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A Conservação Do Patrimônio No Brasil - Teoria e Prática PDF
A Conservação Do Patrimônio No Brasil - Teoria e Prática PDF
Patrimônio no Brasil
Teoria e Prática
Orgaização:
Silvio Zancheti
Gabriela Azevedo
Carolina Moura
C O N
S E r 1 Seminário
v a Ç da Rede
à O br
Organizadores
Silvio Mendes Zancheti
Gabriela Magalhães Azevêdo
Carolina Moura Neves
Projeto Gráfico
Gabriela Magalhães Azevêdo
223 p.:il.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-98747-21-7
12 a 13 de Novembro de 2012
Apresentação
Os organizadores 03 Parte 3 Patrimônio e paisagem
Flavio Carsalade
A paisagem do Plano Piloto de Brasília a partir de 133
suas escalas
Gabriela Azevêdo e Carolina Neves
Parte 1 Patrimônio e teoria
Os trabalhos reunidos nesses anais são uma prova cabal dessa afirmação.
Forão tratados temas teóricos e práticos da conservação patrimonial, nos seus
mais variados aspectos, com uma diversidade e profundidade notável para um
campo de pesquisa e discussão teórica tão recente em nosso país.
3
artigos apresentados no evento foram disponibilizados na página da web do
Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (Ceci) e, até o
momento da publicação desse volume (junho de 2015), havido sido realizados
mais 29.000 downloads dos artigos.
4
PATRIMÔNIO COMO CONSTRUÇÃO CULTURAL1
Resumo
O artigo examina a pertinência dos fundamentos da teoria da
preservação vigentes nas áreas da cultura (estabilidade cultural), história
(objetivismo histórico) e artes (imanência da arte) visando discutir sua
validade no campo da preservação e restauro do patrimônio construído.
A partir dessa análise, o autor discute o que efetivamente se preserva e
restaura em arquitetura, indicando a necessidade de uma abordagem
própria para este campo, a partir da contribuição da hermenêutica e do
reconhecimento da intersubjetividade.
Palavras-Chave: patrimônio cultural, patrimônio histórico, patrimônio
artístico
Introdução
A noção de Patrimônio Cultural contemporânea é muito mais ampla do que
aquela que se fazia há poucas décadas atrás, quando ela se estabelecia apenas sobre os
pilares da história e da arte, sendo que a excepcionalidade artística ainda tutelava o
reconhecimento histórico. Os tempos mudaram, mas as raízes de formação do
pensamento patrimonial ainda definem com bastante intensidade o tratamento que é
dado aos bens patrimoniais. A abordagem que se pretende fazer aqui é antes uma
maneira de investigar as diversas faces do conceito de patrimônio e as conseqüências
que elas têm nas estratégias de preservação, evitando-se mascara-las como se houvesse
uma unidade de pensamento supostamente estabelecida pelas “cartas internacionais”
ou que certas tensões, como por exemplo, a opção entre instância estética ou instância
histórica já tivessem sido superadas pela história do restauro.
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preservados, desconhecendo que toda ela foi estabelecida apenas com relação às obras
de arte, hoje apenas uma parcela de nosso vasto patrimônio.
Além disso, a separação entre uma instância histórica (na maior parte das vezes
relacionada à matéria) e artística (na teoria brandiana associada à imagem) possibilita
também uma separação entre imagem e matéria, a qual muitas vezes aponta para uma
atitude simplista que reduz o trabalho de restauro a uma mera adaptação da matéria à
obra de arte em sua exigência formal, desconhecendo envolventes da memória e da
cultura.
A partir dessas distinções – instância histórica e instância artística, imagem e
matéria - de certa maneira, o processo histórico de abordagem do patrimônio e seu
restauro têm se estabelecido a partir de três crenças principais, as quais procuraremos
analisar aqui e que são: o objetivismo histórico (a matéria como prova inequívoca do
passado), a imanência da arte (a imagem dotada de uma aura única e reveladora,
imutável) e a estabilidade da cultura (a identidade e os costumes como padrões
imutáveis caracterizadores de um determinado povo).
A) Quanto à história:
6
É impossível uma reconstrução integral dos fatos exatamente como ocorreram.
Na realidade, a História agrupa fatos em função do método e do historiador, sendo,
portanto, extremamente influenciada pelo momento em que é escrita;
Na outra ponta, as fontes que supostamente “documentariam” objetivamente
os fatos podem ter sido manipuladas pelo poder (documentos “oficiais”) ou pela
opinião (fontes jornalísticas) ou pelo filtro do narrador (indeterminação da
memória);
Constatações como essa levam, é claro, a uma grande suspeição sobre uma
única verdade histórica e, consequentemente, propõe uma revisão de conceitos e
métodos.
B) Quanto á autenticidade
É a materialidade do bem cultural, talvez, que lhe confira um status de História
objetiva, pois se os momentos históricos são recriações, a matéria que sobreviveu ao
tempo é um fato concreto, palpável, um documento, portanto. Uma análise desse
suposto “documento” seria, então, de grande utilidade para a nossa análise. Dois
problemas metodológicos ocorrem com relação aos documentos, nessa abordagem:
Se não há uma neutralidade da história, como se esta fosse a narração da
“verdade” dos acontecimentos, a qual história esse documento se refere? Até
que ponto ele é puro e resultante de uma seleção desinteressada e até onde eles
comprovariam uma determinada versão histórica, a qual, na verdade, atende
às intenções das classes dominantes ou aos recortes próprios de cada
historiador que os colecionou;
Quais os critérios decisivamente científicos que comprovariam a suposta
autenticidade do documento e como se daria a conservação dessa
autenticidade? Nesse caso, ainda que seja verificada a sua idade, não há como
saber se ele espelharia a verdade como ela realmente aconteceu ou se seria uma
versão “fabricada” para provar uma história oficial ou desejada.
7
verdadeiro e ao autêntico, o terror de se preservar uma “mentira” é tão grande na área
patrimonial que vários textos e encontros foram realizados em nome da autenticidade.
Para a Carta de Brasília, o entendimento sobre autenticidade repousa sobre os
conceitos de identidade e herança, reconhecendo que ela não poderia ser abordada
desde um ponto de vista objetivo. Ao reconhecer a mutabilidade do conceito de
autenticidade, a Carta arrisca uma definição:
As diferentes vertentes que integram uma sociedade apresentam leituras
de tempo e espaço diferentes mas igualmente válidas, que devem ser
levadas em conta no momento em que se fizer a avaliação da
autenticidade [...] O significado da palavra autenticidade está
intimamente ligado à idéia de verdade: autêntico é o que é verdadeiro, o
que é dado como certo, sobre o qual não há dúvidas. Os edifícios e lugares
são objetos materiais, portadores de uma mensagem ou de um argumento
cuja validade, no quadro de um contexto social e cultural determinado e
de sua compreensão e aceitação pela comunidade, os converte em
patrimônio. Poderíamos dizer, com base neste princípio, que nos encontramos
diante de um bem autêntico quando há correspondência entre o objeto material e o
seu significado (CARTA DE BRASÍLIA, 1991, grifos nossos).
8
1.2. IMANÊNCIA ARTÍSTICA
“Arte é tudo aquilo que os homens
chamam de arte” (Formaggio)
9
Esse mesmo raciocínio abre as portas para que suspeitemos também de uma
visão muito determinista do conceito de deterioração. Para nos ajudar a explorar este
aspecto, cabe referência à questão da pátina, a qual é muitas vezes essencial ao
entendimento da passagem histórica do bem e cuja supressão acabaria por lhe retirar
até mesmo sua apreensão de autenticidade. O entendimento, portanto, de deterioro
como “alteração material do bem” não é suficiente, posto que a passagem do tempo, é
claro, imprime suas marcas no objeto e elas não são necessariamente negativas ou
destruidoras. Na verdade, consideramos deterioração aquilo que entendemos como
sendo um valor “negativo” para a peça, novamente mostrando que mesmo uma
questão que, a princípio parece tão centrada no objeto como o deterioro, também
depende do sujeito e das relações intersubjetivas que se estabelecem.
A autenticidade da expressão, outro suposto atributo da “aura” do objeto
artístico, é também buscada muitas vezes no processo de restauro sob diversos
enfoques tais como a congenialidade com o autor e o tempo (“é assim que o autor
queria”), o proto-estado ou estado originário. Sob todas essas formas fica difícil se falar
objetivamente de uma suposta expressão autêntica posto que o tempo passou para a
peça e sobre ela imprimiu suas marcas, as quais não são apenas marcas materiais -
também autênticas - mas mesmo as da tradição, a qual fez com que a peça se
apresentasse desta ou daquela maneira aos pósteros. Sob esse aspecto, inclusive,
convém lembrar que a raiz da palavra “tradição” (do latim traditio, tradere, trado) é a
base tanto da palavra transmissão quanto da palavra traição, reforçando o fato de que
nem sempre a transmissão é neutra e fiel.
A solução brandiana para o restauro está exposta no seu primeiro axioma, onde
ele define que, na obra de arte, só se restaura a matéria. Ora, para o entendimento
contemporâneo de alguns autores como Bardeschi não faz sentido um entendimento
de restauro centrado na preponderância da imagem e muito menos que só se restaura a
matéria, para ele exatamente o que não se deve restaurar, pois é a única coisa autêntica
remanescente do bem, portanto a única a se manter a salvo de qualquer intervenção.
Outro problema prático do restauro levantado por Brandi e também correlato á
legibilidade trazido pela questão da fragmentação e da lacuna. O conceito de lacuna
apresenta problemas quer do ponto de vista semiológico, da leitura, quer do ponto de
vista da percepção gestáltica, especialmente quanto à extensão lacunar. Sob o primeiro
ponto de vista, a lacuna pode ser de tal ordem que interrompa a compreensão do texto
e, sob o ponto de vista da segunda, ela pode interromper o liame das partes e dificultar
a legibilidade da obra. O conceito de lacuna, no entanto, não é único. Para a
hermenêutica gadameriana, por exemplo, ele não está centrado no objeto, mas na
relação entre ele, o sujeito e a compreensão que este faz daquele, remetendo também ao
intérprete.
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da nossa relação com o mundo. Talvez pelo fato de que ela não seja herdada
biologicamente, mas assimilada, sujeita ao vai-e-vem dos processos históricos, ela
apresenta várias características que nos importam nesse momento, tais como um
caráter dinâmico (com várias sub-culturas, abertas, sincréticas, instáveis) e diversos
níveis interdependentes (indivíduo, grupo ou classe, sociedade). Na realidade, os
valores culturais são variáveis e relativos e não predeterminados e eternos e, no seu
desenvolvimento, ela se apresenta como criação e recriação contínuas, muitas vezes à
base de empréstimos e trocas.
As ideias culturais são expressas e comunicadas por meio de símbolos, padrões
explícitos e implícitos, idéias tradicionais com valores vinculados. Como sistema
simbólico, ela é influenciada e influencia as relações sociais, a economia, a arte, a
religião e outras formas do ser humano se manifestar ou se comportar. Tais funções
psicológicas e existenciais fazem com que a cultura nos pareça estável, sob pena de
perdemos nosso próprio eixo, se assim não fosse. No entanto, não é bem assim.
Na medida em que a simbologia muitas vezes se constrói sobre objetos físicos,
no caso das coletividades sobre monumentos ou objetos fortes e presentes, a ilusão da
estabilidade cultural leva a uma errônea imbricação entre objeto e significado, como se
este último fosse imanente àquele. O entendimento de que para garantir o significado
da obra é preciso mantê-la intacta ou como era está claramente centrado no objeto e na
sua imanência própria e, de certa forma, desconhece a relação com o sujeito que, à sua
maneira lhe impões significações pessoais e de grupos que lhes impõem também
outras significações próprias.
A preservação da dimensão simbólica, no entanto apresenta várias particularidades:
Pelo seu caráter sinedóquico, ou seja, do particular representar o todo, faz com
que, de certa maneira, a preservação dependa mais da sobrevivência do bem,
seja de que maneira for, do que da estrita preservação da matéria, como
mostram os exemplos de Ouro Preto e Varsóvia;
Pelo seu caráter difuso, representa conceitos imprecisos (do ponto de vista
descritivo, como identidade, por exemplo) ou excessivamente abrangentes (de
grandes grupos sociais, como nação, por exemplo), os quais, de certa maneira,
também não se associam diretamente às sutilezas e detalhes da forma ou da
matéria;
Pela natureza de sua seleção, remete mais a uma construção idealizada, política
ou econômica do que propriamente a uma conservação intacta (da qual se
aproveitam as estratégias oportunistas de preservação);
Pelo fato de simbolizar vários e diferentes conceitos (valores “altoculturais”, de
identificação grupal, ideológicos e até mesmo sentimentais), também apresenta
diferentes modos e métodos de preservação;
Pela sua estreita ligação com a sociedade e os valores a que serve, os quais muitas
vezes se sobrepõem à sua função original - pois a dimensão simbólica se
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apresenta como mais importante - causa alterações na forma e na matéria para
se adaptar ao predomínio dessa função4;
Pela maneira como se apresenta, na sua preservação podem se alternar valores e
métodos que se relacionam mais com a sua presença como objeto artístico ou
histórico, ou ainda de maneira magnificada ou reduzida;
Pela flexibilidade inerente à classificação de um objeto como obra de arte, pode
induzir a diferentes decisões sobre sua preservação. Essa flexibilidade, por exemplo,
faz com que alguns objetos sejam considerados como pseudo-artísticos e,
portanto, sem “necessidade” aparente de preservação (como “a pintura banal
de uma igrejinha qualquer”), a qual poderia ser substituída (do ponto de vista
artístico) ou mantida (pelo valor sentimental, ligado à memória);
B) A questão da identidade
É essa mesma esperança de estabilidade, de permanência, que cria a confusão
quanto ao conceito de identidade, entendido como um atributo imutável, associado ao
ser, como o “mesmo”, aquilo que não muda, aquilo que se aproxima do referente. Se
essa concepção for utilizada de maneira rígida, como muitas vezes o é, “identidade”
seria um conceito dominador e evanescente que a todo o momento entraria em choque
com a realidade, esta sempre dinâmica e diversa.
Face à imprecisão de seus contornos, o termo “identidade” tem apresentado
vários entendimentos. Muitas vezes aparece como a tentativa de materialização de um
ente coletivo dotado de coerência e continuidade, uma “objetificação cultural”5, a
construção de um modelo que aparece como um conceito tão ideal que nunca acontece
na prática ou acaba por determinar quais elementos devem ser preservados para
construir este ente. Outras tantas vezes, a identidade aparece como “sentimento de
ser”, ligado a uma suposta autenticidade do grupo. Essas acepções, como não poderia
deixar de ser, acabam sendo utilizadas como plataforma de dominação, usado na
prática para justificar as mais diferentes ações. Sob outro ponto de vista, a identidade
também pode ser entendida pelo seu conceito complementar, a diversidade. Por esse
processo, seria mais operacional reconhecer aquilo que se parece pela contraposição
com o que lhe é diverso, diferente. O que acabaria por levar a um entendimento
mutável de identidade como o “mesmo na recognição” ou uma repetição que se
diferencia6, sempre transformação e criação. É importante, então, que não entendamos
“identidade” como um conceito absoluto, pré-existente e congelado, mas sempre relacional,
calcado na ação presente e na compreensão da sua diversidade e transformação.
4 Por exemplo, a mudança operada após o período de vandalismo da Revolução Francesa nos palácios que
deixaram de ser residências para se tornarem espaços coletivos, patrimônio comum.
5 GONÇALVES, 1996
6 MAGNAVITA, 2003, p. 69
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mede o valor coletivo? A régua usada tem sido a força do Estado, o gosto das elites e,
modernamente, a imposição da mídia ou do capital. A partir daí podemos depreender
que os valores não estão apenas no objeto, mas na compreensão que as sociedades fazem sobre
ele. Essa compreensão se sobrepõe, portanto àquela de que o próprio teria uma
“verdade” imanente, a qual deveria ser preservada.
A questão da classificação de um objeto como patrimônio ou não parece estar
ligada a uma suposta imanência do próprio objeto, impregnando-o de uma função
totêmica, como se ele, por ele, fosse o catalisador das comunidades, o gerador das
identidades. Também neste aspecto é colocar carga demais sobre o objeto. Na
realidade, não é ele que gera as identidades, apenas as simboliza, representa valores
anteriormente gerados que se agregam em torno daquilo que podemos chamar
“identidades”.
Dessa discussão fica claro que o “ser” patrimônio não está no caráter imanente
do objeto, mas sim em uma outra forma de relação que passa também pela pessoa,
comunidade ou sociedade, portanto pelo sujeito, que lhe confere tal grau. E quem é
esse sujeito? Também esse sujeito tem caráter mutante, dependendo do grupo social,
do tempo histórico e dos valores que lhes são inerentes. Alguns teóricos, a partir dessa
constatação, tendem a estabelecer que a característica comum dos objetos-patrimônio é
o significado que eles trazem consigo, ou seja, seu caráter simbólico. Dessa forma, eles
seriam, antes que objetos memoráveis, objetos rememoradores7.
De qualquer maneira, também não é o sujeito que, independentemente do
objeto cria seus significados. Para Viñas, “a patrimonialidade não provém dos objetos,
mas dos sujeitos: pode definir-se como uma energia não-física que o sujeito irradia
sobre um objeto e que este reflete.” 8. No nosso entendimento – e segundo nosso
método de análise – isto também não é verdade, pois aqui se coloca toda a
responsabilidade sobre o sujeito. Parece-nos, antes, que a posição de patrimônio está na
interação entre sujeito e objeto, no acontecimento, no fenômeno, pois se objetos
específicos refletem a intenção do sujeito, de alguma forma eles têm em si certas
propriedades (espaciais, históricas, artísticas) que lhe conferem esse poder. Há nisso
um correlato importante com o entendimento hermenêutico sobre o objeto histórico.
Segundo Gadamer, “o verdadeiro objeto histórico não é um objeto, mas a unidade de
um de outro, uma relação formada tanto pela realidade da história, quanto pela
realidade do compreender histórico” 9. O significado, portanto está na relação que se
estabelece entre o sujeito e o objeto e a compreensão hermenêutica está na consciência
dessa reciprocidade.
F) Os significados patrimoniais
Os debates que se fazem em torno da restauração mostram com clareza a
mesma oscilação que se faz na discussão sobre o patrimônio em seu caráter histórico,
artístico e cultural. Enquanto os estritos defensores do caráter histórico ainda se
ressentem do positivismo e de um objetivismo documental, os defensores do caráter
7 VIÑAS, 2003, p. 55
8 VIÑAS, 2003, p. 152
9 GADAMER, 2004, p. 396
13
artístico se prendem a um idealismo calcado na expressividade da imagem, ambos
centrados no objeto em si. A vertente cultural tende a aproximar-se do sujeito,
enfatizando mais as questões subjetivas e do senso coletivo, em parte também
considerado pelo ramo crítico-criativo relacionado ao caráter estético. A postura
fenomenológica se propõe a superar essa dicotomia, na medida em que não valoriza
mais o objeto ou o sujeito, mas a relação entre eles. Não há apenas o objeto em sua
imanência, independente do sujeito que o observa, frui e nele intervém e nem o sujeito
em sua consciência estrita que apenas usa o objeto como ponte para seus próprios
pensamentos, podendo, em face a essa minimização de seu valor objetivo, alterá-lo ao
seu bel prazer, posto que o sujeito e a sociedade são só o que contam.
A presença do sujeito modifica a apreensão do objeto. Viñas10 nos revela que
essa modificação ocorre a partir de quatro fenômenos principais:
A inércia icônica, segundo a qual o espectador reconhece o objeto como está
acostumado a fazê-lo e qualquer alteração na sua forma lhe parece estranha ou
inverídica (como exemplo, nos pareceria estranho ver os templos gregos coloridos –
como efetivamente eram no momento de sua criação, posto que nos acostumamos a
vê-los brancos);
O preconceito histórico, segundo o qual o objeto deve adaptar-se ao que o
espectador pressupõe (que é o que acontece, por exemplo, nos filmes os quais
inclusive ajudam a criar o modo como “devemos” reconhecer os diferentes
períodos históricos: a Idade Média escura e sombria, a Renascença cheia de luzes);
O fetichismo material, segundo o qual a verdade está no material original, ainda
que a réplica seja perfeita e feita com o mesmo material do original (o espectador se
sente enganado, por exemplo, quando fica sabendo que grande parte das esculturas
urbanas de Florença não são as originais);
A garantia dos “experts”, segundo a qual os técnicos sabem mais do que qualquer
um e, portanto, seu saber é superior (eles devem, inclusive, nos dizer como devemos
pensar).
Um exame das atitudes do sujeito face aos bens artísticos, culturais ou
históricos mostra bem como esses fenômenos sempre apareceram de uma forma ou de
outra na história e condicionaram o próprio ato de intervenção neles. Por exemplo, a
inércia icônica aparece no Renascimento na valorização da cultura greco-romana, como
ela parecia ao homem dos séculos XIV e XV; o preconceito histórico, da mesma forma, na
Renascença, na negação do gótico e na adição de elementos clássicos ao Panteão ou
ainda, no século XVIII com o saudosismo estilístico dos “neos” com resquícios até
mesmo nas restaurações fantasiosas de Viollet-le-Duc; o fetichismo material aparece seja
nos “souvenirs”, seja no documento histórico valorizado de forma diferente no
Iluminismo ou no positivismo do século XIX; a garantia dos experts é também presente
na história, só mudando os experts, os quais muitas vezes foram os nobres ou os
clérigos.. Aos diferentes tipos de valor atribuídos aos monumentos, em função de
diferentes momentos históricos e contextos correspondem também diferentes meios
para sua preservação.
14
Assim, nem a imagem é a-histórica e nem a história é homogênea. A
compreensão dessas premissas é fundamental para a atitude do restaurador, fazendo
com que o seu juízo histórico-estético influencie substancialmente sua prática. Hoje já
superamos a idéia de neutralidade científica até mesmo nas ciências humanas e sociais,
onde até mesmo os próprios antropólogos, por exemplo, já não acreditam mais em
uma posição “neutra” de análise de uma determinada cultura, entendendo que mesmo
o observador está profundamente marcado pela cultura e tradição do homem que as
examina.
Por trás da vertente cultural está a questão do significado do bem para o
homem e as sociedades, o qual, como vimos nos casos de Varsóvia, Veneza ou Ouro
Preto, interfere decisivamente nos métodos e processos de restauração. O significado
do bem muitas vezes supera a mensagem da própria imagem, fazendo com que a sua
força simbólica ultrapasse a expressividade estética nele contida. Na realidade, a
questão do significado ultrapassa as imposições da forma, tendo com relação a esta
uma relativa autonomia. Embora a imagem congregue significados e estimule relações,
o bem patrimonial parece estimular outros níveis de relação ligados ao mundo
existencial do fruidor. Essa autonomia do significado em relação à obra única se exerce
em diferentes maneiras:
Pelo “descolamento” entre a imagem e a obra física, objeto histórico, quando a
imagem precisa ser evocada ou utilizada independemente do seu suporte material
existir ou não, como no caso das cidades supracitadas ou das sucessivas tentativas
de reconstrução do Templo de Salomão ou do uso de suas formas como base para
outros templos construídos ao longo da história;
Pela sua “mutabilidade operacional”, quando a imagem precisa ser adequada ou
atualizada ou reformada para melhor atender aos novos usos e práticas que nela se
fazem ou dela se extraem, como ocorre na Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, em
Salvador, onde vários de seus espaços são alterados ao longo do tempo, de forma a
facilitar a relação com os fiéis;
Pelo seu “uso icônico”, que é o caso citado por Walter Benjamin em seu texto “A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, onde a imagem deixa de ser
necessariamente associada ao seu suporte material original – a perda da aura – e
ganha mundo com apropriações diversas como é o caso, por exemplo, da Mona
Lisa, “pop star”;
Pelo seu “significado ritualístico”, ligado a aspectos cíclicos das tradições ou à
afirmação do mundo simbólico, como soe ocorrer no Oriente em práticas
tradicionais como a reconstrução do Templo de Ise.
15
patrimônio se este tiver um sentido para aquele11. A questão da significação, assim,
traz consigo uma grande abertura na medida em que entendemos que não existe um
significado único e universal, mas vários deles, advindos dos modos particulares a
partir dos quais ele é experimentado. Da mesma forma, não há metodologia única de
intervenção, mas no nosso entendimento todas elas devem levar em conta a questão de
dotação de sentido, sob pena de esvaziar aquilo que se abre na historicidade do
monumento O significado do bem patrimonial, entretanto, não parte apenas da sua
história ou da sua esteticidade, mas da integração dessas duas formas de apropriação
se estabelecendo ainda sobre uma série de referências, sejam elas de natureza espacial,
de conceitos prévios emanados do mundo sócio-cultural ou pessoal, em suas vivências
e memória.
Alguns perigos, no entanto, se apresentam à compreensão/ interpretação (e seu
rebatimento na preservação) que necessitam ser apontados para o uso adequado de
nosso método12:
11 Levantamos, inclusive, que a perda de sentido é um dos principais problemas pelo qual passa a
preservação hoje.
12 Os cinco primeiros foram trabalhados a partir daqueles apresentados por Carlos Antônio Brandão em
16
interpretação ou quando, no processo de intervenção, minimiza a presença da sua
historicidade para fazer valer sua própria intencionalidade;
O perigo positivista acontece quando se acredita poder trabalhar o bem apenas
pelo método científico, sobre supostas bases “seguras” que a ciência ou o método
analítico pudesse lhe fornecer. Aqui se enquadram tanto o método filológico
quanto o método de recomposição da unidade estilística citados no início deste
capítulo;
O perigo idealista aparece, no patrimônio edificado, naquilo que tange ao culto à
imagem ou a matéria como se elas fossem, respectivamente, os centros da
expressão artística ou da historicidade do objeto. Esta discussão também será
retomada com mais profundidade nos capítulos seguintes;
O perigo do senso comum aparece na suposta “verdade” superficial assimilada
coletivamente ou na superficialidade do gosto ou do juízo comum.
Do exame desses perigos, podemos verificar que compreender estética e
historicamente não se dá a partir de uma congenialidade, nem a partir de algo que
seria imanente ou transcendente ao próprio objeto, nem ainda sobre o esforço analítico,
mas a consciência da filiação da obra a nosso mundo.
A) O QUE SE PRESERVA
Ao mudar a cultura, transformam-se os valores e transformam-se, também, é
claro, as atitudes quanto ao patrimônio. Assim, parece que o que se preserva, na realidade,
é a identidade em transformação, ou seja, a preservação não está na capacidade do bem de
permanecer como está, mas na sua capacidade de mudar junto com as mudanças sócio-culturais.
Essa concepção se choca com a acepção de imutabilidade do bem a ser preservado.
Também ele, como a tradição e a cultura, está em constante transformação.
Não há, portanto, como buscar a essência do objeto de restauro em uma idéia
imutável de “objeto” que sobreviveu à história, pois ele está inserido na história da
vida, a qual se caracteriza pela transformação. Não há esse objeto a-histórico
“essencial” - além do que isso seria uma contradição com seu valor como patrimônio
histórico conferido exatamente por ser histórico. Mesmo a idéia de uma transmissão
“neutra”, independente da cultura e da tradição não se sustenta. Benjamin e Osborne
trabalham o conceito de transmissão, comparando o pensamento de Heidegger e de
Benjamin, ambos convergentes para o fato de que a História não é um ato progressivo
e nem o presente um herdeiro inconteste do passado. A partir dessa convergência
constatam:
Enquanto o Iluminismo e o antiiluminismo conferiam à tradição o sentido
de transmissão, Heidegger e Benjamin recuperaram seu sentido traiçoeiro
e perigoso de uma rendição potencialmente destrutiva. O ato de
“entregar” destrói o objeto cedido; não é de modo algum um “meio”,
muito menos um meio “neutro”, para a transmissão do passado para o
presente. Como ambos reconheceram em 1916, a tradição é não só o que é
transmitido num dado tempo como também a outorga desse tempo, ele
próprio na distinção entre passado e presente ao mesmo tempo que os
17
supera ao entregá-los um ao outro; ela tanto funda quanto pressupõe o
tempo que tem lugar. Como Heidegger e Benjamin mostraram em 1916, a
tradição é um fenômeno paradoxal, e até destrutivo, caracterizado por
uma transmissão que ao mesmo tempo excede ao que é transmitido e é
por ele contida. (BENJAMIN e OSBORNE, 1997, p. 29).
Assim, toda transmissão ao presente seria também uma forma de destruição do
passado, resultando, portanto, numa quebra da autenticidade daquilo que é
transmitido, pelo menos naquela autenticidade “pura” ou a uma suposta plenitude
“original” da obra de arte14.
Dessas discussões resultou que os objetos que sobreviveram à torrente do
tempo são, na realidade, aquilo que foi selecionado para ser passado ao futuro,
portanto fruto intencionado de uma sociedade que queria ser lembrada de certa
maneira, afinal a História é uma versão do fato, não o fato em si.
Mas as duas impossibilidades, a da objetividade da história e a da imanência da
imagem, persistem apesar da relatividade cultural e social e acabam por gerar uma
tensão entre verdade e leitura que afeta substancialmente as práticas de preservação.
Para entendermos as suas formas mais usuais partimos da disjunção entre História e
patrimônio revelada por Lowenthal:
A história e o patrimônio transmitem coisas diferentes a audiências
diferentes. A história conta a todos os que querem ouvi-la o que ocorreu e
como as coisas chegaram a ser o que são. O patrimônio se baseia em mitos
de origem e continuidade, conferindo a um grupo prestígio e objetivos
comuns. A história se engrandece quando seu conhecimento se propaga; o
patrimônio se vê diminuído e degradado quando se estende. A história é
para todos, o patrimônio somente para nós. A história não é
completamente aberta - os investigadores protegem suas fontes, os
arquivos se fecham, aos críticos se nega o acesso aos documentos e os
erros são esquecidos. Mas a maior parte dos historiadores condena a
ocultação. Ao contrário, as mensagens do patrimônio estão restritas aos
eleitos. [...] o patrimônio se baseia em regras tribais que convertem cada
passado em uma posse exclusiva e secreta. Criado para gerar e proteger
interesses de grupos, somente nos beneficia se o isolamos dos demais.
Compartilhar, ou inclusive mostrar, um legado histórico aos demais
diminui suas virtudes e poderes. [...] Ser do clã é essencial para
sobrevivência e bem estar de um grupo. (Lowenthal, 1996) (VIÑAS, 2003,
p. 143-144).
14“Duas coisas emergem do processo de ‘vir ser e desaparecer’: uma é o objeto ou evento que vem e vai, e
a outra é a vinda e ida de objetos e eventos, sua tradição. Para Benjamin, o preço que se paga para se
tornar um objeto de tradição é a inautenticidade e a imperfeição; tal objeto nunca pode estar
autenticamente ali, integral em si mesmo, uma vez que só está ali graças ao fato de ter sido transmitido
pela tradição. Sua emergência já é sempre o seu desaparecimento – o local da tradição não é um lugar
onde passado, presente e futuro são reunidos para uma ação resoluta, mas um lugar onde o presente é
obsedado não só por seu passado como também por seu futuro de vir a ser passado. É um lugar de luto.
Aqui a origem e seus objetos jamais podem atingir a autenticidade, estando sempre em dívida com algo
que não se revela”. (BENJAMIN e OSBORNE, 1997, p. 34).
18
A partir dessas constatações, Para Lowenthal, a preservação do patrimônio se
acomoda ao uso que se faz dele mediante três operações fundamentais e interligadas:
uma atualização (no sentido de se impor imagens e valores a personagens do passado);
uma melhora (que destaca aquilo que mais se considera hoje) e uma exclusão (o que, ao
contrário da anterior, consiste em “esquecer” aquilo que hoje não é apreciado) (VIÑAS,
2003, p. 146).
A questão da preservação se centra agora, portanto, no conceito de
transformação, ou seja, como manejar essa transformação de forma que não se rompa a
delicada tessitura entre a tradição e a contemporaneidade, pois, ao intervir no bem
patrimonial nós o estamos modificando, sempre, afinal pela tradição ele já nos chega
alterado, pela cultura ele nos chega tematizado e, pelo tempo, com sua significação
“original” perdida.
B) O QUE SE RESTAURA
Após o exame do conceito de preservação, resta-nos que a grande dificuldade
epistemológica do restauro está na evanescência de seu objeto de aplicação. Afinal, a
que se aplica o restauro? O que se restaura? A palavra restaurar, de origem latina, traz
consigo a idéia de recobrar, reaver, recuperar, recompor. Ora, pelo que vimos até
agora, estas são ações impossíveis com relação ao bem patrimonial, posto que, ao
intervirmos na sua matéria, seja na sua estrutura ou na sua aparência, não o estamos
recuperando, mas modificando-o. Além do mais, preservar e restaurar, apesar de
serem conceitos interligados, não são exatamente ações associadas e nem sempre
complementares, pois restaurar significa intervir em um bem, ao passo que preservar
significaria apenas, a princípio, a sua transmissão através do tempo. A interligação
biunívoca entre as práticas de preservação e restauração, portanto, só teriam sentido se
para a transmissão do bem - e o seu vigor no presente – fosse indispensável a sua
recuperação, o que já vimos não ser também sempre necessário. A ação de restaurar,
portanto, se aplica apenas quando há um objetivo precípuo de superar a destruição
causada na transmissão daquele bem que, sem a ação do restauro, perderia totalmente
o seu potencial de significação15. Restaurar, portanto, parece ser uma ação interventiva
que visa recolocar o bem patrimonial no jogo do presente através da recuperação de
suas próprias perdas e é, portanto, sempre um processo de re-significação e daí uma
re-criação que se faz sobre a matéria que conseguiu sobreviver ao tempo.
Essas premissas poderiam nos dar a ilusão de que, então, ao desaparecer
efetivamente o objeto do restauro, se desapareceria também o seu objetivo, o que, é
claro, não faz sentido. Essa digressão nos leva a compreender, então, que a ação de
restaurar está presente na dimensão existencial do ser, mas deve ser repensada mais
quanto aos seus objetivos do que quanto aos seus objetos (sobre os quais a História da
Restauração sempre versou). No entanto, não é pelas dificuldades epistemológicas
relacionadas ao objeto do restauro que estariam liberados os limites de ação do
restaurador. Essas dificuldades só nos mostram que, na realidade, ao aprofundarmos
nossa investigação sobre patrimônio, preservação e restauro, não estamos “reduzindo”
15 O que também já vimos, através de Riegl, ser impossível, pois mesmo uma ruína é prenhe de
significados.
19
a aplicabilidade desses conceitos, mas ampliando-os e com isso, também
redimensionando o “objeto” do restauro. É essa a tarefa que se nos apresenta neste
momento e convém começarmos por algumas distinções conceituais importantes que
se dão, por exemplo, entre preservação e restauro ou entre conservação e restauro,
dentre outras.
20
A identidade em transformação: a capacidade de mudança do bem, mantendo o
equilíbrio dos modos pessoal e impessoal, dentro da dinâmica do tempo e da
cultura;
3. Saídas
Quais seriam, portanto, as saídas para os dilemas que a própria noção de
patrimônio cultural traz consigo? Até onde nos é permitido vislumbrar, podemos
propor que essas saídas estão no reconhecimento da relatividade do bem patrimonial e
no reconhecimento da intersubjetividade.
16 JEUDY, 2005, p. 27
21
relatividade de toda opinião (...) e ter senso histórico significa pensar expressamente o
horizonte histórico co-extensivo à vida que vivemos e seguimos vivendo” 17. Esse senso
histórico permite ao homem moderno se entender na perspectiva do tempo e
relativizar a sua opinião, dois pontos fundamentais para se exercer a abertura
necessária à interpretação hermenêutica.
Quanto ao terceiro ponto, Gadamer identifica também uma consciência estética,
como sendo um tipo de compreensão que se realiza a partir do próprio centro da
relação entre o fruidor e a obra de arte, na verdade que aí, na relação, se estabelece.
Para ele, a verdade da arte não estria na referência à realidade, como resultado de sua
imitação ou transformação, mas no mundo que ela própria institui, o qual cria a sua
própria verdade quando a nós se apresenta. Tal distinção que a obra de arte possibilita em
relação ao objeto real – à qual Gadamer chama de “distinção estética” –uma abstração
que lhe é salutar, na medida em que cria o canal específico de sua compreensão,
independente dos outros elementos de sua “realidade” (seu objetivo, sua função ou o
significado de seu conteúdo). Essa abstração, no entanto, não deve ser confundida com
a suposta qualidade estética ligada apenas ao belo e ao gênio, os quais apontamos
anteriormente, posto que o belo muitas vezes é influenciado pela consciência histórica
e que a genialidade é antes o reconhecimento do outro, portanto exteriorizada. A
abstração a qual Gadamer se refere está situada antes na esfera do modo da
experiência, na abertura de um outro modo de vivência que a arte institui. A sua
realidade objetiva, claro, é também importante para a ancoragem da obra ao mundo e
para a complementação de seus significados, mas não substitui a abertura fornecida
pela realidade outra que a arte possibilita. “O que perfaz a soberania da consciência
estética é poder realizar por toda parte uma tal distinção [entre a realidade e a
abstração por ela criada] e poder ver tudo ‘esteticamente’.” 18.
