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BERTONHA, João Fábio. Seria o inconsciente humano fascista?

Um comentário ao
texto de Edward Luttwak. Revista Cultura Vozes, São Paulo, ano 89, no 5, set-out. 1995.

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- “[...] o objetivo desse texto é discutir a proposição chave de Luttwak a partir de uma
discussão sobre o caráter psicológico, irracional do fascismo. O que queremos, na
realidade, é discutir se o fascismo, em suas diferentes nuances, é algo que habita o
inconsciente humano (e que estaria, portanto, sempre prestes a reaparecer) ou se é
produto surgido de determinações absolutamente sociais, oriundas do contexto do
período entre guerras e que não poderia, portanto, se repetir” (p.113)´

- “[...] procuraremos introduzir a questão do fascismo como fenômeno psicológico e


verificar se a indiscutível popularidade dos diferentes movimentos fascistas nos anos 30
é ou não socialmente condicionada e historicamente datada” (p.113)

(Edward Luttwak e a volta do fascismo)

- “O argumento básico de Luttwak é que o processo de globalização da economia e os


avanços tecnológicos da nova revolução industrial estão produzindo taxas contínuas de
crescimento econômico nos países centrais mas que também provocam efeitos sociais
danosos, dos quais o mais grave seria a insegurança e o empobrecimento de massas
crescentes de trabalhadores, incluindo-se aí os chamados ‘trabalhadores de colarinho
branco’” (p.113)

- “Toda essa insegurança geraria uma enorme demanda por respostas políticas, as quais
nem a direita nem a esquerda clássicas estariam respondendo adequadamente, gerando
um vácuo que poderia ser preenchido por uma espécie de partido fascista melhorado”
(p.114)

- “As reflexões de Luttwak nos indicam, na realidade, um caminho que ele não aborda
diretamente mas que podemos discutir a partir de sua teoria, a de que o fascismo, em
suas diferentes nuances, não é um fenômeno típico dos anos 20 e 30 desse século, mas
algo que, talvez, mora no inconsciente coletivo humano e que, satisfeitas certas
condições, pode retornar do seu túmulo e reassumir seu lugar na sociedade
contemporânea. É uma proposta assustadora e que nos obriga a uma rápida revisão da
historiografia que procura abordar o fenômeno fascista a partir de um enfoque
psicológico” (p.114)
(O fascismo do entre-guerras como fenômeno psicológico e político)

- “O primeiro grande autor a pensar o fascismo a partir de uma vertente psicológica foi
Wilhelm Reich. Reich foi um militante de esquerda extremamente ativa na Alemanha
de Weimar e que viu, na derrota dos comunistas e na ascensão de Hitler ao poder em
1933, a prova de que o marxismo era insuficiente, por si só, para explicar a realidade
social e o fascismo, pois subestimaria a influência dos fatores irracionais,
subconscientes, nas atitudes dos homens. Reich buscaria em Freud os elementos que
considerava necessários para complementar Marx” (p.115)

- “Em seu livro chave sobre a questão – Psicologia de Massas do Fascismo - Reich
propunha que, na ascensão do nazismo, não devia ser esquecido o fato que ele teria
atingido o poder não devido a seus programas ou ideias, mas sim graças aos seus apelos
aos desejos obscuros da mente humana (agressividade, masoquismo, sexualidade etc.).
Ele analisa, assim, as tradições educacionais repressivas das leis naturais do sexo e da
liberdade e indica que essa repressão é chave na formação dos indivíduos dóceis,
recalcados e sem espírito crítico que serão recrutados pelo fascismo e por sua mística de
poder, beleza e realização. Ele alerta, portanto, para os limites de uma análise
rigidamente socioeconômica do fascismo e que somente a liberação controlada da
sexualidade e da agressividade evitaria que o fascismo se utilizasse delas – via seus
fantásticos meios de propaganda – para atrair as massas” (p.115)

