de virtudes”. E Turiel, como vimos aci-
ca não é verdadeira, como veremos mais aba i- ma, define o domínio moral como referente à
xo). Trata-se de pura lógica: se é reconhecido a justiça e com regras que são julgadas como
alguém um direito, os outros têm o dever de universais pois correspondem a direitos de
respeitá-lo. Ora, entre as vir tudes, ape nas uma toda e qualquer pessoa. A voz destoante na
parece-nos corresponder ao binômio di re i- Psicologia (pelo menos a mais conhecida) é a
to/deveres: a justiça. Sendo imperativo que é de Carol Gilligan (1982, 1988) que, ao lado da
um direito de cada um ser tratado de forma jus- ética da justiça, propõe a existência de outra,
ta, é também imperativo que cada um aja de tão importante quanto, segundo ela: a do cui-
forma jus ta, ou que pelo menos procure pautar dado (care). Ora, a referida ética do cuidado re-
suas ações no ideal de justiça. Daí re sultar uma mete-nos a outra virtude: a da generosidade
moral de re gras (que podem ser inúmeras e (para maior análise das relações entre cuidado
sempre por ser criadas): os de veres tra du zem-se e generosidade, ver La Taille, 2000).
em re gras de conduta que podem ser for mu la-
das com razoável clareza. É claro que pode 7) Dificilmente alguém não julgará
haver conflitos en tre os próprios dire i tos e de- como moralmente ad mirável atos de ge ne ro-

