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Restrição Jurídica da Linguagem - Direito da Cultura

Restrição Jurídica da
Linguagem

Disciplina: Direito da Cultura

Ano Lectivo: 2010/2011, 1º Semestre

Docente: Professor Doutor Vasco Pereira da Silva

Realizado por: João Gabriel, aluno n.º 140108039, turma 3

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Restrição Jurídica da Linguagem - Direito da Cultura

Índice
Direito, Cultura e Linguagem...............................................................................................................3
1. Linguagem e Cultura........................................................................................................................5
1.1. Cultura como Linguagem.........................................................................................................5
1.2. A Necessidade de uma Realidade.............................................................................................6
1.3. Linguagem como Bem Cultural................................................................................................6
1.4. O que é a Linguagem................................................................................................................7
2. Direito e Linguagem.........................................................................................................................9
2.1. O Direito como Linguagem......................................................................................................9
2.2. A Definição da Indefinição.......................................................................................................9
2.3. Direito à Linguagem...............................................................................................................11
2.3.1. Protecção Objectiva........................................................................................................11
2.3.2. Protecção Subjectiva.......................................................................................................12
2.3.2.1. Como Direito Fundamental e Direito Subjectio Público.........................................12
2.4. Conteúdos do Direito..............................................................................................................13
2.4.1. Descrição.........................................................................................................................13
2.4.1.1...................................................................................................................................14
3. Restrição Jurídica da Linguagem...................................................................................................14
3.1. A Definição.............................................................................................................................15
3.2. A Preterição e a Protecção......................................................................................................17
3.3. A Aplicação............................................................................................................................17
Conclusão...........................................................................................................................................19
Bibliografia:........................................................................................................................................20

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Direito, Cultura e Linguagem


“in principio erat Verbum” João 1:1-3.

Heródoto, no segundo volume da sua obra histórica, afirma que o Faraó Psamético I
experimentou deixar dois recém nascidos sem quaisquer influências linguísticas, vivendo
longe das pessoas e sendo alimentados em silêncio. Sem influências exteriores, a sua
primeira palavra seria numa língua natural, decorrente da humanidade e “geneticamente”
comum a todos os seres humanos. Conta a lenda que a primeira palavra foi “bekos”, que
em Frígio significa pão. Embora existam diversos mitos sobre a origem da Linguagem,
todos a afirmam como uma dádiva exterior ao Homem que depois, por sua culpa, se
dividiu.1

O mito de uma Linguagem comum afirma a sua inerência à noção de humanidade e à


própria noção de Homem, como distinto dos animais a quem ele deu um nome. A história
da Linguagem, o seu nascimento e a sua queda, estão assim ligados intimamente ao
percurso do Homem, da sua própria origem e da sua Queda.

A Cultura e a Linguagem são ambas meios, fontes e produtos transversais à realidade


experimental, e, como tal, não podem ser ignorados num sistema normativo de um Estado
de Direito.

A sociedade, como conjunto de indivíduos particulares dotados de Liberdade, é um


veículo de exponenciação do desenvolvimento, como tal, tem no seu cerne as causas e
consequências dos seus percursos. Estas causas e consequências estão intimamente
relacionadas com a Cultura e com a Linguagem e o com o modo como o Direito lida com
estas realidades.

Este trabalho apresenta-se como descritivo das bases que motivam uma limitação
normativa à anarquia linguística sem que se entre numa instrumentalização política da
Linguagem, de forma a permitir a comunicação, a busca de um Eu fora do egoísmo, ou
seja, da vida. Não apenas uma vida em sociedade, mas da própria vida, na acepção
ampla do termo, aquela acepção de onde decorre todo o Direito e toda a Linguagem.

1 Cf. David Cristal; How Language Works, London 2005

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1. Linguagem e Cultura
Abordaremos neste ponto as várias relações entre Linguagem e Cultura e as suas
definições.

1.1. Cultura como Linguagem


“Anyway, many of these Hungarians went into tobacconist's shops to buy cigarettes....(...)
Hungarian: My hovercraft (pantomimes puffing a cigarette)...is full of eels.”
Monty Phyton, The Hungarian Phrasebook sketch, 1ª série Flying Circus, episódio 25.