- “Conforme ressalta Robert Paris [p.124], um dos interesses da tese de Reich é


permitir ao historiador uma distinção, entre várias possíveis, entre dois movimentos que
intercambiavam então muitos componentes de suas maquinarias políticas: o nazismo e o
stalinismo. Enquanto o primeiro teria por base uma liberação incontrolada dos impulsos,
o stalinismo seria a repressão total desses mesmos impulsos. Outros textos confirmam –
abordando a questão estética – essa situação 1 e o valor de Reich nesse ponto é, portanto,
clara” (p.115-116)

- “Theodor Adorno e Max Horkheimer também se dispuseram a analisar a estrutura


familiar burguesa, tentando entender sua função na preparação da aceitação do fascismo
por muita gente. Do mesmo modo, outros autores também vão procurar esmiuçar os
componentes psicológicos sem a análise dos quais se tornaria impossível entender a
ascensão dos fascistas ao poder” (p.116)
1
SONTAG, Susan. Fascinante fascismo in. Sob o signo de Saturno, Porto Alegre: L&PM, 1986.
- “Essa abordagem psicológica do fascismo – que de forma alguma esgotamos nos
parágrafos anteriores – é de grande valor para a historiografia a respeito do tema. Ela
nos permite ter uma visão do fascismo que extrapola as visões mecânicas e centradas no
econômico, as quais só conseguem ver no fascismo as contradições do desenvolvimento
capitalista ou os equilíbrios da luta de classes dentro da sociedade. Esta é, de fato, uma
visão equivocada e que nos impede de tentar uma aproximação mais apurada de um
fenômeno que, especialmente em sua versão alemã, extrapola os limites do estritamente
econômico e também do estritamente racional” (p.116)

- “É uma realidade, de fato, que há certos fatos dentro do fascismo que só são
compreensíveis se assumirmos que ele tem o poder de manipular algumas energias mais
íntimas do ser humano, como a agressividade e a afetividade, canalizando essas energias
para seus fins. Isso não quer dizer, note-se, que o inconsciente humano é e sempre
será fascista, mas que o fascismo tem efetivamente uma habilidade fantástica de
lidar com esse inconsciente e de usá-lo para adquirir popularidade de massa”
(p.116)

- “É difícil entender, de fato, a pulsão pela morte que levou o nazismo a destruir tudo
ao seu redor e se autodestruir quando de sua derrota militar, a sua fúria antissemita, a
submissão voluntária de milhares de pessoas às figuras de Hitler e Mussolini, o infinito
sucesso de sua realística e de sua simbologia e outros aspectos sem recorrer à
psicologia; sem pensar nos desejos de morte e vida do ser humano, no consolo que é a
projeção no outro de todas as perversões em oposição à nossa total pureza, na vontade
de sublimar o amor próprio e a individualidade e se submeter a um líder em favor da
incorporação a um todo confortante e renovador das energias psíquicas e em outros
aspectos que nossa ignorância nos mecanismos psicológicos da mente humana nos
impedem de desenvolver a contento. É nossa impressão, assim, que boa parte do
sucesso do fascismo no entreguerras (e mesmo hoje, como veremos depois) se deveu a
sua capacidade de, utilizando-se da simbologia e de outros recursos de propaganda, se
apropriar dos medos e tensões humanos e conduzi-los ao fascismo” (p.117)

- “[...] se é verdade que o fascismo atingiu grande expressão popular nos anos 20 e 30
em grande parte por saber lidar soberbamente com recalques e desejos inconscientes
humanos, não é conveniente acreditar que toda adesão ao fascismo tenha sido uma
adesão inconsciente, irracional e, portanto, mais ou menos involuntária” (p.117)
- “De fato, para muita gente, aderir ao fascismo foi uma adesão política consciente e
ponderada cuidadosamente. Renzo de Felice nos mostra, por exemplo, como as elites
políticas italianas optaram conscientemente pelo fascismo em 1922 como forma de
revitalizar seu domínio social enquanto o episódio da ‘Noite das Longas Facas’ na
Alemanha em 1934 (quando Hitler sufocou a ‘plebéia’ SA em favor das depois temidas
SS) demonstra as íntimas relações, nem de longe inconscientes, que se estabeleciam
entre os militares alemães e nazismo. Outros exemplos de opção consciente pelo
fascismo – ou pelo antifascismo – seriam apenas complementares e ressaltam esse
aspecto” (p.118)

- “Do mesmo modo, é importante levar em consideração que há diferentes fascismos.