114 Yves de La TAILLE. Para um estudo psicológico das virtudes morais


sidade. Todavia, por definição, o ato generoso que ninguém é obrigado por outrem ou pela
merece esse nome porque não corresponde a sociedade – pelo menos de direito – a ser ge-
um direito da pessoa contemplada. Fosse um neroso), a virtude correspondente pertencia
direito, não se trataria de generosidade, mas ao domínio pessoal; e que, por outro, em ra-
sim de justiça. Por exemplo, se ajudamos um zão de este ato beneficiar alguém, a ge ne ro si-
amigo em dificuldades fi nanceiras, não é por- dade também pertencia ao domínio moral. Tal
que é um direito de cada um receber a ajuda de resposta, com a qual concordamos, traz duas
outrem, mas sim porque achamos certo fa- decorrências teóricas importantes. Em pri me i-
zê-lo. 3 A pessoa generosa pode ser movida por ro lugar, torna complexa a de finição do do mí-
um sen timento de dever: para ela é obrigatório nio pessoal. De fato, nele costumam ser
conduzir-se com generosidade. Mas tal dever colocadas condutas anódinas, como escolher
não é derivado de um direito alheio, mas sim do a marca de pasta de dentes, arrumar ou não o
valor mo ral da virtude em questão. Vale dizer próprio quarto, ou escolher parceiros sen ti-
que a generosidade traduz um res peito pelo mentais. Ora, se ca bem tam bém nesse do mí-
próximo, mas este não é, no caso, um suje i to de nio, por dependerem de decisão totalmente
direitos. Mas, então, a generosidade é moral? individual, algumas condutas virtuosas, ele
Tomemos ou tra vir tude: a gratidão. O reco nhe- ganha uma nobreza social so bre a qual vale a
cimento es piritual de uma dívida é sem dúvida pena se debruçar. E isso nos leva à segunda
considerado como um bem pela mai o ria das decorrência teórica: se al gumas condutas,
pessoas, mas – assim como a generosidade, e embora pertencentes ao domínio pesso al,
mais claramente que esta – a ela não cor res- também pertencem ao domínio mo ral, não há
ponde nenhum direito (aliás, dizer que há um razão para que a Psicologia deva se limitar a
direito em receber a gratidão de outrem che ga- estudar apenas as condutas ex clusivamente
ria a aniquilar o valor dessa virtude: ou ela é es- pertencentes ao do mínio mo ral. Seria em po-
pontânea, ou ela não é). A gratidão é, por tan to, brecê-lo. E, por conseguinte, estamos au to ri-
moral? zados não só a estudar as virtu des altruístas
Alguém poderá responder aqui que todo (ou pró-sociais) como a generosidade e a gra-
e qualquer ato altruísta é moral. Assim, o respei- tidão, já ci tadas, como também a com paixão,
to moral re ceberia um de finição mais ampla, e a fidelidade, o amor, e outras mais. Em re su-
não vinculada apenas a direitos. Respeitar mo- mo, se, com Nucci, admitirmos que merecem
ralmente uma pessoa se ria traduzido por tra- o nome de moral não apenas as condutas de-
zer-lhe algo, seja algo que é um direito seu, seja terminadas por direitos alheios mas também
algo que lhe falta, seja ain da algo que lhe dê todas aquelas que be neficiam outrem, o cam-
prazer ou traga felicidade. Mas tal ampliação po da Psicologia Mo ral amplia-se e não há
apresenta dois tipos de problemas. mais razão para eleger a virtude justiça como
O primeiro: ao identificar altruísmo e a única digna de es tudo. Pode ser a mais im-
moral, os domínios pesso al e mo ral inter pe ne- portante, mas não a única.
tram-se. Aqui é a teoria de Turiel que está em
jogo. Tivemos a fe liz oportunidade de con ver-
sar recentemente4 com Larry Nucci, grande di- 3. Às vezes, mesmo neste caso, diz-se que é justo ajudar um amigo,
mas aqui a palavra justo significa certo e não remete, portanto, ao ideal
vulgador da Te oria dos Do mínios, e de lhe de justiça. Em francês, diz-se que uma idéia é justa quando
perguntar em que domínio ele colocava a vir tu- corresponde à realidade, prova da sinonímia possível entre justo e certo
de generosidade. E ele nos respondeu que, por ou correto.
4. Foi durante o III Congresso Brasileiro de Psicologia do
um lado, em razão de o ato generoso depender Desenvolvimento, que aconteceu na cidade de Niterói (RJ), no mês de