As diferenças Culturais podem levar um Húngaro a afirmar que o seu veículo está cheio
de enguias ao pedir cigarros em Inglaterra , quando o livro de tradução tem gralhas, mas
isto só é possível porque existem duas Culturas e duas linguagens diferentes.

Uma Cultura tem uma Linguagem própria, necessária à comunicação entre os


elementos que a compõem, uma Linguagem passada de pais para filhos, ensinada nas
escolas, utilizada no dia a dia, que define a própria sociedade e é elemento da sua
Cultura, tida na acepção abrangente do conceito, como produto humano que agrupa
elementos de acordo com a tradição, inovação e pluralismo.

Esta Linguagem, independentemente da sua origem, permite a própria sociedade, pois


torna-se um elemento comum que aglutina os elementos dispersos, tornando-se
fundamental para o sentimento de unidade necessário à formação de um Estado, próprio
da sua identidade como marca distintiva.

Se entendemos necessário definir a Cultura como um conceito aberto e operativo,


independentemente da concepção adoptada, temos de considerar a Linguagem como
abrangida no conceito de Cultura, não meramente como Direito espiritual, mas como
própria Liberdade política, essencial às belas-artes e belas-letras. Sem uma componente
linguística seria impossível a criação de Cultura por impossibilidade empírica de difusão.

A Linguagem permite a comunicação, e, ao permiti-la, funde-se com a Cultura. A Cultura


tem uma Linguagem que lhe é própria e, como veremos, a própria Cultura não será mais
do que Linguagem.

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1.2. A Necessidade de uma Realidade


"Reality, in fact, is usually something you could not have guessed.” Lewis, C.S. ; The Case
for Christianity

Caso os indivíduos partilhassem da mesma mente, no mesmo espaço, deixavam de ser


indivíduos pois não conseguiriam distinguir as suas acções e os seus pensamentos das
acções e pensamentos do sujeito contíguo. 2

Esta situação torna-se mais clara se imaginarmos um mundo incorpóreo onde apenas
existiriam nuvens, representado ideias. Não havendo noção de espaço físico seria
impossível delimitar que ideias pertenciam a que sujeito ou de onde cada nuvem tinha
aparecido, criando apenas uma tempestade impessoal.

Imaginando o oposto, observamos que a presença de dois indivíduos numa realidade


meramente existencial, sem qualquer meio de comunicação, mesmo que se
conseguissem distinguir, não formariam um conjunto mas dois indivíduos.

É portanto necessária uma realidade física de separação para a própria existência,


contudo é também necessário um meio para que os elementos não permaneçam
separados e possam formar uma unidade.

Esta noção de necessidade de uma realidade e de uma meio é indispensável às


concepções de Linguagem e Cultura. Sem uma realidade física nenhuma das duas seria
possível.

Contudo, a própria Linguagem é também uma realidade comum que permite a


comunicação, como um espaço branco que distingue dois sujeitos mas que ambos podem
preencher para poderem criar algo novo.

Assim, sem uma realidade comum (a Linguagem) a Cultura seria impossível.

2 Cf. ideia em G.K. Chesterton; O Homem Eterno; Lisboa, 2009

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1.3. Linguagem como Bem Cultural


“Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!... “
Espanca, Florbela; “Cegueira Bendita” in “A Floresta das Violetas”

A Linguagem pode ainda ser vista de uma outra perspectiva. A Linguagem pode ser um
objecto com um valor em si mesmo. Como Florbela Espanca afirma, o Poeta tem em si a
luz de todo o mundo, que radia dos seus poemas. Estes Poemas são Linguagem viva, tal
como as falas de uma peça ou as histórias contadas pelos avós.

A Linguagem não é afinal só meio, mas também um produto. O meio acaba por ser um
fim em si mesmo, como uma estrada cujo objectivo é percorrer. A produção de oralidade,
de comunicação, é Linguagem, e como tal, um bem Cultural. A Linguagem, capaz de
alterar a realidade, de transformar a história, de criar e de ser criada, é uma ideia em si
mesma que possui beleza e identidade pelo simples facto de existir, sendo por essa razão
um bem.