22
constatação, supera-se, novamente, a centralidade no objeto e retorna-se, assim, à
questão do sujeito e do significado. Surgem daí várias correntes, todas elas em defesa
da ética, mas com visões diferentes, as quais defendem em graus também diferentes
uma intervenção maior ou menor no objeto, mas que de uma forma ou de outra, estão
profundamente condicionadas pelos valores de época, os quais, também por sua vez,
não são homogêneos. Para Viñas, por exemplo, a preservação seria, na verdade, tanto
mais “ética” quanto mais correspondesse ao horizonte de expectativa social. A
discussão de valores acaba levando à inclusão do debate sobre a função do bem
patrimonial, a qual além das funções psicológicas e sociais já mencionadas (proteção da
identidade, herança, etc.), também leva ao resgate mesmo da sua utilidade como fator
ético importante para servir à sociedade em que se insere o bem. De qualquer forma, os
objetos de preservação
[...] também podem desenvolver funções de natureza muito variada,
tangível ou não. Ele, constantemente, produz conflitos entre os sujeitos
afetados por um processo de Restauração, porque potencializar uma
função habitualmente limita ou condiciona outras. A importância de cada
função variará para cada usuário; a decisão eticamente correta sobre que
ações desenvolver não pode basear-se nas prioridades de um indivíduo
como restaurador, como químico, como historiador da arte, como
proprietário, como decisor, etc. Seria eticamente mais correto (mas também
funcionalmente melhor) tentar melhorar o mais sincera e
equilibradamente possível as eficácias que esse objeto tem para seus
usuários, para cada pessoa, para quem desenvolve alguma função de
algum tipo. Nestes casos, o critério de atuação tampouco pode variar
muito com respeito ao que se viu antes: em teoria o ganho funcional tem
que ser máximo. (VIÑAS, 2003, p. 159).
23
ambiental e cultural e nunca dizendo respeito a um modelo final a ser perseguido, mas,
antes, a um processo. Tudo isso, a nosso ver, em estreita correspondência com a
preservação de nosso patrimônio cultural.
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24
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ZANCHETI, Silvio Mendes (org.). Conservation and Urban Sustainable Development: a
theoretical framework. Recife: Editora Universitária UFPE, 1999.
25
POR UMA AGENDA DE DISCUSSÕES SOBRE A
CONSERVAÇÃO DA ARQUITETURA MODERNA
Resumo
As cartas ou recomendações são documentos, elaborados no nível
internacional e nacional, nos quais estão definidos procedimentos, normas
e conceitos balizadores da prática da conservação. Conforme informa
Rowney (2004), visam atender a dois objetivos principais: apresentar uma
destilação da filosofia da conservação do momento presente e definir
diretrizes para a prática da conservação. Juridicamente as cartas não têm
força de lei. Todavia, são fontes fundamentais utilizadas pelos Estados na
concepção das normas e na execução das estratégias de proteção ao
patrimônio. Tratando especificamente da arquitetura moderna (AM), ainda
que sua importância e seus valores venham sendo progressivamente
legitimados nesses documentos, são ainda reduzidas as discussões sobre a
forma como os princípios de conservação dos exemplares da arquitetura de
períodos anteriores podem ser aplicados aos bens desse período. Nesse
sentido, este artigo discute as possibilidades de aplicação das
recomendações ou cartas patrimoniais, elaboradas considerando as
características dos bens culturais de períodos mais antigos, aos edifícios da
AM. A abordagem não tem por objetivo apenas apontar as limitações, mas
sim consolidar uma reflexão pautada na construção de caminhos possíveis
de leitura e aplicação desses documentos. Considerando que no campo da
conservação do patrimônio cultural não há respostas prontas, pois cada
edifício demanda questões particulares, sempre que possível as discussões
serão ilustradas com exemplos práticos. Espera-se, assim, construir uma
abordagem com maior clareza e consistência, capaz de apontar direções
que possam vir a se constituir numa agenda, ainda que embrionária, para
elaboração de novas cartas, focadas nos desafios impostos pela arquitetura
desse momento.
Palavras-chave: recomendações internacionais, arquitetura moderna e
conservação.
Introdução
As cartas patrimoniais são elaboradas com o fim de trazer considerações sobre
aspectos relativos à conservação do patrimônio. São produzidas em encontros de
entidades internacionais, como o ICOMOS, (Conselho Internacional de Monumentos e
Sítios) e nas sessões da UNESCO. Atendem a dois objetivos: apresentar destilação da
filosofia da conservação do momento e definir diretrizes para a prática da conservação
(ROWNEY, 2004).
UNB. flavianalira@hotmail.com.
26
Juridicamente não têm força de lei, mas são fontes fundamentais para a
concepção das normas legais e para a execução das estratégias de proteção e de
conservação do patrimônio.
Apesar da existência em alguns países já no século XIX de dispositivos
institucionais de proteção ao patrimônio, a primeira carta de abrangência internacional
só foi elaborada depois da I Guerra Mundial, em virtude da necessidade de restaurar o
patrimônio destruído naquela ocasião20. A partir daí, a preocupação com o patrimônio
passou a ser questão internacional.
Com a instituição do título de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO na
década de 1970, há um aumento considerável na produção de cartas. De acordo com
Rowney (2004), visa-se consolidar princípios universais de conservação, garantindo a
salvaguarda em iguais condições dos bens classificados na Lista do Patrimônio
Mundial. Mesmo buscando entendimentos ou posturas consensuais aplicáveis
internacionalmente, cada país é estimulado a elaborar suas próprias cartas
patrimoniais, considerando seus contextos sociais, econômicos e culturais.
Em relação ao conteúdo trazido pelas cartas, pode-se constatar que são diversas
as questões tratadas e que o traço comum a todas elas é a busca pela consolidação de
princípios balizadores da prática. Outro aspecto perceptível a partir da leitura das
cartas é que há uma significativa transformação no tempo das noções de patrimônio,
de conservação e de outras correlatas ao tema.
Tratando especificamente da AM, ainda que sua importância e seus valores
venham sendo progressivamente legitimados nas cartas patrimoniais, não são comuns
discussões voltadas para a forma como os princípios de conservação dos exemplares
da arquitetura de períodos anteriores podem ser aplicados aos bens desse período.
Nesse sentido, busca-se responder a uma pergunta central: em que medida os
princípios destilados pelas cartas patrimoniais podem ser adotados na conservação da
AM?
Para tanto, o artigo encontra-se estruturado em três seções. Na primeira são
explicitadas as particularidades trazidas pelos edifícios modernos e os desafios à sua
conservação. Na seção seguinte, essas particularidades guiam a análise sobre como o
conteúdo de algumas das mais importantes cartas trazem à conservação dos
exemplares da AM. Na última seção, é realizado um exercício de síntese com o intuito
de consolidar premissas envolvidas na problemática da conservação da AM, bem como
apontar as direções para seu enfrentamento.
20Como resposta a essa demanda, no ano de 1931 os países europeus organizaram conferência sobre o
tema e elaboraram o primeiro documento internacional a tratar de políticas de preservação do patrimônio:
a Carta de Atenas. É importante ressaltar que a referida carta, publicada em 1931 pelo Escritório
Internacional dos museus, é distinta da Carta de Atenas elaborada em 1933 e publicada em 1945 pelo
CIAM (Congresso Internacional da Arquitetura Moderna).
27
1. As particularidades da arquitetura moderna e os desafios à sua conservação
Segundo Macdonald (2003), nos últimos vinte anos presencia-se um aumento no
interesse em conservar o patrimônio do século XX. Isso pode ser observado tanto no
nível nacional, como no internacional, por intermédio da atuação do DOCOMOMO.
Por iniciativa do DOCOMOMO, foi publicada em 1990 uma carta focada
exclusivamente na preservação da AM: a Declaração de Eindhoven (1990) 21. Mesmo
sendo uma iniciativa pioneira, não há no escopo dessa declaração nenhum
entendimento que já não estivesse presente em outras cartas elaboradas com o foco no
patrimônio de períodos anteriores.
Além da atuação de organismo de proteção local e do DOCOMOMO, também se
pode observar mais recentemente aumento do interesse pela proteção da AM, por
parte de agências e organismos vinculados à UNESCO. Essa tendência é expressa por
meio do número crescente de conferências internacionais sobre o tema22.
Todavia, apesar dos avanços recentes, a conservação do patrimônio moderno
ainda traz grandes desafios. Sobre o assunto, Macdonald (2003) dispõe:
21 De forma sintetizada, esta declaração dispõe sobre: a importância de chamar a atenção do público, das
autoridades, dos profissionais e da comunidade educacional sobre o significado do movimento moderno;
o estímulo à identificação e à documentação das obras por meio de registros escritos, fotografias, desenhos
e outros documentos; a promoção do desenvolvimento de técnicas e de métodos apropriados de
conservação e a disseminação delas no meio profissional; a oposição à destruição e à desfiguração de obras
desse movimento; a importância de atrair financiamento para sua documentação e conservação; a
necessidade de explorar e desenvolver o conhecimento acerca do movimento moderno.
22 Em 2001 a UNESCO promoveu encontro voltado para a discussão sobre os meios de aprimorar a
28
funcionais e estruturais subvertem sua concepção projetual. O princípio de que a forma
segue a função pode tornar os edifícios modernos menos flexíveis a adaptação a novos
usos e, consequentemente, mais suscetíveis à obsolescência e a demolições prematuras.
Macdonald (2003) entende que o argumento de que os edifícios modernos foram
concebidos para ter um tempo de vida útil curto não se aplica a toda a produção desse
período. Para ela, são apenas os edifícios descritos como “futuristas”, do início do
modernismo, que foram projetados com esse fim.
Apesar de romper com esse mito, que pode ter servido de justificativa para uma
série de demolições, a autora dispõe que estudos realizados no Reino Unido
demonstraram que os edifícios modernos exigem reparações iniciais em
aproximadamente metade do tempo dos edifícios de períodos anteriores, ou seja, entre
25-30 anos após sua construção. As grandes reparações costumam ser necessárias no
prazo de 50-60 anos para os edifícios modernos e entre 100-120 anos para edifícios
tradicionais.
Macdonald (2003) dispõe que o desgaste precoce e mais acelerado desses
edifícios é, frequentemente, resultado do uso de materiais sem o adequado
conhecimento de sua performance, bem como da utilização de materiais tradicionais de
novas maneiras.
O abandono de formas tradicionais de detalhar, com o objetivo de alcançar uma
“nova estética moderna”, e a ausência de um adequado conhecimento da melhor forma
de utilizar os novos materiais é outra questão que traz desafios à conservação da AM.
Em virtude disso, são comuns em muitos edifícios modernos problemas de infiltração e
de acondicionamento térmico.
29
Figura 3. A arquitetura como artefato artístico Figura 4. A arquitetura como artefato artístico
concluído: Catedral de Brasília. concluído: Igreja de Nossa Sra. de Fátima,
Fonte: Autora, 2009 Brasília. Fonte: Autora, 2009.
A manutenção não era, portanto, um aspecto primordial uma vez que os edifícios
deveriam satisfazer às necessidades daquela sociedade, pois as gerações futuras
levantariam suas próprias necessidades. “Mesmo mestres modernos, como Aalto,
costumavam desconsiderar a possibilidade de proteger suas obras por mais tempo que
sua funcionalidade permitisse” (JOKILEHTO, 2003, p. 108, tradução nossa).
A pátina do tempo é também questão polêmica e complexa na conservação da
AM. Os materiais com superfícies polidas e com brilho, como o vidro e os metais, e as
formas arrojadas que caracterizam a AM parecem não “deixar espaço” para a pátina.
Macdonald (2003) afirma que o entendimento de que o edifício moderno não foi
concebido para ser envolto pela pátina tem levado a uma postura que privilegia a
substituição dos materiais sob o argumento de que o reparo sem a reconstrução vai
suprimir do edifício algo que é central à sua autenticidade: a sua imagem.
O reconhecimento da AM como patrimônio cultural, por meio da atribuição de
significados e valores, apesar de ser a última questão levantada por Macdonald (2003),
é a primeira que deve ser solucionada. Mesmo que os organismos de proteção estejam
cada vez mais empenhados na proteção desse legado, a adesão da sociedade é ainda
reduzida. Jokilehto (2003), ao buscar explicações para esse fato, afirma:
30
de projetar e de construir edifícios modernos ainda estão vivos na memória,
oferecendo um potencial para entendê-los de uma maneira muitas vezes superior
àqueles empregados na arquitetura tradicional.
Projeto e funcionalismo
A seção anterior pontuou as dificuldades de adaptação a novos usos comuns aos
edifícios modernos. Por outro lado, é consenso entre os documentos publicados desde
a Carta de Veneza (1964) que a continuidade de uma função útil à sociedade é
imprescindível para a conservação do patrimônio arquitetônico e urbanístico.
O paradoxo que se instaura é comum a edifícios de qualquer período. A
prerrogativa de que a reutilização é condição imprescindível para a preservação parece
ter produzido entre os técnicos e especialistas em conservação a ideia de que no
interior são aceitos critérios de intervenção mais flexíveis que aqueles aplicados no
invólucro externo.
É interessante observar que na mesma Carta de Veneza (1964), em que é
ressaltada a importância da destinação de um uso contemporâneo ao patrimônio, está
também disposto que as alterações necessárias à adaptação não devem implicar
alterações na disposição ou decoração dos edifícios.
A despeito desse entendimento, antigas alfândegas viram shoppings, igrejas se
transfiguram em salas de exposições, galpões portuários em bares e restaurantes, entre
outros. Essa postura, tão disseminada na prática da conservação do patrimônio, tem
como consequência a fragmentação da natureza própria da arquitetura, ao tratar
interior e exterior como entes independentes, e não como partes que, articuladas,
constituem o espaço arquitetônico. Se a arquitetura se consubstancia por meio do
espaço, o desafio posto à reutilização de um exemplar moderno ou de um do período
colonial é o mesmo: dotar o edifício de um uso compatível23 com suas características
compositivas, e não o contrário. Assim, os desafios trazidos pelo projeto funcionalista
moderno à introdução de novos usos não são, em princípio, distintos ou maiores que
os de edifícios de períodos anteriores.
A complexidade da preservação e conservação, todavia, não pode servir de
argumento para o abandono. Como dispõe a Declaração de Amsterdã (1975), o
patrimônio precisa ser tratado como parte integrante da cidade, que tem uma função
social a cumprir. Neste documento é explicitamente defendido que mesmo naqueles
Por uso compatível, segundo a Carta de Burra (1999), entende-se aquele que respeita e não provoca
23
31
casos nos quais as operações de restauração são mais onerosas que a construção do
novo, os “custos sociais” da segunda opção são maiores.
Outra questão de grande importância trazida pela Carta de Veneza (1964) refere-
se às adições. No corpo dessa carta está disposto que as contribuições de todos os
períodos devem ser respeitadas e mantidas, a menos que não possuam interesse ou
estejam ocultando algo de valor. Se a AM foi projetada como um produto acabado,
como manter as adições sem comprometer a sua estética?
Em princípio pode-se dizer que a dimensão estética deve prevalecer em
detrimento da dimensão histórica nos edifícios modernos. Tal postura poderia se
contrapor à Carta de Veneza e até mesmo à visão contemporânea de conservação, mas
poderia ser justificável perante a sociedade, e mesmo perante os especialistas, quando
se considera que se trata de um edifício moderno concebido enquanto um artefato
fechado, concluído.
Ainda que esse “desejo” de remover adições seja muitas vezes legitimado por um
grupo, generalizações podem ser arriscadas considerando a multiplicidade estilística
incluída sob a denominação de AM. Brandi (1964) propõe que o processo de tomada de
decisões relativo à restauração de obras de arte (estando aí incluídas as obras de
arquitetura) seja realizado a partir de um juízo crítico entre as instâncias estética e
histórica; esse é também o caminho mais acertado para se decidir sobre a manutenção
ou não das adições nos edifícios modernos.
32
Foi buscando evitar que se corrompesse esse valor e o traço historicizado da
fachada do edifício Pirelli, Milão – Itália, que a equipe responsável pela restauração
procedeu. Projetado e realizado entre os anos de 1956 e 1961 por uma equipe
coordenada pelo arquiteto Giò Ponti, o conjunto Pirelli representa uma das maiores
expressões arquitetônicas do século passado, na qual as soluções tecnológicas se
integram perfeitamente com as escolhas formais e decorativas (CARBONARA;
CAMPANELLI, 2003).
Os danos decorrentes da colisão de uma aeronave de pequeno porte no ano 2002
atingiram, sobretudo, o exterior do volume mais importante do conjunto, a torre de
cerca de 130 metros, com duas fachadas quase completamente em vidro, excetuando-se
as partes estruturais em cimento armado (pilastras e laterais), que são revestidas com
mosaico de pastilha cerâmica.
A intervenção nas fachadas teve duas grandes frentes: o restauro de parte dos
perfis metálicos da cortina de vidro e a recuperação do mosaico de pastilha cerâmica.
Em relação à cortina de vidro, a primeira decisão foi conservar seus perfis em
alumínio, evitando substituições por elementos novos análogos ou por um sistema
contemporâneo. Vidros e guarnições foram substituídos de modo a garantir padrões
adequados de conforto e bem-estar térmico, enquanto isso foi realizada a recuperação
dos perfis metálicos e de seus acessórios, posto ser eles de reconhecido valor
arquitetônico e construtivo. Excluindo-se aqueles irremediavelmente danificados ou
perdidos, cada parte foi limpa, rechumbada e reanodizada, a fim de que readquirisse a
funcionalidade e a capacidade de resistência aos agentes atmosféricos, conservando,
porém, os traços de seu natural envelhecimento (CARBONARA; CAMPANELLI, 2003).
A mesma linha conceitual orientou a intervenção sobre o revestimento do
mosaico de pastilha cerâmica da fachada. Depois de um atento mapeamento dos
danos, foi realizada a consolidação e a limpeza das pastilhas e, onde foi necessário, a
reintegração com elementos novos. A opção pela uniformização entre partes originais e
partes integradas justificou-se pelo desejo de não fragmentar a imagem do edifício – na
qual as pastilhas representam uma estrutura orgânica e contínua sem que prevaleça
nenhum elemento – e em razão da relativa pequena extensão percentual da lacuna
(CARBONARA; CAMPANELLI, 2003).
O restauro do conjunto Pirelli pode ser tomado como um caso paradigmático de
restauração de um edifício moderno, seja pelo respeito aos materiais e às técnicas
originais, seja pelo cuidadoso processo de documentação.
Pátina do tempo
Em 1972 foi publicada na Itália a Carta do Restauro, que traz para o debate da
conservação uma importante noção: a de pátina.
De acordo com esse documento, a pátina, entendida como o efeito da passagem
do tempo nas superfícies dos objetos, deve ser conservada por razões históricas,
estéticas e técnicas. No caso dos edifícios modernos, como visto anteriormente, não é
consenso a manutenção da pátina, especialmente quando se argumenta que eles não
foram projetados para envelhecer.
33
A passagem do tempo deixa marcas nos edifícios modernos e, ainda que eles
tenham sido pensados para não carregar tais marcas em suas superfícies, é importante
que a pátina seja mantida porque houve um transcurso no tempo que não deve ser
apagado.
A intervenção no conjunto Pirelli traz, também neste aspecto, contribuições
importantes. Segundo Salvo (2005), o princípio orientador da intervenção adotado pela
equipe foi o reconhecimento do valor de “trâmite” que a matéria autêntica possui na
perpetuação da imagem e, naturalmente, do valor histórico e também estético do
objeto.
A partir dessa abordagem, o edifício foi aceito como era, “marcado pelo tempo,
em sua forma e substância” e, “mesmo os ‘defeitos’, erros técnicos ou alterações
superficiais do material representam testemunhas históricas do processo que conduziu
à situação contemporânea, devendo assim ser conservados absolutamente ‘autênticos’”
(SALVO, 2005, p. 68, tradução nossa).
A opção pela manutenção ou limpeza da pátina deve resultar de um juízo crítico
que considere, por um lado, a sua importância estética e como elemento que agrega ao
edifício valor de ancianidade e, por outro, o limiar em que esta deixa de ser um efeito
positivo para se tornar algo destrutivo, por se formar a partir da degradação do
próprio material.
Reconhecimento
A Carta de Burra (1999) é uma das mais importantes cartas patrimoniais já
publicadas em virtude da abrangência dos temas que trata e da precisão dos conceitos
que propõe relativos à conservação. Nesse sentido, apesar de trazer entendimentos já
presentes em outras cartas, pode-se dizer que ela é mais completa e operacional que a
Carta de Veneza (1964), documento norteador de sua construção, além de ser
responsável por vincular definitivamente a conservação do patrimônio à sua
significância cultural.
Segundo esse documento, o fim principal de qualquer ação que envolva o
patrimônio deve ser a garantia de sua significância cultural. No corpo dessa carta está
disposto que, em primeiro lugar, deve vir “a compreensão do significado cultural,
depois o desenvolvimento da política e, finalmente, a gestão do sítio de acordo com
essa política”.
Reconhecer a significância cultural de edifícios do movimento moderno ainda é
um desafio, pois são difíceis os consensos sobre os valores passíveis de conservação
entre os envolvidos com esses bens, em especial quando se considera o público
comum.
O único caminho para despertar nas pessoas a consciência da importância de
preservar os edifícios modernos é por meio de programas de educação e divulgação de
suas características e de seus significados. Como afirma a Carta de Burra (1999), a
significância cultural nem sempre está a vista, muitas vezes é preciso explicitá-la.
34
3. Por uma agenda de discussões sobre a conservação da AM
As discussões até aqui construídas demonstram que os princípios balizadores da
conservação da arquitetura de períodos mais antigos são capazes de dar respostas à
problemática específica da AM. No entanto, enquanto há muitas posturas consensuais
do que vem a ser boas práticas de conservação e restauração em edifícios ditos
tradicionais, nos exemplares modernos os consensos ainda estão por serem formados.
Sem perder de vista que no campo da conservação do patrimônio cultural não há
respostas prontas, esta seção buscará levantar aspectos com os quais os profissionais
envolvidos na conservação da AM deverão ser deparar. Para tanto, alguns pontos
tratados nas seções anteriores serão retomados em forma de premissas, bem como
outros serão levantados. Pretende-se, assim, sistematizar essa problemática, apontando
caminhos para seu entendimento e enfrentamento.
Premissa 1: Reconhecer a significância cultural de edifícios do movimento
moderno é o maior desafio à sua conservação. A ausência de consciência patrimonial
está relacionada tanto à falta de conhecimento sobre os significados históricos e
artísticos dos bens, como a inexistência de um sentimento de identificação e
pertencimento das pessoas para com eles. É necessário conscientizar a comunidade por
meio de programas de educação e de divulgação de suas características e de seus
significados, para tanto o especialista tem papel central. Apenas por meio dessa
mobilização é possível alcança o apoio político necessário para se proceder à sua
conservação.
Premissa 2: O experimentalismo, tanto no uso de novos materiais e técnicas,
como no emprego de materiais tradicionais de maneira não usual, é um traço comum à
AM. Uma das principais consequências dessa particularidade é o envelhecimento
precoce e a deterioração acelerada. O caminho mais adequado para retardar esse
processo e evitar intervenções restaurativas – sempre mais impactantes – é por meio da
realização periódica e programa de ações manutenção.
Premissa 3: A continuidade de função útil à sociedade é condição imprescindível
para a conservação do patrimônio arquitetônico e urbanístico moderno. O preceito de
que a forma segue a função pode ser rompido quando são destinados usos não
condizentes com o projeto funcionalista moderno. Usos que requeiram mudanças na
espacialidade interna ou na decoração dos edifícios devem ser evitados, sob a pena de
perda de suas características projetuais e figurativas autênticas. O desafio é melhorar
suas condições de uso e de conforto ambiental sem comprometer sua espacialidade e
figuratividade
Premissa 4: Os edifícios modernos estabelecem estreita relação com o entorno
urbano ou rural onde são implantados, que pode ser, harmônica, ao buscar integração,
ou contrastante e conflituosa, ao buscar a ruptura. Por isso, é latente a necessidade de
preservar o entorno o mais próximo possível do original, como forma de compreender
o significado do próprio edifício.
Premissa 5: Muitos dos materiais utilizados na AM ainda são utilizados hoje, no
entanto de forma tecnologicamente mais desenvolvida. A questão a ser enfrentada
para que não se apague esse aspecto da autenticidade diz respeito ao cuidado no
emprego, quando necessário, de técnicas construtivas e materiais atuais. Quando não
35
for possível ou desejável fazer uma distinção clara entre as parte novas e as originais, é
fundamental que a intervenção seja documentada por meio de registros escritos e
fotográficos.
Premissa 6: A passagem do tempo deixa marcas nos edifícios modernos, ainda
que eles tenham sido pensados para não carregar tais marcas em suas superfícies. É
importante que a pátina seja mantida porque houve um transcurso no tempo que não
deve ser apagado ou mascarado, sob pena de perda de significados tanto históricos
como estéticos desses edifícios. Quando for necessária intervenção que acarrete
substituição dos materiais, deve-se buscar a utilização de materiais que proporcionem
envelhecimento das superfícies semelhantes aos originais.
Premissa 7: Grande parte dos exemplares da AM foram concebidos enquanto
objetos de arte, ou seja, como obras concluídas. Adições posteriores podem
comprometer suas características projetuais e figurativas autênticas e, por esta razão, a
postura principal deve ser favorável à sua remoção. Todavia, a cautela recomenda que
qualquer processo de tomada de decisões relativo à conservação e restauração de obras
de arquitetura seja realizado a partir de juízo crítico entre as instâncias estética e
histórica.
Referências
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storico-critica e progetto. Kermes: la rivista del restauro, Anno 13, N. 37, p. 11-19
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VIÑAS, Salvador Muñoz, 2004. Teoria contemporanea de la restauración. 1. ed. Madrid:
Editorial Sintesis.
37
GESTÃO DA CONSERVAÇÃO-RESTAURAÇÃO DO
PATRIMÔNIO CULTURAL: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE
TEORIA E PRÁTICA
Ozana Hannesch, Elisabete Edelvita Chaves da Silva♦, Marcus Granato♥ & Ana Paula
Corrêa de Carvalho♠
Resumo
Este artigo traz reflexões sobre como as correntes teóricas do campo da
conservação definem as práticas e os padrões das ações de intervenção no
patrimônio cultural. Reforça que a ação dos Conservadores está na
materialidade, mas o que se espera preservar e/ou conservar são os valores
associados com o patrimônio. Estes valores são influenciados por razões
temporais, sociais e subjetivas. Então, os contextos que determinam os
objetos da conservação-restauração, durante toda a história desta
disciplina, trazem consigo implicações para a autenticidade, a integridade e
a subjetividade, e têm impacto nas decisões técnicas e críticas dos
profissionais desta área.
Palavras chave: patrimônio cultural, gestão da conservação, teoria da
conservação.
Introdução
Na sua estruturação enquanto disciplina a Conservação-restauração esteve ligada
à pesquisa, tanto no aspecto teórico quanto prático, pois a construção do campo pelos
antiquários e, posteriormente, pelos arquitetos-restauradores do século XIX e XX
estava relacionada à experimentação concomitantemente a um habitus teórico que
respaldasse a intervenção.
Viollet-le-Duc, Ruskin, Brandi e tantos outros definiram suas orientações de
acordo com os códigos e atitudes estabelecidas nos cortes temporais que constituem a
história por eles vivenciada, e que foram assimiladas ou não, de acordo com os novos
grupos sociais herdeiros dos patrimônios construídos pelas humanidades, ou seja,
pelas diferentes culturas. Choay escreve que:
38
É uma concepção comum da arquitectura memorial que leva Ruskin a considerar
os monumentos do passado como sagrados e intocáveis e Viollet a promover uma
aproximação histórica e didáctica da restauração...
[...] Quando preconiza a restauração, Viollet trabalha num país em que disse e
repetiu que ignorava a cultura de manutenção (Choay, 2009, p.33).
Boito dirige-se para o valor documental dos monumentos: o respeito pela matéria
original, à unidade de estilo e à distinguibilidade. Riegel diferencia os conceitos de
monumento e monumento histórico e os valores a eles inerentes, como os
rememorativos e os de contemporaneidade e, assim, subsidia as novas premissas que
sustentam o patrimônio e as categorias das intervenções, ao definir também o valor
instrumental e o valor artístico relativo etc. “Ele demonstrou que em matéria de
restauração não pode existir nenhuma regra científica absoluta, cada caso inscreve-se
numa dialética particular de valores em jogo...” (Choay, 2009, p.35).
Brandi, que nos é mais próximo, preconiza diretrizes de observância à estética, à
história, à função e à ambiência cultural. Vê o empirismo como inerente ao ato de
intervenção, ao considerar que o restauro é um ato crítico no qual devemos dar atenção
para o juízo de valor. Viñas direciona para a sociedade a coresponsabilidade da gestão
da conservação, que deve subsidiar a intervenção.
Esses profissionais gestores – restauradores, arquitetos, historiadores,
administradores – demonstram-nos que as práticas têm acompanhado os valores
intrínsecos em cada época e que os preceitos teóricos fazem parte dos desdobramentos
que essas ações desencadeiam. Assim, apesar de intervir na materialidade, o que se
deseja preservado ou conservado são os valores: temporais, sociais e subjetivos
inerentes aos patrimônios culturais, decorrentes dos grupos sociais que os constroem.
As características constitutivas do patrimônio, constatadas pelo olhar do final do
século XX e início do século XXI, tais como ambiguidade, polissemia, materialidade,
etc., requerem a ampliação do foco dos gestores para fora dos seus domínios de
trabalho, em função do caráter inclusivo deste conceito, das categorias e dos seus
limites.
1. Termos e conceitos
Como uma disciplina em fase de consolidação, a Conservação-Restauração ainda
hoje enfrenta uma terminologia difusa no seu uso. Os verbos preservar, conservar e
restaurar aparecem em diferentes contextos e épocas, às vezes como sinônimo, às vezes
como excludentes.
Se considerarmos a adoção do termo conservação preventiva e sua definição
mais recente (Vantaa, 2000), percebemos que ainda estamos longe de chegar a um
39
acordo nestas conceituações, especialmente quando recordamos o questionamento de
Viñas (2003) que defende, por definição, que toda conservação já embute uma ideia de
prevenção, não?
Por fim, acentuando esta problemática frente aos conceitos utilizados no exercício
profissional, trazemos o termo restauração preventiva, utilizado por Brandi (2004). Aos
olhos do século XXI podemos afirmar que estas discussões já estão superadas dentro
do que chamamos de linguagem especializada?
Toda esta terminologia repercute nos equívocos e na compreensão que o público
em geral faz destes termos, ao mesmo tempo em que é por meio destas discussões que
nossa visão profissional vai se tornando mais clara quanto aos conceitos. Jokilehto
coloca o tema da seguinte perspectiva:
Os conceitos modernos relacionados com a conservação do patrimônio cultural e
natural estão fundamentalmente relacionados com o desenvolvimento da
modernidade. Esse desenvolvimento começa no século dezoito, embora baseado em
raízes mais antigas. A própria modernidade é marcada por várias mudanças na
sociedade, indo de inovações técnicas e cientificas a aspectos sociais e econômicos e a
reflexões filosóficas e culturais. (Jokilehto, 2002, p. 12).
A visão deste autor traz uma perspectiva sincrônica em função da temporalidade
nos quais estão inseridos os processos de conservação-restauração de bens culturais. E
que, na atualidade, encontramo-nos, cada dia mais, diante de um ideal de
inclusividade de valores, difícil de ser delimitado na interdisciplinaridade.
2. Correntes teóricas
Pode-se afirmar que o interesse histórico e científico pelos monumentos antigos
desenvolve-se muito lentamente no período conhecido como Renascimento. Mas é
apenas com a Revolução Francesa que se inicia o empenho e a intervenção do Estado
pela preservação destes, assim como pela sua promoção como de interesse público.
Para Luso, Lourenço e Almeida (2004), neste período, tornou-se necessário não só
protegê-los, mas definir as metodologias para sua conservação e restauração de uma
forma entendida como adequada. É possível verificar o quanto essas iniciativas deram
origem às primeiras legislações nos países europeus e que, posteriormente, foram
assimiladas por países do continente americano e disseminadas por organismos
internacionais governamentais como a UNESCO, o ICOM, ICOMOS, ICCROM, entre
outros.
Eugène Emmanuel Viollet-Le-Duc (1814-1879) desponta, na França, um dos
primeiros teóricos da restauração, fundamentando a intervenção no conhecimento do
passado para, entendendo às intenções do autor e a lógica do projeto, recompor a
40
construção para o que seria sua forma ideal: a pureza de estilo (Violllet-le-Duc, 2000).
Estas ideias foram explicitadas no Dicionário de Arquitetura Francesa, publicado entre
os anos de 1854 e 1871, especialmente no verbete Restauração. Sua produção teórica
não o eximiu das críticas que se apresentaram ao caráter de suas intervenções,
conforme coloca Choay (2006), que escreve:
A noção de estrutura, porém, levava-o a retomar, ao empreender a restauração
real dos edifícios medievais, a atitude idealista que havia presidido às “restaurações”
dos monumentos clássicos desenhadas pelos antiquários e que davam continuidade às
“restituições” da Escola de Belas Artes. Reconstituindo um tipo, ele se mune de uma
ferramenta didática que restitui ao objeto restaurado um valor histórico, mas não a sua
historicidade (CHOAY 2006, p. 158).
Na sua contemporaneidade as ações de Viollet foram interpretadas como uma
intervenção drástica e, numa época posterior, como um falso histórico. Entretanto, na
tarefa de conhecer a obra, procurava reunir o maior grupo de documentos e de
documentação para entendê-la. Esse esforço em prol de uma pesquisa que
fundamentasse as intervenções talvez seja seu principal legado.
Em oposição ao que poderíamos chamar da corrente teórica difundida por
Viollet, está John Ruskin (1819-1900), Inglaterra, que difundia o absoluto respeito à
matéria original e negava qualquer possibilidade de intervenção no edifício que não
fosse apenas para sua manutenção. Propunha considerar e manter as alterações feitas
em uma obra durante sua existência. Ao tratar deste tema Jokilehto afirma:
A nova consciência histórica que evoluiu do século dezoito chamou a atenção
para o significado da autenticidade do material histórico dos monumentos antigos.
Compreendeu-se que o trabalho de um artesão ou de um artista era inevitavelmente
caracterizado pela cultura e pelas condições socioeconômicas da época. Era, portanto,
impossível reproduzir o trabalho em seu significado original em um contexto cultural
diferente, mesmo que as formas fossem fielmente copiadas (Jokilehto, 2002, p. 13).
Neste sentido, ao revermos os preceitos difundidos por Ruskin, percebemos o
respeito máximo ao tempo de existência de uma obra, um aspecto do conceito de
autenticidade, relacionado ao seu caráter documental. Contudo, ao buscar a
manutenção ou sua conservação, em que medida se afeta ou afetará seu valor
simbólico? Ainda hoje nós, profissionais da conservação-restauração24, nos
defrontamos com esta pergunta.
No final do século XIX e início do século XX, surge ainda Camillo Boito (1836-
1914), na Itália, que defendia uma intervenção mínima – a essencial para que o edifício
24Aplicamos aqui este termo a fim deixar claro o uso dos dois conceitos, isto é, a Conservação como mais
abrangente, englobando a Restauração (ação restrita e especializada), e a conservação, tanto preventiva
como curativa, porém com intervenções sobre o acervo ou ambiente. Do mesmo modo retomaremos o
termo neste texto quando desejarmos fazer esta ênfase.
41
mantivesse a unidade de estilo, com a preservação da pátina – mas, se necessário,
também a demolição de elementos acrescentados com o tempo (Boito, 2002).
Considerava, numa linha mais centralizada, que toda adição de recomposição deveria
ser claramente identificável, “consolidando uma via, conhecida na Itália como ‘restauro
filológico’, que dava ênfase ao valor documental da obra” (Kühl, 2008, p. 19). Os
princípios deste verbete de atuação foram apresentados no III Congresso de Arquitetos
e Engenheiros Civis, em Roma, 1883.
Nesse contexto considera-se que todo objeto está arraigado de informações que
dizem respeito à cultura de onde advêm materiais (localidade, especificidades
constituintes), estilo que representam (apresentação estética, período), uso (culto,
artefato, arte, moradia); nível tecnológico e científico em que foram
criados/produzidos (técnicas construtivas, alteração dos materiais) etc. Estes
elementos contêm dados sobre as obras e as identificam, sendo importantes
ferramentas no trabalho de todo conservador-restaurador.
No rastro da Segunda Grande Guerra Mundial, monumentos e coleções inteiras
ficaram muito danificados, gerando um movimento de questionamento dos conceitos
do "Restauro Científico" que exigiam postura de quase neutralidade do
arquiteto/conservador em relação ao bem cultural. Uma nova postura prevaleceu, o
Restauro Crítico, com uma atitude mais flexível por parte dos profissionais,
principalmente europeus, face à pressão social e política pela recomposição de
monumentos e objetos danificados.
Em 1964, durante um congresso em Veneza, os princípios do Restauro Científico
voltam a prevalecer, sendo ampliados e revistos na Carta Italiana de Restauro de 1972,
por Cesare Brandi. Brandi, acrescentou outras questões e reflexões aos que o
antecederam, buscando entender a obra na sua materialidade e epifania, definindo que
(Brandi, 2004):a) restaura-se a matéria da obra de arte, ou seja, sua estrutura – é sobre
ela que devemos atuar;
b) entretanto, esta restauração visa restabelecer a unidade potencial da obra, em
toda sua manifestação, sem cometer o falso artístico ou o falso histórico.
Brandi (2004) aplica o fundamento de que na obra de arte deve haver prevalência
do critério estético sobre o histórico, por ele considerá-lo sua função primordial.
Verifica-se ainda, na episteme desta consciência, o critério que permitia ao artesão-
restaurador experimentar uma relação de criação com a obra, ao mesmo tempo em que
desenvolvia a prática das intervenções, possibilitando, contudo, reflexões e
questionamentos sobre a disciplina que estava se estabelecendo. Viñas (2006) afirma
que isto se dá dentro de uma atmosfera do restauro ainda intuitivo e subjetivo.
É possível reconhecer, nestas poucas linhas de texto, princípios que hoje
continuam orientando critérios de intervenção não somente da parcela do patrimônio
cultural denominada de “patrimônio arquitetônico”, mas também do artístico,
42
bibliográfico, arqueológico, entre outros. Estas foram tentativas de disciplinar os
tratamentos, a fim de que não trouxessem prejuízos às obras, o que nem sempre se
pode considerar que foi sucedido. Entretanto, são ações carregadas do contexto de suas
épocas e experiências inequívocas de delimitar o “campo” da conservação
/restauração.