de uma decisão livre do suje i to (no senti do de julho de 2000.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.2, p.109-121, jul./dez. 2000 115
Vejamos agora o segundo problema que gras e deveres decorrentes de direitos) quan to
traz uma definição de moral que contém a exclusividade da de finição altruísta (que
exclusivamente condutas altruístas. Que a corresponderia mais ao domínio pessoal), so -
generosidade seja altruísta, não há dúvidas: mos, num primeiro mo mento, levados a ele ger
com ela, age-se exclusivamente por amor ao o conceito de relação social como orga ni za-
próximo, e o indivíduo generoso em nada se dor do que podemos chamar de moral. Assim,
beneficia materialmente de seu ato (pode ex pe- todas as virtudes que, por altruísmo ou por
rimentar prazer ou felicidade em ser generoso, contrato, dizem respeito ao outro são me re ce-
o que é diferente de uma retribuição so cial). doras de estudos psicológicos. É o caso, por
Mesma coisa pode-se di zer da gratidão e do exemplo, da justiça, da generosidade, da gra-
amor (colocado como virtude por Com- tidão, da fidelidade, da tolerância, da poli dez.
te-Sponville, 1995). Não há interesse em ser Todas elas são, segundo a ex pressão inglesa,
grato, amoroso ou generoso. E se houver, sig- other-regarding e, se algumas traduzem-se
nifica que não houve nem amor nem gratidão por regras, ou tras são tra duzidas apenas por
nem generosidade. Perguntemo-nos agora se a atitudes (é o complemento que quer fazer
justiça é ge nuinamente altruísta. A resposta é Tugendhat à ética moderna).
negativa pelo simples fato de o ato de justiça E as outras, como a humildade, a co ra-
beneficiar tanto quem é justo como quem é ob- gem, a prudência, o humor e a temperança?
jeto da justi ça. Por exemplo, se somos justos Numa de fi ni ção other-regarding da moral,
com um aluno, é claro que o benefício ime diato elas não têm lugar, a não ser vinculadas a re-
é dele. Porém, virtualmente, também nos be ne- lações sociais (por exemplo, ser corajoso para
ficiamos porque é de nosso interesse que a so- salvar uma pessoa). Não seriam, portanto, vir -
ciedade seja regida por regras justas. Dito de tudes mo rais em si, e deveriam ser deixadas de
outra forma, na justiça não é a particularidade lado pelo psicólogo interessado pela moral
de ou trem que está em jogo, não é o des pren di- humana.
mento (como no caso da generosidade), mas Todavia, se ria precipitação chegar a
sim a reciprocidade, vale di zer, o contrato. essa conclusão. To memos o exemplo do di le-
Assim, faz sentido alguém ao mesmo tempo ma de Heinz. Uma coi sa é ser colocado no pa-
sentir-se no de ver de ser justo e no direito de pel de juiz e avaliar se Heinz agiu bem ao
exigir que o tratem jus tamente. Não faz tanto roubar o remédio para sal var sua mulher.
sentido alguém sentir-se no de ver de ser ge ne- Concordamos com Kohlberg: a virtude jus ti-
roso ou grato ou, ao mesmo tempo, exigir que ça, nesse caso, domina a cena. Mas agora fa-
o tratem generosamente e com gratidão. Em çamos a per gunta que muita gente já se fez:
uma palavra, o fato de a justiça confe rir di re i- será que um sujeito, classificado como
tos retira-lhe o cará ter pu ramente altruísta. É pós-convencional na entrevista e que, por
melhor dizer que a justiça (e talvez a fi de li da de) conseguinte, apoiaria a decisão de Heinz por
pertence a uma definição contratual de moral considerá-la jus ta, agiria como Heinz?
(como o fez Piaget). Tal pergunta cos tuma ser feita para sus-
peitar da possível desvinculação entre juízo e
8) Se o que acabamos de analisar fi zer ação, notadamente em relação à chamada
sentido, temos uma primeira autorização teó ri- dupla mo ral. Mas nossa pergunta aqui é di fe-
ca para in cluir outras vir tudes, além da justiça, rente. Vamos imaginar alguém plena e ho nes-
no campo da Psi cologia Moral. E como pro ble- tamente convencido de que o moralmente
matizamos tanto a ex clusividade da de finição certo é roubar o re médio e que, em situação
contratual da moral (o domínio moral, com re- semelhante, não o faz porque tem medo.