Já observamos que a Linguagem não é um bem meramente de criação espiritual,


porque cria uma realidade, por esta razão classificamo-la como bem Cultural, pois é
produto em constante mudança, de uma Cultura também em evolução.

1.4. O que é a Linguagem

Normalmente este ponto de definição seria o primeiro a abordar num trabalho como
este, ao lado da definição que demos e Cultura.

Contudo é necessário partir das realidades dos pontos anteriores para podermos definir
Linguagem.

Embora possamos ainda utilizar alguns conceitos para delimitar o conceito de Cultura,
não os podemos utilizar para definir Linguagem, pois, como já indicamos, trata-se de uma

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realidade em constante evolução, que só se poderia definir com recurso à própria


Linguagem, que, como sabemos, é limitada e não consegue abranger toda a realidade.
Qualquer definição de Linguagem seria uma limitação que descaracteriza a realidade.

Temos portanto de partir de conceitos abertos e abrangentes, de forma a podermos lidar


com esta realidade indefinível por definição.

Já chegamos à conclusão de que a Linguagem está em constante atrito entre o que


deve ser limitado e o que deve existir, numa relação entre palavra e significado, entre
regra e Liberdade.

Achamos portanto necessário adoptar uma visão operativa que não procure definir mas
explicitar. Entendemos a Linguagem como um jogo em que os participantes criam
realidades subjectivas e objectivas, sendo contudo necessárias regras para que o jogo se
possa desenvolver.3

A Linguagem tem de ser entendida como verdadeira Liberdade atingida pela


observância de regras. A própria realidade impõe as regras, decorrentes da natureza da
Liberdade, não como moralismos mas como situações fácticas para alcançar um
objectivo.

3 Adoptamos a posição de Marina Yaguello; Alice no Páis da Linguagem, Lisboa, estampa., 1991, pág.
121

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2. Direito e Linguagem
“You might just as well say,' added the March Hare, 'that "I like what I get" is the same
thing as "I get what I like"!'
'You might just as well say,' added the Dormouse, who seemed to be talking in his sleep,
'that "I breathe when I sleep" is the same thing as "I sleep when I breathe"!” Caroll, Lewis;
Alice in Wonderland, The millenium fulcrum edition

Neste ponto analisaremos as relações pertinentes entre Direito e Linguagem.

2.1. O Direito como Linguagem


Diversos autores afirmam que o Direito é uma produção Cultural 4. Como temos visto, as
relações existentes entre Cultura e Linguagem são de tal forma intrínsecas que podemos
afirmar que o Direito também é produto da Linguagem, pelo menos indirectamente.
Contudo temos de profundar melhor esta relação. A Linguagem permite, como vimos, a
comunicação e, o Direito, como sistema de ordem criado para a protecção de bens
jurídicos fundamentais para a vida colectiva, tem na sua base a relação inter-humana
permitida pela Linguagem.

O Direito procura a Justiça, mas a própria definição de Justiça é um fenómeno Cultural e


linguístico. Mesmo essa busca de justiça se processa no degladiar de conceitos definidos
pela Linguagem e normas expressas numa determinada Linguagem, específica dos fins
que pretende atingir.

As próprias normas, porque dirigidas e comunicáveis, dependem da Linguagem para a


sua entrada em vigor.5 A Comunicação das normas, é, no seu cerne, Linguagem, porque
jogo entre liberdade e permissão..

2.2. A Definição da Indefinição


O Direito como Kant afirma é “Augafel Gottes auf Erden”, ou seja, os olhos de Deus na

4 Por exemplo, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Lisboa, 2001, pág. 171
5 Arte 119 da Constituição da República Portuguesa, 1976

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terra, que tem como objectivo garantir a justiça na co-existência. 6 Desta forma, nunca o
Direito poderia cegar-se perante a realidade da Linguagem.