Neste quadro, surge um novo paradigma do final do século XX, que tem como
marco a perda de patrimônio nas enchentes de Florença (1966 – Itália) e a tomada de
consciência sobre o problema da poluição desenfreada, da chuva ácida, e do papel
quebradiço (1960 – EUA). O foco das ações direciona-se a recuperar grandes volumes
de acervos e edificações que foram danificados e que necessitam de longo prazo, alto
custo e inúmeros especialistas para serem recuperados, sem a certeza de que o trabalho
seria concluído de forma adequada ao custo versus benefício. Junta-se a esta dúvida o
alargamento do conceito de patrimônio, que amplia cada vez mais os domínios de
atuação da conservação-restauração e a participação das outras disciplinas que lhe são
complementares.
É também neste período da segunda metade do século XX, que a Conservação-
Restauração tornar-se uma disciplina mais científica, na tentativa de abandonar os
modelos mais artesanais, para reivindicar legitimação enquanto ciência independente.
Entretanto, esta área vê-se em frente a dois problemas imediatos: 1) ausência de
formação especializada – consequentemente, tendo um número restrito de
profissionais com formação acadêmica e de pesquisa – e, 2) a necessidade de
reaproximação com o viés humanístico, que lhe é característico deste seu estágio
empírico. Tenta, assim, caminhar para uma visão de cunho mais interdisciplinar e
comprometido com aspectos culturais, científicos, bem como políticos e
administrativos. Aqui se verifica uma nova perspectiva de reflexão crítica, que produz
transformações na prática, técnica e ética da profissão.
Desde o início da disciplina Conservação-Restauração, sempre estiveram
presentes as orientações quanto à documentação e estudos preliminares para o
entendimento dos aspectos formais, do projeto original, da epifania da obra e seu
reconhecimento enquanto obra de arte, preceitos estes originados no Humanismo.
A apropriação e destruição do patrimônio cultural em decorrência de guerras e
invasões impulsionaram os gestores do patrimônio e de aí decorrem o advento das
‘cartas patrimoniais’, os esforços para aplicação de novos materiais de intervenção e os
novos métodos de exame e de tratamento com base científica (que é uma forte corrente
já no século XX), posturas que influenciam o trabalho desta disciplina, refletindo num
período reconhecido como Restauro Científico. Junta-se a isto a dificuldade de
reconstrução e duma enormidade de edifícios destruídos pelas grandes guerras na
Europa, o que suscita a reconstrução dos elementos materiais e do aspecto formal de
prédios e cidades, com vista a recuperação de seu valor simbólico.
43
Tais situações vêm ao encontro da mudança no cenário social de valorização do
passado e presente, que depois serão absorvidos dentro dos códigos de ética e da
atuação do profissional da conservação-restauração como princípios basilares, que
ainda são aplicados nos dias atuais.
44
numa visão que conjugue: globalização e identidade, participação e responsabilidade
social.
Neste sentido, é no final do século XX que reconhecemos a dimensão e o peso de
outro valor inerente aos bens culturais, que até aquele momento não havia sido
definido pelos teóricos de nossa área: o valor simbólico, conforme coloca Vinãs:
Ninguna circunstancia material justifica la preocupación por ellos, porque su
valor es otro: es un valor convencional, acordado y concedido por un grupo de
personas, o incluso, en ciertos casos, por una sola persona. Sobre estos objetos se
vuelcan unos valores que en realidad corresponden a sentimientos, creencias o
ideologías, es decir, a aspectos inmateriales de la realidad (2006, p.41).
É o entendimento do bem cultural em seu caráter simbólico e impregnado de
sentidos, um conceito ainda não explicitado. Identificamos em Brandi (2004) o ponto de
partida dos primeiros pressupostos a serem seguidos no final do século XX e início do
século XXI, ao apreender este caráter imaterial e simbólico e apontar que a restauração
atua na materialidade.
À medida que a disciplina vai se aprimorando, estreita-se também a relação com
a ciência (no sentido positivista). Basear nossas decisões no conhecimento científico, no
entendimento e proteção do(s) seu(s) significado(s), na documentação que lhe deve ser
complementar, na expectativa e benefício do seu proprietário e da sociedade e das
gerações futuras, este é o contexto que nos encontramos hoje. Numa dinâmica social
cada vez mais veloz... Como não cristalizar o patrimônio sem des-significá-lo25? Como
atualizá-lo na dinâmica temporal, considerando sua materialidade e imaterialidade26?
Entretanto, passados mais de trinta anos das primeiras reflexões de Brandi, ainda
nos encontramos buscando pontos de apoio mais seguros para a tomada de decisão e
de entendimento e proposição das intervenções, sem, contudo, de estarmos eximidos
de alguma crítica. O que é correto? Melhor seria perguntar: que atitude é aceita na
sociedade atual.
25 Queríamos aqui reforçar a ideia do termo significado, pois entendemos que este tem um sentido
simbólico distinto para cada grupo social ou individuo.
26 Utilizamos este termo aqui em oposição ao anterior, mas preferimos a forma patrimônio intangível.
45
substituída pelos estudos sobre a avaliação dos espaços de guarda, sobre o estado de
conservação dos acervos e os novos métodos e materiais de trabalho.
Já a partir do último quartel do século passado, não havia mais como pensar em
dirigir-se apenas para itens individualizados com o impulso da Conservação
Preventiva. As pesquisas científicas passaram a se voltar para os estudos das condições
ambientais necessárias para os acervos, os métodos de levantamento e amostragem
para seleção de materiais a serem reproduzidos, protegidos, conservados e
restaurados. Houve uma corrida para atender aos parâmetros e referenciais
estabelecidos pela Ciência da Conservação. Contudo, é necessário rever o cenário em
que estavam inseridas as políticas de conservação no Brasil.
Na década de 1980, poucos eram os especialistas na área de Conservação-
Restauração, seja de obras de arte, arquitetura e engenharia e havia quase que ausência
de profissionais para atuar em objetos científicos. Aliás, estes últimos não eram
enquadrados enquanto categoria de patrimônio, conforme atestam os documentos
naquele período, conforme escreve Granato (2008). A formação se obtinha pela
frequência em ateliês, oficinas e “canteiros de obras” de restauro e em cursos de curta
duração promovidos por instituições de guarda ou fiscalização do patrimônio, pelo
Instituto Brasileiro de Arquitetos do Brasil – IAB, em eventos da Associação Brasileira
de Conservadores e Restauradores – ABRACOR, entre outros. Alguns profissionais,
que atuavam na a partir de meados do século XX, inclusive os vinculados a instituições
públicas, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tiveram a sua
formação na Europa e nos EUA, como foi o caso de Edson Motta, entre outros.
Do mesmo modo, os projetos de restauração inicialmente não continham o nível
de detalhamento que hoje possuem. A prática da restauração começava a ter uma
maior dinâmica e um padrão adequado (isto é, que primasse pelo respeito aos
princípios éticos internacionalmente seguidos), na medida em que as obras de restauro
eram realizadas, como por exemplo, a obra de restauração do Museu da República, no
final da década de 1980.
Sobre outro aspecto, verificamos que, o reconhecimento do patrimônio cultural
brasileiro como patrimônio da humanidade pela UNESCO, a partir dos anos 80,
alavancou uma série de intervenções em Centros Históricos, incrementando as
políticas públicas de conservação dos conjuntos arquitetônicos, bem como de outros
acervos integrados. Importantes contribuições para a gestão estão inseridas no
Programa Corredor Cultural, no Rio de Janeiro, que recuperou várias edificações
localizadas no centro antigo da cidade; e em Pernambuco, no bairro do Recife, a
implantação de um núcleo de conservação integrada em parceria com a Universidade
Federal de Pernambuco, a Prefeitura, a UNESCO e o IPHAN. Esses projetos de
revitalização do patrimônio cultural só foram adotados no norte do país a partir dos
últimos anos da década de 90.
46
Entre as décadas de 1980 e 1990, destacamos, na formação de um quadro mais
acadêmico, a criação de cursos em nível de especialização, na Universidade Federal de
Minas Gerais/Escola de Belas Artes – EBA-CECOR, na Fundação de Artes de Outro
Preto – FAOP, ambos em Minas Gerais, na Universidade Federal do Rio de
Janeiro/Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro, na Universidade Federal da Bahia, e
na Universidade Federal de Pernambuco, estes últimos tendo continuidade nos dias
atuais. Na primeira década do século XXI, agregam-se várias iniciativas de cursos de
graduação em conservação e restauração, como os da Faculdade Estácio de Sá, da
UFMG e da UFRJ.
Conclusão
A partir das breves considerações que foram apresentadas nesse trabalho,
verifica-se que, a visão dicotômica entre prática e teoria, é mais de complementaridade
ou dissociação. Neste sentido, a Conservação-Restauração deve buscar a adoção da
prática segundo uma teoria, que lhe fundamenta e dá apoio à tomada de decisão e
respaldo à opção escolhida. Tentando, a partir deste breve histórico, fazer um paralelo
com o tema que propusemos abordar, apontamos uma sintonia e reconhecemos que
ainda nos vemos no país dentro de um estado empírico de trabalho. Reforça esta
perspectiva a recente de abertura de oferta acadêmica em nível de graduação, o não
reconhecimento da profissão, que esperamos seja instituída ainda este ano, e a busca,
ainda presente e incessante, pelo aprendizado de técnicas, sem o embasamento
filosófico e crítico necessário a esta atuação.
Estamos ainda em fase de amadurecimento, de pensar a Conservação-
Restauração não apenas como uma questão técnica, mas, como já afirmava Brandi
(2004), uma ação crítica. Para isso, é necessário abandonar os métodos artesanais de
aprendizagem, entender o documento em seus valores constitutivos, e o acervo como
uma “representação”, no sentido adotado por Le Goff: aquele que “abrange todas e
quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida”(1984, p. ).
Como, a partir de uma complexa discussão do trinômio: preservação-
conservação-restauração e considerando as teorias já difundidas, podemos
compreender a dinâmica e as implicações de intervir no patrimônio cultural, nas suas
perspectivas material e intangível, considerando os conceitos de autenticidade,
integridade, identidade, responsabilidade e participação social e desenvolvimento
sustentável?
Quisemos com este trabalho apresentar algumas reflexões que vimos tendo no
nosso exercício profissional e suscitar outros colegas a tornarem-se mais ativos nas
discussões políticas, administrativas e sociais que envolvem a salvaguarda e gestão de
nosso patrimônio cultural. Isto, acreditamos, apenas será conseguido com o contínuo
47
debate e crítica ao estado da arte desta disciplina em nosso país, visto que somos nós,
em diferentes eventos e momentos, que estamos em vias de consolidar o campo da
Conservação-Restauração no Brasil.
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VIÑAS, Salvador Muñoz. 2003. Teoría contemporánea de la restauración. Madrid, Editorial
Síntesis. 205 p.
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Cotia, Ateliê Editorial, 2000. 70 p.
48
A “VIA CRÍTICA” NO PATRIMÔNIO CULTURAL: UMA
PERSPECTIVA COMPARATIVA
Resumo
Nos últimos anos, o campo do patrimônio cultural sofreu uma mudança
decisiva, deixando, na nossa opinião, a sua fase "dogmática" e se
aproximando de um ponto de vista "crítico" que aborda o patrimônio
como um fato social e historicamente determinado. Com essa mudança
de foco, as diferentes formas em que o campo da conservação constituiu
e articulou nos diferentes contextos nacionais tornaram-se objetos
privilegiados de análise. Apesar das diferentes circunstâncias e
momentos, as politicas de conservação do patrimônio em diversos
países tem trabalhado a memória nacional sob a ótica dialética da
lembrança/esquecimento. Assim, concentrando em certos aspectos em
detrimentos de outros e iluminam momentos históricos enquanto
obscurecem outros. Com essa estrutura esse trabalho revê a discussão
recente sobre o patrimônio em dois contextos nacionais - Brasil e
Alemanha - procurando mostrar, em uma perspectiva comparativa,
como ambas políticas patrimoniais sofreram mudanças radicais
Palavras chave: Patrimônio, memória, via crítica, política de conservação
Introdução
Nos últimos anos, o campo do patrimônio cultural tem passado por uma
mudança decisiva, deixando, a nosso ver, sua fase “dogmática” e acercando-se de uma
perspectiva “crítica”, em que o próprio patrimônio é percebido como histórica e
socialmente determinado. Com isso, passa-se a adotar uma perspectiva crescentemente
reflexiva, não se tomando mais as políticas da área como algo dado, derivadas do
reconhecimento de valores objetivos e universais incorporados nos bens culturais, mas,
reversamente, como construções sociais, multiplicando-se os trabalhos que examinam as
suas condições de possibilidade, o seu enraizamento temporal e social27.
UFMG. leonardo.castriota@pq.cnpq.br
27 Como anota Andrea Daher: “Ao deixar de ser definido como uma coleção de obras canônicas,
‘patrimônio’, nesta acepção contemporânea, remete à diversidade cultural das práticas sociais. No entanto,
essa concepção, por mais que constatável em escala ocidental, não pode responder às indagações sobre as
próprias representações que a noção veicula, sobretudo nos discursos voltados para a preservação, nem
tampouco das práticas que as ensejaram. Daí a necessidade de uma perspectiva que dê conta da lógica
específica de práticas e discursos em torno de ‘patrimônio’, no interior de diferentes regimes de
representação em que foram operados, evidenciando o seu caráter tanto imaginário quanto institucional e,
assim, os seus diversos sentidos históricos.” (Daher, 2010, p. 199-200)
49
Ao perscrutar os diversos valores envolvidos em cada escolha patrimonial, a
teoria contemporânea em nossa área vem realizando uma “virada copernicana” de
moldes kantianos: assim como Kant colocou a razão no centro de suas investigações,
para que primeiramente fosse examinado como se processa e se fundamenta o
conhecimento, a teoria atual do patrimônio coloca o próprio patrimônio — enquanto
campo e atividade social — no centro de suas investigações, examinando
primeiramente como se processam e se fundamentam as escolhas que conformam o
corpus desse campo. Hoje, mais do que nunca, se percebe que as escolhas (e
consequentes omissões) das políticas de patrimônio são decorrentes de um Zeitgeist
determinado, e se expressam, via de regra, numa historiografia específica28. Aqui
poderíamos dizer, com Dominique Poulot, que a história do patrimônio, como tem
sido praticada “há uma geração com êxito incontestável” é “amplamente a história da
maneira como uma sociedade constrói seu patrimônio”. (Poulot, 2009, p. 12)
Neste sentido, têm sido objetos privilegiados de análise as maneiras
diferenciadas com que se articula e se constitui o campo da conservação nos diversos
contextos nacionais. Concebidas e postas em prática em momentos e circunstâncias
diversificadas nos diversos países, as políticas do patrimônio trabalham, via de regra,
com a dialética lembrar-esquecer: para se criar uma memória nacional, privilegiam-se
certos aspectos em detrimento de outros, iluminam-se certos momentos da história,
enquanto outros permanecem na obscuridade. Esse processo – marcado por seleção e
escolhas sempre discricionárias – parece oferecer um terreno ideal para se perceber o
caráter de construção social das memórias nacionais, foco de interesse desses estudos
recentes. E aqui cabe notar que essas análises críticas a que tem sido submetido o
campo do patrimônio fazem-se mais factíveis exatamente devido à intensa revisão
historiográfica que ele tem sofrido nos últimos anos, quando se tem examinado, em
profundidade e por diversos ângulos, a sua gênese social e ideológica nos diversos países.
É natural que essas revisões, esses estudos que examinam como se processam e
se fundamentam as escolhas que conformam e mantêm o corpus patrimonial, também
venham a ter ênfases diferenciadas, conforme o contexto nacional. Assim, por
exemplo, no caso dos Estados Unidos, têm se multiplicado, nos últimos anos, trabalhos
que, principalmente a partir da perspectiva especificamente anglo-saxônica da
participação da sociedade civil e abordando as questões da história social e da
memória dos lugares, submetem a uma revisão radical as políticas institucionais de
patrimônio29. Neste texto vamos passar em revista a discussão recente em dois
contextos nacionais diferentes: na Alemanha pós-Unificação e no Brasil das duas
últimas de décadas, mostrando como em cada um desses contextos, releem-se as
escolhas patrimoniais de forma também distinta.
50
1. Alemanha, reunificação e reconstrução
Em primeiro lugar, poderíamos citar aqui o caso da Alemanha, onde,
principalmente após a reunificação do país em 1990, tem ficado bastante clara a
perspectiva política e ideológica das escolhas patrimoniais, que têm sido tematizadas em
diversos trabalhos recentes. O fato é que com a incorporação da antiga República
Democrática Alemã, do leste, pela República Federal, aquele país europeu tem se visto
às voltas com muitas questões envolvendo seu passado e seu patrimônio, o que tem
feito com que se discutam ali com muita ênfase questões centrais da teoria da
conservação, entre as quais vai ter grande destaque a questão da reconstrução.
Dentre os inúmeros trabalhos que acompanham como a teoria e a prática no
campo do patrimônio têm refletido a – difícil - construção da identidade nacional
alemã, destaca-se, a nosso ver, o trabalho de síntese de Michael Falser, Zwischen
Identität und Authentizität (Entre Identidade e Autenticidade), fruto de uma tese defendida
na Universidade Técnica de Berlim (Falser, 2008). Preocupado principalmente em ligar
os discursos da história da arte e do público em geral, por um lado, com a questão da
formação da identidade nacional, por outro, Falser produz uma impressionante
história política do patrimônio alemão nos últimos dois séculos, desde o período do
Iluminismo e das reformas da Prússia-Renânia, procurando identificar e discutir
sempre o contexto das diversas escolhas patrimoniais30.
O seu trabalho vai abordar três eras bastante específicas na trajetória do
patrimônio na Alemanha: o Século XIX, o período que vai de 1945 a 1989 e o seu
momento presente, por volta do ano 2000. Suas observações sobre a teoria e o discurso
são baseadas em seis estudos de caso (Fallbeispiele), sendo que o primeiro deles aborda
o desenvolvimento da Prússia entre 1795-1840, tomando especificamente o papel de
Friedrich Gilly e Friedrich Karl Schinkel, e os casos conhecidos e polêmicos envolvendo
Marienburg e a Catedral de Erfurt. Em segundo lugar, o autor vai ter como foco o caso
do Castelo de Heidelberg por volta de 1900, apresentando-se o intenso debate no qual,
naquele momento, autores tão diversos como Georg Dehio e Alois Riegl se
manifestaram contra uma possível reconstrução das ruínas, controvérsia na qual Falser
vê o início da moderna preservação de monumentos na Alemanha. Ao analisar esse
caso, o autor ilustra sua tese de que a teoria e prática no campo do patrimônio refletem
a construção da identidade nacional, procurando esclarecer, nos processos da formação
da nação alemã, estratégias culturais recorrentes que constantemente alteram os
fundamentos da preservação do patrimônio.
À luz desse caso, Falser analisa a situação da preservação do patrimônio na
região de língua alemã (deutschsprachigen Denkmalpflege), relatando a controvérsia entre
o alemão, historiador da arte, Georg Dehio, e o austríaco, historiador da arte e
conservador geral dos monumentos, Alois Riegl, na tentativa de esclarecer diferentes
pontos de vista na conduta de conservação, tendo em vista as distintas identidades
nacionais das duas regiões. Como se sabe, o fim do século XIX foi marcado na Europa
por um excessivo nacionalismo, que teve reflexo na 1ª Guerra Mundial, que terminou
30Aqui cabe se destacar também a obra do historiador norte-americano Rudy Koshar, que já havia tentado
escrever uma história social dos monumentos na Alemanha pelo menos desde o final do século XIX.
(Confira Koshar, 1998; 2000).
51
por dissolver a monarquia de Habsburgo – efetivamente o Império Austro-Húngaro ao
fim da 1ª Guerra – e o Reich alemão. Após 1848 (Pequena Solução Alemã), 1866 (Guerra
Austro-prussiana) e 1871 (Unificação Alemã), a “Prússia-Alemanha” e a “Áustria dos
Habsburgos” seguiram trajetórias fortemente divergentes na formação de seus Estados.
O desenvolvimento deste processo foi bastante notável no campo da cultura, da
política e da preservação estatal do patrimônio: enquanto no Império Alemão havia
desde a unificação, em 1871, o conceito de uma Kulturnation sob a qual estariam
agrupados de forma homogênea numa mesma nação língua, cultura e tradições, o
governo dos Habsburgos tinha em Viena uma capital multicultural, entendendo-se a
nação como a união de diferentes etnias que compartilhavam a mesma história e
condição. Assim, na Alemanha, após a unificação de 1871, o comando político
propagava a Kulturnation e a consolidação da história alemã, o que na prática implicou
numa separação entre poder e cultura, estando o desenvolvimento desta última
relacionado a um processo de “cultivação" e um conflito entre cultura e civilização.
O império Austro-Húngaro, por sua vez, era um Estado multicultural que em
1900 abrangia doze nacionalidades com suas respectivas línguas, tradições, além de
três religiões monoteístas combinadas. Com isso, sua característica principal vai ser
uma grande diversidade, além de uma ambivalente identidade coletiva. No círculo
intelectual de Viena no início do séc. XX vão estar em voga as ideias de uma política
cultural e artística, assim como o conceito de uma política social. Nesse ambiente, a
preservação do patrimônio também vai ser percebida como um meio de estabilização
de uma certa “ideia de Estado”, , quase federalista, e incentivador da arte, que se
constituía na virada do século na República do Danúbio. Desde o início, então, a
língua vai ser vista, simultaneamente, como um meio potencial de unificação – ou de
separação – nacional e um problema na construção de uma identidade na monarquia
dos Habsburgos31. A tese de Falser vai ser, então, que a ideia de preservação do
patrimônio de Riegl, sobretudo a sua teoria do valor de ancianidade, somente poderia
surgir dessa realidade, numa sociedade supranacional onde coexistiam várias línguas,
uma sociedade subjetiva e emocional.
O terceiro caso estudado já vai envolver a reconstrução pós-2ª Guerra Mundial,
depois de 1945, enfocando-se principalmente os debates sobre a reconstrução em
Frankfurt am Main, enquanto o quarto caso já toma a repercussão do Ano Europeu do
Patrimônio, em 1975, nos programas nacionais e iniciativas dos grupos comunitários
na República Federal, mostrando um certo caráter retrógrado da interpretação da
Alemanha Ocidental do pensamento europeu sobre o patrimônio, também expressa no
lema "Um futuro para o nosso passado"32. Em quinto lugar, toma-se o caso do
desmantelamento e a reconstrução na década de 1980, sob a égide do pós-modernismo,
do mercado de Hildesheim. Finalmente o último caso de estudo trata de Berlim após
1990, principalmente as intervenções realizadas no entorno da ilha no rio Spree, e os
debates sobre a "eliminação" da história – incômoda – da arquitetura da República
Democrática Alemã (RDA), bem como a reconstrução de uma história nacional
prussiano-alemã idealizada. Excelentes objetos para discussão, tais como o
52
monumento a Lenin em Berlim Oriental, a Neue Wache, a desmontagem do Palácio da
República e o projeto para reconstrução do castelo real são trazidos à baila, parecendo
este caso ser o ponto de convergência do trabalho de Falser. Se realiza um trabalho
eminentemente descritivo, sua posição é inequívoca: ele ataca a destruição dos
vestígios de uma história frágil e controversa, que vem sido, a seu ver, provocada pelas
elites políticas e empresariais no intuito de criar um espaço mítico purificado.
A tese principal do trabalho de Falser é que "o discurso da teoria e prática da
preservação histórica” vão ser “um reflexo da construção político-cultural da
identidade nacional" (Falser, 2008, p. 59). Assim, a história da construção da nação
alemã – cheia de crises, de rupturas profundos e inúmeras revoluções fracassadas
desde o final do Século XVIII – teria se refletido nos debates recorrentes sobre o
patrimônio nacional e principalmente sobre a questão da reconstrução de objetos
transmitidos pela tradição: "O tema da reconstrução permanece até hoje”, escreve, “o
reverso material do ‘caminho especial’ mental do processo de construção da nação
alemã, com a sua construção contínua da identidade sempre dúvida e auto imposta."(p.
68). Para ele, não seria fortuito, portanto, que esse debate – que juntamente com a
questão da autenticidade constitui um dos desafios centrais da conservação do
patrimônio – ocupe uma posição central na Alemanha e que sempre reapareça no
horizonte33.
1996; Fonseca, 1997; Castriota, 1999; Guimarãens, 2004; Gonçalves, 2007; Lima Filho; Eckert; Beltrão, 2007;
Chuva, 2009.
35 Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu mostram que a atuação dos
53
antropólogos apenas nas últimas décadas, especialmente quando alguns
pesquisadores incluíram o tema em suas teses de doutorado. Aqui cabe se
citar os pioneiros Antônio Augusto Arantes Neto 36, que em 1978, defendeu a
tese Sociological aspects of folhetos literature in Northeast Brazil , orientada por
Edmund Leach na Universidade de Cambridge / King´s College, Inglaterra,
e que mais tarde publica o livro Produzindo o passado (1984), e José Reginaldo
Gonçalves, com a tese Rediscoveries of Brazil: Nation and Cultural Heritage as
Narratives, orientada por Richard Handler e defendida na Universidade da
Virginia (EUA) em 1984 e também transformada no livro A Retórica da Perda
– os discursos do patrimônio cultural no Brasil em 1996 37.
Essa trilha fecunda aberta pelos dois antropólogos, vai ter sequência no
início dos anos 1990, quando dois importantes trabalhos acadêmicos seguem
na mesma linha, tratando de circunstanciar as políticas d e preservação no
país, colocando sob escrutínio suas escolhas e a constituição de seu
discurso 38. E falar em políticas de patrimônio no Brasil é falar do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que não foi um mero
órgão burocrático, mas, como apontam à exaustão trabalhos recentes,
formulou um ideário e implementou as ações de preservação em nosso país,
desde sua fundação na década de 1930. Em As fachadas da história: os
antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, 1937-1968, dissertação defendida na UNICAMP em 1991, sob a
orientação de Antônio Augusto Arantes, Silvana Rubino realiza um
minucioso trabalho de desmistificação da ação desse órgão, investigando
criticamente a sua utilização de conceitos ligados à memória, patrimônio
histórico, cultural e artístico, mostrando as motivações políticas das
diversas escolhas. O corpus com que trabalha emana dos primeiros anos do
de patrimônio propriamente ditas, a atuação dos antropólogos “se fez sentir desde o início, mas sempre de
forma esporádica”, destacando-se a atuação no Conselho do Patrimônio do IPHAN de Gilberto Velho e,
mais recentemente, de Roque de Barros Laraia. (Lima Filho, Manuel Ferreira; Abreu, Regina Maria do
Rego Monteiro de. A antropologia e o patrimônio cultural no Brasil. In: Associação Brasileira de
Antropologia, 2007, p. 21-22.)
36 Antônio Augusto Arantes vai ter uma trajetória que combina pesquisa acadêmica e militância junto aos
órgãos de preservação. Do ponto de vista universitário cabe se destacar sua carreira docente de quatro
décadas em duas universidades paulistas – a USP e a Unicamp, que ajudou a criar em 1970. Nos anos de
1980, com o processo de redemocratização, participou da intensa discussão sobre a conceituação do
patrimônio, assumindo em 1983 a Presidência do CONDEPHAAT em São Paulo. Também esteve à frente
do IPHAN, de 2004 a 2006, como seu presidente, tendo implementado o Departamento de Patrimônio
Imaterial e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial deste órgão. Dentre a sua produção acadêmica
sobre o patrimônio, cabe se citar o livro pioneiro Produzindo o passado, publicado em 1984.
37 Segundo Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu, esses dois trabalhos
“podem ser considerados marcos de uma reflexão antropológica sobre o patrimônio no Brasil. Um tema
antes tratado por arquitetos e historiadores passava a ser focalizado sob o viés da Antropologia. A tônica
destes trabalhos consistiu em apresentar uma visão desnaturalizada de um campo eivado por ideologias e
por paixões sobretudo de cunho nacionalista. Arantes e Gonçalves esforçaram-se por propor uma outra
leitura de construções discursivas particularmente eficazes na fabricação de uma memória e de uma
identidade nacionais”. (Lima Filho e Abreu, A antropologia e o patrimônio cultural no Brasil. In:
Associação Brasileira de Antropologia, 2007, p. 21-22.)
38 Aqui se costuma citar também a tese de doutorado de Antônio Luiz Dias de Andrade, Um Estado
completo que pode jamais ter existido, defendida junto à FAU/USP, em 1993.
54
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a partir do
qual a antropóloga recompõe o contexto do nacionalismo e da forte presença
do Estado nos anos 1930, que configuravam o campo cultural aquando da
emergência da política cultural no Brasil. Através da análise de personagens
como Lucio Costa, Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Gustavo Capanema,
Manuel Bandeira e Rodrigo Mello Franco de Andrade, Rubino recupera
conexões entre campos profissionais/intelectuais da antropologia,
arquitetura e literatura, que marcaram a chamada “fase heroica” daquele
órgão 39.
Já a tese de doutorado de Mariza Veloso Motta Santos, O tecido do
tempo: a ideia de patrimônio cultural no Brasil, 1920 -1970, defendida na UnB,
em 1992, num movimento paralelo, analisa o surgimento da ideia de
patrimônio e das práticas sociais c onsolidadas a partir dessa ideia, naquele
período, evidenciando a presença ativa de um grupo modernista, principal
articulador da trama discursiva construída em torno das ideias de
patrimônio e nação. A questão do patrimônio é tratada ali como uma ideia -
força que ordena e estrutura uma matriz discursiva voltada ao passado e que
engloba concepções sobre a história, o tempo, a estética, a memória, o espaço
público e, primordialmente, sobre a nação brasileira. A autora mostra como
esse grupo modernista que institucionaliza, em 1937, o SPHAN (Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), vai articular uma estratégia
baseada numa peculiar teoria da temporalidade: ao mesmo tempo em que
“redescobre” o barroco - que vê como a origem da cultura brasileira , inventa
um futuro para a nação que se acreditava nascente 40. O trabalho centra sua
análise em torno da atuação de dois personagens carismáticos e exemplares
do grupo: Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mário de Andrade, e analisa,
por fim, a criação a “Academia SPHAN” e o exercício de sua prática
institucional por meio de documentos sobre rotinas e procedimentos
adotados naquele período 41.
Em meados dos anos 1990, duas publicações dão a conhecer a um
público mais amplo essa nova perspectiva de análise, que c omeça a
impregnar os trabalhos acadêmicos sobre o patrimônio em nosso país.
Assim, em 1996, mesmo ano da publicação do Volume 24 da Revista do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional , que traz diversos artigos
39 A pesquisa recompõe o contexto do nacionalismo e da forte presença do Estado nos anos 30, e o campo
cultural da emergência da política cultural no Brasil, em quatro perspectivas: (1) a proto-história, ou todo o
trabalho pró-preservação anterior ao SPHAN; (2) a criação do SPHAN em 1937; (3) a prática do SPHAN
através da análise do acervo preservado; (4) o legado intelectual e acadêmico da experiência do SPHAN.
40 A esse respeito, confira Castriota, 1999, artigo publicado posteriormente em versão alterada como o
55
nessa linha, José Reginaldo Santos Gonçalves publica como livro o
interessante estudo A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no
Brasil 42, versão de sua tese já citada, no qual avalia a estratégia de narração
da identidade nacional, nos conduzindo a questões cruciais apon tadas por
Otávio Velho, as analogias entre alegoria, ruína e patrimônio; o barroco
como "signo totêmico" da identidade nacional brasileira; as associações entre
os discursos a partir de patrimônio e os discursos modernistas; o papel dos
intelectuais na produção de valores supostamente em declínio, entre outros.
Gonçalves também vai analisar as duas figuras centrais na formulação de
políticas do patrimônio no Brasil: Rodrigo Mello Franco de Andrade – um
dos idealizadores e primeiro diretor do SPHAN, que ins pirou sua política de
1937 a 1979 – e Aloísio Magalhães – que esteve à frente do SPHAN/Pró-
Memória por um curto período, de 1979 a 1983, mas que foi decisivo para
sua transformação. Segundo o autor, no discurso de cada um deles, o Brasil
seria “objetificado de certo modo e segundo determinados propósitos”. A
partir dessa premissa, ele explora “contrasticamente (sic) as estratégias
através das quais esses intelectuais, por meio de narrativas diversas,
inventam o patrimônio cultural, a nação brasileira e a el es próprios,
enquanto guardiões desse patrimônio.” (Gonçalvez, 1995, p. 33)
Gonçalez mostra como a questão da identidade nacional vinha sendo
pensada desde os últimos anos do império e desde a instauração do regime
republicano, em 1889, centrando-se, no entanto, as discussões sobre esse
tema, naquele período, na ideia de “raça”. Ao longo da segunda e terceira
décadas do século XX, o foco vai mudar substancialmente e o problema
passa a ser discutido, não mais em termos raciais, mas culturais, como uma
busca da “brasilidade”, de uma “essência”, “alma” ou simplesmente
“identidade” da nação brasileira.” (p. 41). Para Rodrigo Mello Franco de
Andrade, o patrimônio deveria ser pensado como parte de um patrimônio
universal, mas ao mesmo tempo, ele situaria as origens da cultura brasileira
na “tradição” singular produzida pelas contribuições da populações
indígenas, africanas e europeias no Brasil.(...) uma síntese de valores
“primitivos” e “exóticos”.” (Gonçalvez, 1995, p. 44 -45) Essa visão, que se
torna hegemônica no SPHAN, postula que uma “tradição” brasileira veio a
ser criada e estabelecida com base nesse processo de combinação cultural,
não sendo enfatizadas em sua narrativa as “diferenças entre essas heranças”,
ganhando o primeiro plano “um quadro unifi cado e singular da identidade
cultural brasileira.” Com isso, o autor pode concluir que seria possível dizer
que “em certo sentido, Rodrigo, durante determinado período, modela o
42A ideia de perda, que perpassa o livro, está, como mostra o autor, sempre presente na “criação” dos
patrimônios nacionais, como explicitado pelo autor: “A História aparece como “um processo inexorável de
destruição, em que valores, instituições e objetos associados a uma “cultura”, “tradição”, “identidade” ou
“memória” nacional tendem a se perder.(...) O efeito dessa visão é desenhar um enquadramento mítico
para o processo histórico, que é equacionado, de modo absoluto, à destruição e homogeneização do
passado e das culturas.” (Gonçalves, 1995, p. 22)
56
patrimônio cultural brasileiro, ao mesmo tempo que o patrimônio o modela,
enquanto persona pública.” (Gonçalvez, 1995, p. 47)
Já Aloísio Magalhães, que assume a direção do SPHAN nos anos 1970,
anos finais do regime político autoritário que vigorava no Brasil desde o
golpe militar de 1964, dá início a uma nova política para o patri mônio
cultural brasileiro, substituindo o “patrimônio histórico e artístico” de
Rodrigo pela noção de “bens culturais”. Segundo Rodrigues, quando usa a
noção de “cultura brasileira”, Magalhães “enfatiza mais o presente do que o
passado” e, principalmente “a diversidade cultural no contexto da sociedade
brasileira”, embora continuasse acreditando que, além dessa diversidade,
existiria uma cultura brasileira “integrada, contínua e regular.” (Gonçalvez,
1995, p. 52) Pensando num projeto de desenvolvimento na cional, o
propósito de Aloísio Magalhães seria “identificar e preservar o caráter
nacional brasileiro de forma que o processo de desenvolvimento econômico e
tecnológico possa prosseguir sem que isso represente uma perda de
autonomia cultural frente aos países do primeiro mundo.” Assim, os bens
culturais seriam pensados “não como objetos fixos, exemplares, mas no
processo mesmo de criação e recriação que lhes dá realidade.” (Gonçalvez,
1995, p. 55) 43
É interessante percebermos, com o autor, que Rodrigo e A loísio usam
diferentes “estratégias de autenticação”: enquanto Rodrigo autentica sua
posição “opondo-a a um discurso não científico, não profissional sobre a
cultura brasileira.” (Gonçalvez, 1995, p.61), Aloísio “autentica sua própria
posição desafiando a de Rodrigo”, sendo sua estratégia “a de narrar a
cultura nacional brasileira, não necessariamente de um ponto de vista
distante e impessoal, mas, aproximadamente, valorizando o que (...)
chamamos de “ponto de vista narrativo”. Apesar dessa distinção, as
narrativas dessas duas figuras emblemáticas do patrimônio se aproximariam
no fato de que “em ambas as narrativas a nação é objetificada como uma
“busca” pela identidade. (p.62) Essas narrativas se diferenciariam, de novo,
no propósito que viam na apropriação necessária da cultura e do patrimônio
nacional: enquanto para Rodrigo o propósito de apropriação seria o de
“defender uma “tradição” para “civilizar”, para Aloísio era necessário
“preservar a “heterogeneidade cultural” para garantir o
“desenvolvimento”.” (Gonçalvez, 1995, p.63-64) 44
43 José Reginaldo Santos Gonçalves chama a atenção também para a aproximação da ideias de Magalhães
com aquelas do projeto original de Mário de Andrade, de 1936, que segundo Aloísio não teraim sido
seguidas pela instituição até então. O Projeto de Mário de Andrade é bastante abrangente, englobando as
“diferentes formas de ‘cultura popular’”; a “autêntica” identidade nacional (cultura popular); uma “visão
pluralista e, de certo modo, “antropológica” do brasil”, continuando o patrimônio a ser pensado também
como uma “causa” (Gonçalves, 1995, p. 56)
44 Num outro trecho, o autor enuncia: “A estratégia de apropriação da cultura nacional pressuposta no
discurso de Aloísio trazia como consequência uma representação da nação brasileira como uma totalidade
cultural diversificada e em permanente processo de transformação.” (Gonçalves, 1995, p.81)
57
períodos distintos: o que vai de 1937 a 1979, onde predominam as ideias de
Rodrigo e o período posterior, quando se nota a influência de Aloísio
Magalhães. Assim, no período inicial, numa política que o autor denomina
de “em busca do tempo perdido”, o SPHAN praticaria uma defesa dos
monumentos “como signos visuais de uma condição civilizada” (Gonçalvez,
1995, p.65), utilizando-se para isso do instrumento do tombamento (o
correspondente ao termo registration, em inglês, e ao termo classement, em
francês), também criado em 1937, e cujo procedimento é resenhado pelo
autor. Aqui Gonçalves analisa, como vão fazer vários autores, os
tombamentos da “primeira leva”, especialmente o tombamento de Ouro
Preto e a defesa da arquitetura colonial a ela subjacente. Segundo ele,
“Rodrigo justificou essa concentração argumentando que, no século XVIII,
mais que em qualquer outra região do país, um número superior de
monumentos e obras de arte “com feição mais expressiva” foi produzido em
Minas Gerais ([1969] 1987:73).” (Gonçalvez, 1995, p.71) Nesses
tombamentos, realizados sob a ótica inicial dominante no SPHAN,
predominaria o “ponto de vista estético”, sendo que a religião,
especialmente o catolicismo, desempenharia um “papel crucial na narrativa
de Rodrigo”.