116 Yves de La TAILLE. Para um estudo psicológico das virtudes morais


Medo do quê? Por exemplo, medo da polícia ao agir ético, elas não podem, sem mais nem
(em certos países, truculenta) ou medo de ficar menos, ser desprezadas pela Filosofia e Psi co-
preso. Nesse caso, deveras bem humano, é pre- logia Morais. E, em segundo lugar, queremos
ciso que nosso protagonista es teja não so men- dizer que elas podem trazer dimensões mo ra is
te convencido do caráter justo do roubo como próprias, nada desprezíveis. Pensemos no
tenha outra virtude, a coragem. É claro que, exemplo a seguir.
nesse exemplo, o valor moral da co ragem de- Uma pessoa X bate (gratuitamente) em
ve-se ao fato de esta virtude estar associada à outra pessoa Y. Os conceitos de jus tiça e
jus ti ça. Mas o que queremos frisar é que, sem tal bem-estar bastam para condenar X: como é
virtude, a justiça não se tornaria ato e, portan- um direito de Y ser tratado de for ma res pe i to-
to, não existiria: o medroso, abandonando o sa, é dever de X abster-se da violência. Em
plano de roubar o remédio e assim aban do nan- uma palavra, X age mal porque viola um di re i-
do a mu lher à morte, agiria de forma não justa, to de Y. Imaginemos agora que X seja um
e provavelmente sentiria culpa e vergonha. Em adulto e Y, uma criança. Este fato nada muda
suma, parece-nos que a coragem apresenta-se do ponto de vista dos direitos de Y e dos de ve-
às vezes como condição ne cessária da ação éti- res de X. No entanto, veremos em X, além de
ca e, por conseguinte, tem re levância moral. uma conduta injusta, uma con du ta covarde (o
Seríamos tentados a dizer que se não houvesse oposto da coragem). Será tal covardia ir re le-
pessoas corajosas, a ética humana seria outra, vante do ponto de vista mo ral? Não acre di ta-
ou, aliás, não seria. Com efeito, não raras são mos, como não acreditamos que as pessoas,
as vezes em que o agir mo ral leva a ris cos e é em geral, pen sem apenas nos direitos de Y.
provável que se não tivesse existido pessoas Mas este último diagnóstico é psicológico, o
como Martin Luter King, Gandhi, e outros cha- que nos leva a encetar a outra forma de de-
mados heróis da luta pela justi ça, a própria jus- fender um estudo das vir tudes mo rais: o lu gar
tiça seria um ideal ético en fraquecido. Mesma destas na explicação psicológica do fe nô me-
coisa pode ser dita da humildade. Sabe-se que no da moralidade.
existe cor relação entre a chamada “per so na li-
dade autoritária”, em geral intolerante e in jus- Virtudes e ética: explicação
ta, e traços de narcisismo. Ora, a humildade é psicológica
justamente a vir tude re ferente às tendências à
vaidade, ao or gulho, à honra etc. Se o termo 10) Mesmo que a Ética restrinja a de fi-
narcisismo é ori undo da clínica, pode-se di zer, nição de moral a um conjunto de regras de ri-
do ponto de vista moral, que a ausência da vadas de direitos e de veres, isto ainda não
virtude humildade não somente pode acarretar autoriza o psicólogo da moralidade hu mana a
sofrimentos para a própria pessoa como pode apenas debruçar-se so bre a virtude justi ça. Os
levar a ações imorais. Assim, pensamos que até argumentos colocados nos dois parágrafos
mesmo vir tudes auto-referenciadas (self- anteriores podem ser retomados aqui. Se é
regarding) devem ser contempladas pela Ética. verdade que virtudes como coragem e hu mil-
dade são, às vezes, condições ne cessárias ao
9) Mas alguém poderá aqui insistir e di zer agir com justiça, então o psicólogo não pode
que tanto a coragem como a humildade podem não ter o que dizer a res peito das carac te rís ti-
se re vestir de cará ter mo ral apenas se vincu la- cas de personalidade (caráter) que as de fi nem.
das à justiça ou à ge nerosidade. E o que que re- Tal nos parece ser um excelente motivo para
mos afirmar é, em primeiro lugar, que, se elas que a Psicologia Moral ces se de se li mitar a
aparecem às ve zes como condição necessária estudar como crianças e adultos julgam