Vários aspectos se levantam na regulação da Linguagem pelo Direito e várias


perspectivas podem ser um ponto de partida levando a conclusões diferentes.

No seguimento do capítulo anterior vamos tomar neste ponto a Linguagem como uma
realidade Jurídica, ou seja, que deveria ser definida pelo Direito ou pelo menos
conceptualizável pelo mesmo.

Wittgenstein define a Filosofia como conjunto de contusões que o intelecto acumulou ao


chocar-se contra os limites da língua. 7 Mesmo Wittgenstein, que afirmava conhecer a
língua porque conhecia a filosofia, via-se limitado pela Linguagem num choque contra um
vazio inexplicável, tentando criar novas palavras para exprimir as suas ideias. Vemos
neste exemplo a limitação da Filosofia pela Linguagem, mas também no Direito está
presente a mesma limitação, como uma relevância ainda mais desesperante.

O Direito não possui conceitos suficientemente amplos para abarcar a realidade


linguística porque esta não lhos confere. No combate entre o Ser e o Dever Ser, do
normativo e do fáctico, a Linguagem transforma o caos das ideias em bruto em Poder Ser.
Há assim uma relação entre as palavras e aquilo que significam, uma relação entre
significado (ideia) e significante (palavra).

O Direito tem o poder coactivo de tentar regular o significante directamente, mas não o
significado. O Direito pode, e já o tem feito, transformar o significante, de forma a moldar o
próprio significado. Através do significante (palavra-dever ser) também o significado (ideia
ser) pode ser transformado indirectamente ou pelo menos influenciado.

Pela definição de Linguagem, o Direito nunca conseguiria descrever completamente


através de conceitos (significante) uma realidade (significado), portanto qualquer definição
seria uma intrusão do Direito, limitadora de uma realidade que teria como consequência
uma intrusão profunda na própria realidade, com consequências limitadoras da mais
profunda liberdade, a liberdade do próprio Ser, do significado.

O Direito não pode ser cego à definição de Linguagem, mas também não a pode tratar
como um conceito jurídico como os demais. É possível contudo alguma regulação do

6 CP. Francesco D'Agostino, Justiça, Lisboa 2009, pág. 13


7 Cf. Vilem Fusser, Língua e Realidade, São Paulo, 1963, pág. 31 e ss.

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Dever Ser sem definir o Ser, como iremos abordar nos pontos seguintes, sendo a mesma
necessária devido à sua importância na co-relação.

2.3. Direito à Linguagem


A Linguagem, embora não possa ser conceptualizada pela ordem normativa, as suas
manifestações concretas e elementos fundamentais podem ser protegidos nos termos
que a seguir iremos desenvolver.

Tomamos de seguida alguns Bens Jurídicos merecedores de protecção. Este Bens


Jurídicos são manifestações positivas da Linguagem, ou seja, meios e produtos que dela
derivam. O mais importante e de que trataremos com maior extensão é o Direito à Língua.
O Direito à Língua, previsto na Constituição da República Portuguesa nos artigos 9º,11º e
74º é assim assumido como essencial ao Estado de Direito em que vivemos, fundamental
em duas vertentes: da sociedade que compomos e da dignidade das pessoas que a
criam, componente da Cultura a que pertencemos.

2.3.1. Protecção Objectiva


Tal como o Direito à Cultura,o Direito à Língua tem uma protecção objectiva, ou seja
como princípio Jurídico estrutura da sociedade, tendo um conteúdo programático e, nesta
vertente, embora não seja fundamento de um “status activus processualis” permite uma
reacção do particular, membro da sociedade, contra uma agressão ao mínimo de
subsistência. Por exemplo no âmbito da alínea f do art. 9º, a C.R.P., o Estado deve
promover a Língua Portuguesa. Esta norma, por si, não garante uma protecção
subjectiva, mas não desfigurada de protecção de um Direito Fundamental porque garante
a protecção contra acções que contrariem a programaticidade da norma. No caso de, por
qualquer acção do Estado, este promover a Língua Inglesa em detrimento da Língua
Portuguesa, a realidade estrutural da sociedade que é a língua de um povo
constitucionalmente garantida é ameaçada, sendo essa acção considerada nula por
inconstitucionalidade.