Identificando-se mais com a visão de Aloísio Magalhães, o autor
ressalta a aproximação deste com as posições de Mario de Andrade: “Para
Aloísio, a noção de “patrimônio cultural” concebida por Mário (de Andrade)
estava muito próxima de uma concepção democrática e pluralista do que a
veio a inspirar a política implementada por Rodrigo.” (p.73) O foco das
políticas do SPHAN continuaria no passado, mas “um passado concebido
como um instrumento, uma referência a ser usada no processo de
desenvolvimento econômico e cultural”, onde os ”bens culturais”,
“considerados como parte integrante da vida cotidi ana de distintos
seguimentos da sociedade brasileira”, desempenhariam um papel central (p.
76) A partir dessa visão, vai ser peça central a criação do CNRC (Centro
Nacional de Referência Cultural) que vai ter o objetivo de “estudar e propor
uma política alternativa de patrimônio cultural”, a fim de “traçar um sistema
referencial básico para a descrição e análise da dinâmica cultural brasileira,
tal como é caracterizada na prática das diversas artes, ciências e tecnologias
(Magalhães [1979] 1985:130). ” (Gonçalvez, 1995, p.77)
Cabe observar, por fim, que, em sua pesquisa, José Reginaldo Santos
Gonçalves adota, como apontam Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria
do Rego Monteiro de Abreu, a noção de “colecionismo” de Clifford,
identificando que os bens considerados dignos de preservação deveriam
formar, nas construções discursivas estudadas (de Rodrigo Mello Franco de
Andrade e de Aloísio Magalhães), uma espécie de mosaico “autenticamente”
nacional:
Gonçalves, utilizando-se de estratégia etnográfica e
tomando os discursos de Rodrigo Mello Franco de
Andrade e de Aloísio Magalhães como os de
informantes selecionados numa pesquisa de campo,
58
produz a relativização desta categoria fundante das
modernas ideologias ocidentais. O tema do patrimônio
emerge, assim, como um lugar de construção de valores
– e, como tal, extremamente plástico e variável. O bem
cultural “autêntico” como representação metafórica da
totalidade nacional é desnaturalizado, e a sua face
ideológica e ficcional descortinada. ( Lima Filho e Abreu,
A antropologia e o patrimônio cultural no Brasil. In:
Associação Brasileira de Antropologia, 2007, p. 21 -22.)
Na mesma linha, Maria Cecília Londres Fonseca publica em 1997 O
Patrimônio em Processo: trajetória da política federal de preservação no Bra sil, que
tinha sido apresentado inicialmente como tese de doutorado em Sociologia
da Cultura na UNB, no qual traça a trajetória da política federal de
preservação do patrimônio histórico e artístico nacional até os anos 1980.
Como no trabalho de Gonçalves, o foco de análise não se concentra apenas
na chamada “fase heroica”, estendendo-se para as décadas posteriores.
Assim, ao focalizar dois momentos fundamentais nas políticas de patrimônio
– a chamada “fase heroica” e a “fase moderna”, a partir dos anos 197 0, a
autora, que é funcionária do IPHAN, vai centrar sua discussão nas práticas
institucionais adotadas no processo de construção desse patrimônio e como
ao longo desse período os diversos grupos de intelectuais envolvidos nesse
trabalho, nas palavras de Janete Tanno, “influenciados pelas mudanças
sociais, políticas e culturais e pelas novas tendências internacionais sobre o
tema”, vão contribuir para alargar a noção de patrimônio em nosso país,
propondo “mudanças significativas no sentido da democratização desses
bens, não somente pelo envolvimento da sociedade civil no processo, como
na discussão do significado econômico e político da preservação”. (Tanno,
2006, p.233)
Cecília Londres adota, então, uma perspectiva “primordialmente
histórica”, tomando como “objeto de pesquisa o processo de construção do
patrimônio histórico e artístico no Brasil, considerado enquanto uma prática
social produtiva, criadora de valor em diferentes direções” (Fonseca, 1997, p.
19-20). Tomando o viés institucional, a autora mostra que, num primeiro
momento, o instrumento de legitimação das escolhas – que recaía, via de
regra, sobre a herança luso-brasileira, restringindo-se, principalmente, às
expressões culturais e arquitetônicas das elites econômicas e religiosas 45 – era
a autoridade dos técnicos do SPHAN, “revestidos da aura intelectual que
cercava o grupo de modernistas que fazia parte da instituição”. Analisando
as condições de atuação do órgão, a autora chama a atenção para como o
grupo de intelectuais desenvolvia suas ativi dades com grande autonomia no
interior do Ministério da Educação e Saúde, a despeito de atuar em plena
ditadura do Estado Novo. Ao tomar a segunda etapa de sua periodização, no
45Nessa primeira fase de trabalho do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), os
tombamentos privilegiaram, em especial, igrejas e prédios do período colonial, prevalecendo uma
apreciação de caráter estético, sendo que o valor histórico era pouco considerado. A esse respeito, confira a
crítica de Tanno, 2006, p. 233-234.
59
entanto, nota-se como esse quadro irá se alterar, com o novo contexto
político, social e cultural do país. Por meio da análise dos processos de
tombamento abertos entre 1970 e 1990, Fonseca mostra, então, as
modificações na política de proteção ao patrimônio histórico, a conceituação
deste e a busca de novos instrumentos de proteçã o no contexto sociopolítico
que se instaurou no País, sobretudo a partir da década de 1980. Ao tomar as
novas formulações do SPHAN, pós-Rodrigo Mello Franco, Fonseca aponta
para a ampliação da participação da sociedade organizada na definição do
que deveria ser preservado como patrimônio cultural, mostrando
principalmente o aumento da participação de diversos grupos sociais, e não
somente dos técnicos ou das elites, e o direito de acesso aos bens culturais 46.
Ainda nessa perspectiva, cabe chamar a atenção para o trabalho de
Márcia Regina Romeiro Chuva,que em 1998 defende sua tese de doutorado
em História pela Universidade Federal Fluminense com o título Os arquitetos
da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil –
anos 30 e 40, que vai se transformar em livro em 2009, quando é publicado
pela Editora UFRJ com o título Os arquitetos da memória: sociogênese das
práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930 -1940). Neste
trabalho, a autora, prosseguindo a mesma linha das pesquisas anteriormente
citadas, vai mostrar como o patrimônio vai ser histórica e temporalmente
determinado, o que fica mais claro na própria escolha do subtítulo do
trabalho. Ao falar de uma “sociogênese das práticas de preservação do
patrimônio cultural no Brasil”, Chuva recusa qualquer naturalização desse
conceito, concentrando-se na definição do "serviço" do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional: o "patrimônio", nesta perspectiva, não vai ser algo
dado, mas muito mais uma arena em que práticas e representações,
correspondentes aos mais variados programas políticos estatais, se
encontram em disputa.
Para mostrar as lutas de representação, em diversos âmbitos, que
marcaram a história do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), Chuva utiliza-se da sua proximidade com o Arquivo
Central do IPHAN, gerando uma obra de notável riqueza documental, que
consegue delinear com precisão como se deu a “construção do patrimônio
histórico e artístico nacional no Brasil” naquele período, com a invenção de
seus objetos e a escolha de seus métodos de trabalho. Ao se concentrar no
período 1930-1940, a autora mostra como “a implementação de ações de
proteção do patrimônio nacional foi estratégica para a ampliação das redes
territoriais na formação do Estado e para a construção de sentimentos de
pertencimento a uma comunidade nacional imaginada, na medida em que
46 Éinteressante anotarmos aqui que na reedição de 2005, a autora aprofunda o tema da democratização da
política de preservação, mostrando como essa pode ser observada tanto no alargamento da noção de
patrimônio, quanto na introdução do instrumento do registro cultural, que já se mostra abrangente pelos
próprios títulos dos livros de registro, estabelecidos pelo decreto-lei nº 3.551, de 4 de agosto de 2000 1)
Livro de registro dos saberes; 2) Livro de registro das Celebrações; 3) Livro de registro das formas de
expressão; 4) livro de registro dos lugares.
60
essas ações geraram uma territorialização particular da nação, garantindo a
permanência, no tempo e no espaço, de objetos mon umentalizado” (Abreu,
2010) Mais uma vez aqui, deparamo-nos com um trabalho que
“desnaturaliza” as escolhas patrimoniais, mostrando como os “arquitetos da
memória” inventaram os “quadros da memória nacional”, cuja referência
primordial das origens da nacionalidade foi associada estreitamente a
imagens das Minas Gerais do século XVIII. Márcia Chuva resume essa ideia
Esse patrimônio mineiro foi de tal forma reproduzido
em revistas, jornais, mapas, folhetos, etc. que,
multiplicando-se infinitamente, tornou-se ícone máximo
de “brasilidade‟ na escala de valores que se impôs. O
Sphan esteve, sem dúvida, aderido ao projeto de
nacionalização implementado pelo Estado Novo, ao
unificar uma escala hierárquica de valores patrimoniais
a partir de um padrão de arte e arquitetura determinado
pela produção mineira colonial. (Chuva, 2009, p. 63)
Se esses trabalhos citados se voltam, em primeira linha, para as
escolhas que determinam o corpus patrimonial, identificando sua gênese e
pano de fundo institucional, outro trabalho recente aborda criticamente
outra faceta das políticas de patrimônio: a restauração. Trata -se do livro
Restauração arquitetônica. A experiência do SPHAN em São Paulo, 1937-1975, de
Cristiane Souza Gonçalves, fruto de sua dissertação de mestrado defendida
na FAU-USP (Gonçalves, 2007). Se as escolhas efetuadas pelos técnicos do
SPHAN nos permitem traçar o “mapa do Brasil passado” que aquele órgão
queria deixar em herança para as gerações futuras, também a maneira de
intervir sobre aqueles bens, as restaurações pensadas e efetivamente
executas naquele período vão ser igualmente significativas da forma de se
gerir o patrimônio 47.
Assim, Cristiane Gonçalves se debruça sobre esse primeiro momento de
ação institucional (1939-1975), tomando principalmente a atuação de Luís
Saia, a frente da Superintendência Regional do IPHAN em São Paulo, e vai
mostrar como ele pensava o restauro, a luz de exemplos concretos, entre os
quais o restauro da antiga Câmara e Cadeia de Atibaia. Neste caso, mas
também nos outros exemplos estudados – igreja de São Miguel Paulista,
casa-sede e capela do Sítio Santo Antônio e Fazenda Pau D’Alho – a autora
mostra como muito mais que aderir às normas que internacionalmente
vinham sendo implementadas no campo do patrimônio naquele momento,
tinha-se a tendência de se classificar os monumentos, enquadrando -os em
modelos estilísticos previamente determinados, como fazia Viollet -le-Duc, o
que levava a que se buscasse o princípio da “unidade estilística” 48,
47 A respeito do livro de Cristiane Gonçalves, confira a interessante resenha de Claudia dos Reis e Cunha
(Cunha, 2007).
48 A unidade estilística, como coloca a autora, é uma “ideia [que] atravessa os trabalhos apresentados com
tal vigor que é quase impossível não observá-la nos resultados obtidos, sendo inevitável associá-la aos
propósitos finais das restaurações, bem como aos processos que levaram até as soluções alcançadas, nos
quatro casos analisados...” (Gonçalves, 2007, p. 186).
61
apagando-se as marcas e as modificações d eixadas pelo tempo. Além disso,
mostra-se que não se atendia também minimamente a outros princípios como
a da “distinguibilidade”: Se desde as primeiras restaurações já se procurava
diferenciar a intervenção recente da matéria original (principalmente atr avés
do uso do concreto nos reforços estruturais ou reconstrução de partes
ruídas), isto acabava prejudicado pela uniformização no tratamento das
fachadas, que, em busca da unidade do conjunto, mascarava as técnicas
recentes (Gonçalves, 2007, p.196).
Conclusões
Como pudemos ver, salta aos olhos, nos dois casos estudados, como nos últimos
anos tem se submetido, de fato, a uma análise crítica as escolhas que conformaram o
corpus patrimonial desses dois países, bem como a maneira de se intervir sobre ele. No
caso da Alemanha, vimos, tomando principalmente o trabalho de Michael Falser, como
a teoria e prática no campo do patrimônio refletem efetivamente a – problemática –
construção da identidade nacional, âmbito no qual ganha especial destaque a questão
da reconstrução, tão combatida pela teoria internacional da conservação e tão prezada
pelos alemães. No caso brasileiro, pudemos acompanhar a intensa reflexão crítica,
que, desde o final dos anos 1980, tem empreendido uma “desnaturalização”
das escolhas que vinham compondo o nosso corpus patrimonial, e que eram
responsáveis, como vimos, pela criação de um “mapa do Brasil passado”
muito específico.
Para finalizar, cabe ainda observar que essa perspectiva tem se
espalhado com muita intensidade em nosso país, pr incipalmente pelo
rebatimento que tem tido no campo da academia: são inúmeros hoje os
trabalhos que têm se produzido nos diversos programas de pós -graduação
que se voltam para o próprio patrimônio como objeto de estudo, analisando
as maneiras pelas quais esse campo tem se articulado ao longo dos anos nas
diversas esferas de governo – federal, estadual e municipal. Com isso,
avança crescentemente a nossa compreensão do patrimônio como uma
construção social, e as inúmeras consequências que advêm dessa
compreensão.
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64
AYRTON CARVALHO E A DISSEMINAÇÃO DO CAMPO DA
CONSERVAÇÃO NO BRASIL
Resumo
Este artigo discorre sobre as práticas de Ayrton Carvalho, chefe do 1º
Distrito Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), a fim de revelar sua contribuição para o campo da conservação
no Brasil. Com a hipótese que a contribuição deste intelectual não foi
limitada a sua atuação no IPHAN, procuramos primeiramente
compreender sua formação, dedicando atenção especial à experiência como
estagiário na Diretoria de Arquitetura e Urbanismo, coordenada pelo
arquiteto Luiz Nunes. Depois, partimos para a análise da atuação de
Ayrton Carvalho enquanto chefe do 1º Distrito Regional do IPHAN. Este
percurso investigativo percorre diferentes ambientes culturais e nos
permite perceber que as práticas da salvaguarda no Brasil são conformadas
interagindo diretamente com o campo da arquitetura moderna. Deste
modo, defendemos o argumento que entre os intelectuais que conformaram
o campo da conservação no Brasil, os referenciais foram múltiplos e
resultantes das diversas formações, filiações e referenciais teóricos, apesar
da tendência historiográfica de destacar e unidade e centralidade de
pensamento. Portanto, através deste estudo, seguimos a direção oposta à
tendência de atribuir a um único grupo a responsabilidade sobre as
concepções acerca do patrimônio histórico e artístico nacional, bem como as
práticas no sentido de sua salvaguarda.
Palavras-chave: Ayrton Carvalho, arquitetura moderna, patrimônio histórico e
artístico nacional.
Introdução
Ayrton de Almeida Carvalho foi engenheiro, professor no curso de Arquitetura e
chefe do 1º Distrito Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN)49. Responsável pelos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande
do Norte, realizou inúmeros tombamentos, restaurações, inventários, pesquisas, cursos
e outros trabalhos voltados para a conservação do patrimônio. Graças à atuação deste
profissional, exemplares preciosos da arquitetura tradicional foram descobertos,
UFPE. melo.arquiteta@gmail.com
49Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), de 1937 à 1946; Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), de 1946 à 1970; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), de 1970 à 1979; Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), de
1979 à 1990; Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), de 1990 à 1994; Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), 1994. Neste trabalho adotamos a nomenclatura ‘IPHAN’ para
todos os períodos.
65
estudados e salvaguardados até os dias atuais. Extrapolando os limites da instituição,
Ayrton Carvalho constituiu em torno do 1º Distrito um ambiente cultural composto
por estudantes e intelectuais de diversas áreas e instituições, dispostos a conhecer e
colaborar com a conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.
Por tais motivos, a presente investigação tem como objeto de estudo as práticas
de Ayrton Carvalho, a fim analisar, sob um viés diferenciado, como se constituiu o
campo da conservação no Brasil. A historiografia sobre este temática, talvez pela pouca
distância temporal ou pelo peso das instituições envolvidas, é permeada de figuras
mitificadas sobre as quais é atribuída toda responsabilidade sobre a delimitação do
patrimônio histórico artístico nacional e as práticas no sentido de sua salvaguarda.
Para além de Rodrigo Mello Franco e Lúcio Costa, mais ainda, para além do IPHAN,
buscamos neste texto explorar a contribuição de Ayrton Carvalho, na disseminação de
práticas no campo da conservação no país. 50
50 Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado desenvolvida pela autora, intitulada ‘Admiráveis
Insensatos: Ayrton Carvalho, Luís Saia e as práticas no campo da conservação no Brasil’ (PEREIRA, 2012).
51 Luiz Carlos Nunes de Souza (1908-1937) formou-se arquiteto na ENBA, em 1931. Quando estudante,
liderou junto a Jorge Moreira, a greve de apoio à reforma de Lúcio Costa. Em 1933, desenvolveu projetos
66
Noberto, Gauss Estelita e Jaime Coutinho, o desenhista Hélio Feijó, os estudantes de
engenharia Antônio Baltar e Ayrton Carvalho, além de muitos outros profissionais. A
diretoria inovou no serviço público pela tentativa de racionalização e padronização dos
materiais e por inserir nas discussões diplomados e operários, em pé de igualdade em
busca de melhores soluções construtivas. As pressões políticas fizeram com que a DAC
fosse dissolvida em 1935, sendo retomada em 1936, como Diretoria de Arquitetura e
Urbanismo (DAU) incorporando para sua pauta questões da cidade, junto a Luiz
Nunes, fizeram parte da nova equipe: os arquitetos Fernando Saturnino de Britto, João
Corrêia Lima e o paisagista Roberto Burle Marx.
Como estagiário, Ayrton Carvalho ficou responsável pela Seção de Materiais,
encarregado do levantamento de todos os materiais utilizados nas construções.
Segundo Joaquim Cardozo esta não era uma habilidade comum, pois deveria ser feito
o levantamento minucioso de nomes, utilidades, vantagens e desvantagens do
emprego de cada material. Cabia também a Carvalho, o estudo e classificação das
possibilidades em conjunto dos materiais, por exemplo: madeira, ferros, vidros,
materiais para coberturas e impermeabilização. Estes estudos resultaram em um
caderno de encargos (uma espécie de catálogo) onde se escolhiam materiais adequados
para cada construção da DAU (CARDOZO, 2007).
A Diretoria assinava várias revistas nacionais e importadas, entre as quais Pencil
Points, Architecture D’Aujourd’hui e Architectural Form, que eram distribuídas entre os
funcionários, ficando cada um encarregado de ler determinado artigo, relatá-lo e
apresentar sua apreciação sobre o texto. Os temas mais debatidos foram a obra da
Bauhaus, as ideias de Le Corbusier, Walter Gropius, Mies Van Der Rohe, Hames
Mayer, Andrea Lurçat e todo grupo francês (MELO, 2000:115).
Ayrton Carvalho participou da construção das duas obras mais emblemáticas da
DAU, que marcaram a história da arquitetura moderna brasileira: a Caixa d’Água de
Olinda (1936) e o Pavilhão de Verificação de Óbitos da Faculdade de Medicina (1937).
Na primeira, juntamente com seu colega de estágio e curso, Antônio Baltar, conduziu a
construção. Já na segunda, foi mais além, ao buscar com Luiz Nunes, alternativas para
possibilitar financeiramente sua construção.52 Os edifícios destacam-se pelo seu
pioneirismo seja estrutural e funcional, como a Caixa d’Água (Figura 1), ou estético e
formal, como o Pavilhão de Óbitos (Figura 2).
de edifícios de apartamentos no Rio de Janeiro, considerados por Lúcio Costa no artigo “Depoimento de
um arquiteto carioca” obras percussoras da arquitetura moderna no Rio de Janeiro (XAVIER, 2003:
Apêndice).
52 Segundo Geraldo Gomes, a participação de Ayrton Carvalho na execução deste edifício foi além do
habitual, ele teria possibilitado sua construção deste edifício através das sobras de outras construções e
quase teve que responder judicialmente por ter construído um edifício público sem verbas específicas para
tal (SILVA, 1997).
67
Figura 1 e 2: Caixa d’água de Olinda e Pavilhão de óbitos (respectivamente), fotos publicadas na
‘Brazil Builds’. Nos agradecimentos, Philip Godwin inclui Ayrton Carvalho, Antônio Baltar e
Benício Dias, por mostrar a arquitetura moderna e colonial pernambucana (Fonte: Goodwin,
1943:89).
68
a finalidade de viabilizar e disseminar as práticas da instituição nestas regiões,
considerando as dimensões continentais do país. Para chefiar estes Distritos, foram
nomeados quatro intelectuais que já colaboravam com o IPHAN: o engenheiro Ayrton
Carvalho (1º Distrito), o escritor Godofredo Filho (2º Distrito), o arquiteto Sylvio de
Vasconcellos (3º Distrito) e o engenheiro-arquiteto Luís Saia (4º Distrito).
A sede da instituição permaneceu no Rio de Janeiro, sob a direção de Rodrigo
Mello Franco de Andrade e constante orientação de Lúcio Costa, chefe da Divisão de
Estudos e Tombamentos (DET), como mostra o esquema seguinte:
Assim que foi criado o IPHAN, pessoas de notório saber foram convocadas para
listar monumentos representativos passíveis de tombados em seus estados, os
Assistentes Técnicos respondiam pela repartição em oito diferentes regiões do país.53
Em Pernambuco, esta primeira tarefa coube ao sociólogo Gilberto Freyre, mas a
necessidade de um técnico conhecedor da arquitetura tradicional fez com que, em
1939, o engenheiro Ayrton Carvalho também fosse convidado para a função, pois
apesar de jovem e recém-formado, já havia trabalhado ao lado de nomes como Luiz
Nunes e Joaquim Cardozo no estágio na DAC. Em pouco tempo, o engenheiro tornou-
se o principal representante em Pernambuco, função que exerceu por 42 anos,
independente das transformações administrativas, políticas e conceituais.
Ayrton Carvalho ingressou no IPHAN para executar os reparos necessários da
Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres e da Capela de Nossa Senhora da Conceição
(Capela da Jaqueira). Nestas obras, o engenheiro era responsável pela contratação de
mão-de-obra, elaboração de orçamentos e relatórios periódicos, além do intermédio
1ª. Distrito Federal e Rio de Janeiro; 2ª. Amazonas e Pará; 3ª. Maranhão, Piauí e Ceará; 4ª. Rio Grande do
53
Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas; 5ª. Bahia e Sergipe; 6ª. São Paulo e Mato Grosso; 7ª. Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul; 8ª. Minas Gerais e Goiás (ANDRADE, 1987).
69
com as autoridades locais.54 Segundo Luís Saia (1977), neste momento as práticas da
instituição se pautavam em três ações fundamentais: o inventário de exemplares
significativos da formação brasileira; as reparações imediatas aos monumentos
ameaçados de ruína e a introdução na normalidade nacional, do instrumento do
tombamento e de suas consequências.
Com a criação do 1º Distrito Regional no Recife, Ayrton Carvalho passou a
contar com uma sede fixa para o IPHAN e um pequeno quadro de funcionários.
Tirando alguns auxiliares administrativos e o arquiteto José Ferrão Castelo Branco, que
faziam parte do quadro oficial, os demais profissionais que colaboravam com a
instituição eram contratados por serviço prestado. Como nos demais Distritos, era
fundamental a presença de um fotógrafo para manter a Área Central inteirada do
andamento das obras e dos bens a serem tombados, no Recife, essa tarefa foi levada
por Benício Watley Dias.
O quadro reduzido e a escassez de verbas não impediram que Ayrton Carvalho
constituísse um amplo corpo de colaboradores, a sede do 1º Distrito, no sobrado da
Rua da União, era uma espécie de centro cultural onde se reuniam todas as tardes,
intelectuais renomados para debates acalorados. Neste cenário, o ‘Dr. Ayrton’ (como
era conhecido) constituiu uma rede de relações bem estabelecidas com o corpo docente
da Universidade do Recife, além de setores da administração Estadual e Municipal.
Entre os que fizeram parte deste grupo: o engenheiro Joaquim Cardozo, o jurista Luiz
Delgado, o advogado Berguedoff Elliot, o filósofo Evaldo Coutinho, o artista plástico
Hélio Feijó, o historiador José Antônio Gonsalves de Mello, os intelectuais José Maria
de Albuquerque Melo e José Césio Regueira Costa, os engenheiros Antônio Baltar e
Edgard D’Amorim, além dos arquitetos Delfim Amorim, Acácio Gil Borsói, Gerson
Loretto, Edmundo Barros, José Luiz da Mota Menezes, Geraldo Gomes, Vital Pessôa de
Melo, Augusto Reynaldo, Valdomiro Alves de Souza, Marcos Domingues, Conceição
Lafayete, Zildo Sena Caldas e Zenildo Caldas, entre outros.55 Todos prestavam serviços
como colaboradores da instituição, recebendo honorários por isso, ou não.
Os primeiros tombamentos do 1º Distrito contemplaram principalmente
exemplares da arquitetura religiosa do século XVII, Monumentos como o Conjunto
Franciscano de João Pessoa, o Mosteiro de São Bento, em Olinda, a Capela da Jaqueira
(Figura 4) e a Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife, pelo excepcional valor
artístico e, por vezes, histórico. Além das religiosas, as edificações militares também
foram contempladas: o Forte Orange, em Itamaracá, o Forte do Pau Amarelo, em
Olinda, o Forte das Cinco Pontas e do Brum, no Recife, remetiam valores que não
deveriam ser esquecidos pela nação. Mais tarde, a arquitetura civil dos engenhos
também foi alvo de tombamento, como principal registro da arquitetura rural colonial
(Figura 5).
54 Documentos arquivados na Série Assuntos Administrativos, Subsérie Ayrton Carvalho. Arquivo Central
do IPHAN/Seção Rio de Janeiro.
55Informações concedidas à autora em entrevistas (Geraldo Gomes, José Luiz da Mota Menezes e Zulmira
70
Figura 4: Capela da Jaqueira, Recife-PE, 1939; Figura 5: Engenho Poço Bonito, Vicência-PE,
(Fonte: Arquivo Central do IPHAN, Série 1946; (Fonte: Arquivo Central do IPHAN, Série
Obras- Capela da Jaqueira). Obras- Engenho Poço Bonito).
Ayrton Carvalho fez manobra com as verbas mínimas que lhe foram fornecidas,
muitas vezes em desacordo com a Área Central56, teve querelas com padres, que
teimavam em reformar igrejas tombadas, e proprietários displicentes, que deixavam
edificações em ruínas. Brigou, literalmente, com Deus e o mundo, para fazer cumprir a
salvaguarda do patrimônio histórico e artístico. Tarefa esta, apropriada como ‘causa’
pelos intelectuais engajados no projeto do IPHAN. Assim como os demais técnicos,
Carvalho também atuou em obras de restauro e conservação, entretanto foi na defesa
de monumentos ameaçados pelas transformações urbanísticas que conseguimos
identificar a contribuição mais significativa deste engenheiro-urbanista.
Assim como as principais capitais brasileiras, as áreas centrais do Recife foram
alvo de reformas urbanas da primeira metade do século XX. Em busca de melhorias de
estética, salubridade e circulação, sucessivos planos propunham a abertura de novas
avenidas e construção de edifícios verticalizados nos bairros de Santo Antônio e São
José, até então permeados de representações negativas por conta da forma urbana
tradicional – ruas estreitas, tortuosas, ocupadas por sobrados e casario de porta-e-
janela – vinculados ao atraso econômico e social. A verticalização nestes bairros, que
também eram território de diversas edificações tombadas foi enfrentada por Ayrton
Carvalho, à frente do 1º Distrito e gerou inúmeros confrontos que podem ser
observados nos processos de aprovação de novas edificações na Avenida Dantas
Barreto entre as décadas de 1950 e 1960.57
Em um período cujos conceitos de conservação urbana ainda eram incipientes no
país, Ayrton Carvalho construiu um escopo de práticas no sentido de proteção à
71
vizinhança e visibilidade dos bens tombados, com o aporte mínimo da legislação que
se resumia ao vago art. 18º do Decreto-lei nº. 25/1937:
Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico Artístico
Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer
construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar
anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandado destruir a obra ou
retirar o objeto, impondo neste caso multa de cinquenta por cento do
valor do mesmo objeto (BRASIL. Decreto-lei nº. 25/1937).
72
Figura 6: Estudo de Acácio Gil Borsói para a Figura 7: Proposta de Delfim Amorim para o
construção do Ed. Banco Mercantil, vizinho à Pátio de São Pedro; (Fonte: Arquivo Central do
Matriz de Santo Antônio; (Fonte: Arquivo IPHAN-RJ)
Central do IPHAN-RJ).
73
monumento, magnífico exemplar capela sítio. (...) Nosso parecer é que
toda área ao redor da capela deve se constituir um único parque com
aproveitamento de toda linda e antiga arborização existente sem ruas
intercaladas (Ayrton Carvalho. Telegrama a Rodrigo Mello Franco,
Recife, 08 abr. 1945).
Assim como os demais chefes de Distrito Regionais, Ayrton Carvalho teve papel
fundamental na mobilização de colaboradores que ajudaram a suprir as limitações da
instituição, tornando sua atuação eficaz. O contato com profissionais de outras
instituições e ambientes culturais, fez com que os debates acerca da conservação dos
monumentos ultrapassassem os limites do 1º Distrito. Através destas articulações, a
legislação federal de salvaguarda, antes desconsiderada até mesmo pelos instrumentos
municipais, passou a ser assimilada e repercutida. Esta habilidade com no trato com as
instituições e em fazer funcionar os instrumentos legislativos, bem o modo de pensar a
cidade, nos permite concluir que em sua atuação Ayrton Carvalho no IPHAN foi,
sobretudo, um urbanista.
Conclusão
A análise sobre as práticas de Ayrton Carvalho nos revela a relação intrínseca
entre a arquitetura moderna e a conservação do patrimônio histórico e artístico
nacional, que se constituíram interagindo de forma direta sem contraposição.
Percebemos que o saber acerca da arquitetura tradicional é construído por Carvalho, a
partir de uma experiência pioneira no sentido de constituir uma arquitetura moderna
brasileira. Na DAC/DAU o engenheiro foi levado a estudar a fundo os materiais e
técnicas construtivas tradicionais e locais, para se apropriar destes e produzir uma
arquitetura moderna em sintonia com os preceitos difundidos por Le Corbusier e pela
Bauhaus, condizente com as condições e peculiaridades locais.
À frente do 1º Distrito Regional, vimos que os valores da ‘boa arquitetura’ –
Colonial ou Moderna – enunciada por Lúcio Costa guiavam as práticas de Ayrton
Carvalho, fosse nas restaurações, inventários, tombamentos ou intervenção no entorno
de vizinhança de monumentos. Cabe destacar este último ponto, como uma de suas
principais contribuições, a inserção de edifícios verticalizados na vizinhança de
monumentos tombados exigiu que este desenvolvesse um tirocínio acerca dos
instrumentos urbanísticos ainda pouco avançado no âmbito nacional. Enquanto chefe
de Distrito – ainda que tenha realizado pesquisas, inventários e tombamentos como os
demais – o papel maior de Ayrton Carvalho foi como urbanista. Graças a este
engenheiro a cidade hoje pode contar com parques em sítios tradicionais como o da
Jaqueira e o da Trindade e além dos pátios e casario do conjunto histórico dos bairros
Santo Antônio e São José. Para além da atuação na instituição, Ayrton Carvalho
constituiu uma espécie de centro cultural em torno do 1º Distrito Regional, onde alunos
e intelectuais eram instigados a contribuir e discutir soluções para os impasses
cotidianos, levando o conhecimento acerca das práticas da salvaguarda a se disseminar
por diversos ambientes institucionais e culturais.
74
Referências
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Museum of Modern Art.
PEREIRA, J.M., 2012. Admiráveis Insensatos: Ayrton Carvalho, Luís Saia e as práticas
no campo da conservação no Brasil. Recife: Dissertação de Mestrado, MDU-UFPE.
RECIFE, 1965. Plano de Gabaritos para os Bairros de Santo Antônio e São José.
75
O PAPEL DA MEMÓRIA NA CONSERVAÇÃO SUSTENTÁVEL
DO PATRIMÔNIO: O CINE BANDEIRANTE EM SABARÁ (MG)
Resumo
O objetivo deste artigo é desenvolver uma discussão em torno da memória
do lugar como um componente que atribui sentido ao bem cultural e,
consequentemente, como um caminho para viabilizar a sua conservação
enquanto ambiente construído. A memória do lugar ajuda a comunidade a
definir um passado comum e a apropriar-se do bem patrimonial, o que
favorece a sua conservação de forma mais duradoura. O artigo utiliza o
Cine Bandeirante, inaugurado em 1959, em Sabará (MG), como estudo de
caso que demonstra como um lugar que perde sua ligação com a sociedade
tende a cair no esquecimento. Seu prédio, já há alguns anos sem nenhum
uso, encontra-se no estágio inicial do processo de restauração. O Cine
Bandeirante fez parte da vida da cidade, mas não é apenas um resquício do
passado. O estudo busca mostrar que o lugar, mesmo que não cumpra mais
suas funções originais, precisa dialogar com o presente.
Introdução
O objetivo deste texto é destacar a importância da conservação do ambiente
construído, enquanto bem cultural referente à identidade de indivíduos e grupos,
enquanto possuidor de uma memória essencial. Para preservar o lugar, vivenciado no
passado e vivido no presente, é necessário resguardar sua memória, o que contribui
para a apropriação do bem patrimonial pela sociedade e colabora com a manutenção
dos seus valores culturais.
Trata-se de um texto resumido, com vistas à ampla discussão que circunda o
tema e os inúmeros desafios que surgem ao trabalhar com patrimônio e
sustentabilidade na atualidade. O Cine Bandeirante, antigo cinema de Sabará (MG), é
usado no texto como estudo de caso que ajuda a pensar a relação entre patrimônio e
memória de forma sustentável.
UFMG. fabianamunaier@gmail.com
♥ UFMG.felipesabara@hotmail.com
76
1. Breve estudo de caso: o Cine Bandeirante ontem e hoje
No início do século XX, o Teatro Municipal de Sabará foi adaptado e
transformou-se em Cine Teatro Borba Gato, mas com o passar dos anos suas
instalações chegaram ao limite de não suportar a produção cinematográfica em escala
industrial que demandava arquitetura sofisticada e aparelhagens avançadas. Pode-se
afirmar que o cinema, diretamente relacionado ao consumo, se desenvolveu seguindo
os anseios da modernidade capitalista (Benjamin, 1975).
Na década de 1950, surgiu a ideia de construir em Sabará um cinema com
equipamentos de áudio e projeções que oferecessem à população a possibilidade de
assistir aos mesmos filmes em cartaz nos cinemas de Belo Horizonte. Em 1959, através
da iniciativa do prefeito José Costa Sepúlveda, o moderno Cine Bandeirante foi
inaugurado. O projeto do cinema foi feito pelo engenheiro Paulo Penaforte Parreiras e
as obras de construção foram executadas por profissionais da construção civil em
Sabará, liderados por Antônio Lourenço59. Durante muitos anos foi opção de lazer e
cultura, com a projeção de filmes dos mais diversos gêneros. Tinha capacidade para
aproximadamente oitocentos espectadores (Novo cinema, 1958). A nova sala
proporcionou a primeira experiência cinematográfica de massa na cidade.
Eram poucas as pessoas que possuíam televisores até o início da década de
1970, consequentemente, era comum a existência de longas filas para entrar no cinema.
A partir de 1978, o Cine Bandeirante entrou em decadência. A ampla difusão da
televisão e a facilidade de acesso a Belo Horizonte colaboraram para a redução do
público até culminar no fechamento definitivo. Posteriormente, o prédio passou a
chamar-se Centro Cultural José Costa Sepúlveda e começou a atender programas como
o “Férias no Cinema”, ensaios de teatro, palestras e formaturas (Conselho, 2002, p. 4-8).
Mas essas atividades, que eram tentativas de atribuir uso ao local, não vingaram.
O declínio do Cine Bandeirante foi marcado por filmes do gênero
pornochanchada e ocorreu de forma semelhante à decadência do Cine Candelária em
Belo Horizonte. Aliás, foi da mesma forma como aconteceu em várias salas de cinema
pelo Brasil. Além da predominância da exibição desse tipo de filme, Teodoro Assunção
(2009, p.20) afirma que a decadência das salas é marcada pela “massificação dos
hábitos televisivos e – por meio de uma novidade tecnológica decisiva – a introdução
do hábito cômodo e doméstico do home video com todo o novo comércio das
videolocadoras”.