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.2, p.109-121, jul./dez. 2000 117
direitos e deveres. Mais ainda, se tivermos ra- própria teo ria, a autonomia representa a vi tó-
zão em afirmar que um ato covarde de injus ti ça ria do princípio de jus tiça sobre a mera obe-
traz di mensões ou tras que a injustiça por si só, diência à autoridade. Vale di zer que podemos
e se também tivermos razão em afir mar que, levantar a hipótese de que, no caminho para a
para a maioria das pessoas, tais dimensões têm construção do ideal de jus tiça, a ge nerosidade
relevância mo ral, cabe ao psicólogo, não (e outras virtudes altruístas, que levam em
somente comprovar o fato, como melhor com- conta o ou tro na sua especificidade) de sem-
preender que lugar ocupam vir tudes como co- penha um papel. Na au tonomia (sobretudo
ragem e hu mildade no universo moral dos como definida por Kohlberg), a justiça pre ce-
indivíduos. Ora, quase nada sabemos sobre esse derá, do ponto de vista lógico (implicações), à
lugar, como sobre o lugar das outras virtu des, generosidade, mas esta talvez preceda à jus ti-
mesmo as altruístas como generosidade e gra ti- ça, moralmente falando, do ponto de vista
dão. Se gundo Flanagan: “Ignoramos, do ponto cronológico.
de vista psicológico, o que é uma virtude” Vamos pensar ou tro exemplo. Tu gend-
(1996, p.15). Pensamos que está na hora de hat, em suas Lições so bre ética discorda de
preencher esta lacuna. Piaget quando este baseia a moral he te rô no-
Uma outra maneira de defender a hipó te- ma sobre o respeito pela autoridade. Para ele,
se de que as virtudes devem compor o campo um dos pontos essenciais a se rem pensados
da Psi cologia Moral é pensarmos a par tir da na relação filhos/pais não é o fato de os se-
perspectiva genética. gundos terem autoridade so bre os primeiros,
mas sim a confiança que eles despertam. O
11) Reflitamos sobre a se guinte cita ção, moral sense, condição ne cessária ao pensar e
extraída do Le Jugement Moral de Piaget: “É agir morais segundo o filósofo, teria suas ra í -
quando a cri ança ha bitua-se a agir do ponto de zes na confiança que as crianças desen vol vem
vista dos próximos, e preocupa-se mais em em relação a seus progenitores e ou tras pes -
agradá-los do que a eles obedecer, que ela che- soas significativas. Nomeando o processo por
ga a julgar em função das intenções” (1932. meio das virtudes, teríamos o lugar im por tan-
p.105). Esta frase traz um ponto clássico da te da fidelidade: é porque os pais mostram-se
perspectiva pi agetiana: a passagem de uma fieis a seus fi lhos e às palavras que em pe nham
moral da obediência (nome que também de sig- em relação a eles que as crianças penetrariam
na a heteronomia) para outra, su perior, que no mundo da moral, não permanecendo no
leva em conta as intenções dos agentes, a mo - puro medo das sanções. É evidente que a fi de-
ral autônoma, na qual o realismo mo ral é su pe- lidade so frerá radicais mudanças de in ter pre-
rado. Mas a citação traz mais do que isso. Por tação no decorrer do desenvolvimento moral,
um lado, refere-se a uma explicação ca usal mas o fato é que, segundo a perspectiva de
para dar conta da evolução moral. Por outro, e Tugendhat, tal virtude encontrar-se-ia pre co-
é os que nos interessa aqui, nela está afirmado cemente na gênese da moralidade hu mana.
que o que explica a passagem da heteronomia Vamos a um último exemplo, agora reti-
para a autonomia não é tanto uma tomada de rado das pesquisas que já realizamos sobre as
consciência do outro como suje i to de dire i tos, virtudes morais segundo as crianças (La Taille e
mas antes a ten dência a considerá-lo na sua outros, 1998). Verificamos que as crianças me-
singularidade: é o que sugere o emprego do nores interpretam a boa-educação (polidez)
ver bo agradar (faire plai sir). Em uma palavra, como recobrindo praticamente todo o campo
Piaget nos fala mais, nesta citação, em ge ne ro- da moralidade, embora reconheçam que o cas-
sidade do que em justiça, embora, na sua tigo não se coloca para a ausência de polidez.