Existe portanto uma protecção objectiva da Língua Portuguesa contra agressões


porque é uma realidade estrutural da sociedade. Existem ainda mais duas realidades
protegidas objectivamente, para além desta norma de competência negativa, são elas: a

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necessidade de conformação e interpretação de todas as norma jurídicas, devido à


característica irradiante da Constituição e os princípios de natureza prospectiva a realizar
na medida do possível

A Língua é assim considerada como elemento fundamental de um Povo, constituinte da


sua própria identidade e funcionalmente motivadora da sua independência e Cultura
próprias. Não é por acaso que no art.º 9º estão reguladas conjuntamente a independência
nacional e a protecção da Língua.

2.3.2. Protecção Subjectiva


O Direito à Língua, e portanto à Linguagem, também tem uma dimensão subjectiva,
porque inerente à própria Cultura de que participam os indivíduos e à sua Liberdade e
Dignidade.

Já observámos que o Direito à Língua é um Direito Fundamental relacionado com o


Direito à Cultura, estamos portanto perante um Direito com uma dupla protecção, quer
objectiva quer subjectiva.

Contudo nos termos de protecção subjectiva do Direito à Língua 8, temos também uma
dupla protecção, quer como Direito Fundamental quer como Direito Subjectivo Público,
configurando a faculdade de cada um, pelo uso da sua Liberdade, de criar, utilizar e jogar
com a Linguagem que é inerente à dignidade da sua pessoa.

2.3.2.1. Como Direito Fundamental e Direito Subjectivo Público

Como Bem Jurídico cujo aproveitamento é digno de protecção, esta protecção confere
ao particular um Direito, pois quando se impõe um dever (de não agressão por exemplo),
confere-se um Direito à outra parte (o Direito a não ser agredido).

Desta forma, o Direito à língua está presente quer através do Direito à Cultura, quer
através da Protecção Constitucional.

Para maior desenvolvimento sobre este ponto, remetemos para o desenvolvimento que
o Professor Vasco Pereira da Silva refere no seu livro “A Cultura a que tenho Direito”

8 Adoptamos a expressão Direito à Língua em todo este ponto porque conforme com a expressão
consagrada constitucionalmente, contudo, quando falamos em Direito à Língua falamos de Direito à
Linguagem.

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(pág. 113 e ss.), uma vez que a protecção do Direito à Língua não apresenta quaisquer
diferenças com a protecção conferida ao Direito à Cultura, não sendo fim deste trabalho
uma descrição exaustiva da protecção conferida à Língua mas sim os limites à sua
restrição, não simples agressão.

Concluindo, o Direito à Língua, protegido constitucionalmentee na constituição formal


pelos artigos 9º, 11ºe 75º da Constituição, indirectamente pelos artigos que protegem o
Direito à Cultura e ainda pela Constituição Material que não pode ignorar a Língua
Portuguesa como fundamental à subsistência da sociedade e da independência e
sentimento constitucional de agora. Podemos mesmo afirmar que qualquer atentado
contra o Direito à Língua consubstanciar uma mudança de paradigma Constitucional,
trazendo em sim uma nova Constituição Material, mesmo que se tratasse de uma
transição pacifica.

Constitucionalmente o Direito à Língua está protegido contra agressões Estatais e


Particulares. Contudo, a vastidão da definição do Direito à Língua confere apenas uma
protecção específica em relação à língua e não à Linguagem.

2.4. Conteúdos do Direito


Observámos que o Direito à Língua está constitucionalmente garantido, contudo, cabe-
nos agora descrever o seu conteúdo.

2.4.1. Descrição
Ao Direito à Linguagem, quer na protecção objectiva quer subjectiva, quer seja como
Direito Fundamental ou Direito Subjectivo Público, correspondem determinadas
faculdades quer à sociedade que ao Particular, e embora já tenham sido enunciadas
previamente, cabe agora descrever os pontos específicos de actuação do Direito na
Linguagem, que é, como Direito fundamental, protegido nas três categorias (ou gerações)
de Direitos fundamentais.