Sem querer entrar no debate sobre as diferenças entre os regimes autoritários e
totalitários, é básico perceber que os movimentos fascistas surgem a partir de um
contexto comum de crise (econômica, social, política e ideológica) mas que se formarão
baseando-se em tradições culturais e políticas diversas, o que gerará movimentos de
base comum mas bastante diferentes em alguns aspectos. Sendo assim, é importante
distinguir movimentos cujo apelo às massas populares e suas energias foi muito
pequeno (o franquismo ou o salazarismo, por exemplo, quase simples ditaduras militar
com alguns componentes fascistas) e outros onde esse apelo foi tão forte que, no dizer
de Guattari, citado, ‘a máquina ficou louca e saiu fora do controle’. Sem dúvida, nos
referimos ao nazismo” (p.118)

- “É fundamental, de fato, que não nos deixemos levar em excesso pelas contínuas
demonstrações de irracionalidade do fascismo e de sua capacidade de cativar os
instintos agressivos e sexuais e atrair a energia do desejo das massas. Isso é, como
vimos, verdadeiro, mas, se fosse a única equação a levarmos em conta, o mundo hoje
seria totalmente fascista e até análises como as de Luttwak seriam inúteis: se o contexto
histórico não conta para explicar a própria capacidade do fascismo em atingir as massas
(para não falar das outras condições – apoios das elites e forças armadas etc. –
necessárias para o fascismo atingir o poder) e tudo já estaria determinado nas
profundezas do inconsciente humano, não valeria a pena discutir o contexto histórico
dos anos 20 e 30 ou a sua possível, como quer Luttwak, repetição hoje. Isso, porém, não
é verdade: não se explica o fascismo e sua popularidade sem pensar no contexto
histórico em que ele vicejou” (p.119)
- “De fato, se o fascismo já é parte do homem, como explicar que ele só desabrochou
nos anos 20 e 30 desse século? Buscar elementos de um proto-fascismo nos anos
anteriores, destacar a enorme e pioneira capacidade fascista em criar uma máquina
simbólica e propagandista apta a absorver e reelaborar forças e desejos ou ainda
ressaltar as presenças únicas de líderes especiais como Hitler são pontos válidos mas
não bastam. O que é fundamental é perceber como certos desejos e ideias foram
amplificados pela situação social para, daí sim, serem absorvidos pela máquina fascista
e transformados em fonte da base popular do fascismo” (p.119)

- “É o contexto histórico e as especificidades políticas, culturais, econômicas etc. das


diferentes nações que experimentaram algum tipo de fascismo que vão, de fato, explicar
por que em certos países o fascismo atinge mais uma classe que outra, porque ele atinge
o poder em certos lugares e em outros não etc. Ou, em outras palavras, é o contexto
histórico que vai determinar por que somente em certos lugares sentimentos e emoções
que vimos antes (desejo de expressar revolta e agressividade, de submergir no todo
solidário, de sublimar o eu em favor do líder etc.) vão ser muito amplificadas,
escapando dos limites individuais restritos onde estavam presos, transbordando para
setores sociais mais amplos e dando ao fascismo uma base muito maior para exercer sua
propaganda” (p.120)