118 Yves de La TAILLE. Para um estudo psicológico das virtudes morais


Ou seja, para elas, ser bem-educado não é ape- Os três exemplos que demos nos ser vi-
nas empregar certas formas de polidez, mas ram para defender a se guinte tese: embora al-
também obedecer, ser justo, ser generoso, não gumas vir tudes pos sam ser descartadas do
ferir etc. Tal generalização, longe de ser apenas sistema axiológico (de finição do objeto, que
fruto de uma limitação cognitiva (não ter com- pode, como em Kohlberg, pri vilegiar uma, a
preendido corretamente o referido conceito), justiça), elas podem desempenhar uma papel
também aponta, cremos, para uma característica na construção da moralidade. Referindo-se a
do início da gênese da moralidade na infância. um sistema axiomático, o di reito, Piaget es -
De fato, a polidez pode ser pensada em dois do- creveu que
mínios (como definidos por Turiel). O primeiro é
o convencional: trata-se de pequenos atos ver- é, sem dú vi da, o de ver do axi o má ti co cor tar o
bais que costumam ser empregados para suavi- cor dão um bi li cal para dis so ci ar a cons tru ção
zar as relações entre as pessoas, e seu efeito não for mal de suas amar ras com o real, mas cabe
pressupõe a sinceridade de quem as usa (quem ao so ció lo go lem brar que este cor dão exis tiu e
fala desculpa não precisa estar ressentido para que seu pa pel foi fun da men tal à ali men ta ção
que o efeito de polidez seja sentido 5). Note-se do di re i to em bri o ná rio. (1965, p.66)
também que as formas de polidez podem mudar
de cultura para cultura, uma mais formais que Talvez as virtudes se jam fun damentais
outras. O segundo domínio é o moral: o em pre- para a alimentação da gê nese da moral na
go da polidez traduz uma deferência em relação criança.
a outrem, um respeito. De fato, não ser polido
pode, às vezes, ferir outrem, ser prova de desres- 12) A última forma de defendermos, do
peito, de intenção de humilhação. Isto posto, ponto de vista psicológico, a importância de
nossos dados mostram que, num primeiro mo- estudos so bre as virtudes para compreender o
mento, as crianças parecem fundir os dois domí- desenvolvimento moral, decorre da abor da-
nios. Por um lado, reconhecem que o gem que construímos e consignamos em nos-
mal-educado deve ser antes ensinado do que so tex to Vergonha, a fe rida moral (La Taille,
punido: a não-polidez não é, portanto, estrita- 2000). Vamos citar aqui as teses cen trais des te
mente moral. Por outro, seus exemplos cobrem trabalho:
praticamente todos os atos imorais: a polidez é, • abordamos a moral na sua relação com o
portanto, também considerada como moral, Eu, entendido como conjunto de repre sen-
fato que é confirmado com um outro dado. tações de si (identidade);
Quando perguntadas se podem prever quem co- • adotamos o critério da in tegração dos va lo-
meteu um delito (dano material intencional), sa- res morais ao Eu como explicação da força
bendo apenas que um dos dois suspeitos motivacional para o pensar e agir morais;
costuma ser mal-educado (apresentado como • adotamos o critério da presença de sen ti-
não empregando as pequenas frases de praxe), mentos morais para aquilatar o lugar da
respondem que sim: o autor do delito deve ser, moral na personalidade, en tendida como
com grande certeza, a criança não-polida. Em sistema;
resumo, somos levados a crer que a polidez ocu- • a tomada de consciência de si re pre sen ta ti-
pa uma lugar relevante no despertar da gênese va é contemporânea da consciência da pró-
da moralidade infantil. Como queria Com- pria perceptibilidade e as representações de
te-Sponville (1995), ela é a porta de entrada
para as demais virtudes, a menos importante de
todas, mas a primeira a ser descoberta. 5. Quem fala desculpa (des-culpa) não precisa estar sentindo culpa.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.2, p.109-121, jul./dez. 2000 119
si decorrentes de tal tomada de consciência Se definirmos mo ral como apenas atinente à
são sempre valorativas; virtude jus tiça, o au to-respeito será apenas
• a busca de representações de si positivas é a efetivado quando a pes soa realizar ações jus-
uma das motivações bá sicas das condutas tas ou se abster de atos injustos (no sentido
humanas; em que ferem di reitos hu manos alheios). Po-
• tais representações de si estão, na sua gê ne se rém, se aceitarmos considerar as virtudes ge-
e manutenção, vinculadas aos juízos alheios, nerosidade, gratidão, compaixão e outras
porém tal vínculo não implica sua total de- como morais, o auto-respeito poderá receber
pendência a esses juí zos: há um constante uma definição ampliada.
embate en tre as imagens que a pessoa tem de Dois novos cenários devem então ser
si e os juízos positivos e ne gativos de ou trem, pensados. Num, a pessoa coloca no núcleo
o julgar-se interage com o ser julgado; das re presentações de si vir tudes altruístas.
• sentimento de vergonha aparece como fun- Retomando a tese de Gilligan, algumas pes-
damental para a presente perspectiva teórica soas poderão se ver como essencialmente ge-
uma vez que, com a exceção da “vergonha de nerosas e, assim, cumprir a pauta de uma ética
exposição”: 1) implica num auto-juízo ne ga- do cuidado; e outras poderão se ver como
tivo doloroso (dor decorrente da incessante principalmente jus tas e agirem se gundo a éti-
busca de representações de si de valor posi ti- ca da justiça. Nou tro cenário, as co isas se
vo); 2) diz respeito ao “ser”, portanto às re- complicam do ponto de vista ético. Ima gi ne-
presentações de si; e, 3) embora ocorra em mos alguém cu jas representações de si in-
decorrência de alguma “falha”, real ou an te- cluem, em lugar pri vilegiado, a virtude
cipada, mo ral ou não, sua presença pode ser coragem, mas que tal virtude esteja associada
vista como sinal de valor por parte de quem o não à justiça soci al, mas sim à violência.
experimenta; Como previsto no quadro teórico colocado
• tal fato é sobretudo notado no âmbito da acima, tal pessoa senti rá vergonha se não
vergonha de corrente de uma falha mo ral (La conseguir concretizar a boa imagem que se
Taille, 2000, p. 70). associa à coragem e, sendo ela vista como for-
ça, virilidade e agressão, a presença dessa vir-
A re presentações de si, como exposto aci- tude dentro das representações de si terá o
ma, são sempre va lorativas. Ora, podem então efeito de afastar o indivíduo da moral. Raciocí-
acontecer vá ri os cenários. nio semelhante pode ser feito com a virtude fi-
Num deles, o indivíduo associa so bre tu do delidade: se tal virtude for entendida como
às re presentações que tem de si valores que não revestindo um valor absoluto, a pessoa poderá
são morais, como a bele za fí sica, a posse do di- até cometer atos injustos para se manter fiel a
nheiro, o status social etc. Quando tais va lores contratos passados com certas pessoas do gru-
constituem as representações de si, falamos em po. E poderíamos multiplicar os exemplos.
auto-estima. E falamos em auto-respeito jus ta- O que deve ser ressaltado a partir deste
mente quando tais valores são mora is. É um último cenário hipotético é que as virtudes (ou
possível se gundo cenário: o indivíduo se vê pelo menos algumas), dependendo da inter-
como essencialmente ético. Dito de outra for - pretação ética que a elas se dê e do lugar que,
ma, neste cenário ser “eu” e ser moral é equiva- enquanto valor, ocupam nas representações de
len te (daí a vergonha re trospectiva quando se si, podem se transformar em fatores complica-
comete algo que fere a ética e a vergonha pros- dores do pensar e agir morais. Ora, tal possibi-
pectiva quando se antecipa a pos sibilidade da lidade deve ser levada em conta, notadamente
transgressão – ver Harkot-de-La-Taille, 1999). na educação. Será que algumas crianças (e