O Direito à Língua confere direitos de defesa, de prestação e de participação dos


Particulares.

Falamos de um direito de defesa porque é conferido aos particulares um direito de se

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defenderem contra o Estado - Administração e o Estado - Legislador quando estes


actuarem de forma a prejudicar o seu Direito à Lingua(seja uma acção seja uma omissão
a que se encontravam obrigados).

Falamos de direito a prestação porque o Direito à Língua confere ao particular o direito


de exigir do Estado uma prestação que vise a protecção e a difusão da sua língua (nunca
a restrição da mesma), como por exemplo o direito de lhe ser ensinada correctamente a
Língua.

Falamos de direito de participação porque o particular vê defendida a sua posição


jurídica e a democraticidade da Sociedade porque, não só pela Constituição Formal mas
também pela Constituição Material, que o torna elemento activo da sociedade e
participante na evolução da sua Língua, qualquer impedimento, quer por parte de uma
Entidade Pública, quer de uma Entidade Privada, seria violador da dignidade da pessoa
humana. Nem mesmo o Direito Penal visa restringir este Direito de Participação na
formação da Linguagem.

2.4.1.1. A Impossibilidade da Positividade

É contudo inconcebível que o Direito à Linguagem consubstancie justificação para a


actuação do Estado no sentido de definir a Linguagem. Pode como vimos, protegê-la, e,
caso o interesse público o requeira (como no caso da formação da sociedade) preterir a
promoção de uma Linguagem em relação a outra.

Contudo seria violador da dignidade da pessoa humana que o Estado definisse a


Linguagem de forma a limitar o seu uso por parte do Particular. Esta definição pode ser
efectivada de várias formas, como a proibição não conforme com o interesse público, de
expressão numa língua, até à definição de conceitos extra-jurídicos de forma a, através
do significante desejar alterar o significado como forma de modificar a sociedade,
dobrando a Linguagem como instrumento para a propagação da sua ideologia,
positivando conceitos que não seriam positiváveis e transformando realidade pela
positivização dos seus conceitos, da sua delimitação e do seu uso.

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3. Restrição Jurídica da Linguagem


“Tendo visto com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam, a si próprios e
aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da
minha lucidez.” Bernardo Soares; O Livro Do Desassossego

Entramos no ponto mais específico do trabalho, em que, através dos instrumentos


analisados, tentaremos configurar alguns limites de actuação jurídica em relação à
Linguagem.

3.1. A Definição
Já observamos que a definição do que é Linguagem é restrição à própria realidade da
Linguagem, não podendo por isso ser definida. São contudo aceites algumas regras para
que a sua utilização não seja o caos das ideias, o pensamento, o ser, mas um dever ser,
a palavra, que no conjunto da frase que respeite as regras sintácticas, morfológicas e
gramaticais, transporte o sentido que lhe é conferido.

Rejeitamos assim a definição do que é Linguagem por conceitos positivados porque


violadores da própria dignidade da pessoa humana.

Inerente à definição é à criação. A Palavra que se Torna Verbo, que referíamos no inicio
do trabalho. Se imaginarmos que um ente abstracto pode criar independentemente
Linguagem, estamos a conferir-lhe o poder sobre todas as coisas.

A criação de Linguagem parece uma realidade saída de livros de ficção científica, pois
nunca, aparentemente e no limite do nosso conhecimento, qualquer Estado criou de raiz,
unilateralmente uma Linguagem. Apenas podemos observar o exemplo de George Orwell
em 1984, no qual o Estado, o “Big Brother”, portador de uma ideologia, impôs, através de
um governo autoritário,uma Linguagem por ele criado, na qual aos significantes
correspondiam determinados significados, às palavras, apenas determinados sentidos
previamente definidos. Chamou a esta Linguagem “Newspeak” e foi imposta primeiro à
Administração Pública e depois a toda a sociedade. O “Newspeak” foi assim um
instrumento de formação ideológica da sociedade.