Em 2002, o prédio do Cine Bandeirante recebeu o título de patrimônio histórico
e cultural. Sua estrutura foi tombada e protegida em nível municipal60. Com a
ampliação do campo de abrangência do chamado patrimônio “instrumentos como o
tombamento (...) passam agora a expor, de uma maneira cruel, suas limitações e têm, a
nosso ver, que ser revistos à luz de novos condicionantes e critérios” (Castriota, 2009,
p.86). As considerações de Leonardo Castriota são relevantes na medida em que é
possível observar o precário estado de conservação em que estava o Cine Bandeirante
59 A arquitetura do prédio do Cine Bandeirante foi projetada no estilo Art Déco. A ideia era seguir os
modernos traços arquitetônicos da cidade de Belo Horizonte, típicos do século XX, bem como a política de
modernização defendida pela elite nacional da época.
60 Conforme decreto 275/2002 e inscrição 22-T do Livro de Tombos de Sabará, fls. 05 (Secretaria de Cultura
77
às vésperas do início das obras de restauração começadas em junho de 2012. As figuras
1 e 2 ilustram os problemas de infiltração que a estrutura do prédio do cinema passou
nos últimos anos.
78
comunidade lhe conferir sentido. A memória funciona como elo entre a
sociedade e o bem cultural. A preservação da memória do cinema em Sabará,
na sua vinculação com a história, pode contribuir para a recup eração do seu
sentido cultural. A população vivenciou o lugar, logo os órgãos de
preservação não podem tomar decisões sem dialogar com a sociedade que,
ao apropriar-se do bem, contribui para a continuidade dos seus aspectos
culturais e ambientais. As intervenções no campo do patrimônio devem levar
em consideração os diversos suportes da memória: as edificações e os
espaços, os documentos, as imagens e as palavras (Castriota, 2009, p.86).
Envolver a comunidade e observar como o lugar foi vivenciado no passad o e
como é rememorado atualmente pode ajudar os profissionais da conservação
a identificar os vínculos entre os sabarenses de hoje e o cinema.
A preservação do patrimônio ambiental urbano: “é, antes, preservar o
equilíbrio da paisagem, pensando sempre com o inter-relacionados à infra-
estrutura, o lote, a edificação, a linguagem urbana, os usos, o perfil histórico
e a própria paisagem natural” (Castriota, 2009, p.89). Os usos e os desusos
influenciam na conservação dos bens culturais. O patrimônio não é está tico,
a cidade é um organismo vivo, em transformação, os costumes mudam, a
cultura é dinâmica. As políticas de preservação devem priorizar o acesso da
população ao bem cultural. Em suma, o Cine Bandeirante não cumpre mais
suas funções originais, bem como já não abriga nenhuma atividade cultural
há alguns anos. O lugar precisa de um uso que garanta sua integridade,
preservando-lhe as linhas arquitetônicas externas e detalhes internos, assim
como sua memória. O diálogo com a comunidade é fundamental para o
processo de tomada de decisões sobre a conservação e os diversos valores
que envolvem o bem cultural devem ser discutidos antes de definir um novo
uso para o lugar.
O jornal Estado de Minas, no dia 15 de maio de 2012, noticiou que “os
dias de glória da sétima arte, turbinados pela moderna tecnologia e novas
gerações de atores e atrizes, vão voltar à cidade colonial, com a restauração
do prédio do antigo Cine Bandeirante” (Werneck, 2012). A notícia destaca
que há sete anos fechada e abandonada, a construção va i se transformar em
local multimídia, com espaço reservado para sessões de cinema. Os custos do
projeto estão estimados em R$1,3 milhão.
É a memória afetiva que eleva o Cine à categoria de patrimônio,
depositário do passado histórico. O local, que tem seu período de uso cada
vez mais distante no tempo, corre o risco de perder o seu caráter identitário,
relacional e histórico, o que configuraria um brusco rompimento cultural. A
população precisa ficar próxima das ações de intervenção durante toda a
execução do projeto de restauração.
79
2. Patrimônio Sustentável
2.1 Memória e Conservação
A partir do pressuposto de que cada lugar tem sua memória, podemos
considerá-la como aliada às estratégias de valorização e conservação dos
bens culturais que compõem a relação identitária entre população e cidade.
O ser humano tende a valorizar e cuidar do que lhe desperta afeto ou
identificação. Quando a identidade cultural fica ameaçada, o patrimônio
sofre consequências. É importante preservar a memória do lugar para que o
bem cultural não perca seu sentido.
O lugar é o lar das tradições e memórias. Conforme Tuan (1983, p.3 -6),
tempo e lugar são componentes básicos do mundo vivido e aos lugares
atribuímos valores. Muitos são definidos pela cultura, que é exclusiva do ser
humano. O espaço indiferenciado se transforma em lugar depois que o
dotamos de valor (Tuan, 1983, p.6). O autor defende que o lugar e o espaço
são experimentados. De acordo com Casey (1987, p.186 -187), a “memória do
lugar” seria “a persistência estabilizadora do lugar como um contenedor de
experiências que contribui tão poderosamente para a sua memorabilidade
intrínseca”. A memória se vincula ao lugar, portanto, é orientada e/ou
suportada pelo lugar. As pessoas têm capacidade de se conectar com o
ambiente construído. Então, a “memória do lugar” se configura como a
chave para se definir um passado comum. Segundo Hayden (1995, p.47),
explorar a “memória social” e a “memória do lugar” é uma ideia poderosa
que pode servir a preservação do ambiente construído.
Ana Carlos afirma que é relevante
[...] pensar a história particular de cada lugar se
desenvolvendo, ou melhor, se realizando em função de uma
cultura/tradição/língua/hábitos que lhe são próprios,
construídos ao longo da história [...]. O lugar é a base da
reprodução da vida e pode ser analisado pela tríade
habitante - identidade - lugar. [...] As relações que os
indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem
todos os dias nos modos do uso [...] (2007, p.17).
80
com o bem cultural fica comprometida, considerando -se o Cine Bandeirante
como parte da construção identitária dos sabarenses. “Identidade coletiva
(...) não seria aquilo que é igual, mas o que faz as pessoas se reconhecerem
como grupo: valores comuns, ritos e ritmos compartilhados” (Carsalade,
2007, p.177). Seriam as práticas cotidianas compartilhadas por uma
comunidade.
Choay (2006, p.26) completa o conceito de i dentidade coletiva ao
afirmar que o patrimônio tem papel fundamental na preservação da
identidade dos povos e dos grupos sociais. Também ressalta que as relações
dos bens culturais com o tempo, a memória e o saber interferem na sua
conservação. O esquecimento, o desapego e a falta de uso levam o bem ao
abandono. O patrimônio possui caráter transformador que precisa ser relido
e utilizado de forma consciente e sustentável. Sem, no entanto, perder o
lastro da memória. Duas dimensões convivem num mesmo lugar d a
memória, a perenidade do passado e a dinâmica do presente, numa
complementaridade que permite uma reutilização do bem patrimonial, que,
longe de ser apenas um resquício do passado, é plástico o suficiente para
dialogar com o presente.
O conceito de “patrimônio” está em constante ampliação. Segundo
Castriota (2009, p.85), aos critérios estilísticos e históricos se juntam a
preocupação com o entorno, ambiência e o significado que a comunidade
confere ao bem patrimonial. O conceito de “sustentabilidade” tamb ém é
amplo e está ainda em construção, mas seu escopo já é claro: as necessidades
de uso dos recursos disponíveis não podem comprometer a qualidade de
vida no futuro. Os bens culturais precisam ser considerados como recursos
de suma importância para o futuro.
O economista David Throsby (2001) insere o conceito de
sustentabilidade como um princípio não apenas para as decisões sobre a
conservação do ambiente construído, mas como uma estrutura holística para
interpretações interligadas entre economia, sociedad e, cultura e sistemas
biológicos. O autor afirma que é preciso reconhecer a importância do valor
intangível do patrimônio, as ligações com a história local que um bem
representa, assim como o valor da educação e o papel simbólico para a
comunidade. Esses valores podem se servir para que a comunidade se
aproxime das ações voltadas para a conservação dos bens locais. Os valores
sociais, culturais e ambientais são fundamentais para a preservação do
ambiente construído, mas não podem ser dissociados da esfera e conômica
(Throsby, 2001, p.4).
Pelo viés da sustentabilidade social, a antropóloga Setha Low (2001,
p.47) afirma que a formação da identidade cultural está diretamente
relacionada ao ambiente construído. As lembranças físicas fornecem um
sentimento de identificação com o lugar, através da continuidade e
conectividade que raramente temos consciência, mas que desempenham um
papel importante em nosso desenvolvimento psicológico como indivíduos e
grupos. Low (2001) retoma os princípios de sustentabilidade de T hrosby
81
(2001) e reforça que para a sustentabilidade social ser atingida em nível de
indivíduos e grupos é preciso que o lugar seja preservado. Para Martins
(2006) o patrimônio “é uma consequência da percepção do homem e seu
valor, no contexto no qual está inserido”, e a falta de informação à população
sobre valorização cidadã de patrimônio têm consequências nos sujeitos
enquanto povo e memória (Martins, 2006, p.45).
Os bens culturais devem ser compreendidos como recursos essenciais
para o presente e o futuro das cidades e é nessa órbita que carece ser
pensada a conservação do Cine Bandeirante em Sabará. De acordo com
Carneiro
[...] quem assegura que as relações entre as pessoas dessa
cidade não sofram perdas em termos de qualidade, sempre
que algo desaparece do convívio de todos? Se há uma reação
sintomática melancólica, já se pode pensar que parte da
história de um cidadão rui junto com um cinema, uma
edificação, uma árvore etc. (2006, p.22).
A dinâmica da identidade tratada por Castells sugere que “Como, e por quem,
diferentes tipos de identidades são construídas, e com quais resultados, são questões
que não podem ser abordadas em linhas gerais, abstratas: estão estritamente
relacionadas a um contexto social” (Castells, 1999, p.26). Para Marc Augé, a
superabundância e os excessos enfraquecem as referências coletivas gerando um
individualismo da identidade. Assim sendo, o chamado “não-lugar” caracteriza-se por
não ser identitário, histórico e relacional.
82
que poderíamos dizer de supermodernidade para dar conta de sua
modalidade essencial: o excesso (Aaugé, 1994, p.32).
83
consequentes da formação de identidade entre interlocutores e ambiente a partir da
interação entre os mesmos. Esse importante detalhe não pode ser desconsiderado.
Conclusão
Para conservar um bem cultural é preciso ir além do que simplesmente tombá-
lo. É importante que haja um efetivo diálogo entre os órgãos públicos e a sociedade,
que deve ser envolvida no processo. Ao apropriar-se do bem cultural, através do uso e
de uma relação afetiva, a sociedade pode contribuir para a continuidade dos seus
aspectos culturais e ambientais. Para criar estratégias de conservação para o Cine
Bandeirante é importante envolver a comunidade e pensar como o lugar foi vivenciado
no passado e como é rememorado atualmente. Somente a população, através da
memória, poderá garantir o sentido do patrimônio.
Os usos e os desusos influenciam na conservação dos bens culturais. Sem uso o
bem tende a perder a ligação com a comunidade e a cair em esquecimento. A
preservação só faz sentido se priorizar o acesso da população ao bem. Através do uso,
o homem habita e se apropria do bem cultural. Se cada lugar tem sua memória, logo
ela se configura como um caminho para a valorização e conservação dos bens culturais,
ou seja, a memória é um dos quesitos para atribuir sentido ao patrimônio. A relação do
patrimônio com a sociedade interfere na sua conservação. O Cine Bandeirante é um
depositário do passado, mas o mesmo precisa dialogar com o presente, pois possui
valor histórico e simbólico para a comunidade. Os valores são fundamentais para a
conservação do patrimônio e auxiliam na definição de um novo uso para o bem
cultural na mesma medida em que corroboram para aproximá-lo da comunidade.
Para trabalhar o patrimônio edificado é preciso fazer considerações em longo
prazo, o que nos remete ao conceito de sustentabilidade. Além de valor econômico, o
Cine Bandeirante possui valor histórico, arquitetônico, estético e simbólico, isto é, valor
cultural. Esse precisa ser preservado como um importante recurso tanto para o
presente quanto para as gerações futuras. Conservar o lugar e sua memória é preservar
a identidade cultural de indivíduos e grupos.
Referências
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86
MEMÓRIA E ESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO NAS COLÔNIAS
ITALIANAS NO RIO GRANDE DO SUL. ESTUDO CRÍTICO-
COMPARATIVO ENTRE BENTO GONÇALVES/RS E AS
TERRAS DE ORIGEM
Décio Rigatti, Lívia Terezinha Salomão Piccinini♦ & Elio Trusiani♥
Resumo
O trabalho, resultado parcial de uma pesquisa em andamento entre a
UFRGS e a Sapienza Universidade de Roma, aborda a questão geral da
paisagem cultural através de uma metodologia de investigaçao histórica
entre dois aspectos: o nível do territorio e o nível da arquitetura rural. A
ocupação da serra do Estado do Rio Grande do Sul com a vinda de colonos
italianos a partir de 1875 resulta numa paisagem única no Brasil. O
presente trabalho se propõe a descrever a evolução histórica do território e
da paisagem atual ante as novas formas de uso e a discutir, de forma
crítica, os vínculos e os sinais de permanência/transformação entre a
colônia italiana e as terras de origem de seus habitantes. O trabalho
pretende investigar as regras das matrizes históricas dos assentamentos,
sua evolução e sua relação com o território atual e as paisagens
contemporâneas e identificar, a partir da análise dos layouts de uma
amostra de habitações rurais no interior do município de Bento Gonçalves -
RS, de que maneira os traços da história e da tradição da imigração italiana
se manifestam e se articulam com a experiência arquitetônica das áreas de
origem, além de permitir o exame das novas funções do território e das
novas tipologias de paisagens, pondo a questão da conservação das
permanências históricas como recurso para valorizar o territorio e a
paisagem. Os resultados, até o momento, mostram que, no que se refere
especificamente à estrutura das habitações rurais, estas possuem grande
similaridade de organização, embora apresentem formas, materiais,
implantação, etc. diferentes entre si e das matrizes históricas, e que estas
recorrências parecem representar modos culturalmente arraigados de se
estabelecerem: (i) relações internas entre os membros das famílias; (ii)
externamente com os visitantes; (iii) e na organização do cotidiano das
famílias e da vida comunitária.
Palavras-chaves: estrutura da paisagem de colonização italiana no RS, estrutura
da habitação rural de colonização italiana no RS, memória e estrutura do espaço.
UFGRS. driga2000@yahoo.com.br,
UFRGS. liviapiccinini@hotmail.com,
Sapienza Università di Roma, elio.trusiani@uniroma1.it
87
Introdução
1. Objetivos
88
2. Metodologia
3. Antecedentes históricos
89
intimamanete à escravidão. A extinção do tráfego escravo (Lei Euzebio de Queiroz,
1850) e os problemas com a manutenção das fazendas cafeeiras levou a economia do
Império a se decidir pelo emprego da mão-de-obra livre e pela ocupação das terras
pelos imigrantes europeus. Aqui, a abolição do tráfego de negros e o estabelecimento
da Lei do Ventre Livre (1874) apontava para a necessidade de adotar novas formas de
trabalho para explorar o solo e alternativas para resolver as demandas provenientes da
agricultura.
Neste período, na Itália, a Unificação, fruto de interesses políticos-econômicos
entre diferentes grupos, foi uma revolução incapaz de reorganizar a propriedade da
terra de uma maneira eficaz a ponto de diminuir os conflitos. Ao lado do latifúndio e
dos grandes senhores de terra, os camponeses empobrecidos viviam em pequenas
propriedades que não geravam o suficiente para a sobevivência da própria família,
quanto mais gerar excedentes que pudessem ser comercializados. A forma de
modernização acelerada promovida pela introdução do capitalismo naquele país
prejudicou camponeses e trabalhadores assalariados. Ao mesmo tempo em que as
novas tecnologias (trem, telégrafo, máquinas industriais) auxiliavam na superação da
economia feudal existente liberando grandes contingentes da população rural para
novas cidades e indústrias, uma igualmente grande quantidade da população não
conseguia ser absorvida pelo mercado de trabalho nacional, nem pelos mercados dos
demais países da Europa, que haviam passado por esse processo anteriormente. A
pressa em superar séculos de atraso e adaptar-se ao capitalismo levou o Estado italiano
a pressionar os trabalhadores assalariados e camponeses, cobrando taxas e impostos
impossíveis de serem atendidos pelos mais pobres e incapazes de gerar empregos
suficientes, obrigava-os a abandonar suas familias, vender suas terras para pagar as
dívidas, emigrar. Greves, protestos e manifestações populares avançavam sobre as
cidades, ao mesmo tempo em que a fome (gerando a pelagra) e as doenças (cólera,
malária) atacavam as populações. Em um país que na época constituia-se de trinta
milhões de pessoas, havia muitos habitantes dispostos a se aventurarem a abandonar a
Pátria e rumar para o exterior, mesmo para terras longínquas, em busca da
sobrevivência e de melhores condições de vida.
Os acordos entre os governos brasileiros e italianos acionaram milhares de
pessoas entre os dois países, propagandeando as vantagens de imigrar para o Brasil e
organizando e orientando desde a navegação e as condições de trabalho até as formas
de propriedade da terra. É estimado que chegaram ao Rio Grande do Sul oitenta e
quatro mil italianos e que no total, chegou um milhão de italianos no Brasil entre 1875 e
1913, provenientes de diversas regiões e cidades italianas, mas a maior parte
provenientes do norte da Itália, tais como Beluno, Treviso, Bergamo, Trento, Calabria,
Modena, Milao, Padova, Genova, Napolis, Firenze e outros. Os custos de transporte da
Europa ao Brasil e dos portos de chegada até a área do assentamento, ficavam a cargo
do governo brasileiro e o cálculo das dividas individuais com as despesas de imigração
era calculada em 30% sobre o valor dos lotes. O período de tempo entre a saída da
Itália e a chegada ao assentamento final, no Brasil, não era muito longo (ao redor de
um mes), embora desagradável e penoso, nos navios com falta de espaço e higiene,
alimentação inadequada e doeças que atormentavam as crianças e as mulheres, pois a
maioria dos imigrantes vinha acompanhado da mulher e de filhos, em grupos de duas
a dez famílias.
90
Em 18 de setembro de 1850, D. Pedro II assinou a Lei n. 601, a “Lei das Terras”
que passou a regular a colonização e a imigração para o Brasil. A lei dispõe com
precisão sobre os usos das terras devolutas do Império, decidindo como legitimar as
sesmarias já concedidas e orientando sobre a venda de terras. Desde o início do século
XIX vinha-se desenvolvendo um pensamento pró-imigração no Brasil. No entanto, se
por um lado a Coroa Imperial Portuguesa no Brasil representava interesses comerciais,
por outro lado, as classes proprietárias de terras, esforçavam se para garantir a
delimitação das terras para imigração e colonização que lhes fossem convenientes. No
Rio Grande do Sul, o pensamento pró-imigração desejava não apenas resolver o
problema de escassez de mão-de-obra, mas significava a opção por substituir a
escravatura e complementar a monocultura ganadeira com novas práticas: a
colonização e o povoamento da região norte do estado, o trabalho livre, a pequena
propriedade, a gricultura.
Autores ressaltam que o processo de imigração e de colonização no Brasil, deve
ser entendido sob a marca da “Lei das Terras” (1850), que institucionalizou, a nível
jurídico-político, a propriedade privada da terra no país. Assim, a política de
colonização foi regida pela Lei Provincial n. 304 datada de 30 de novembro de 1854,
que garantiu a imigração subordinada aos interesses dos grandes proprietários de terra
(SANTOS, 1978). Paralelamente, e de certa forma contraditoriamente, a opção pela
imigração apoiava-se em um conjunto de motivos inovadores, significando um
progresso ante a escravidão e a monocultura e criticando as condições da sociedade
escravocrata das charqueadas, buscava o acesso ao trabalho livre de imigrantes
europeus, proprietários e brancos (SANTOS, 1978).
A Lei autorizava a compra de terras, pelo governo, com base nos seguintes
princípios: (a) divisão de lotes de 48 hectares, com reservas de áreas para as servidões
públicas (mas a maioria dos lotes destinados aos imigrantes italianos não ultrapassava
os 30 hectares); (b) venda de lotes em pagamentos por até cinco anos, com garantia dos
mesmos como hipoteca; (c) auxílio aos imigrantes (para a compra de alimentos,
ferramentas, sementes, etc.) reembolsáveis dentro de cinco anos, com dois anos de
carência; (d) proibição dos colonos de possuirem escravos seus.
Em maio de 1854, o governo brasileiro regulamenta disposições sobre os marcos,
as demarcações das léguas, dos travessões, linhas e lotes. Ficam determinados os
preços dos lotes, o auxílio financeiro aos imigrantes até a colheita das primieras safras,
as zonas urbanas, as reservas florestais, os locais das fortificações e os portos (GIRON,
1977).
No estado do Rio Grande do Sul, o Decreto n. 1984 de 06 de outubro de 1857
criou a Repartição Especial de Terras Públicas na Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul, que autorizava a venda das terras finalmente escolhidas para a
localização dos colonos. A área escolhida foi a região da Encosta Superior do Nordeste,
área de difícil acesso, pedregosa e pouco fértil, com topografia muito acidentada, rios
de baixa navegabilidade e grandes distâncias dos portos. Essa localização garantiu, no
entanto, o espaço para a continuidade da grande propriedade latifundiária do sul do
estado. O governo oferecia a possibilidade de os colonos trabalharem durante 15 dias,
no mes, na abertura de estradas na região e o pagamento seria descontado do custo dos
lotes. Após o pagamento de um terço do lote, o colono recebia um título provisório do
91
mesmo, e quando o valor integral da divida fosse quitado e, comprovado que o lote era
cultivado e ocupado, o título definitivo lhe era conferido. O processo e os
procedimentos em relação à terra, tais como demarcação, divisão, medição,
distribuição dos lotes e o assentamento dos moradores das colonias eram
desenvolvidos por engenheiros, agrimensores, desenhistas e topógrafos pertencentes à
Inspetoria Especial de Terras e Colonização.
4.1 O Edifício
Por mais simples que seja o programa de uma moradia, ela apresenta
peculiaridades que permitem compreendê-la muito além do que nos transmite pela sua
aparência, pelos materiais utilizados, pela sua escala, proporções, relações entre cheios
e vazios, enfim, pelos seus atributos físicos e imediatamente reconhecíveis. Neste
particular, e mantidas as exceções, cada moradia tende a se constituir num objeto
único, seja na busca da marca e das particularidades de quem nela habita, seja como
resultado dos conceitos e ideais que justificaram a sua concepção e projeto, entre tantas
opções possíveis.
Isto é tanto verificado numa arquitetura que podemos conceituar como erudita,
no sentido de que foi matéria de um processo de desenho por um especialista que, via
de regra, não é o próprio morador, quanto na arquitetura dita vernacular, aquela que é
produzida muito mais por processos de reprodução incutidos no tempo e no espaço
pela cultura.
Mas a acepção da casa, tal com exposta acima, expõe um problema metodológico
para a sua análise, uma vez que limita a abordagem essencialmente às questões de
forma, sendo que seu conteúdo enquanto espaço de vivência, fica subentendido como
uma dimensão quase que independente da forma, como se os processos de uso não
tivessem no arranjo espacial, um atributo essencial para a sua viabilização ou para sua
própria constituição.
Toda casa, assim como todo o edifício, distingue-se do espaço público dado que,
enquanto o último é constituído por um contínuo, o edifício constitui-se numa
construção de limites a esse espaço contínuo e, portanto, a experiência possível nesses
dois domínios é muito diversa. O edifício, enquanto interrupção do contínuo espacial
que caracteriza o domínio público, propõe uma distinção fundamental entre um
exterior e um interior. Enquanto que o exterior é conceitualmente o espaço do livre uso,
através do qual de qualquer lugar se pode ir a qualquer outro lugar, o interior constitui
o domínio do controle das relações sociais, uma vez que o limite espacial imposto pelo
edifício estabelece limites relativamente claros quanto às relações entre o morador,
aquele que controla esse espaço delimitado, e o estranho, ou visitante que pode, na
medida em que lhe é permitido, penetrar e se movimentar nesse interior de acordo
com cláusulas prévias e socialmente acordadas.
O edifício estabelece, portanto, o potencial de relações entre os moradores e
visitantes, utilizando-se de estratégias de arranjo espacial, através das quais são
definidas fisicamente as possibilidades, mesmo que não determinísticas, das relações
sociais no espaço.
92
A importância desta distinção é fundamental para a compreensão das
modalidades socialmente construídas do uso do espaço e permite que a produção e a
reprodução das relações sociais utilizem o espaço como uma de suas instâncias,
responsável pela geração das possibilidades de interfaces de estranhos entre si – no
domínio público – e pelas interfaces entre moradores entre si e com estranhos, no
domínio privado delimitado pelo edifício.
Como dizem Hillier, B. e Hanson, J. (1984:145):
“In moving from outside to inside, we move from the arena of encounter
probalities to a domain of social knowledge, in the sense that what is
realised in every interior is already a certain mode of organizing experience,
and a certain way of representing in space the idiosyncrasies of cultural
identity.”
Assim, um dos conceitos-chave é o de ordem espacial, que é como é possível
definir a natureza das relações entre categorias sociais. Ordenar o espaço significa
“...at least some domain of unitary control, that ‘unitariness’ being expressed
by two properties: a continuous outer boundary, such that all parts of the
external world are subject to some form of control; and continuous internal
permeability, such that every part of the building is accessible to every other
part without going outside the boundary.” (Hillier, B. e Hanson, J. (1984:147)
93
As formas de representação adotadas permitem que sejam feitas mensurações
das propriedades espaciais presentes em determinadas morfologias. Deste modo, é
possível comparar edificações distintas a partir de seus elementos estruturais e
relacionais o que, de outro modo, seria limitado aos aspectos formais e, portanto, de
difícil comparação.
A representação básica das edificações é feita pela construção de um ‘mapa
justificado’, no qual cada compartimento é representado por um círculo e cada relação
de permeabilidade existente entre quaisquer compartimentos é representada por uma
linha. Deste modo, abstraem-se da edificação os aspectos de forma e materiais e são
retidas as relações espaciais. Este mapa tanto reproduz as relações espaciais existentes
como também permite a quantificação das propriedades espaciais.
O exemplo simples abaixo é extraído do The social logic of space (p. 148) e permite
ilustrar o argumento, sendo que à esquerda é representada a planta-baixa da
edificação, com seus compartimentos e, à direita, o gráfico correspondente:
a b
a a
a b
a a
A
c
c a
a
a b
a b a a
a a
B
c c
a a
b
a
c a b a
a a a a
C c
a
94
Os compartimentos ‘a’ e ‘b’ estão, de alguma forma, relacionados com o espaço
exterior – ‘c’ – e o papel relativo de cada um dos compartimentos depende da sua
posição relativa, entre si e com o espaço externo. Assim, em A, ‘a’ e ‘b’ são simétricos a
‘c’, com todos os espaços situados ao longo de um único anel. Em B, o exterior se
relaciona com ambos os espaços internos, mas estes não se relacionam entre si, isto é,
para ir de ‘a’ para ‘b’ é necessário utilizar o espaço externo. No caso de C, o espaço ‘b’
só pode ser acessado do exterior mediante a passagem pelo espaço ‘a’ que, portanto,
assume um papel de controle do que ocorre entre ‘c’ e ‘b’, possuindo uma estrutura em
árvore. Essas diferentes configurações representam modos distintos de os espaços
controlarem as diferentes morfologias e, portanto, enfatizam propriedades relacionais
de controle das categorias sociais envolvidas.
O espaço externo, representado por um círculo cruzado nas situações
representadas, é a raiz dos gráficos. Isto se deve a uma condição essencial para a
compreensão do funcionamento das edificações, ou seja, de que forma um edifício
pode ser entendido do ponto de vista do espaço externo. A raiz do gráfico, no entanto,
pode ser qualquer um dos espaços do conjunto considerado, mudando-se apenas o
ponto de vista de como o sistema em análise é visto a partir dele.
Ao analisar diferentes edificações através destes procedimentos, é possível a
identificação de famílias de estruturas – os genótipos – e esses genótipos é que
permitirão examinar o objetivo fundamental da pesquisa que se centra na identificação
de que modo os imigrantes italianos que se radicam na região de Bento Gonçalves
reproduzem essas estruturas, muito além do que reproduzem enquanto forma,
materiais ou técnicas construtivas. São os genótipos os que permitem estabelecer os
vínculos essenciais entre morfologia e uso social do espaço.
“...a genotype in buildings (gamma, no original) can be defined in terms of
associations between labels of spaces and differentiations in how those
spaces relate to the complex as a whole... (...) genotypes will be the result of
relations of inhabitants and inhabitants with visitors” (Hiller, B.; Hanson, J.,
1984:154).
E são exatamente as interfaces entre os moradores e visitantes os geradores
sociais fundamentais dos edifícios (Hanson, J., 1998:22).
95
A medida de integração é dada pela fórmula: , onde RA é a medida
de integração, Md é a profundidade média do sistema considerado e n é o número de
espaços que compõem o sistema. Com a finalidade de permitir a comparação entre
sistemas de tamanhos diferentes, utiliza-se a medida de integração normalizada:
onde RRa é a integração normalizada, RA a medida de integração descrita
anteriormente e k é um coeficiente relativo ao número de espaços (p. 112 de The social
logic of space). Para que o resultado tenha um significado direto (maior valor=maior
integração), o que facilita enormemente as análises, é utilizada a recíproca de RRA, ou
seja, 1/RRA.
5. A amostra
96
Tendo em vista os objetivos da pesquisa, procedeu-se levantamentos in loco,
procurando agregar informações não constantes das fichas de levantamento de 1996,
como a paisagem de implantação das residências, a reconstituição das plantas-baixas,
com a destinação de uso de cada compartimento. Das 203 residências selecionadas em
todo o território do município, foram feitos levantamentos prioritários naquelas
localidades que apresentavam uma maior concentração de edificações, que foram as
localidades de São Pedro, Linha Paulina, Linha Eulália e Linha Leopoldina.
Na ocasião dos levantamentos optou-se por incluir na observação eventuais
residências não listadas, mas que apresentavam interesse para a pesquisa e, também,
nos casos em que a edificação tenha sido tão modificada a ponto de perder suas
características e impedir a reconstituição da planta, estas foram descartadas. Alguns
bens listados que foram objeto de reformas recentes, mas que ainda dispunham de
documentação com registros das situações originais foram mantidas, sendo utilizado o
material de arquivo, normalmente dos escritórios de arquitetura responsáveis pelas
reformas. As casas ou residências são denominadas pelo nome de família, mantendo-se
sua identificação como foi feito pelo levantamento dos bens de interesse para
preservação de 1996.
A listagem final dos bens, com plantas-baixas e paisagem de entorno levantadas,
com sua localização, consta da tabela abaixo.
Tabela 1 : Relação das residências rurais de Bento Gonçalves levantadas
NOME LOCAL OBSERVAÇÕES
Antiga Casa Moret Linha Paulina
Antiga Casa Rossatto Linha Eulalia
Casa Irmãos Bianchi Estrada Geral de São Pedro
Casa das Massas Estrada Geral de São Pedro Originalmente residência,
não consta do inventário de
1996
Casa Destro Linha Eulalia
Casa e Cantina Moret Linha Paulina
Casa e Cozinha Toniollo Linha Eulalia Alta
Casa Gabardo Linha Eulalia Baixa
Casa Jatir Toniollo Linha Eulalia Alta
Casa Merlin São Pedro
Casa Rossato Linha Eulália
Casa Rossato Eulália Alta
Casa Simadon Linha Paulina – Vale Aurora
Casa Somenzzi Linha Paulina Baixa
Casa Strapazzon Estrada Geral de São Pedro
Residência Arsego São Pedro
97
Residência Comiotto Estrada Geral de São Pedro
Residência Zachet São Pedro
Fonte: levantamentos dos autores
98
Uma parte fundamental é o setor de serviços, composto normalmente por uma
sala de refeições, uma cozinha e uma pequena área de lavagem de louças e de preparo
de comidas. A sala de refeições é intensamente utilizada ao longo de todo o dia pelos
membros da família que são responsáveis pela manutenção da casa, incluindo a
limpeza, arrumação dos quartos, lavagem de roupa, consertos de roupas, preparo das
refeições, preparo de outros alimentos como o pão, cuidados e alimentação dos animais
domésticos, que pode incluir a ordenha das vacas, a coleta de pastagem para a sua
alimentação, além de obtenção e fornecimento de alimentação para as aves, fontes de
carne e ovos, os porcos, importante fonte de proteína, além de matéria prima para os
embutidos que, por suas características, permite a estocagem por longos períodos de
tempo, do mesmo modo que o queijo.
A cozinha é normalmente composta por um fogão a lenha (fuocolare, na fase
inicial de ocupação da colônia) e, nos invernos, serve como área de estar de toda a
família, principalmente à noite, onde permanece ao longo de grandes bancos ou
cadeiras, usufruindo tanto do calor quanto da iluminação do fogo, sendo importante
espaço de trocas sociais e de discussão da organização da família e do trabalho. No
verão, a parte externa da casa é mais utilizada.
A parte correspondente à pia é utilizada como área de preparo de refeições e
para a lavagem da louça, tendo um caráter mais de despejo e de produção de dejetos.
O acesso a este setor da casa normalmente se dá por meio de porta independente,
diretamente voltada para o espaço exterior. Portanto, seu acesso é feito sem a
necessidade de se ingressar em outros setores da casa, importante modo de manter
certas partes da casa fora do contato com outras, mais limpas e com funções mais
específicas, como veremos. Outra solução espacial também comum para este setor da
casa é, além de manter acesso independente para o espaço exterior, possuir um volume
também separado e, muitas vezes, independente do restante da casa, conectado ao
restante da edificação por um alpendre coberto. Esta separação, principalmente
quando toda a casa é construída em madeira, ou quando a parte de serviço é feita em
madeira e o restante da edificação é realizado em alvenaria de tijolos ou de pedra tem o
papel de servir como elemento separador para fins de segurança, já que a área da
cozinha é mais sujeita a acidentes com fogo. No caso em que toda a residência é
construída em alvenaria, o volume da cozinha continua como um conjunto de espaços
independentes, porém justaposto ao volume restante da casa.
O programa da parte íntima da casa é bastante simples, usualmente composta
por uma sala de estar, normalmente pouco utilizada pela família, tendo uma função
mais relevante na recepção de estranhos ou de visitas mais formais. As visitas mais
informais, como os vizinhos e parentes, costuma ter como espaço de vivência a parte
de serviço da casa. O mobiliário tende a ser mais elaborado, embora com pouca
utilização pela família. Normalmente a sala serve como elemento de ligação direta com
os dormitórios, separados por sexo e faixa etária, sendo que os filhos menores tendem
a ficar juntos ou mais próximos aos pais. Esta parte da casa também costuma ter acesso
independente ao espaço exterior sendo que, nos casos em que a parte de serviço é
justaposta com a íntima, sempre existe uma conexão interna de relação entre estas duas
partes da casa. No caso de volumes separados entre a parte de serviço e a íntima, o
alpendre cumpre a função de servir como elemento de ligação e de relação com o
99
espaço exterior. Apesar do pouco uso cotidiano da sala, esta se constitui num espaço
importante para a representação da família, principalmente perante os estranhos e é
fundamental para determinadas ocasiões da vida da família, como lugar de recepção
para festas como casamentos, ou para realizar parte dos serviços fúnebres de membros
da família, já que serve como local do velório. Deste modo, a sala possui uma
relevância fundamental para a realização de socialidades que implicam nas relações da
família, principalmente com estranhos.
Como parte importante da casa rural, o porão é elemento constante em todas as
residências. Normalmente é construído em pedra e apresenta poucas aberturas e
acessos, os quais são independentes do restante da casa. Os materiais e o controle das
aberturas permite que a temperatura seja mantida baixa e praticamente constante,
importante para a conservação de alimentos produzidos, como queijos e embutidos,
assim como para a produção e armazenagem de vinhos, servindo também como área
de estocagem da produção de outros alimentos mais frágeis como batatas e sementes.
Deste modo, o porão assume um papel fundamental para a garantia da subsistência da
família, como local de armazenagem de alimentos que requerem baixas temperaturas,
como uma espécie de geladeira natural, obtida a partir do modo de inserção no terreno
– frequentemente com partes em contato direto com a terra - e do uso de materiais e
técnicas construtivas adequadas.
Com papel semelhante, o sótão das casas sempre possui um papel utilitário para
o funcionamento do conjunto. Além de normalmente abrigar parte dos dormitórios da
casa, o sótão, como área submetida a temperaturas mais elevadas e com baixa
humidade, serve como área para a conservação de grãos – os chamados granaros -
fundamentais para que, ao longo do ano, possam ser transformados em farinhas para o
pão e para a polenta, alimentos essenciais para o sustento da família.
Além da residência e dos seus compartimentos, tantos voltados às atividades
cotidianas como as excepcionais, outras edificações e espaços fazem parte do conjunto
do que se denomina de casa rural e também representam papéis fundamentais para a
sobrevivência da família, tanto na produção de alimentos quanto no abrigo de animais
de trabalho e dos implementos necessários às tarefas do dia a dia. O paiol será a
edificação onde é feita a guarda de implementos, como ferramentas, maquinários
diversos e, muitas vezes, é usado para a armazenagem de parte da produção agrícola.
Já a estrebaria será a área de cuidados com os animais domésticos, principalmente para
os bois utilizados para a tração do arado e carretas, as vacas que são ali abrigadas,
alimentadas e ordenhadas e também para os cavalos, que são utilizados
prioritariamente como meios de transporte. A localização do paiol e, principalmente,
da estrebaria, em função da necessidade de cuidados especiais de limpeza e de higiene,
é cuidada, mantida certa distância da residência.
A criação de porcos e de aves se dava normalmente em áreas específicas e
separadas, mas nunca muito distante da residência, tanto por questões de controle
como de facilidade para os cuidados e alimentação, que são constantes.