120 Yves de La TAILLE. Para um estudo psicológico das virtudes morais


também adultos), embora saibam que o que fa- moralidade, as virtudes podem ser fortes ali a-
zem fere a ética, ainda assim o fazem por que, das (como visto em 10 e 11), mas também po-
aos próprios olhos e aos olhos do grupo, é uma dem ser fortes adversárias. Eis uma razão a
prova de coragem ou fidelidade? Na gênese da mais para nos debruçarmos sobre elas.

Referências bibliográficas

ADLER, A. Le tem pé ra ment ner ve ux. Pa ris: Pa yot, 1912/1992.

ADORNO, T.W. La per so na li dad au to ri tá ria. Bu e nos Ai res: Pro yec ción, 1950.

ARISTOTE. Éthi que de Ni co ma que. Pa ris: Fla ma ri on, 1965.

COMTE-SPONVILLE, A. Pe tit tra i té des gran des vertus. Pa ris: PUF, 1995.

FLANAGAN, O. Psycho lo gie mo ra le et ét hi que. Pa ris: PUF, 1996.

GILLIGAN. C. Uma voz dife ren te. Rio de Ja ne i ro: Rosa dos Ven tos, 1982.

GILLIGAN. C. Re ma ping the mo ral do ma in: new ima ges of self and re la ti ons hip. In: ________ (Org.). The mo ral do ma in,
Ha vard: Uni ver sity Press, 1988.

HARKOT-DE-LA-TAILLE, E. Ensa io se mió ti co so bre a ver go nha. São Pa u lo: Hu ma ni tas, 1999.

KANT, E. Mé taph ysi que des mo e urs, de u xiè me par tie: doc tri ne des ver tus. Pa ris: Vrin, 1985 [1797].

KOHLBERG, L. Essays on mo ral de ve lop ment. S. Fran cis co: Har per & Row, 1981.

LA TAILLE, Y. de. Ver go nha, a fe ri da mo ral. São Pa u lo; 2000. Tese (Li vre-Docência) – Insti tu to de Psi co lo gia da USP.

LA TAILLE, Y. MICELLI, A., DOMINGUES, C., KRAVOSAC, D., JAMRA, F., FIORINI, F., BRONSTEIN, M., NETO, S. As vir tu des
mo ra is se gun do as cri an ças 1. São Pa u lo: Insti tu to de Psi co lo gia USP (Re la tó rio Cien tí fi co FAPESP), 1998.

PERRON, R. Les re pré sen ta ti ons de soi. Toulou se: Privat. 1991.

PIAGET, J. Le ju ge ment mo ral chez l’enfant. Pa ris, PUF: 1932/1992.

________. Études so ci o lo gi ques. Pa ris: Droz, 1965.

SENNETT, R. A cor ro são do ca rá ter. Rio de Ja ne i ro: Re cord, 1999.

TAYLOR, C. Les sour ces du moi. Pa ris: Se u il, 1998.

TUGENDHAT. E. Li ções so bre éti ca. Rio de Ja ne i ro: Vo zes, 1993.

TURIEL, E. The de ve lop ment of so ci al know led ge: mo ra lity and con ven ti on. Cam brid ge: Cam brid ge Univer sity Press, 1993.

Re ce bi do em 16.04.01
Apro va do em 07.06.01

Yves de La Taille é livre-docente junto ao Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da


Personalidade do Instituto de Psicologia da USP. Autor de várias obras, dentre elas Limites: três dimensões educacionais (Ática).

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.26, n.2, p.109-121, jul./dez. 2000 121

Você também pode gostar