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Embora seja um exemplo de ficção científica, temos alguns exemplos de criação


legislativa de conceitos de forma a impor uma ideologia.

Por exemplo, em 1980, a Sra. Deputada Zita Seabra, 9 na discussão parlamentar sobre o
Aborto introduziu o termo Interrupção Voluntária da Gravidez, para designar o acto de
abortar. Este termo foi acolhido nos dois referendos e na legislação posterior. Quando,
devido a várias circunstâncias, Zita Seabra mudou de bancada parlamentar, afirmou que
a criação desta expressão e da consequente sigla IVG, era destinada a alterar a
conotação do acto dado pelo verbo abortar, de forma a tornar o mesmo socialmente mais
aceitável. Transformou-se assim o significado através do significante, alterando a palavra
que descrevia a mesma realidade.

Também a ideologia levou à imposição de outros termos noutras línguas, embora estes
tenham sido acolhidos pela legislação num processo de evolução linguística, ou mesmo
quando impostos foram justificados pela colisão dos mesmos como Direitos superiores.

Em Inglaterra, devido à imposição do princípio da igualdade, deixou de se designar o


cargo de “Chairman”, director, por referência a uma designação sexista que considerava
“man” como referência masculina, descriminando as “Chairman” do sexo feminino. Neste
caso a própriaa evolução da sociedade, de forma a que as mulheres passaram a ocupar
este cargo, levou à imposição do termo “chairperson”,destronandoo a tradição linguística
em prol da igualdade. Da mesma forma se tornou discriminatório chamar a um
trabalhador dos correios “Postman”, devido à referência sexista “man”, para “Postworker”,
protegendo a discriminação pelo princípio da Igualdade em detrimento da tradição.

Um outro exemplo verifica-se na Alemanha, onde deixou de existir a distinção entre


“Frau” e “Frauline”, (entre senhora Casada e senhora Solteira), no tratamento público
formal, devido a uma evolução da igualdade entre as duas situações e um alargamento
da definição de casamento que altera a sua própria génese, destronando-o de realidade
nominável. Neste caso verifica-se a alteração da Linguagem pela imposição de uma
ideologia que operou no próprio significante, transformando consequentemente o
significado.

Estas alterações Culturais não podem ser impostas pela Linguagem uma vez que se

9 Embora se refira a um período não abrangido ainda pelas memórias da ex-deputada, este é um caso
verificável em vários depoimentos públicos,nomeadamente numa conferência que teve lugar a 21 de
Março de 2009 na FCEE da Universidade Católica de Lisboa.

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tornam um instrumento nas mãos do Estando, podendo ser por esta uma via pela qual
Estado imponha a sua Cultura, sendo totalitária, desrespeitando o princípio do Estado
Democrático e a própria Dignidade da Pessoa Humana.

Concluindo, não efectuando juízos de valor pelas alterações acima descritas, podemos
contudo observar que a Linguagem não pode ser imposta pelo Estado, quer seja pela sua
definição quer pela sua criação, pois violaria um Direito Fundamental e a própria
Constituição, trazendo, como já afirmamos, um novo sentimento constitucional, revisor da
sociedade vinculada pela mesma.

3.2. A Preterição e a Protecção


Podemos contudo observar alguma actuação legítima o Direito sobre a Linguagem.

Quando definimos o Direito à Língua falamos de prestações do Estado. É neste sentido,


de uma norma de protecção que confere Direitos aos Particulares e que é protegida
objectivamente, que Estado pode actuar para a protecção da Língua.

O Estado torna-se assim garante da Liberdade dos cidadãos, podendo proteger uma
Língua, tornando-a oficial ou reconhecendo-a como dialecto, de forma a poder ser
estudada e ter um valor jurídico.

Como exemplos desta protecção temos a classificação da Língua Portuguesa como


Língua oficial e o reconhecimento do Mirandês como dialecto.

Em ambos os casos deu-se uma definição linguística por via legislativa (a primeira por
lei constitucional, a segunda por via meramente legal), contudo, em vez de criar conceitos
ex-novo, reconheceu uma realidade pré-existente à conceptualização, não a cristalizando
e permitindo a sua actualização.