Já a horta e o pomar, estes se localizam próximos à residência, por questões de
controle e de facilidade no uso e manutenção. A horta é sempre cercada, para impedir
o acesso de animais. Produtos de presença constante são os temperos para as comidas e
os chás e outras ervas utilizadas para o tratamento de doenças mais comuns. Durante o
100
ano, produtos sazonais são cultivados para a variação de temperos, alimentos e
produtos para conservas, como o tomate, a vagem, o pepino, a abóbora, por exemplo.
O pomar normalmente não existe como uma área separada e organizada. As árvores
frutíferas ficam mais dispersas, próximas da residência. As árvores frutíferas que
requerem mais cuidados e tratamentos usualmente são dispostas ao longo dos
perímetros dos parreirais e, quando do tratamento destas, as árvores frutíferas como o
pessegueiro e a figueira também são tratadas com o mesmo sulfato de cobre utilizado
nos parreirais.
Deste modo, a casa rural é o núcleo de produção e de reprodução da família mas
também assume um papel fundamental para as condições de sobrevivência,
comportando funções de produção e de armazenagem de alimentos que, produzidos
ao longo do ano, garantem a alimentação do grupo familiar e dos animais criados. A
casa é parte de um conjunto organizado de transformação do território, que implica em
espaços edificados e outros não, mas sempre trabalhados. É nesta perspectiva de
multiplicidade de funções e de espaços transformados que se pode, então trabalhar
tanto as questões de organização da residência propriamente dita e do território da
colônia como um todo.
61Na contagem do número de compartimentos, em todas as residências o exterior é contado como um dos
seus compartimentos.
101
Antiga Casa Rossato
Fonte: levantamentos dos autores.
O que se observa é que o número de compartimentos tem uma maior variação
dependendo do número de dormitórios que a casa apresenta, o que tende a refletir o
número de pessoas que compõe a unidade familiar. São nove as residências com um
número de dormitórios entre dois (o menor número encontrado na amostra) e quatro,
dez possuem entre cinco e seis dormitórios, sendo que a Casa e Cozinha Toniollo
apresenta oito dormitórios e a Residência Comioto, apresenta o maior número de
dormitórios da amostra, com nove (tabela 3).
102
A parte de serviço é comum a todas as residências, apenas apresentando
variações em termos de a cozinha e o comedor, ou sala da jantar, constituírem um
compartimento único – em oito das vinte e uma residências levantadas – ou a cozinha
constituir compartimento independente do comedor. Em apenas três residências
encontramos um compartimento específico para a lavagem de louças e preparo de
alimentos, compartimento este ligado diretamente à cozinha e normalmente associado
a uma área de despejo, seja de água servida, seja de restos de alimentos. Esta parte da
casa se apresenta como um corpo edificado diferente do restante, ou seja, com o
comedor e cozinha, formando ou não um compartimento único e a área de lavagem e
preparo de alimentos, em dez residências, muitas vezes com um único pavimento,
mesmo quando o restante da casa apresenta outro pavimento na parte social e íntima.
Isto significa que, nesses casos, não existe sótão sobre a cozinha. Nas demais casas, o
volume é um só, abrigando tanto a parte de serviço quanto a social e íntima.
103
Tabela número 5 – As residências da amostra segundo o tipo de acesso pelo exterior
Tipo de Acesso a Partir do Exterior
Acesso Direto Por Alpendre Por Passagem Coberta
Casa Irmãos Bianchi Casa Destro Casa das Massas
Residência Zachet Casa Arsego Casa Strapazzon
Casa Merlim Residência Comioto
Casa Simadon Casa e Cantina Moret
Casa
7. As Casas da Amostra
104
Figura 1 – Plantas e fotos dos autores
105
compartimento é utilizado como raiz do grafo, os demais compartimentos são mais ou
menos próximos, ou rasos, se são definidos setores específicos na moradia ou não, se a
estrutura interna é mais rígida, ou ordenada, ou mais aberta, se a estrutura é mais
anelar ou na forma de árvore. Todas estas peculiaridades definem as formas de
investimento social realizado no espaço e, deste modo, esclarecem tanto das relações
internas da casa e de seus moradores, quanto das relações destes com o mundo
exterior.
106
exterior ocupa um papel relevante na composição sem, no entanto, representar
habitações extrovertidas nem introvertidas, ficando em situação de pequeno
afastamento do interior da casa, mas sempre a poucos passos de profundidade do
conjunto. Isto assegura uma organização que viabiliza certa privacidade da vida
familiar, mas com boa acessibilidade com o mundo exterior.
No caso das duas residências da amostra onde o espaço de maior profundidade
ou segregação em relação ao conjunto de todos os compartimentos é o exterior, pode-se
inferir que o investimento social nessas residências para o seu arranjo espacial é
realizado de modo a serem produzidas habitações mais introvertidas, isto é,
valorizando muito mais as relações internas da família e dos moradores entre si e
menos destes com o mundo exterior, topologicamente mais afastado na configuração.
Outro aspecto que chama a atenção na amostra e que reforça o argumento das
práticas sociais amparadas nos modos de produção do espaço material é o caso da
Casa Jatir Toniollo que compartilha numa mesma edificação a função residencial com
comércio. Neste caso, a loja se apresenta como o compartimento de maior integração,
obviamente por ser o espaço prioritário de circulação de estranhos e, portanto, esse
movimento é facilitado pelo modo como o comércio é inserido na moradia.
No estágio em que a pesquisa se encontra já se vislumbra uma série de
consistências apresentadas pelos resultados da amostra, o que permite inferir que,
mesmo com formas, materiais e soluções arquitetônicas distintas, as habitações rurais
construídas no início da colonização do interior de Bento Gonçalves apresentam
semelhanças notáveis do ponto de vista da sua estrutura.
Parece evidente que estas recorrências estruturais, longe de serem casuais, são
fruto da cultura manifesta pelos colonos italianos sendo que, interessa agora examinar
se, além da reprodução de um modo de vida impresso no espaço no território onde se
instalaram no final do século XIX, estas repetições estruturais são verificadas nas terras
de origem, objeto da outra parte da pesquisa.
Referências Bibliográficas
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GIRON, L. S. 1977. Caxias do Sul: Evolução Histórica. Universidade de Caxias do Sul –
Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, Escola Superior de Teologia São Lourenço de
Brindes.
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HILLIER, B., HANSON, J. 1984. The social logic of space. Cambridge, Cambridge
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107
A FORMA SEGUE A FUNÇÃO? Uma contribuição ao estado atual
da arte da conservação patrimonial no Brasil a partir de dois
estudos de caso: o Touring Club e o Brasília Palace Hotel
RESUMO
A insistência da Carta de Veneza em defender que edifícios e sítios
deveriam ser vistos como documentos históricos que não poderiam ser
falsificados vem sendo usada para justificar intervenções modernistas. A
Declaração de Amsterdã vem sendo utilizada para justificar novos usos em
bens patrimoniais como a melhor maneira de permitir a sua inserção na
vida contemporânea. Todavia, a crença modernista do pós-guerra no “fim
da história” não iria suspeitar que cidades e edifícios modernos iriam se
tornar “patrimônio cultural” tão cedo. 52 anos depois, Brasília se oferece à
análise não mais apenas como a cidade projetada, construída ou tombada.
É possível ir além da exaltação do projeto arquitetônico e urbanístico
originais e refletir Brasília a partir da perspectiva de uma cidade
vivenciada. Considerando os desafios e complexidades envolvendo o
processo de intervenção em edifícios e sítios considerados patrimônio
cultural modernos, o presente artigo pretende contribuir para o debate em
torno do estado da arte da conservação patrimonial no Brasil por meio da
análise de dois edifícios em Brasília, ambos de Oscar Niemeyer: o Touring
Club e o Brasília Palace Hotel. Através da análise de projetos, imagens,
documentos e pesquisa arquitetônica, o artigo pretende situar a relação
entre o princípio da planta livre, do espaço flexível e a antecipação das
necessidades futuras, de um lado e, de outro, das possibilidades de reuso.
O artigo defende o fato de que as intervenções sofridas por ambos os
edifícios ao longo dos anos, manifesta as contradições e complexidades da
questão da conservação do patrimônio moderno. Se a forma segue a função
e esta muda no contexto de plantas livres, como as intervenções em
edifícios modernos tombados têm lidado com esse fato? Seria possível
verificar se as cláusulas usadas para justificar intervenções modernistas
poderiam ser utilizadas para reivindicarintervenções tradicionais ou pós-
modernistasnos estudos de caso selecionados?
Keywords: Patrimônio Cultural, Brasília, Touring Club, Brasília Palace Hotel,
Reuso, Conservação
UNB. ana@unb.br
UNB. oscar@un.br
108
Introdução
Igreja de São Francisco de Assis (1947), Catetinho (1959) e Catedral de Brasília
(1967): inicia-se o processo de construção social do patrimônio moderno que culmina
no tombamento do Plano Piloto, em 1990, pelo IPHAN, três anos após o seu
reconhecimento pela UNESCO.
A prática preservacionista recente tem estimulado abordagem com ênfase na
intervenção por mudança de uso. Brasília não é diferente: se à Catedral e ao Congresso
estão reservadas ações mais restritas, aos demais bens, reconhecidos nas dimensões
nacional e local, cabem intervenções apoiadas em Cartas Patrimoniais que justificam
novos usos como a melhor maneira de permitir a sua (re)inserção na vida
contemporânea.
Embora exigências relativas à acessibilidade, segurança e saúde constituam
questões que se colocam para a prática preservacionista de bens culturais
tradicionaisou modernos, algumas distinções entre a preservação dos edifícios e
tecidos urbanos tradicionais e aquela da arquitetura e urbanismo modernoschamam a
atenção quando se trata, sobretudo, da mudança de uso.
Aprimeira apresenta uma cultura conservacionista sedimentada em anos de
prática e teoria. Asegunda ainda padece da ausência de uma cultura da preservação, de
arcabouço teórico próprio capaz de alicerçar uma prática consistente. Sobre a
arquitetura e urbanismos modernos paira o peso da proximidade do tempo que
dificulta a sua apropriação como patrimônios culturais, cuja definição se encontra
associada aos valores histórico e de antiguidade, além do de arte. Soma-se a este
aspecto a banalização do tipo lógico da arquitetura moderna que, transformado em
modelo, (re)produz-se indiscriminadamente (Lima, 2012). Fatosqueescapam
àarquitetura e urbanismostradicionais.
While significance has historically been found largely in a building’s physical reality,
modern architecture’s significance has gravitated toward the conceptual: the idea of the
architect’s design intent. Questions about preserving the design as built or as intended,
even If original materials must be sacrificed, arise as a result of efforts to establish and
maintain continuity with the intent of the designer rather than just in the
material.(PRUDON, 2008: 25)
Os materiais modernos não aceitam a pátina, associada ao mau desempenho.
Exigem reposições freqüentes e colocam em xeque a autenticidade: cara à prática
preservacionista tradicional, quando associada à perenidade dos materiais, sugere ser
entendida, no contexto da prática preservacionista contemporânea, que lida com o bem
cultural moderno, como um conceito relacionado à sobrevivência de uma concepção
espacial intrinsecamente ligada à integração das artes, àpromenade architecturale, ao uso
dos cinco pontos da arquitetura moderna.
Outra distinção fundamental:a tipologia funcionalmente determinada dos
edifícios e sítios modernos resultante da form follows function a qual se contrapõe a
forma urbana e/ou edilícia tradicionais, menos funcionalmente determinada.
As intervenções contemporâneas se alicerçam nas ruínas da máxima sullivaniana
form follows function. A crítica de Rossi (1960) ao funcionalismo ingênuo mostra o
109
caminho: a fruição de fatos arquitetônicos cuja função foi perdida demonstra que o
valor dos mesmos reside na forma. Formstays, function changes.
Se a forma da arquitetura moderna resulta da função, a planta livre decorre de
um único uso? Mas, a planta livre não é espaço flexível apto a antecipar necessidades
futuras? Espaço cuja vocação real é a polivalência, um item que perpassa todas as
propriedades que definem uma edificação: forma, função, materiais e tecnologia?
(Rosso, 1980:96) Tais propriedades não seriam impregnadas pelas características que
configuram a polivalência: flexibilidade, adaptabilidade, ampliabilidade e agregação
de funções?
Se a forma segue a função ou permanece, se a função muda com o tempo como
situar as intervenções noTouring Club e no Hotel Brasília Palace (BPH), de Niemeyer -
o primeiro tombado (2007) e o segundo desconhecido em todosos níveis de
institucionalização da prática preservacionista, embora encerre valores que o
qualificam comomonumento?
Para responder estas questõeso artigodebate aCarta de Veneza (1964) e a
Declaração de Amsterdã (1975); analisa a planta livre, relacionando-a com
aformfollowsfunction; apresenta e discute intervenções no BPH e Touring e apresenta
conclusão.
1. Cartas Patrimoniais
As Cartas Patrimoniais significam a sistematização da teoria da preservação
durante os últimos 81 anos. Seu foco, porém, ainda refere-se aos “monumentos do
passado”. A preservação da arquitetura modernacontinua objeto de discussão.Segundo
Jokilehto:
We can see conservation and modernity as the dialectics of our contemporary culture; both
have become essential factors in today’s society(Jokilehto, 2003:108)
Como documentos balizadores da prática preservacionista, a (re)leitura das
Cartas Patrimoniais para orientar as intervenções contemporâneas em patrimônio
moderno parece necessária e indispensável. Assim, dois importantes documentos que
justificam intervenções demudança de uso do patrimônio são objeto de atenção nas
linhas que se seguem: a Carta de Veneza e a Declaração de Amsterdã.
110
que estesse integrem em harmonia e diferenciem-se do original evitando o falso, e
toleram acréscimos desde que se respeite a edificação e suas partes. Em suma: a Carta
recomenda o uso criativo demateriais e técnicas.
Para Almeida (Almeida, 2010)1960 foiadécadade aproximação entre conservar e
projetar, devidoà ampliação quantitativa do patrimônioexigindo intervenções,
principalmente novos usos capazes de preservá-los após o restauro.
A fronteira entre os termos ‘restauro’ e ‘projeto’ ...tende a diluir-se ... O restauro vem sendo
chamado a intervir, deixando para trás seu caráter meramente conservativo ...a intervenção
de projeto vem sendo chamada a considerar as preexistências ...a tirar partido da experiência
histórica ... (Almeida, 2010:71).
Onze anos separam a Carta daDeclaração. Período insuficiente para gerar
grandes transformações. Suficiente para registrar mudançasquanto à função social do
patrimônio cultural.
111
autenticidade e/ou integridade coloca-se de forma a acentuar a consistência material.
Não há referência quanto à concepção espacial e sua permanência no tempo. Não há
registro de reflexões sobre a planta livre ouformfollowsfunction na determinação do
espaço e das relações entre este e a mudança de uso.
112
livre não decorre da organização interna, segue regras próprias determinadas por
traçados reguladores. O autor demonstra que é nas Villa Baizeau e Savoye que a
fachada, livre estruturalmente, não mais goza da prerrogativa da liberdade
compositiva refletindo a organização interna.
Michlquestiona:formfollowswhat?Argumenta que não há sentido no entendimento
da função que precede a forma. Salvo se há distinção entre função pretendida daquela
existente. Forma sempre precede a função quando se refere a uso já existente e forma
segue a função sempre que esta diz respeito a um desejo latente cuja forma precisa ser
encontrada. Michl lembra que os modernos adotam a noção de função como ponto de
partida objetivo, demanda colocada pela Modernidade que rompe com o passado
gerando uma forma arquitetônica nova. O autordefende que, sem este ponto de partida
objetivo, destituído de um entendimento metafísico, o funcionalismo moderno seria
apenas mudança de estilo e não defesa de uma causa (Kopp, 1990). Isto porque,
percebida como demanda própria da causa modernista, para cada nova função
corresponde a forma funcional, única capaz de responder às exigências da
modernidade. O habitar, trabalhar, viver modernos definem formas intrínsecas a
soluções funcionais que se colocam acima das demandas estéticas do mercado. O
arquiteto detém o discurso e a prática competentes na salvaguarda dos interesses do
usuário no processo de concepção arquitetônica.
Le Corbusier determina os cinco pontos como resposta formal às funções do
habitar definidas em um futuro presente. Para ele, o habitar moderno é uma nova
função a qual deve se seguir uma nova forma do morarcapaz de moldar o homem
moderno, baseada no pilotis, no teto jardim, na janela em fita e na planta e fachada
livres.
A arquitetura modernanão permanece atrelada à função habitar ou à Europa. No
Brasil, o programa por excelência do movimento moderno são as funções públicas.
Aqui, apesar da idéiade que ser moderno significava pensar o novo a partir da tradição
(Santos, 1992), os cinco pontos da nova arquiteturacomparecem associados à integração
das artes e ao resgate de elementos da arquitetura tradicional; adaptados ao clima;
compondo uma obra de arte total, (re)definindo, formalmente, o morar, o trabalhar, o
divertir-se.
Na capital projetada e construída ondea arquitetura é o elemento primeiro,
formfollowsfunction: Brasília materializa-se em formas arquitetônicas que decorrem da
reinvenção do morar, trabalhar, circular, divertir-se, do modo de viver que se quer
forjar moderno e nacional. Nesta cidade ainda não tombada epouco vivenciada
(Medeiros & Campos, 2010)os cinco pontos comparecem em toda parte. Panos de vidro
criam reflexos substituindo o jogo de luz e sombra, estabelecendo uma relação de
continuidade entre interior/exterior e revelando fachadas livres que gozam, além da
independência estrutural, a liberdade compositiva.
É a este recorte espaço-temporal que pertencem o BPH e o Touring.
113
3. Estudos de Caso
O uso dos temas base e destaque está presentena barra longilínea sobre pilotis
eno bloco horizontal em planta livre e vedações curvas. A edificação apresenta
características estéticas que a qualificam como obra de arte e documento históricoda
arquitetura moderna. Dos cinco pontos de Le Corbusier falta ao BPH o toit-terrasse.
Além da execução de estrutura e vedações segundo o conceito da Maison Dom-ino, aqui
comparecem a integração das artes, a busca do novo pela tradiçãoe a adaptabilidade ao
114
clima local. A forma decorre da função de hospedar que se quer nova, exigindo uma
materialidade arquitetônica moderna e brasileira. O edifício materializa o registro
artístico de uma forma de fazer arquitetura, cultura técnica, artística e histórica de um
passado recente.
O edifício como documento: Palco e personagem da epopéiada construção de
Brasília. Também historicamente, o BPH desempenhou papel fundamental na
materialização de Brasília que, até então, era apenas sonho e projeto.
115
Figura 5. BPH. Fachada Oeste.2004. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB). Figura 6. BPH. Bloco barra.
Segundo pavimento, sem vedações dos dormitórios. 2004. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)
Figura 7. Touring Club. Fachada Oeste vista a partir da praçado SDS. 2002. (Fonte: PROAU-
8/FAU/UnB); Figura 8. Vista a partir da praçadoSDS. 2002. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)
116
Teatro da Ópera e Casa de Chá, tanto o Teatro Nacional quanto o Touring foram
previstos por Costa no Relatório do Plano Piloto.
117
Figura 11. Touring Club. Escada. 2002. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)
118
Figura 13. Touring. Fachada Norte. 2008. (Fonte: PROAU8/FAU/UnB)
Figura 14. Touring. Fachada Sul. 2002. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB); Figura 15. Fachada Sul.
2012. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)
Conclusão
Na Brasília metrópole tombada, patrimônio mundial em que o arquiteto divide o
discurso competente, a forma não mais segue a função: precede-a. À luz do argumento
119
de Michl, a arquitetura contemporânea em Brasília, inclusive as intervenções em bens
patrimoniais, não almeja forjarfunção geradora de nova forma.
Se Berman (Berman, 1997) estava certo, se tudo que é sólido desmancha no ar e a
aventura da modernidade, segundo definição de Heynen (Heynen, 1999), continua
então o futuro presente parece ter-se perdido, em Brasília, em um passado presente
intimidador, que nega uma modernização em curso, alicerçada no novo: tecnologias,
materiais, sistemas de comunicação, embate local versus global, etc.
A forma e a função ficam. A forma fica, a função muda. Masnão no sentido de
transformação a exigir nova materialidade arquitetônica. Trata-se de função já existente
que apenas se “transfere” forçando adaptação da velha forma.
No momento de concepção e construção do BPH a forma segue a função. Depois
do incêndio a forma fica, a função muda: empenas transmutam-se em paredões
derappel. Em seguida, a forma fica e a função de hospedar retorna, mas o faz sem
pretensões de inserir novos conceitos que exijam novas expressões formais
arquitetônicas. Nenhuma demanda do atual espírito de modernidade conduz a
transformações. O princípio da planta livre é respeitado e serve ao acréscimo de
quartos. A leitura volumétrica do edifício com os temas base e destaque permanece
inalterada. O pilotis, a planta e a fachada livres lá estão. Entretanto, embora goze da
liberdade estrutural, a fachada não mais permite sua leitura formal, devido à supressão
das esquadrias originais. As janelas em fita também não mais comparecem. Contudo, a
integração das artes pode ser usufruída.
Quanto ao Touring, formfollowsfuction é uma verdade da sua concepção à
materialização primeira. Mas, este princípio se perde. O edifício recebe múltiplas
funções que nãose colocam como exigência de novas expressões arquitetônicas
formais. Funções que, ao se inserirem em forma existentedesrespeitam valores
intrínsecos. O pilotis, a planta e fachada livres são pontos da arquitetura que nem
sempre podem ser lidos claramente após as intervenções.
À luz da questão a forma segue a função? a análise do BPH e do
Touringpermitediscutir o estado da arte da conservação no Brasil. As intervenções
colocam em xeque o legado da arquitetura moderna que se quer perpetuar, por meio
da prática preservacionista, às gerações futuras. Que legado é este? Trata-se de
preservar uma forma que segue a função? Ou a herança é considerar, em cada época, o
Zeigeist ou espírito do tempo?
Os dois: a necessidade de preservar a forma resultante da então nova função
proposta pelo Zeigeist dos anos vinte ao sessenta do século passado; a forma que fica
em sua essência e substância, na sua autenticidade e integridade compreendidas para
além da materialidade física e que se estabelece na imaterialidade do conceito por trás
do espaço conformado na relação entre os cinco pontos da arquitetura moderna, na
integração das artes, no partido temas base/destaque, na arquitetura como obra de arte
total ena reinterpretação da tradição e adaptação ao clima local.E também: a urgência
em considerar o espírito do tempo presente, na recusa ao pastiche que invalidafalsos
modernos, e na defesa do espírito criador que responde às exigências da atual
modernidade e do processo de modernização em curso, embora respeitoso dos valores
precedentes.
120
Nem futuro presente, passado presente, e sim, presente presente que, diante da
tensão entre tradição e modernidade aceite o restauro dentro de uma intervenção
criadora, capaz de gerar o novo, estética e tecnicamente, respeitando preexistências em
sua essência. Apesar das várias leituras que o bem cultural permite como valor
artístico, histórico e/ou social, é possível estabelecer parâmetros para uma
aproximação analítica e crítica do objeto de intervenção capaz de preservar suas
características intrínsecas sem engessá-las em um tempo pretérito.
À luz da análise do BPH e do Touring, propõe-se que a liberdade de intervenção
seja tomada como um processo de reinserção no presente necessariamente
comprometido com o passado, com o presente, e com o futuro.
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123
PAISAGENS URBANAS TRADICIONAIS
Resumo
Semelhantes a uma grande colcha de retalhos, as paisagens urbanas
revelam-se a partir de fatos urbanos, específicos para cada experiência de
interação das pessoas com os lugares. Por sua vez, observar e analisar os
processos de alteração urbana das paisagens urbanas tradicionais pode ser
também uma importante ferramenta auxiliar no processo de planejamento
e gestão das cidades onde estas se inserem. Como parte integrante e co-
autor desta paisagem, o fazer do indivíduo pode ser o ponto de partida
para a análise do espaço urbano, pois cabe ao cidadão comum um
importante papel no processo de transformação do território. E, por outro
lado, cabe ao poder público promover um ordenamento urbano apropriado
as tradições de sua população, com foco busca da na qualidade das cidades.
Introdução
As cidades são criações sociais, a todo tempo reconstruídas pela ação das pessoas
que no cotidiano conservam, modificam e transformam o espaço onde vivem.
Especialmente as paisagens urbanas são um produto social que interage
reciprocamente nos seus processos de produção e permanência. Assim, o que se lê na
cidade é o reflexo de diversos símbolos que revelam o homem e sua interação com o
cenário pré-existente.
A fruição das paisagens urbanas relaciona-se tanto com a comunidade
diretamente envolvida com a transmissão de uma forma de habitar que propiciou sua
continuidade, quanto na capacidade de identificação do restante da população com os
elementos intrínsecos a esta paisagem.
As paisagens urbanas tradicionais designam conjuntos urbanos reconhecidos por
sua expressão material e imaterial, sendo atribuída à expressão imaterial a
caracterização das práticas do habitar que proporcionam a conformação da expressão
material.
Todavia, em relação à leitura das paisagens urbanas tradicionais e à compreensão
de seus processos de transformação, há necessidade de se deter o olhar sobre as formas
de expressão do habitar dos indivíduos que constroem essas paisagens, operando em
grande parte esta transformação.
Por sua vez, observar e analisar os processos de alteração urbana das paisagens
urbanas tradicionais pode ser também uma importante ferramenta auxiliar no processo
de planejamento e gestão das cidades onde estas se inserem. A importância
124
sociocultural de se preservar estas paisagens é concomitante à sua inserção na
dinâmica cidade. Lembrando que as paisagens urbanas tradicionais são, ou já foram,
parte do núcleo pulsante da estrutura urbana do município.
Assim, o desafio deste artigo é conseguir demonstrar como a leitura das
paisagens urbanas, em especial as tradicionais, pode contribuir para o planejamento e
ordenamento qualitativo das cidades. Levando em conta que e a compreensão dos seus
processos constitutivos, enquanto reflexos de uma manifestação cultural das formas do
habitar de indivíduos que leem e interpretam as paisagens, pode oferecer subsídios
para construção de leis que depreendam o que há de melhor nos costumes construtivos
de sua população.
125
Como uma mensagem, a cidade é interpretada como um símbolo que se vê e o
que se sente. Esta é uma experiência cognitiva, onde as sensações são despertadas
especialmente através da imagem. Esta, por sua vez, estimula a troca entre o cidadão e
o espaço fruído que despertou aquelas sensações. E essa interação do homem que
reconstrói a imagem, por sua vez, é reassimilada por ele e pelos demais indivíduos que
compartilham daquele espaço da cidade. As interpretações são infinitas, variam de
acordo com a cultura de cada cidadão, de sua experiência de vida, dos traços de sua
personalidade.
Na sociedade urbana, caracterizada pela heterogeneidade de indivíduos, a
cidade reflete um sistema de sensações e interpretação distintas. E, dentro da dinâmica
urbana, estas interpretações e novas construções se sobrepõem. (Lepetit, 2001)
As sociedades urbanas não se alojam em conchas vazias
encontradas por acaso: procedem continuamente a uma
reatualização e a uma mudança de sentido das formas antigas.
Elas se reinterpretam.iv
126
anterior que mostrou como as cidades, e por sua vez as paisagens urbanas, são criações
sociais que comunicam mensagens.
A paisagem é tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, podendo ser
definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca, conforme Santos (1988).
Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons,
etc. A paisagem, que se oferece aos olhos sob as luzes diáfanas das primeiras e últimas
horas do dia, compõe a ambientação adequada para a fruição dos detalhes, da
manifestação da matéria, e permite que os artefatos mais banais se transformem em
objetos singelos, talvez até belos, sempre ricos em informações sobre a pragmaticidade
de suas funções, seus aspectos físicos. Elementos de composição da paisagem são
cheios de suas próprias histórias, que se relacionam com diversos tempos e com
inúmeras pessoas. Alguns de seus componentes são capazes até mesmo de resgatar
memórias de afetos e outras lembranças. Assim, há um paradoxo neste conceito, pois
toda esta estrutura, que é composta pela união de elementos materiais, físicos e
palpáveis, não possui, no conjunto, uma dimensão tátil, posto que a paisagem é
essencialmente algo a ser percebido.
Conforme Santos (1988) “a dimensão da paisagem é a dimensão da percepção, o que
chega aos sentidos” (Santos, 1988, p. 22). Para o geógrafo, cabe ao chamado aparelho
cognitivo a responsabilidade sobre como cada indivíduo processa as mensagens que as
paisagens transmitem. Esta apreensão é feita de forma seletiva de acordo com as
referências pessoais de cada indivíduo, obtidas pela educação formal ou informal que
recebe ao longo da vida. Para Santos (1988), a conceituação de paisagem parte da
proposição de que o espaço se define como um “conjunto indissociável de sistemas de
objetos e de sistemas de ações” (SANTOS, 1988, p. 10), no qual a paisagem deve ser
entendida como “categoria analítica interna”. Ou seja, a partir deste conceito de espaço,
devemos compreender a lógica da paisagem enquanto objeto constituído pela matéria
que efetivamente é, ocupando lugar e possuindo escala frente a outros referenciais
espaciais. Ressalta-se, neste sentido, sua concomitante interação com seu sistema de
criação e recriação, ou seja, os atos e ações por ela sofridas à custa da própria natureza
e do homem.
Por sua vez, há Paisagens que sofrem transformações mais lentas, permanecendo
conectadas a uma experiência de memória. Com toda sorte estão de alguma forma
integradas a vida contemporânea e sendo por elas mesmas elos do passado, vinculadas
à uma tradição.
O conceito de tradição denota uma conexão com o passado, um elo entre a
história pretérita e as ações presentes. A palavra tradição é oriunda do verbo latim
tradere que se remete a trazer, transmitir, no nosso português. Este processo de uma
entrega dos valores legados por antepassados envolve um ritual de recebimento e
perpetuação das heranças apreendidas.
A tradição associa-se à idéia de entregar um conhecimento, ou ensinar por meio
da transmissão de fatos e costumes, seja de natureza espiritual, filosófica, moral,
técnica ou material. Como conjunto de idéias, práticas, memórias, recordações e
símbolos, a tradição é conservada, reassimilada e até transformada. Apesar de não ser
127
engessada, pressupõe uma continuidade persistente que mantém a integridade de uma
essência, um caráter, que resiste às mudanças desintegradoras.
Assim, as paisagens urbanas tradicionais são, por sua vez, parcelas do território
onde se verifica a existência de práticas, sistematicamente reproduzidas, que se
relacionam diretamente com a transformação e a preservação desta paisagem ao longo
do tempo. A carga mnemônica instaurada ao longo de sua conformação, é responsável
pela propagação de mensagens, especialmente as visuais, que são apreendidas tanto
por meio de suas partes - fragmento, quanto pelo todo – paisagem. Essa apreensão se
deve às diversas formas de interpretações cognitivas dos indivíduos. Enquanto
processo, esta paisagem é a conjunção destes fragmentos que, de modo harmônico, se
interagem e se integram formando uma “tela” exposta à cidade. Assim como a
paisagem é urbana por estar na cidade, é tradicional por perpetuar-se nela.
A paisagem urbana tradicional desencadeia no indivíduo uma reflexão sobre
quem ele é, pois, além de inspirá-lo a refletir, influencia-o na reflexão sobre si, na
medida em que a leitura da paisagem se acumula à sua cultura e também a transforma
por meio de percepções e escolhas. Por que a paisagem urbana tradicional é múltipla?
Porque sua composição imagética é múltipla, ocorre em tempos distintos e de formas
distintas, já que é recriada por cidadãos com referências diversas, possibilidades
únicas.
Menos como algo a ser observado, e mais como parte integrante e co-autor desta
paisagem, o fazer do indivíduo pode ser o ponto de partida para análise do espaço
urbano. Para Gourou (1973), “o homem é um fazedor de paisagens”, pois munido de
técnicas de transformação das mesmas pôde ser capaz de viver em associação com
outros indivíduos naquilo que o autor define como “um tecido de técnicas”: a vida em
sociedade.
3. Cognição e o Habitar
A paisagem urbana tradicional é, assim, um tipo de lugar construído a partir das
interpretações cognitivas de indivíduos sobre seus desejos e possibilidades, e comporta
o aspecto táctil que pode ser observado na sua arquitetura, em suas texturas e
materiais, calçadas, vias, vegetações, pessoas, ambiências, interações e sensações. As
descobertas dos visitantes e o ritmo do cotidiano de seus habitantes.
Dentre os estudos desenvolvidos na ciência da psicologia, há o que trata da
cognição social, definido como “processo que orienta condutas frente a outros
indivíduos da mesma espécie” (Butman; Allegri, 2001). É um campo de estudo que
investiga a maneira como pensamos sobre nós mesmos e a sociedade da qual somos
parte, considerando as seleções – memórias - e interpretações.
A cognição, entendida como a aquisição do conhecimento a partir da percepção,
estabelece parâmetros e categorias adotadas para descrever a totalidade de
informações de quem a percebe e capta na mente. Essas percepções, dos lugares, dos
indivíduos, dos grupos e mesmo da própria identidade, são edificadas com base nos
chamados artefatos cognitivos, que auxiliam a mente na construção dos consensos.
128
Trata-se de artifícios externos, observados, selecionados, utilizados,
compartilhados, vivenciados no cotidiano, que se manifestam por meio da
memorização, da interpretação que os indivíduos realizam a partir do contato
estabelecido com formas de comunicação. Estas variam de acordo com o modo com
que o receptor analisa as mensagens transmitidas por meio destes artefatos cognitivos.
No caso de produção da arquitetura ou da paisagem, enquanto artefato fruto de
um processo cognitivo, pode ou não ter havido uma intenção de um autor com relação
a esta produção, ou seja, ela pode ou não ter sido premeditada. E o simples fato de ter
havido uma intenção de um autor não garante a mesma interpretação de quem usufrui
deste artefato. Não há uma necessária correlação entre o pensamento daquele que
premeditou: o arquiteto, o construtor e o simples usuário, sujeito que habita e por este
ato transforma as arquiteturas e paisagens.
Schulz (1980), que trata da intenção em arquitetura, evidencia a transcendência
que a vivência do lugar implica psiquicamente no ser como algo maior que os aspectos
meramente funcionais. O habitar implica em sentidos e sentimentos individuais que
refletem as diversas situações que o espaço existencial adquire para cada ser. A
dimensão existencial do lugar - que se relaciona a algo mais do que meramente
abrigar-se - foi analisada sob aspectos fenomenológicos. Schulz (1980) procurou inter-
relacionar os complexos e até mesmo contraditórios caminhos destas análises
cognitivas que partem da arquitetura como elemento concreto, que permite a ação e
ocorrência de eventos que imprimem caráter ao lugar, para chegar a uma teorização a
respeito do Ser no Mundo.
Genius Loci, é uma antiga expressão utilizada para dizer sobre a existência de
um Espírito do Lugar, protetor, de acordo com a tradição grego-romana62. Schulz
(1980) a utiliza para designar esta capacidade única impressa aos lugares, que são o
que são pela capacidade do homem de imbuí-los de significados. Significados esses
que, apesar de toda análise cognitiva de diferentes homens com suas cargas pessoais,
são próprios de cada lugar. A impressão de um caráter único àquele espaço é percebida
através da fruição do habitar, que orienta o homem quanto à visualização de
características deste lugar que, por sua vez, se sobrepõe até mesmo às diferenças sócio-
culturais de diversos indivíduos.
Esta abordagem sobre cognição e habitar é importante para que se possa, por
meio da investigação filosófica do ser que habita, tentar delinear os aspectos que
envolvem as decisões tomadas pelos indivíduos que expressam a cultura do habitar na
forma como transformam as paisagens urbanas tradicionais. Daí temos que as
paisagens urbanas tradicionais são fruto e conseqüência do conjunto das práticas dos
grupos de indivíduos organizados no território, exercendo processos cognitivos de
escolha e atuação.
62De acordo com SMITH, William. A Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology. Boston,
Little Brown and co., 1867, p. 241-242. disponível em
< http://www.ancientlibrary.com/smith-bio/1349.html >, consultado em 29 de julho de 2010.
129
4. O Código de Obras/Edificações como instrumento de gestão da
transformação das paisagens urbanas tradicionais.
O Código de Obras/Edificações é uma norma municipal de regulação das
construções. Ele deve possibilitar o controle e fiscalização das edificações por parte do
poder público municipal, que são os entes federados constitucionalmente responsáveis
pela política de desenvolvimento urbano, conforme o artigo 182 da Constituição Federal de
1998, CF-88. Política esta que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
Por meio da determinação de procedimentos administrativos e parâmetros
técnicos a serem observados pela administração pública e pelos demais interessados e
envolvidos na execução de obras e na utilização das edificações, nos Código de
Obras/Edificações, são estabelecidos padrões de qualidade dos espaços edificados que
satisfaçam as condições mínimas de fruição adequada pelos usuários diretos e demais
cidadãos.
Esta lei também poderá definir os procedimentos de aprovação de projetos e
licenças para a execução de obras, bem como os parâmetros para fiscalização do seu
andamento e aplicação de eventuais penalidades. Quanto ao seu conteúdo, há uma
diversidade de formas de cobrança desta legislação pelas administrações locais. Alguns
municípios estabelecem um Código de Obras/Edificações mais detalhado, observando
as características de diversas tipologias e usos, considerando a interface com a lei de
uso e ocupação do solo que contem o zoneamento urbano. Outros municípios já optam
pelo estabelecimento de diretrizes mais genéricas, sem especificação de detalhes por
tipo de uso ou relação com o lugar onde a obra se encontra.
Portanto, se esta lei atua sobre as regras gerais e específicas a serem obedecidas
no projeto, licenciamento, execução, manutenção e utilização de obras e edificações,
dentro dos limites dos imóveis, é uma lei que atua na propriedade particular, em como
o indivíduo habitará seu imóvel. Por outro lado, a CF 88 também nos diz no inciso
XXIII do artigo 5 que a propriedade atenderá a sua função social. Então devemos considerar
que o cumprimento ao Código de Obras/Edificação é o cumprimento da função social
da propriedade, tendo em vista que esta lei deve conter o atributo de garantir que este
direito constitucional fundamental seja respeitado pelo dono do imóvel urbano
edificado? E é isso que temos visto nas nossas cidades?