- “No caso do Integralismo, por exemplo, por mais que seus rituais pudessem, ao
responder alguns dos desejos irracionais de seus possíveis militantes, atrair adeptos ao
movimento, seria difícil crer que ele pudesse ter se tornado o movimento de massas que
foi sem que o contexto social do Brasil dos anos 30 e a inserção do público chave do
Integralismo – as classes médias – nesse contexto (gerando desejos de ordem e
estabilidade, por exemplo) seja abordado” (p.120)

- “[N.R.27, p.121] No caso da Alemanha, os sinais de uma predisposição cultural a um


regime nazista são abundantes. Vide, por exemplo, os filmes que eram populares nos
anos 20 na Alemanha e que expressam o desejo de largas faixas do povo alemão de
purificar a sua sociedade e entregá-la a um ‘messias’. Sobre isso ver o filme O Ovo da
Serpente, de Ingmar Bergman e Kracauer, Siegfried. De Caligari a Hitler, 1988”
(p.121)

- “Do mesmo modo, é difícil crer que o mero desejo de algumas pessoas de submergir
no todo, por exemplo, pudesse explicar a enorme popularidade do nazismo e que uma
predisposição cultural ampla e a enorme crise econômica e cultural dos anos 20 e 30
(que levou multidões ao ódio, ao desespero e à busca de respostas para seu brutal desejo
de mudança) possam ser esquecidas na tarefa de explicar o nazismo [...] Nesse sentido,
concordamos com Erich Fromm quando ele escreve que: ‘O nazismo é um problema
psicológico, mas os próprios fatores psicológicos têm que ser interpretado como sendo
moldados por fatores socioeconômicos; o nazismo é um problema econômico e político,
porém o fascínio por ele exercido sobre um povo inteiro tem que ser interpretado em
bases psicológicas’” (p.120-121)

(O ressurgir do fascismo: neonazistas e ‘skinheads’)

- “De fato, há indícios de que a maioria dos skinheads não tem mais que uma ‘película’
da ideologia nazista encobrindo vontades e desejos diversos” (p.122)

- “[...] a extrema direita não hesita em recorrer a todos os modernos métodos de


propaganda de massa, como os videogames, espaço na rede Internet etc. mas não
esquece dos velhos métodos que tão eficazes já demonstraram ser na captação dessas
energias. É por isso que nazistas e fascistas não cessam de fazer desfiles com bandeiras
e estandartes aos gritos de ‘Heil Hitler’ ou ‘Eia eia alalá’, que Jean Marie Le Pen não
hesita em promover em cerimônias de pura estética fascista etc. Novamente, a
simbologia fascista se articula para tentar formar uma base de apoio popular ao
fascismo” (p.123)

- “O acoplamento dos skinheads aos movimentos de extrema direita se deu, assim, por
razões bem simples. O nazismo forneceu a estes jovens uma ideologia e um misticismo
que se encaixa como uma luva nas suas ideias e visões de mundo. Com o uso do
misticismo nazista, eles podem chocar a sociedade, curtir o forte senso de identidade
que o pertencer a um grupo como este acarreta, a visão gloriosa da Existência, a pulsão
de morte etc. O nazismo também fornece um alvo para o ódio (as minorias inferiores),
um ideal glorioso para uma existência normalmente medíocre etc. Também a violência
pura e gratuita passa a ter um sentido via reelaboração e inspiração no nazismo” (p.123)

- “O fascínio dos skinheads, ou pelo menos de parte deles, com o nazismo é, assim,
muito significativo. O ideal fascista permite que eles refinem e deem um sentido maior
às suas ações e extraiam significado onde aparentemente não havia nenhum. [...] Ao
mesmo tempo, fornece uma massa de manobra perfeita para os partidos de extrema
direita, o que é preocupante” (p.124)

- “O fascismo continua, assim, a atrair pessoas que veem nele algo que sustenta seu
modo de vida e permite uma excelente compensação psicológica, dada a habilidade do
fascismo em lidar e criar com certos sentimentos, para seus problemas e dilemas”
(p.125)

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