Nos termos proteccionistas o Direito pode assim reconhecer Direitos aos sujeitos a
quem aproveitam estas línguas, contudo, há um lado negativo nesta protecção. Temos de
analisar concretamente as razões de interesse público que justificam estas acções,
porque por detrás destas pode ainda estar uma visão ideológica do Estado.

Pela protecção de uma Língua pretere-se uma outra. No caso do Mirandês preteriu-se o
Guardamilês. Longe de querermos distinguir o que é um dialecto, afirmamos apenas que
mesmo a protecção de uma Língua não é absolutamente discricionária mas que também

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necessita de ser justificada pelo interesse público e ser proporcional aos fins que visa.

3.3. A Aplicação
O Estado pode impor uma Linguagem pode até fazê-lo subrepticiamente, pode querer
alterar o significado pelo significante, pode ainda alterar discricionariamente as regras
gramaticais de forma a reduzir a possibilidade de significados e a polissemia das palras
(como parece acontecer no acordo ortográfico).

Contudo não podemos desligar a Linguagem de quem a profere. A aplicabilidade da lei


não define a sua vinculatividade, uma vez que no plano da Linguagem como da Cultura,
existe uma resiliência, uma caixa – forte no seio da Ser Humano, a sua auto –
determinação e a sua capacidade de expressar autonomamente as suas ideias.

É neste plano que, embora algumas vezes possamos observar uma ilicitude na
intervenção do Direito na restrição da Linguagem e na mudança Cultural, estes muitas
vezes não se verificam factualmente, pois o homem é composto de desejos de Justiça, de
Bem e de Beleza, que o Estado, mesmo que totalitário, não consegue apagar nem
satisfazer por si.

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Conclusão
«Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida
nenhum sonho, e faltam a esse também.» Bernardo Soares, O Livro do Desassossego, p.
163

Começamos este trabalho movidos pelo desejo de conhecer um pouco melhor as


limitações do Direito face à Liberdade e à sua expressão criativa, a Cultura. Deparámo-
nos com uma realidade indefinível, a Linguagem que é transversal a toda a realidade e
que apresenta uma relação especial com a Cultura.

Nos meandros na Filosofia do Direito e do sentido próprio de Estado, resguardados na


Dignidade da Pessoa Humana e no Livre Arbítrio, vimo-nos surpreendidos pelo espanto
perante uma realidade tão bela que nos leva a admirar o acto da sua criação e os seus
produtos.

Como afirma C. S. Lewis na sua trilogia de Ficção Científica 10, a Linguagem é criadora
de realidade, está dependente do Criador da própria realidade, e esta faculdade relflecte-
se em nós na medida em que somos obra criada, pensada para utilizar a Linguagem, mas
nunca apoderando-se dela pois assim substituir-nos-iamos ao próprio Criador.

10 Referimo-nos à sua Colecção: Além do Planeta Silencioso

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Restrição Jurídica da Linguagem - Direito da Cultura

Bibliografia:

AGOSTINO, Francesco d', Justiça, Cascais:Princípia, 2009

AGUELLO, Marina y, Alice no País da Linguagem, Lisboa: Estampa, 1991

CAROLL, Lewis, Alice no País das Maravilhas, Lisboa: Publicações Europa América,
1977

CHESTERTON, G.K., O Homem Eterno, Lisboa: Aletheia, 2009

CRISTAL, David; How Language Works, London: Penguin Books, 2005

MORAWETZ, Tom, ed. Lit, Law and Language, Ashgate : Dartmouth, 2000

PESSOA, Fernando, O Livro do Desassossego, Lisboa : Atica, 1982

SILVA, Vasco Pereira Manuel Pascoal Dias Pereira da, A Cultura a que tenho Direito,
Coimbra: Almedina, 2007

SILVA, Vasco Pereira Manuel Pascoal Dias Pereira da, Em Busca do Acto
Administrativo Perdido, Coimbra: Almedina, 1998

VILEM, Flusser, Língua e Realidade, São Paulo: Herder, 1963

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