Nos últimos anos, tem-se debatido muito pouco sobre a importância desse tipo
de legislação para a construção das cidades, e mais ainda de manutenção de paisagens
urbanas tradicionais. Pode se dizer que nas últimas duas décadas essa discussão sobre
este tipo de lei de ordenamento arquitetônico, deu lugar a outras discussões
relacionadas ao Planejamento Urbano de forma mais genérica.
O Plano Diretor foi empoderecido pela CF88 como o instrumento básico da
política de desenvolvimento e de expansão urbana. Posteriormente, a lei 10.257/2001, o
Estatuto da Cidade, trouxe diversos instrumentos urbanísticos a ser integrados ao
Plano Diretor, especialmente para se fazer cumprir a função social da propriedade.
Mas o legislador optou por não trazer nenhuma expressiva orientação sobre códigos de
obras/edificações.
130
Talvez pelo fato de tais códigos se tratarem de uma lei que atua no imóvel da
porta para dentro, tenha se pensado que eles não tem nenhuma relação com a
construção do ambiente urbano? Ou porque estes são realmente um capítulo a parte
que não caberiam ser apenas mencionados no Estatuto? Mas é certo que estas normas
se refletem sim na cidade, pois são elas que trazem os parâmetros construtivos que
orientam os indivíduos a arquitetarem o quebra cabeça das paisagens urbanas, por
meio de cada elemento construtivo de cada edifício. Lembrando do que vimos sobre a
contribuição de cada indivíduo, que por meio do imóvel que ocupa compõe a
paisagem urbana, enquanto imagem e enquanto processo construtivo.
Os códigos devem ser concebidos de modo a garantir as condições de
salubridade, segurança, acessibilidade, adequação ambiental e preservação cultural,
atuando como agente legalizador dos costumes construtivos da cidade. Bem, e essa
relação com a legitimação dos costumes construtivos implica em um conhecimento
sobre o território existente. E mesmo que o código incida sobre uma área de expansão
urbana, a concepção de suas regras se orientou por ideais do que se acredita serem
bons exemplos, observados em paisagens urbanas existentes.
Conclusão
Vimos que as cidades, e em especial as paisagens urbanas tradicionais,
transmitem mensagens sensoriais aos indivíduos que com ela se interagem. A carga
mnemônica instaurada ao longo de sua conformação é responsável pela propagação de
mensagens, especialmente as visuais, que são apreendidas tanto por meio de suas
partes - fragmento, quanto pelo todo – paisagem. Essa apreensão se deve às diversas
formas de interpretações cognitivas dos indivíduos. Enquanto processo, esta paisagem
é a conjunção destes fragmentos que, de modo harmônico, se interagem e se integram
formando uma “tela” exposta à cidade.
As paisagens urbanas tradicionais foram aqui definidas como parcelas do
território onde se verifica a existência de práticas, sistematicamente reproduzidas, que
se relacionam diretamente com a transformação e a preservação destas paisagens ao
longo do tempo. Como parte integrante e co-autor desta paisagem, o fazer do
indivíduo pode ser o ponto de partida para a análise do espaço urbano. Pois cabe ao
cidadão comum um importante papel no processo de transformação do território,
papel esse que o poder público tem menosprezado.
Vimos que os Códigos de Obras/Edificações devem atuar como agente
legalizador dos costumes construtivos da cidade. Um dos trabalhos iniciais do
planejamento é o levantamento de dados e diagnóstico das condicionantes locais, onde
são identificadas as estruturas atuais e o histórico dos processos que levaram àquela
conformação de uso e ocupação da paisagem. Embora desconsideradas e não
levantadas dentre os itens do diagnóstico do planejamento, as ações de modificação de
edifícios realizadas por seus usuários se refletem no uso e ocupação do território.
Assim, na paisagem urbana tradicional, e mesmo em outras partes da cidade,
onde o habitar popular está a exprimir suas mensagens, o desafio posto é a construção
de políticas atentas à reciprocidade desta relação dos indivíduos com a paisagem, não
131
perdendo de vista a responsabilidade que cabe ao poder público neste processo, de
acordo com o que aqui foi refletido.
Finalmente, em que medida essas reflexões podem ajudar a fundamentar futuras
diretrizes para o planejamento urbano, tendo em vista os limites da intervenção do
Poder Público na garantia das qualidades ambiental, social e cultural presentes nas
paisagens urbanas tradicionais.
Pois se as pessoas leem as paisagens e delas interpretam mensagens, também
cabe ao Poder Público municipal, que tem a prerrogativa do ordenamento urbano, ler o
que essas paisagens tem a dizer sobre o desenvolvimento das formas de ocupação do
indivíduo no espaço urbano, de modo a se apreender informações que ajudem na
construção de cidades mais humanizadas com melhor qualidade de vida.
132
A PAISAGEM DO PLANO PILOTO DE BRASÍLIA
A PARTIR DE SUAS ESCALAS
Resumo
Este trabalho pretende analisar de que modo as escalas refletem a paisagem
de Brasília, e assim como são responsáveis pelas diferentes expressões
urbanas da cidade. Para tanto, o artigo está estruturado em duas partes. Na
primeira parte é abordado como Lucio Costa construiu cada escala no
projeto do Plano Piloto, e na segunda parte, como os aspectos
fundamentais de cada escala refletem nas diferentes paisagens de Brasília.
A partir desta análise percebeu-se que a apropriação dos espaços das
escalas é determinante para o processo de conservação ou degradação do
espaço da cidade.
Palavras chave: Brasília, escalas urbanas, paisagem cultural.
Introdução
Este presente trabalho é o desdobramento de uma pesquisa de iniciação
científica que teve como objetivo principal construir a declaração de significância 1 de
Brasília, e como objetivo específico identificar os bens que são expressivos para a
compreensão dos significados deste conjunto urbanístico.
Nos resultados parciais da pesquisa, obtidos a partir de análise documental,
identificou-se os objetos e processos2 patrimoniais de Brasília. São eles: 1) Plano Piloto
2) Edifícios excepcionais de Oscar Niemeyer 3) Conjuntos urbanos 4) Paisagens e vistas
5) Dinâmicas urbanas e processos distintos de ocupação do solo.
Os itens 1 e 2 foram extraídos dos documentos de inscrição de Brasília na Lista
de Patrimônio Mundial da UNESCO e dos demais documentos de preservação do sítio.
Os itens 3, 4 e 5 foram extraídos a partir da análise de outras fontes documentais
(livros, trabalhos acadêmicos, trabalhos técnicos de órgãos públicos, além de imagens,
mapas e fotografias significativas para compreensão e apreensão dos valores do bem).
Os planos de preservação do conjunto urbanístico de Brasília estão baseados,
em sua maioria, nas características fundamentais das quatro escalas urbanas
(monumental, residencial, gregária e bucólica). Porém, percebeu-se que muitas dessas
características são processos patrimoniais, e não objetos. Ou seja, mais do que nos
aspectos materiais, grande parte das características fundamentais do Plano Piloto está
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1 Declaração de significância: documento onde estão expressos os valores do bem patrimonial.
2 Objetos patrimoniais: artefatos que possuem valor patrimonial. Processos patrimoniais: dinâmicas presentes
no sítio, decorrentes das relações entre pessoas-pessoas e pessoas-objetos, reconhecidas como possuidoras
dos valores patrimoniais.
133
nas dinâmicas urbanas, nas relações interpessoais e nas relações entre as pessoas e o
espaço construído.
Estas dinâmicas urbanas trazem a tona o conceito de paisagem cultural, onde o
foco é o processo de interação do homem com o meio natural. A paisagem cultural está
relacionada com os cenários resultantes da modificação do meio ambiente pelo
homem, expressados através da composição do espaço natural com o espaço
construído.
E sendo a paisagem uma construção social, marcas da relação entre o homem e
o meio, ela passa a ter valores patrimoniais a partir do momento em que é singular, em
que as suas qualidades são únicas (ALMEIDA, 2006). No caso de sítios patrimoniais, a
paisagem faz parte da compreensão dos significados culturais do sítio, pois a paisagem
é um reflexo do processo de construção da identidade de um determinado grupo social
com o espaço que o envolve.
O objetivo deste trabalho é analisar de que modo as escalas refletem a paisagem
de Brasília, e assim como são responsáveis pelas diferentes expressões urbanas da
cidade. Para tanto, o artigo está estruturado em duas partes. Na primeira parte é
abordado como Lucio Costa construiu cada escala no projeto do Plano Piloto, e na
segunda parte, como os aspectos fundamentais de cada escala refletem nas diferentes
paisagens de Brasília.
134
trabalho, lazer); b) vias exclusivas para automóveis, a partir de um sistema de
circulação hierarquizado, com vias expressas para evitar ao máximo os cruzamentos; e
c) muitos vazios urbanos, fazendo composição com a baixa densidade construtiva
(BICCA, 1985; KOHLSDORF, 1985; BASTOS e ZEIN, 2010).
O projeto de Costa se enquadra no "modelo" citado acima, afinal, é a concepção
urbanística de uma época; porém, o projeto vencedor foi o único que foi além dos
cânones internacionais. Segundo a análise de Antônio Carpitero, o projeto de Lucio
Costa está longe de seguir à risca os preceitos da Carta de Atenas, pois ele deu atenção
a inúmeras soluções que destoam daqueles princípios, como a atenção dada à bacia
hidrográfica e ao relevo, bem como à tradição arquitetônica trazida pelos portugueses
(CARPITERO apud FREITAG, 2002).
A inovação da proposta de Lucio Costa foi o zoneamento da cidade a partir das
diferentes interações humanas com o espaço. A cidade está dividida basicamente em
três setores: de lazer e comércio, de moradia (com pequenos equipamentos urbanos) e
o centro cívico-administrativo do país. A partir de dois eixos, que se cruzam
inicialmente em ângulo reto, e depois um deles se arqueia para melhor adaptar-se a
topografia, surge o traçado urbano da cidade.
No Relatório do Plano Piloto, Lucio Costa não utiliza o termo escala para o
zoneamento que ele faz da cidade. Ele faz referência a diferentes setores: setores
residenciais, setor central de diversões, setor bancário-comercial e setor municipal. Em
1987, Costa reavalia o processo de concepção e construção da cidade no documento
Brasília Revisitada. Nele são pontuadas as características fundamentais do plano. Entre
outras, está a interação entre as quatro escalas urbanas, a estrutura viária, a
importância do paisagismo e a presença do céu.
Apesar de só ser apontado por Costa três décadas após a formulação do plano,
o conceito de escala é um dos princípios norteadores do projeto. Escala é a relação de
uma grandeza a partir de um referencial conhecido, está relacionado à proporção. Este
conceito se reflete na concepção urbanística do plano através das relações entre o
homem e o espaço construído.
135
A expressividade alcançada pelo projeto de Lucio Costa está na sutileza
atingida pela interação entre as diversas dimensões urbanas presentes em Brasília, e
como elas se relacionam com a paisagem do planalto central. Como afirma Lauande
(2007), a topografia e a horizontalidade foram utilizadas como elementos de
composição para os cenários e perspectivas, onde a cidade e a paisagem natural se
fundem em uma magnífica compreensão de espírito de lugar.
1.1 As escalas
O Plano Piloto de Brasília está zoneado em quatro escalas, e cada uma delas
possui características espaciais singulares, que conferem diferentes interações
humanas.
A escala monumental está configurada pelo eixo monumental, da Praça dos
Três Poderes até a Praça do Buriti. A partir de uma grande esplanada estão dispostos
os edifícios que abrigam a alma político-administrativa do país e do governo local, que
representa a dimensão coletiva da cidade. A ocupação do solo na escala monumental é
feita a partir de um eixo único, que tem claramente um foco que representa os três
poderes do estado, ocupado por edifícios monumentais centralizados (Praça dos Três
Poderes). A relação de proporção entre as áreas edificadas e as não edificadas, o
contraste entre os extensos vazios urbanos e os imponentes edifícios, com excepcional
qualidade artística, confere a monumentalidade do lugar.
A escala residencial organiza as residências multifamiliares através das
superquadras, que são conjuntos de edifícios dispostos em lâminas, de gabarito
uniforme com seis pavimentos, suspensos por pilotis. A área térrea é de livre acesso
aos pedestres, o que modifica a relação entre solo público e privado, comumente
delimitado pelos muros das cidades tradicionais. Em Brasília, o lote deixa de existir, e é
transferido pela projeção da lâmina do edifício. Os edifícios são circundados por um
grande cinturão verde, e a circulação de veículos e pedestres é distinta. Quatro
superquadras formam uma unidade de vizinhança, com comércio, escola primária,
igreja de bairro, e outros equipamentos de pequeno porte.
A escala gregária é formada pela interseção dos eixos monumental e
rodoviário-residencial, sendo considerada o coração da cidade. Tem como principal
elemento – e o que melhor sintetiza sua função agregadora – a plataforma rodoviária,
que integra o Plano Piloto com as cidades satélites. Nela encontram-se também os
setores de diversões, comerciais, bancários, hoteleiros, médico-hospitalares, de
autarquia e de rádio e televisão.
136
Figura 2: As três (das quatro) escalas do Plano Piloto.
Fonte: autora.
A escala bucólica está presente nos vazios urbanos e na densa massa vegetal
que envolve a cidade, configurada em todas as áreas livres. Enquanto que as outras
três escalas possuem uma clara definição espacial, com seus padrões de uso e ocupação
do solo e gabaritos limitados, a escala bucólica possui uma expressão intangível, que
permeia todas as outras. A escala bucólica é responsável pelo caráter de cidade-parque
(BOTELHO, 2009), o que faz de Brasília uma cidade aberta, sem limites espaciais, um
genuíno exemplo do espírito de época moderno.
A importância do paisagismo, citado por Costa no Brasília Revisitada, é na
verdade essa relação com a natureza que ele traz pra dentro da cidade: "na passagem
sem transição do ocupado para o não ocupado em lugar de muralhas, a cidade se
propôs delimitada por áreas livres arborizadas" (COSTA, 1987). E assim a escala
bucólica está presente no Plano Piloto de formas distintas: 1) através das densas áreas
arborizadas que formam um cinturão verde em torno das superquadras; 2) com o
paisagismo como elemento de composição e integração entre a arquitetura e outras
artes (escultura, pintura, painéis), fazendo-se de elo entre o interior e o exterior dos
edifícios; 3) como elemento de composição volumétrica a partir dos cheios e vazios
(áreas non aedificandi), como no caso do canteiro central do eixo monumental, que deve
estar sempre gramado e não edificado; 4) com a presença do céu como "moldura" para
os edifícios institucionais.
Assim, o paisagismo é o elemento de coesão do Plano Piloto. Funciona como
uma membrana de proteção, resguardando a cidade da expansão urbana, ao mesmo
tempo em que gera uma compreensão de unidade, dentre as diferentes expressões
urbanas da cidade.
137
2. A paisagem a partir das escalas
A configuração espacial de Brasília é o resultado da soma da configuração
espacial de cada escala e simultaneamente, da interação entre elas. Os espaços de cada
escala, tendo características distintas, buscam, em um jogo de proporções e
significações, se complementarem e interagirem (MONTE JUCÁ apud BOTELHO, 2009,
p.88).
138
Figura 4. Esplanada dos Ministérios. Fonte: Paulo César Brandt.
139
A forma como foi resolvida a questão viária, evitando os cruzamentos (através
das tesourinhas e das mudanças de níveis) também tem ressonância na paisagem
urbana de Brasília. Outro elemento fundamental à composição da paisagem desse eixo
é a torre de televisão. A presença vertical da torre no meio de uma esplanada é o
contraponto vertical do edifício do congresso, e além de ser um símbolo de
comunicação e modernidade, seu mirante permite a fruição de diversos cenários da
cidade.
O resultado desses diversos elementos significantes da paisagem do eixo
monumental é de caráter cenográfico, que induz mais a contemplação e menos a
experimentação do espaço. Essa paisagem é de certa forma estática, criada para ser
apreciada como uma obra de arte.
140
2.3 A Escala Gregária
Desenvolvida a partir da plataforma rodoviária, a escala gregária é o centro
urbano de Brasília. Foi concebida para ser um local de agregação, com diversos setores
reunidos para propiciar encontros e trocas – econômicas, sociais, afetivas, culturais,
simbólicas (KOHLSDORF apud GOULART, 2009).
O caráter vertical dos edifícios, a alta densidade construtiva, e a predominância
dos espaços edificados aos espaços livres são os elementos que compõem a paisagem
da escala gregária. As áreas que mais se aproximam com o que foi previsto no
Relatório do Plano Piloto (um corpo arquitetônico contínuo, com galeria, amplas
calçadas, terraços e cafés) são as que mais possuem características de agregação e
urbanidade.
Nas áreas em que estas características não foram adotadas a paisagem é árida e
desumana, apresentando espaços com grandes diferenças de níveis, sem relação com o
entorno e extensas áreas ainda não ocupadas.
141
encontradas no interior das superquadras, enquanto que no eixo monumental, possui
caráter dispersor que enaltece o valor de monumentalidade.
Figura 10: Inserção da escala bucólica na Figura 11: Presença do céu como elemento
escala residencial. Fonte: Leonardo Finotti. de composição da paisagem. Fonte: Idem.
Considerações Finais
O projeto da cidade de Brasília poderia ter sido apenas o projeto de mais uma
cidade, ou tão somente uma resposta às necessidades da época – renovação das
configurações sociais e urbanas brasileiras, heranças do passado colonial. Lucio Costa
foi muito além das exigências do Relatório do Plano Piloto, pois repensou a
arquitetura, o urbanismo e a paisagem urbana a partir das diferentes interações
humanas com a cidade. A concepção espacial do Plano Piloto é, na verdade, a tradução
de diversas relações sociais, consideradas por Lucio Costa como uma forma de viver,
de habitar, e de referenciar o estado nacional.
Da mesma forma que se observa diferenciação das características das paisagens
e das relações humanas, pode-se perceber que a apropriação dos espaços das escalas é
determinante para o processo de conservação ou degradação do espaço. Isto porque,
de acordo com Monte Jucá (2009), “a paisagem se realiza, também, por meio de
evocações afetivas e simbólicas”.
Porém, a partir do que foi abordado neste trabalho, surgem questionamentos a
respeito da conservação deste sítio, único conjunto urbanístico contemporâneo
tombado até o momento pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade. Se muitas
das características fundamentais do Plano Piloto estão refletidas nos aspectos
imateriais, nas dinâmicas urbanas e percepções espaciais, como conservá-las? Se a
mudança é algo inerente à paisagem, como conciliar conservação com transformação?
142
Referências
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Management. Nora Mitchell, Mechtild Rossler & Pierre-Marie Tricaud (ed.). World
Heritage Papers 26.
144
CRONIDAS: PROPOSTA DE PADRONIZAÇÃO DE
REPRESENTAÇÃO EM MAPAS DE DANOS
Resumo
Este artigo discute a padronização de mapas de danos - utilizados no
diagnóstico de projetos de conservação e restauro de edificações de
interesse histórico-cultural - através da base de dados Cronidas. Entende-se
por mapa de danos a documentação ilustrativa de prejuízos - sejam esses
materiais, funcionais ou estéticos - necessária para embasar os trabalhos de
intervenção conservativa ou restaurativa. O conteúdo desses mapas é feito
por material essencialmente gráfico - superposição de hachuras, fotografias,
índices, cores, caracteres e legendas - com a finalidade de localizar,
identificar, quantificar e especificar as avarias encontradas nas edificações.
Diante das várias formas de se representar graficamente as informações dos
mapas de danos, as possibilidades são tantas que dificultam a leitura
objetiva e única delas. Isso abre margem a interpretações dúbias e, por isso,
gera a necessidade da formular uma proposta de padronização. Diante
disso, surge a construção da base de dados Cronidas na web. Cronidas é
uma coleção de fichas com informações sobre patologia da construção.
Cada ficha contém a descrição do dano, sua identificação em edificações,
fotografias e o código padrão de representação em uma ferramenta CAD. A
descrição e identificação do dano é feita a partir de consulta bibliográfica
de diferentes autores. Na seleção desses códigos, levou-se em consideração
os aspectos de comunicação visual e relações de contrastes de cores na
percepção visual. Assim, com essa seleção, gera-se o repositório de códigos
dos danos para serem aplicados nas fichas da base de dados Cronidas. Com
o intuito de divulgar e otimizar o acesso à base de dados, é desenvolvido
um website - confeccionado com o content mannagement system
WordPress. Assim, na Internet, é possível a colaboração de conteúdo por
usuários cadastrados - profissionais interessados para inserção de novas
informações sobre danos - integrando-as à base de dados. Além disso,
usuários podem acompanhar notícias e fóruns de discussões nas redes
sociais - como o Twitter e Facebook. Assim, espera-se que com a unificação
da representação gráfica, os projetos de edificações de interesse histórico e
cultural, sejam de fácil leitura pelos profissionais envolvidos.
UNIJORGE. costaluisg@gmail.com
♥ UNIJORGE. lucas.baisch@gmail.com
145
Introdução
Este trabalho se enquadra na linha investigativa da teoria e da tecnologia da
conservação e restauro do patrimônio histórico, patologia da construção,
especificamente no estudo das representações de mapa de danos, etapa fundamental
de um projeto de conservação e restauro.
O universo dos mapas de danos é o tema abordado neste artigo, abrangendo a
patologia da construção e a criação da base de dados Cronidas para a padronização da
linguagem e da representação de mapa de danos. Essa representação contém
informações que auxiliam o profissional da área a especificar serviços e procedimentos
de intervenção em edificações que delas necessitem.
Neste contexto, o mapa de danos é um material ilustrativo contendo a
representação dos componentes construtivos (parede, piso, esquadria, telhado, etc.) e
os danos encontrados, bem como as informações necessárias para embasar os trabalhos
de intervenção e consolidação em projetos de conservação e restauro. Este material
apresenta sobreposição de elementos gráficos, hachuras, fotografias, índices, cores,
letras e legendas contendo dados sobre os danos incidentes nos componentes da
construção e nos materiais empregados na construção. Logo, o mapa de danos é um
instrumento que antecede a elaboração dos projetos de intervenções, conservação e
restauro de edificações, sendo importante para identificar, quantificar, especificar e
localizar as avarias na edificação. Para a identificação desses danos utiliza-se, a
princípio, os diversos sentidos de percepção. Entretanto, para que seja precisa, faz-se
necessário realizar prospecções e análises laboratoriais.
146
incorporando-as à base de dados. Este website oferece informações reunidas para a
consulta aos profissionais da conservação e do restauro, impressão e para o download,
favorecendo a padronização da linguagem e da representação gráfica para o
mapeamento de danos em edificações brasileiras de interesse artístico, histórico e
cultural.
63Aula de identificação de danos, (patologia das construções) ministradas no CECRE - Salvador em junho
de 2009, pela professora Silvia Puccioni.
147
Tendo o diagnóstico como o resultado da investigação de causas, agentes e
sintomas, parte-se para o tratamento, o prognóstico e/ou a prescrição para prevenção
contra futuras reincidências. Um exemplo de diagnóstico é a investigação de uma
mancha na parede (sintoma), cuja ação é a infiltração (agente) ocasionada por um furo
na tubulação de água (causa).
148
A fonte de informação é a edificação, a mensagem que se quer passar é o estado
da edificação informando a incidência dos danos com sua localização exata, pelo
levantamento dos danos (emissor) que identifica os danos e os codifica através de
mapa de danos (códigos) onde o profissional responsável (receptor) lê, decodifica e
utiliza para a finalidade (destino) de diagnosticar os problemas de conservação da
edificação.
149
representação gráfica do AutoCAD® gerando um repositório de códigos atribuídos
para os danos inclusos na base de dados.
Desta forma, a seleção dos códigos de representação de danos e os resultados
dos testes estão registrados na (Tabela 3).
150
esta analogia, foi editado um vídeo explicativo narrando a associação do mito com a
base de dados disponibilizada no website. A proposta de elaboração dessa base de
dados surge da necessidade da padronização de mapas de danos.
A base de dados Cronidas é uma coleção de informações que consiste em uma
lista de danos ocorrentes nas construções do patrimônio histórico-cultural, com sua
representação (codificação padronizada) para a elaboração de mapa de danos no
programa AutoCAD®, essa base de dados foi organizada em fichas disponíveis em um
website.
Tabela 5: Itens da ficha de dano da base de dados Cronidas
TÍTULO
(Nome do dano)
TERMOS EQUIVALENTES
(Nomes com que o dano pode ser conhecido)
DESCRIÇÃO
(O que é o dano e características peculiares)
IDENTIFICAÇÃO
(Como identificar)
IMAGENS
(Fotografias ou desenhos ilustrando o dano com os créditos da imagem)
REPRESENTAÇÃO EM MAPA DE DANOS (AutoCAD® )
(Padrão da codificação gráfica do dano para elaboração de mapas em
AutoCAD® )
ETIMOLOGIA
(Trata da origem e formação através da palavra do nome do dano)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(livros, site, CD-ROM)
Fonte: (Costa, 2010)
Para o registro fotográfico para essas fichas, utilizou-se dois campos de visão
diferentes para melhor compreensão do dano e onde ele está localizado na edificação e
também uma escala gráfica para a referência de tamanho.
151
Figuras 4 e 5. Diferentes campos de registro fotográfico para melhor compreensão do dano
64CAD: é a abreviatura de Computer Aided Design, que significa projeto auxiliado por computador. É,
também, utilizada como sinônimo de software para projetos e desenhos.
152
inventário de danos contendo a descrição, identificação, ilustração e representação
gráfica codificada destes danos, visando contribuir, como foi dito, para a padronização
da representação gráfica de mapas de danos. Além disso, a base de dados contempla a
definição de termos relacionados à patologia das edificações, suas características e
agentes, procedimentos para identificar e diagnosticar as manifestações, além de
catalogar os danos mais incidentes nos diversos materiais de construção e nos
componentes construtivos. A Figura 7 ilustra o resultado de um mapa de danos
utilizando o padrão proposto nesta pesquisa.
153
10. Carbonatação do concreto 45. Erosão 80. Ressecamento
11. Carbonização 46. Erros de intervenção 81. Riscos
12. Cianoficeas 47. Erros de repintura 82. Saponificação
13. Cisalhamento 48. Escavação 83. Segregações no concreto
14. Clivagem 49. Escorrimento 84. Sujidade
15. Colonização biológica –
50. Esmagamento 85. Trinca
biofilme
16. Concreção 51. Estresse externo 86. Vandalismo
17. Condensação 52. Estresse interno 87. Vazamento goteiras
88. Xilófagos marinhos
18. Corrosão 53. Fadiga
incrustantes
89. Xilófagos marinhos
19. Craquelê 54. Fissura
perfuradores
20. Criptoflorescência 55. Fratura 90. Extra sobre Pátina
56. Fungos (apodrecedores,
21. Crosta negra
emboloradores)
22. Crosta salina 57. Furos
23. Cupins térmitas 58. Gelividade
24. Defeito de fabricação 59. Infiltração
25. Defeito de solda 60. Intervenções anteriores
26. Defeitos congênitos (nós,
61. Lacuna (perda)
fendas ou encurvamento)
27. Deformação (amassados) 62. Lascamento do concreto *listagem inicial de danos, com
28. Deformações (abaulamento) 63. Líquenes possibilidade de inclusão de
64. Lixiviação (presença de outros danos por profissionais
29. Degradação diferencial colaboradores.
estalactites)
30. Dejetos, guano 65. Manchas superficiais
31. Delaminação (esfoliação,
66. Musgos
escamação)
32. Desagregação 67. Ninhos
33. Desbotamento
68. Oxidação
(fotodeterioração)
34. Descamação em placas 69. Oxidação do verniz
35. Descascamento 70. Peças trocadas
5. O website colaborativo
154
posteriormente integradas à base de dados. Nestas novas informações são anexadas
codificações de representação determinadas pelo webmaster. Dentre as seções propostas
estão: o banco de dados disponibilizando as fichas de danos para consulta, impressão e
download; o sistema de busca por categorias ou palavras-chave; o formulário de
cadastro para colaboradores; apoio e instruções de como utilizar os códigos de
representação nos mapas de danos, e o download do arquivo “cronidas_padrao” em
formato DWG (AutoCAD® ) contendo a representação dos danos catalogados. Neste
arquivo, as informações estão estruturadas por layers e com seus respectivos padrões
de representação, e dotadas das competentes legendas. Além disto, o website integra os
seus usuários às redes sociais: Facebook e Twitter, que possibilitam acompanhar as
atualizações da base de dados, notícias da área, além de permitir o acesso a fóruns de
discussões.
Considerações Finais
155
modo, a pesquisa contempla o assunto de websites colaborativos que se consolidam nos
últimos anos, despontando-o como uma das principais ferramentas presentes na
internet para estimular os usuários a produzirem os seus próprios conteúdos. Assim a
base de dados Cronidas está preparada para receber novos conteúdos por meio de
colaborações de profissionais da área de conservação e restauro e da patologia da
construção, tornando o sistema aberto ao crescimento monitorado.
Referências
156
POR QUE OS MESTRES ESCUTAM AS PEDRAS? Uma
investigação sobre a trajetória profissional do trabalhador da
construção civil que atua na Restauração de Imóveis
Resumo
Este artigo tem por finalidade apresentar a pesquisa em desenvolvimento
no mestrado em Educação Tecnológica do Centro Federal de Ensino
Tecnológico de Minas Gerais, que investiga a trajetória profissional de
trabalhadores da construção civil que atuam em obras de restauração de
imóveis antigos. Objetiva-se nesta pesquisa encontrar subsídios para o
entendimento da trajetória do trabalhador pesquisado, considerando os
elementos que os direcionaram para o aprendizado das técnicas
construtivas antigas e não para o caminho comumente seguido no setor.
Palavras-chave: Educação Profissional, Trajetória Profissional, Construção Civil,
Restauração de Imóveis, Patrimônio Cultural.
Introdução
O presente artigo tem como premissa apresentar a pesquisa em andamento,
desenvolvida no Mestrado em Educação Tecnológica do Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), que busca compreender como
trabalhadores da construção civil adquirem os saberes necessários ao trabalho na
restauração de imóveis. Por meio da investigação da trajetória profissional desses
indivíduos, tentar-se-á chegar ao entendimento de como o conhecimento é transmitido
entre os profissionais da área e de como que o saber-fazer necessário às intervenções de
restauro transforma a atuação desses trabalhadores.
1. Contextualização
Incialmente, no intuito de demonstrar os propósitos da proposta deste estudo, é
preciso apresentar o “ambiente gerador” no qual se desenvolve a trajetória profissional
do trabalhador estudado. Para tanto, a construção civil será tratada a partir de aspectos
gerais, a fim de descrever o setor no Brasil, bem como sua origem, o perfil do
profissional atuante na área, os canteiros de obra, entre outros que se mostrarem
pertinentes durante a discussão da pesquisa.
157
Historicamente a construção civil brasileira é um espaço dominado pelo baixo
nível de escolaridade, alta rotatividade da mão de obra, índices elevados de
desperdício de material e de acidentes de trabalho. Também, é importante ressaltar que
se tratar de uma área fortemente influenciada pelos ciclos de crescimento econômico
do país, uma vez que por muito tempo foi o setor produtivo responsável por alavancar
os índices de empregabilidade aferidos pelo Ministério do Trabalho.
Diante desse quadro desenvolveu-se por muito tempo, de um modo geral, um
certo preconceito em relação à construção civil, seja enquanto campo de pesquisa no
meio acadêmico seja quando se objetiva trata-la como setor produtivo de cunho
industrial. TOMASI (1999) discorre sobre essa imagem negativa relacionada à área:
158
posto de trabalho mais elevado ao anteriormente ocupado. Em conformidade com esse
entendimento, BARONE (1999) nos diz que:
A mudança na escala hierárquica aludida pela autora, na maioria dos casos, tem
a ver com a aquisição de saberes pelo profissional, que tende permitir a progressão
entre as atividades comumente existentes na construção civil. Nesse quadro de
posições, há uma setorização provocada pela natureza do ofício desempenhado, o que
produz classificações como as de: ajudante, meio-oficial, pedreiro, carpinteiro, armador,
instalador, pintor, encarregados e mestres de obra.
Campo dessas transformações, o canteiro de obras na construção civil é o cenário
das relações profissionais e da produção em si. Nele, indivíduos de diversas origens e
qualificações empreendem um trabalho condicionado ao emprego de grande esforço
corporal e de reconhecida periculosidade. Nesse contexto, o trabalhador do setor
adquire os saberes necessários à execução dos serviços, ao mesmo tempo em que
delineiam um perfil profissional característico; geralmente do sexo masculino, jovem e
disposto a empregar, principalmente, a força física como moeda de troca a ser paga
pelo empregador. Como contribuição para essa descrição, TOMASI (1999) contribui
com a assertiva seguinte:
Outra característica destacada pelo autor citado tem a ver com a aparente
ausência de transformações ocorridas ao longo do tempo nos locais onde ocorrem as
atividades diárias da construção civil. Segundo o autor citado, os canteiros de obras de
hoje guardam grande semelhança com os da Idade Média, das grandes obras como, por exemplo,
das catedrais que conhecemos daquela época. Ainda, [...] asseguram a semelhança a grande
dependência que a Construção tem da sua mão-de-obra, sobretudo qualificada, ou do trabalho
artesanal [...] (TOMASI, 1999, p.10). Como se tem verificado no Brasil, nas últimas
décadas este quadro tem mudado, ainda que marcas fortes do trabalho artesanal
possam ser facilmente identificadas.
Ao mesmo tempo, a lenta transformação no setor propicia alguns pontos
positivos. A organização do trabalho reproduzida desde o período medieval tende a
159
manter inertes certos saberes que são fundamentais para alguns ramos da construção
civil, como o campo da restauração de imóveis.
As edificações antigas apresentam um caráter construtivo distinto dos métodos
de produção utilizados na atualidade. No passado, a inexistência de uma cadeia
produtiva de materiais de construção obrigava aos trabalhadores terem um domínio
acertado das técnicas a serem empregadas e da exploração de matérias-primas com as
quais se obteriam os elementos constituintes do edifício. Normalmente, os materiais
básicos a serem utilizados eram: a terra, a madeira, a cal, a pedra e, em menor
proporção, o metal. Além desses, em alguns lugares, aproveitavam-se fibras vegetais,
esterco bovino e entre outros que pudesse ser aproveitado eventualmente.
No caso brasileiro, a arquitetura produzida até o fim do período colonial foi
fortemente marcada pelo caráter das relações mantidas com Portugal. A dependência
econômica e cultural em relação ao Reino fez com que as edificações erguidas no Brasil
mantivessem uma marcante uniformidade, construtiva e arquitetônica, ao longo dos
quase quatro séculos de domínio português. Nesse sentido, a construção de
residências, edifícios públicos e religiosos, obras viárias e demais instalações, estiveram
condicionadas a princípios criados na Metrópole e pouco sofreram modificações
quando aqui desenvolvidas.
Apesar da corrente de modernização provocada pelas novas técnicas e materiais
introduzidos a partir do séc. XIX, a dependência do trabalho manual não permitiu o
abandono completo da herança construtiva portuguesa de imediato. Em regiões mais
remotas do país, ainda é possível encontrar edificações produzidas com terra crua e
matérias-primas vegetais, nas quais foram empregados métodos construtivos
semelhantes aos encontrados em imóveis do período colonial. Sobre a predominância
de tais características na construção civil, HARDMAN & LEONARDI (1991) observam
que:
No século XIX e início do atual [séc. XX], entretanto, a construção civil ainda
guardaria muitas das características da arquitetura do século XVIII. Na construção
de casas residenciais, o trabalho ainda era artesanal, sendo empregados muitos
artistas nos serviços de alvenaria e madeira, guarnecimento de janelas e balcões,
utilização de ferro forjado, azulejos etc. (HARDMAN; LEONARDI, 1991, p.39)
160
preservação aliado ao alto custo da mão-de-obra capacitada para a função são
normalmente os maiores empecilhos para a consolidação do restauro como um setor
promissor na construção civil, apesar do grande acervo de bens arquitetônicos em todo
o país. Tal situação interfere diretamente na formação de trabalhadores para atuar na
área, uma vez que não há continuidade nas medidas de incentivo criadas para atender
a demanda de bens que precisam ser restaurados e, por consequência, não incentivam
a formação de mão-de-obra especializada através de cursos profissionalizantes.
Com a evolução das técnicas construtivas e a inserção de materiais
industrializados na construção de edifícios, as práticas derivadas da arquitetura
colonial foram abandonadas gradualmente após as primeiras décadas do séc. XX na
maioria das cidades brasileiras. No entanto, o saber fazer ligado às técnicas
construtivas tradicionais sobreviveu em locais onde a renúncia definitiva destas não foi
possível, seja por fatores econômicos que retardaram o desenvolvimento urbano local
ou pela existência de edifícios que necessitassem de tais técnicas para obras de
manutenções ou reformas e, posteriormente, nas restaurações promovidas pelos órgãos
de proteção do patrimônio cultural.
Tais conhecimentos foram necessários às primeiras obras de restauro promovidas
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão chancelado
pelo Estado para a proteção do patrimônio cultural brasileiro em atuação no país desde
1937. Conforme Márcia Chuva (2010) nos mostra no trecho abaixo, identificar
profissionais que ainda detinham o saber relacionado às técnicas construtivas antigas
foi fundamental para a restauração de imóveis.
161
De imediato, sabe-se que estes trabalhadores normalmente possuem uma faixa
etária mais elevada e aprenderam os ofícios tradicionais a partir do tirocínio in loco,
apreendido a partir do contato com as técnicas construtivas antigas. O conhecimento
adquirido, em boa parte dos casos, desenvolveu-se como comumente ocorre na
construção civil, baseado na observação de outros trabalhadores em atuação e no
cotidiano do canteiro de obras. No contexto que trata da forma de apreensão do
trabalho, os autores, citados anteriormente, fazem a seguinte referência sobre a
transmissão de saberes entre os indivíduos a serem pesquisados:
162
Provocados pela ideia de uma continuidade estabelecida permitida pelos
edifícios, este autor ainda nos infere que “quando um grupo humano vive por muito tempo
em um local adaptado a seus hábitos, não apenas a seus movimentos, mas também seus
pensamentos se regulam pela sucessão das imagens materiais que os objetos exteriores
representam para ele [...]” (HALBWACHS, 2006, p.163). Com isso, percebemos que a
existência de locais onde se salvaguarda a arquitetura dos séculos anteriores pode
influenciar nos indivíduos o intuito de manter vivos os laços com os objetos materiais
que representam este passado. Nesse sentido, a opção pela atuação no restauro de
imóveis antigos pode ter sido originada em uma experiência coletiva e não somente
individualmente, conforme as oportunidades profissionais oferecidas ao trabalhador a
ser estudado.
Ainda cabe discutir a constituição das atividades executadas pelos trabalhadores
da construção civil que atuam na restauração a partir da concepção de ofício. No
contexto estudado tratamos de práticas que não estão encerradas na fragmentação do
saber, mas na exploração de todas as possibilidades técnicas envolvidas na recuperação
de materiais e elementos a serem restaurados. Pela diversidade de soluções
construtivas empregadas na arquitetura antiga, o profissional atuante nessa área
precisa explorar habilidades que se dão em conjunto e não permitiriam aplicação do
saber de forma dissociada. Para compreensão de ofício nos moldes tratados,
recorremos ao trecho abaixo referendado em TOMASI & SILVA (2007):
Estes autores recorrem à ideia de que o ofício tem a ver com o reconhecimento
social que por consequência produz identidade, fato que concernentemente condiz
com a proposta da pesquisa em andamento. Ao ser reconhecido pela função exercida
no campo da restauração, o profissional a ser estudado adquire fundamental
importância, uma vez que existe em todo o país um grande número de bens que
demandam de preservação.
De acordo com a metodologia empregada no restauro, deve-se sempre preferir a
manutenção de técnicas e materiais semelhantes aos originais. Segundo a Declaração de
Amsterdã de 1975, “[...] é importante atentar para que os materiais de construção tradicional
ainda disponível e as artes e técnicas tradicionais continuem a ser aplicados” (IPHAN, 2004,
p.209). Igualmente, a Carta de Restauro de 1972, “[...] uma exigência fundamental da
restauração é respeitar e salvaguardar a autenticidade dos elementos construtivos da obra. Esse
princípio deve sempre guiar as escolhas operacionais.” (BRANDI, 2005, p.244).
Por fim pretende-se na pesquisa empreendida entender que caminhos
conduziram alguns trabalhadores da construção civil à atuação na restauração de
imóveis, sendo que possivelmente esse ato não esteja limitado às situações vivenciadas
nos canteiros de obra. Dessa forma, o tema abordado permite uma investigação de
processo, no qual se desenvolve a formação do trabalhador diante sua natureza, suas
características e as exigências existentes na trajetória profissional desse indivíduo; ao
163
mesmo tempo em que possam ser encontradas motivações de cunho sociocultural na
“opção” ou na “falta de opção” por este campo dentre outros no setor.
164
com o entendimento de que a trajetória profissional do trabalhador atuante na
restauração decorre de uma interação socioprofissional, na qual esse indivíduo é
transformado, ao mesmo tempo, por sua prática na construção civil e pelo meio no
qual está inserido. Com isso, o nicho profissional dos indivíduos estudados teria
incisiva influência sobre o caminho a ser seguido, no sentido de que diante da
inexistência certas condições, necessárias ao desenvolvimento dos conhecimentos
voltados ao trabalho de restauro, não surjam àquelas que farão com que o trabalhador
esteja apto para tal.
Considerações Finais
Diante das perspectivas apontadas pelo aporte inicial da pesquisa, tem-se o
entendimento que os fatores, que conduzem a trajetória profissional dos trabalhadores
para o campo da restauração e não para os demais da construção civil, são fruto de
uma inter-relação entre as oportunidades profissionais e os saberes disponíveis a serem
apreendidos. Sendo assim, o caminho seguido por este indivíduo se caracteriza por
uma convergência entre habilidades possuídas e um ambiente gerador; ambiente este
possivelmente relacionado a locais que dispõem de imóveis antigos.
Desta forma, o trabalhador inicia sua carreira, comumente, como qualquer agente
da construção civil, exposto aos mesmos percalços existentes a todos os profissionais
do setor. Porém, a possibilidade de adquirir os conhecimentos necessários à
restauração tenderia a transformar e a caracterizar esse indivíduo, de acordo com os
valores existentes no meio. Com isso, pode-se presumir que a posse do conhecimento
advém de uma interação socioprofissional, na qual objeto de trabalho e trabalhador
interagem a partir de uma linguagem singular, constituída no cerne de um campo
profissional específico.
Referências
165
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166
UTILIZAÇÃO DA CONSERVAÇÃO PATRIMONIAL
MATERIAL COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL:
AVALIAÇÃO DO PROGRAMA ESCUELAS TALLER NO
NORDESTE DO BRASIL
Karla Nunes Penna & Elisabeth Taylor
Resumo
O objetivo desse artigo é discutir estratégias locais para fortalecimento de
capacidades regionais, através da avaliação de programas de treinamento para
a conservação patrimonial localizados no nordeste do Brasil 65, usando como
estudo de caso as Oficina-escolas (Escuelas Taller) implantadas nas cidades de
São Luís, João Pessoa e Salvador. O foco é discutir a utilização de programas
de treinamento para a conservação como instrumento de inclusão social,
investigando questões decorrentes dessa associação e desafios a serem
superados para garantir o desempenho apropriado e a continuidade de
programas dessa natureza.
deste artigo, através da Curtin University of Australia. Essa foi uma pesquisa etnográfica realizada em
2010/2011, que incluiu coleta e análise de documentação, entrevistas semi-estruturadas e observação
direta in loco, com o objetivo de desenvolver uma análise de performance de centros de treinamento para a
preservação, usando como estudo de caso não só as oficinas escolas mas também outros programas de
formação para a conservação localizados na região nordeste do Brasil. A investigação foi focada em obter e
analisar dados com o objetivo de identificar problemas relacionados à educação para a preservação
pertinentes a esses centros de treinamento.
167
Introdução
168
treinamento profissional, buscando geração de oportunidade de emprego e renda e
integração desse público no mercado de trabalho.
É impossível dentro do escopo desse artigo discutir por completo esse tópico
mas alguns pontos importantes podem ser abordados visto que são familiares aos
profissionais envolvidos com o sistema de treinamento para a preservação.
169
2012). A longo prazo, essa desigualdade crescente torna improvável um crescimento
sólido o suficiente para melhorar o estado atual de pobreza em determinadas áreas do
país.
170
multidisciplinaridade desse campo. Não apenas treinadas para trabalhar levando em
consideração a preservação do patrimônio natural e cultural em contextos de pobreza,
mas principlamente considerando que existe acima de tudo um "patrimônio vivo",
pessoas que vivem, trabalham e usufrem de locais históricos em suas vidas cotidianas
(Thakur, 2007). Além disso, sítios históricos têm que atender a exigentes e inflexíveis
legislações nacionais e recomendações internacionais, e ainda devem atender às
demandas econômicas da sociedade nos quais estão inseridos. Agravando a situação,
os problemas sistêmicos profundamente enraizados nos países em desenvolvimento,
tais como corrupção, violência, e injustiça social, tornam mais difícil as possibilidades
de desenvolvimento de políticas de sucesso (The World Bank, 1999).
171
Durante a história da conservação patrimonial não houve programa de
treinamento ideal, e sim uma longa história de tentativas, experiências e reflexões, que
geraram uma grande quantidade de recomendações e propostas de formação. A partir
da Convenção do Patrimônio Mundial (UNESCO, 1972) em diante, um número
crescente de programas de formação foram organizados em universidades e
instituições de formação técnica. Em paralelo com essas iniciativas, o conceito de
patrimônio em si tem sido ampliado, principalmente na segunda metade do século 20,
com o envolvimento de um número sempre crescente de disciplinas e de partes
interessadas no processo de treinamento (Jokilehto 2006).
172
Nesse sentido, uma importante iniciativa foi realizada pelo governo espanhol,
chamada Oficina-Escola (Escuelas Taller). Esse projeto tem como objetivo proporcionar
a jovens carentes, entre 18 a 23 anos, em situação de vulnerabilidade social,
oportunidades de inserção no mercado de trabalho e de integração social, por
intermédio da formação de mão-de-obra para a recuperação do patrimônio cultural, e
da complementação da escolaridade formal dos alunos (AECID, 2010). O projeto
Oficina-escola abrange mais que uma mera qualificação de mão-de-obra. Visa também
a complementação da educação formal. Teoria e prática são indissociáveis nesse
contexto, estabelecendo uma ligação entre trabalho manual, valorização do patrimônio
e promoção da cidadania.
173
A AECID, instituição responsável por fomentar essa iniciativa e também por
parte do suporte financeiro das Oficinas-Escolas, não impõe um projeto definitivo nem
um modelo a seguir, e sim um projeto adequado a cada cidade, desenvolvido pela
equipe gestora local, baseado em um intercâmbio de experiências e conhecimentos que
a Espanha tem em determinadas áreas (Mansilla, 2007). Em cada cidade, a
implementação do projeto Oficina-escola demandou a constituição de parcerias
públicas e privadas para viabilizar os programas. O projeto Oficina-escola teve como
prioridade criar condições para que a própria comunidade possa participar do
processo de revitalização, promovendo sua inclusão como parte atuante nas decisões,
como residentes conscientes de suas responsabilidades, direitos e deveres e como mão
de obra qualificada no processo de preservação e conservação de seu patrimônio
cultural.
No entanto, apesar de todo o mérito social que esse programa possui, algumas
questões decorrentes do uso do restauro como instrumento de inclusão social precisam
ser discutidas. A fim de se alcançar um contexto educacional e formativo sustentável
muitos problemas precisam ser superados.
174
integrante da Oficina-escola se mantem na escola formal, ele agrega o benefício da
formação escolar tradicional à formação profissional. Segundo, os jovens que
trabalham com um patrimônio que pertence a eles e com o qual eles se identificam
“enxergam” e defendem melhor seus monumentos, empreendendo esforço e dedicação
laboral para recuperar sua própria cultura.
175
problema relacionado à mesma questão é que o aprendiz, o mestre de obra e qualquer
outro profissional relacionado com os trabalhos de conservação tem que estar
obrigatoriamente vinculados a uma empresa ou construtora, visto que só a elas é
concedido o direito de intervir fisicamente nos prédios.
(3) Outra questão é que esses programas objetivam treinar pessoas muitas vezes
sem preparo educacional formal. Os programas estão sendo direcionados para jovens
que não possuem conhecimento prévio de construção civil, e que muitas vezes mal
sabem ler e escrever. Esse público tem um ritmo diferente de aprendizado. Deixando
um pouco à parte a questão patrimonial e analisando a situação social dos jovens-alvo
desses programas, verificamos que eles se encontram numa situação social
desfavorável onde muitos estão envolvidos com drogas, com prostituição, estão fora da
escola porque as famílias precisam que trabalhem para complementar a renda, muitas
vezes engajados em trabalho semi-escravo, imersos em famílias desfuncionais. Essas
pessoas requerem assistência específica e metodologias diferenciadas com vistas a
promover uma aprendizagem eficiente. A capacitação técnica é a chave do
treinamento, mas estratégias mais elaboradas de associação da formação profissional
ao contexto social são fundamentais na busca do desenvolvimento social e pessoal
desses aprendizes.
176
anos de aprendizado contínuo. A própria construção civil contemporânea demanda
um tempo de formação mais rápida, com aplicação de novas tecnologias e
metodologias. É necessário haver uma conexão entre essas duas “línguas”. Essa nova
linguagem também demanda informatização, enquanto muitos mestres mal sabem
ligar um computador.
177
Conclusão
Baseado nos documentos analisados é difícil medir em que extensão está havendo um
real desenvolvimento social, ou mesmo profissional, proveniente do treinamento
fornecido pelas Oficinas-escolas. A inclusão social através das atividades de
preservação do patrimônio cultural pode funcionar enquanto formação para a
cidadania mas é necessário o desenvolvimento de avaliações qualitativas e de estudos
de impactos sociais para verificar se os treinamentos estão sendo realmente efetivos
quando se trata de capacitação profissional. As avaliações baseadas em indicadores
qualitativos como a eficácia da capacitação, o nível de aprendizado, ou se o
aprendizado fornecido gerou novas oportunidades de emprego ou incremento real de
renda proveniente de um trabalho formal estável, podem fornecer importante feedback
sobre o processo de treinamento, importante para a melhoria da qualidade do
programa (Patton, 1987).
178
privação de recursos, mas também em termos de capacidade de investir em soluções
sustentáveis. Associam obras de conservação e inclusão social pode ser arriscado e
gerar uma situação não-sustentável. Apesar de isso parecer a princípio reverter o
cenário atual de indicadores sociais, refletindo alguma melhora, na verdade isso pode
criar um futuro aumento do nível de desemprego, uma vez que essas pessoas não
serão capazes de manter-se no mercado devido à execução de serviço de má qualidade.
É importante investigar se estes projetos representam um alívio efetivo para a pobreza
local ou geram apenas uma “ilusão” de profissionalização que em poucos anos se
tornará inútil.
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180
DELITOS CONTRA O PATRIMÔNIO CULTURAL:
INSUFICIÊNCIAS NORMATIVAS BRASILEIRAS E
ESPANHOLAS
Resumo
Ao longo dos anos o patrimônio cultural sofre com constantes atentados.
Infelizmente, práticas ilícitas como o tráfico e o comércio ilegal de
património cultural podem ser considerados um dos maiores setores do
comércio internacional. Assim, neste artigo, objetiva-se analisar
procedimentos acerca da proteção do patrimônio cultural brasileiro. Com
esse propósito serão verificadas as elaborações de ordem normativa que
envolve a conservação dos bens culturais e, à luz da legislação espanhola,
sobretudo da Lei Orgânica 12/95 - ao tratar do contrabando do património
cultural do referido país; destacar pontos que necessitam ser mais bem
precisados na normativa brasileira para impedir o tráfico ilítico de bens
culturais no Brasil, principalmente no que tange o tráfico de bens
patrimoniais culturais na escala internacional. Este estudo, também,
considerará aspectos relativos aos valores patrimoniais para a elaboração
normativa, seja de valores culturais ou econômicos, concernentes à
efitividade legal a fim de proteger o patrimônio cultural que é a memória e
a identidade de uma comunidade.
Palavras-chave: patrimônio cultural, normativa internacional, tráfico ilícito
Introdução
O tráfico de patrimônio cultural abrange numerosas atividades, que vão da
exportação de bens culturais pelos seus legítimos proprietários, sem a necessária
autorização, até ao comércio especializado de objetos furtados, passando pela
apropriação e comercialização de obras de arte desconhecidas pelas autoridades. O
combate aos atentados contra as riquezas arqueológicas, históricas e artísticas que
constituem heranças nacionais exige a cooperação internacional, quer na prevenção das
infrações, quer para assegurar a restituição dos bens subtraídos. (Askerud & Clément
1997)
No Brasil, os problemas de tráfico ilícito ainda não são confrontados por
legislação suficientemente adequada e elaborada. Até então o que se tem é a
Convenção da UNESCO de 1970 firmada por países, como Brasil e Espanha,
enumerando medidas de proteção acerca do tráfico ilícito de bens culturais. Assim, a
criação de uma legislação nacional é requisito a imposição de sanções e penas a fim de
ECA/USP. anauene@yahoo.com.br
181
coibir a prática deste delito. Hoje, há leis voltadas para a proteção de bens culturais,
mas não se fez nenhum tratamento diferenciado nacionalmente como no ordenamento
espanhol ao tratar do contrabando destes.
A tipificação penal brasileira mais próxima desta conduta é a receptação
qualificada enumerada pelo art. 180, §1º ou o contrabando e descaminho previsto no
artigo 334, § 1º, “c”, ambos pertencentes ao Código Penal e, o bem jurídico protegido
por estes, abrangem tanto o patrimônio público quanto o privado e, por isso, se estende
ao patrimônio cultural66. Por outro lado, há, também, previsão legal no artigo 48 da lei
de Contravenções Penais para o Exercício ilegal do comércio de coisas antigas e obras de
arte67, não existindo legislação especial penal que trate do patrimônio cultural
especificamente, encontrando apenas referência a este em esfera ambiental. 68 No mais,
a Constituição brasileira atribui competências em ordem administrativa, legislativa e
judiciária para União, Estados, Municípios e Distrito Federal na proteção ao patrimônio
cultural.69
Ainda, segundo a Constituição Brasileira, o Patrimônio Cultural constitui um
elemento estrutural da identidade de certas comunidades, tal como instrumento de
coesão social e memória; além disso, de acordo com a Constituição Espanhola, possui
um valor cultural objetivo e sua proteção independe que seja de titularidade pública ou
privada ou qual seja o seu regime jurídico. No mais, o valor cultural de determinados
bens é a causa para proteção e definição como condutas delitivas previstas no Código
Penal Espanhol. 70 Segundo Tamarit Sumalla (1997):
“[...] o valor subjacente ao bem jurídico não é de caráter econômico,
senão cultural, devendo-se considerar o dano ou a deterioração que
ocorre com o objeto material do delito, independentemente do valor
do prejuízo causado economicamente. Sendo relevante a afetação que
se produziu aos interesses culturais, históricos ou artísticos, para se
estabelecer a existência ou não de uma conduta delitiva.” (Tradução
minha) 71
A dificuldade de demonstrar às instâncias judiciais a ilicitude penal do
Patrimônio Cultural se deve também ao princípio da mínima intervenção penal e do
conflito entre o valor econômico e o valor cultural dos bens (Rus 1996), pois a
legislação vigente considera apenas os aspectos de valor econômico, seja por avaliação
pericial ou tributária, seja nacional ou internacional, seja na lei orgânica de
contrabando espanhola.
A criação e adoção de medidas específicas adequadas, tanto na Espanha quanto
no Brasil, de normas protecionistas ao patrimônio cultural, superando o valor
Texto original: “[...]el valor que subyace en el bien jurídico no es de caráter econômico, sino cultural, debiéndose
tener cuenta el daño o deterioro que se produce al objeto material del delito independientemente de la cuantia del
prejuicio causado económicamente. Siendo relevante la afectación que se produce a intereses culturales, históricos o
artísticos para establecer la existência o no de la conducta delictiva.”
182
econômico como elemento determinante das tipicidades penais; campanhas de
sensibilização da sociedade para assumir a responsabilidade da própria identidade e
aprimoramento da cooperação internacional se fazem necessárias atualmente. (Polo
2006)
Portanto, um estudo à luz do ordenamento espanhol quanto à repressão do
contrabando do patrimônio histórico artístico, precipuamente da Lei Orgânica 12/95,
se relacionando com normativas nacionais, foi realizado com o intuito de apontar a
insuficiência e inefetividade das normativas de combate à comercialização ilegal de
bens culturais nos dois países.
183
As obras de arte, especificamente, são objetos de tráfico pelos valores nelas
contidos, que justificam a ânsia pela posse, ainda que muitas vezes irregular, de peças,
daí a comercialização ilegal, o furto, a falsificação e o extravio, para além de outros.
Segundo Fincham (2009):
“(...) o roubo de arte é geralmente efetuado com a finalidade de
revenda ou resgate e, comumente, os ladrões são comissionados por
colecionadores particulares confidenciais. A arte roubada é também
usada frequentemente entre criminosos em um sistema de operação
bancária internacional, como o submundo do tráfico de drogas e de
armas, ou simplesmente, como meio de troca destes artigos.”
(Tradução minha)
Por esses bens serem considerados não consumíveis, constituem quase sempre
um investimento financeiro muito rentável a médio e longo prazo – sendo o suporte do
mercado internacional de arte. “Informações fornecidas pelo FBI – Federal Bureau of
Investigation, o tráfico internacional de obras de arte movimenta aproximadamente U$
6 bilhões por ano”(Costa & Rocha 2007). Além disso, se tornou uma maneira talentosa
e segura de lavagem de dinheiro por facções criminosas advindos de tráficos de
entorpecentes, armas, prostituição, jogos ilícitos e contrabando de joias preciosas.
A situação complica ainda mais se considerar que há países com atitudes
diametralmente opostas quanto à possibilidade de devolução de bens aos países de
onde foram ilicitamente retirados, sem contar que há argumentos como a saída de que
não há ilegalidade, sob a tutela da boa fé, normalmente utilizados como explanação
por grandes "lobbies" do comércio de antiguidade (Bo 2003).
Ocorre assim a importação significativa de obras, simplificada pela fragilidade
de controles alfandegários, o que propicia a inclusão no mercado internacional de
objetos furtados nos países. Portanto, o tráfico, além de promover a introdução
clandestina de determinado bem ilícito para o comércio interno de um país, possibilita
a sua exportação para outros mercados (Costa & Rocha 2007).
Assim, podem ser assinalados em três grupos distintos os delitos relacionados
ao patrimônio cultural, tais como os referentes á aquisição ilegal, os de tráfico ilegal e o
concurso de crimes dos dois anteriores. O tráfico consiste justamente no ato de
comerciar ou mercadejar bens provenientes de negócios ilícitos ou indecorosos (Nunes
1999). No mais, tem-se notado a preocupação com que os diferentes Estados - inclusive
Brasil e Espanha, tanto dos receptores como dos destinatários no combate ao tráfico
ilícito de bens culturais.
184
property effected contrary to the provisions adopted under this Convention by the
States Parties thereto, shall be illicit”73. Entende, ainda, como ilícito, em seu artigo 11
“The export and transfer of ownership of cultural property under compulsion arising
directly or indirectly from the occupation of a country by a foreign power shall be
regarded as illicit.”74
Outra convenção aprovada pela UNESCO é a Convenção Sobre a Proteção do
Patrimônio Mundial Cultural e Natural, aprovada pela Conferência Geral em 16 de
novembro de 1972 em Paris e inserida no ordenamento brasileiro em 12 de dezembro
de 1977 pelo Decreto n° 80.978.
Segundo a UNESCO, os Estados signatários das Convenções devem estabelecer
esforços para inventariar seus bens culturais, protegê-los e, quando for o caso, por seus
valores excepcionais, propor a sua inscrição na lista de patrimônio mundial. O país
deve então se esforçar para evitar o trafico internacional, seja na exportação ou na
importação de bens culturais. Isso implica em um sistema de vigilância que previna e
reprima o comércio ilegal de obras de arte. Frisa-se que a Convenção da UNESCO de
1970 também define como requisito a imposição de penas e sanções adequadas de
forma a coibir a prática do tráfico ilícito de bens culturais. (Costa & Rocha 2007)
O Brasil aderiu à Convenção de 1970, integrada ao sistema legal nacional pelo
Decreto 72.312, promulgado em 21 de novembro de 1973 e intitulado Convenção sobre as
Medidas a serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transportação e
Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais.
Houve então a criação da Coordenação-Geral de Proteção ao Meio Ambiente e
Patrimônio Histórico, no Departamento da Polícia Federal, e a implantação, em 27
Estados da Federação, de Delegacias de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico
responsável pelo cuidado com os bens sujeitos ao comércio ilícito. É importante
destacar ainda que foram promulgadas no Brasil várias leis75 direcionadas à proteção
dos bens culturais, as quais devem colaborar para impedir o avanço da circulação e da
comercialização ilegal de bens. (Costa & Rocha 2007)
Também, há países76 com tributação favorecida (paraísos fiscais) e com
utilização abusiva dos tratados e convenções internacionais como mecanismos para
compulsão direta ou indireta decorrentes da ocupação por uma outra potência estrangeira deve ser
considerada como ilícita.”
11 Cf. Decreto-Lei 25/37 (organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional); Lei 3.924/61
(dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos); Lei 4.845/65 (proíbe a saída para o exterior de
obras de arte produzidas no país até o fim do período monárquico); Lei 5.471/68 (dispõe sobre a
exportação de livros antigos e conjuntos bibliográficos brasileiros); Decreto-Lei 72.312/73 (sobrevinda da
Convenção da UNESCO em 1970) e Portaria 262/IPHAN.
76 A Instrução Normativa SRF nº 188, de 06 de agosto de 2002, dispõe:
“Consideram-se países ou dependências que não tributam a renda ou que a tributam à alíquota inferior a 20% ou,
ainda, cuja legislação interna oponha sigilo relativo à composição societária de pessoas jurídicas ou à sua titularidade
as seguintes jurisdições:Andorra; Anguilla; Antígua e Barbuda; Antilhas Holandesas; Aruba; Comunidade das
Bahamas; Bahrein; Barbados; Belize; Ilhas Bermudas;Campione D’Italia; Ilhas do Canal (Alderney, Guernsey, Jersey
e Sark); Ilhas Cayman; Chipre; Cingapura; Ilhas Cook; República da Costa Rica; Djibouti; Dominica; Emirados
185
lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas. A cooperação internacional também é
analisada por intermédio dos organismos internacionais e nacionais de assistência
administrativas, que dão suporte à atuação do poder judiciário na repatriação de
ativos. (Silva 2000) No Brasil, o crime de lavagem de dinheiro, é tipificado pela Lei nº.
9.613 de 1998 e é um crime de amplitude internacional que consiste em dar uma
aparência lícita a recursos obtidos por meio de outro crime, como o tráfico ilícito de
bens culturais.
Árabes Unidos; Gibraltar; Granada; Hong Kong; Lebuan; Líbano; Libéria; Liechtenstein; Luxemburgo (no que
respeita às sociedades holding regidas, na legislação Luxemburguesa, pela Lei de 31 de julho de 1929); Macau; Ilha da
Madeira; Maldivas; Malta; Ilha de Man; Ilhas Marshall; Ilhas Maurício; Mônaco; Ilhas Montserrat; Nauru; Ilha
Niue; Sultanato de Omã; Panamá; Federação de São Cristóvão e Nevis; Samoa Americana; Samoa Ocidental; San
Marino; São Vicente e Granadinas; Santa Lúcia; Seychelles; Tonga; Ilhas Turks e Caicos; Vanuatu; Ilhas Virgens
Americanas; Ilhas Virgens Britânicas.”
186
enriquecimiento del patrimonio histórico, cultural y artístico de los pueblos de España y de los
pueblos que lo integran, cualquiera que sea su régimen jurídico y titularidad. La ley sancionará
los atentados contra este patrimonio77; por outra parte o Tribunal Supremo espanhol
designa que a previsão constitucional se estenda a toda classe de bem que “per se” ou
na realidade tenham o mencionado valor, seja qual for à situação jurídica, de domínio
público ou privado.
Ainda no artigo 46 da constituição espanhola, além de comprometer os poderes
públicos quanto à proteção do patrimônio histórico, cultural ou artístico preceitua que
a legislação penal sancionará os atentados. A proteção de bens culturais por via do
Direito Penal é imprescindível para sua conservação, o valor cultural de determinados
bens só é protegido de acordo com a definição da prática delitiva prescrita no Código
Penal. A proteção penal dos bens jurídicos coletivos correspondentes com os
denominados direitos sociais e econômicos tem relevância constitucional. (Polo 2006)
ao meio ambiente); Lei 7.347/85 (disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao
meio ambiente, ao consumidor, a bens de direitos e valor artísticos, estéticos, históricos e turísticos);
Decreto-Lei 6.514/2008 (dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente, estabelece o
processo administrativo federal para apuração destas infrações, e dá outras providências).
79 Art. 334, Código penal, Espanha
(...) “c) vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza
em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de
procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que
sabe ser produto
187
Ainda no que se refere à tutela do patrimônio cultural em âmbito penal, este se
encontra incluso nas matérias direcionadas ao campo ambiental, na Lei n. 9.605/98.
Nela verifica-se que o Direito Penal Ambiental brasileiro sequer constitui uma
especialidade do Direito Penal, pois apenas enumera crimes realtivos a destruição,
inutilização, alteração ou deterioração dos bens culturais.80
O Decreto-lei n. 3.688/1941 (Lei de contravenções penais), em seu Capítulo VI,
que disciplina as contravenções relativas à organização do Trabalho, de forma taxativa
e reducionista, prevê a figura da contravenção de “exercício ilegal do comércio de
coisas antigas e obras de arte”, consistindo em:
“Art. 48. Exercer, sem observância das prescrições legais, comércio de antiguidades
e de obras de arte, ou de manuscritos e livros ou raros:
Pena – prisão simples, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa”
de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; (...)”
80 Artigos 62 e 63, Lei 9.605/98, Brasil.
81 ”(...) CAPÍTULO II. DE LOS DELITOS SOBRE EL PATRIMONIO HISTÓRICO
Artículo 321
Los que derriben o alteren gravemente edificios singularmente protegidos por su interés histórico, artístico, cultural o
monumental serán castigados con las penas de prisión de seis meses a tres años, multa de doce a veinticuatro meses y,
en todo caso, inhabilitación especial para profesión u oficio por tiempo de uno a cinco años.
En cualquier caso, los Jueces o Tribunales, motivadamente, podrán ordenar, a cargo del autor del hecho, la
reconstrucción o restauración de la obra, sin perjuicio de las indemnizaciones debidas a terceros de buena fe.
Artículo 322
1. La autoridad o funcionario público que, a sabiendas de su injusticia, haya informado favorablemente proyectos de
derribo o alteración de edificios singularmente protegidos será castigado además de con la pena establecida en el art.
404 de este Código con la de prisión de seis meses a dos años o la de multa de doce a veinticuatro meses.
2. Con las mismas penas se castigará a la autoridad o funcionario público que por sí mismo o como miembro de un
organismo colegiado haya resuelto o votado a favor de su concesión a sabiendas de su injusticia
Artículo 323
Será castigado con la pena de prisión de uno a tres años y multa de doce a veinticuatro meses el que cause daños en
un archivo, registro, museo, biblioteca, centro docente, gabinete científico, institución análoga o en bienes de valor
histórico, artístico, científico, cultural o monumental, así como en yacimientos arqueológicos.
En este caso, los Jueces o Tribunales podrán ordenar, a cargo del autor del daño, la adopción de medidas encaminadas
a restaurar, en lo posible, el bien dañado.
Artículo 324
El que por imprudencia grave cause daños, en cuantía superior a 400 euros, en un archivo, registro, museo,
biblioteca, centro docente, gabinete científico, institución análoga o en bienes de valor artístico, histórico, cultural,
científico o monumental, así como en yacimientos arqueológicos, será castigado con la pena de multa de tres a 18
meses, atendiendo a la importancia de los mismos.(...)”
188
principalmente referentes ao patrimônio cultural (Polo 2006). Dessa forma,
considerando os ditames legais estabelecidos por este tratado, o contrabando em
âmbito Espanhol, regula-se pela Lei Orgânica 12/95.
Esta norma, segundo estabelece a parte final da primeira disposição dos
motivos da referida lei; se aplicará de forma complementar pelo Código Penal em
acordo com o Título 1º (Delitos de contrabando); pela Lei Tributária Geral e pela Lei do
Regime Jurídico das Administrações Públicas e Procedimento Administrativo Comum,
prescrito no título 2º (infrações administrativas de contrabando). Tudo sem prejuízo
das remissões em branco ou de outras normas que este texto se submete. A Lei 12/95 é
uma lei penal especial devido seu caráter múltiplo de norma penal e administrativa,
considerando também seu caráter processual por algum dos mandatos do dito texto82.
Assim, conforme a normativa, comete o delito ou infração de contrabando, em
função de seu valor, quem tirar do território espanhol bens que integrem o Patrimônio
Cultural da Espanha, sem a devida autorização da Administração do Estado quando
for necessário, inclusive se seu destino for para qualquer um dos países signatários da
UE83.
O reconhecimento dos direitos sociais e econômicos pelo constitucionalismo
moderno, passou a considerar os princípios do Direito sancionador penal ao invés do
administrativo, regulamentando no artigo 25 não só o poder penal do Estado, mas
também o poder sancionador e disciplinar da Administração. Portando, quem comete
o delito de contrabando será punido com uma pena de prisão de menor infração
(máxima de 3 anos) e multa proporcional ao valor do bem.
A qualificação do contrabando como um delito menos grave, possibilita a
redução das medidas judiciais, maculando as investigações devido às dificuldades
técnicas e políticas atribuídas a elaboração de tipos penais adequados para a proteção
do patrimônio cultural. Além disso, o princípio da mínima intervenção penal dificulta
a identificação da notória gravidade e atuação dolosa exigida no artigo 321 do próprio
Código Penal, por exemplo. Essa imprecisão legal determina a dificuldade de aplicação
do sistema penal, reduzindo o mecanismo a uma simples sanção administrativa em
função do dano causado, quando em realidade há uma grande disparidade entre o
valor econômico e o valor cultural. (Polo 2006)
No artigo 10 da lei reguladora ou de repressão ao contrabando, em questão de
valoração dos bens integrantes do patrimônio cultural, caberá ao juiz buscar os
serviços competentes para a avaliação destes.
Por último, cabe uma consideração em destaque: se há a presença de uma
figura normal ou especial, pois, do ponto de vista formal legislativo, o tráfico do
189
patrimônio cultural, não só é regulamentado por uma lei especial criminal, mas
também concorre a seus infratores, uma série de atributos que dão especialidades a
figura, configurando como um dos principais atos no que tange à economia ou ao
incentivo do enriquecimento de grupos envolvidos nessa atividade (Polo 2006).
Conclusão
O comércio ilegal (tráfico) de bens culturais tem causado expressivos e
irreparáveis danos ao patrimônio cultural, tanto no Brasil quanto na Espanha,
sobretudo pela omissão na elaboração e no cumprimento de normas legais e
regulamentadoras destinadas a disciplinar e sancionar a comercialização desses bens.
Logo, é necessário incrementação, o aperfeiçoamento e a intensificação da elaboração
efetiva para a aplicação de legislações a fim de coibir a prática destes delitos.
Contudo, não existe uma legislação especialmente criada para regulamentar,
prevenir e combater o tráfico ilícito de bens culturais no Brasil, nem mesmo nos moldes
estabelecidos em relação à Lei Orgânica 12/95 de Repressão ao Contrabando da
Espanha. Ainda que esta contenha incoerências e lacunas das normas legais fazendo-se
necessário o uso subsidiário do Código Penal espanhol e de outras normativas legais.
Ainda assim, mesmo com a carência de uma regulamentação normativa
específica e adequada, as condutas e atividades consideradas lesivas ao patrimônio
cultural sujeitam os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
administrativas, seja em território brasileiro ou espanhol, independentemente da
obrigação de reparar os danos causados.
No mais, se faz necessária à efetiva interação e cooperação nacional e
internacional entre poder público, órgãos, instituições e entidades culturais –
principalmente aquelas responsáveis pela tutela de bens e valores culturais – para
proporcionar maior celeridade e eficácia na adoção de medidas e ações, preventivas e
reparadoras, relacionadas à proteção, do patrimônio cultural.
Quando se pensa em patrimônio, se faz necessário considerar os valores
atribuídos aos bens culturais que lhes darão significados quanto identificação e
memória para certos povos. Para proteger esse patrimônio, principalmente por meio de
bases normativas, é preciso se ater que o objetivo não pode simplesmente se manter na
dimensão material, econômica daqueles bens, mas sim, em salvaguardar também, os
valores culturais que a eles lhes são agregados.
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192
IDENTIFICAÇÃO PATRIMONIAL E INSTRUMENTOS DE
INVENTÁRIO APLICADOS ÀS EDIFICAÇÕES HISTÓRICAS
DE ESPÍRITO SANTO DO PINHAL - SP
Resumo
Relato de uma experiência de utilização de instrumentos de inventário
aplicados às edificações históricas de Espírito Santo do Pinhal, uma cidade
paulista em cuja região a ocupação, por mineiros e paulistas vindos de
outra região, remonta o início do século XVIII, e que teve o apogeu de seu
desenvolvimento no contexto da expansão da economia cafeeira. Trata-se
da elaboração de um registro amplo que inclui levantamentos métricos,
fotográficos, documentais e entrevistas, de edificações ecléticas em sua
maioria, patrocinadas pela camada da população local formada por
proprietários rurais e negociantes bem sucedidos. Numa perspectiva de
preservação do patrimônio cultural já foram identificados 34 imóveis que
deverão ser conservados integralmente, uma vez que expressam um
somatório de valores urbanísticos, históricos e arquitetônicos relevantes
para o local. Estes casarões constituem um significativo acervo
arquitetônico na cidade, e importante acervo arquitetônico do ecletismo e
da história do ciclo cafeeiro no estado de São Paulo. O exemplo
apresentado é o do Chalet Monte Negro. Ao longo dos últimos anos,
grande parte dessas edificações está sendo destruída ou descaracterizada.
Com essa análise buscamos destacar a importância do estudo e do registro
da arquitetura da burguesia cafeeira, apontando para a necessidade de
conscientização e preservação deste patrimônio como documento histórico
e arquitetônico.
Palavras-chave: Patrimônio histórico. Inventário. Ecletismo. Ciclo do café.
Espírito Santo do Pinhal - SP.
Introdução
Ao buscar a compreensão do presente para a construção de um futuro
consciente, o estudo do passado e seu reconhecimento através de uma releitura
constante dos fatos mais significativos se fazem questão fundamental. A identidade de
um povo é, além de outros fatores, formada com referências de sua memória, seu
passado. O século XIX e o início do século XX são de especial interesse por
representarem um período de grandes transformações no panorama da cultura
nacional. A transferência da Corte para o Brasil, a mudança da sede do governo para o
Rio de Janeiro, deslocando o centro de decisões e a polarização do comércio interno e
USP. camilacf@sc.usp.br
193
externo, a abertura dos portos às nações amigas tiveram como consequência o
desencadeamento de fatos históricos como a Independência e a decadência e posterior
abolição do trabalho escravo que irão culminar, em fins do século, com a proclamação
da República. A segunda metade do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX
constituem um período de intensas transformações no modo de vida patriarcal da
sociedade paulista.
O século XIX foi também o período da introdução da cultura do café no estado
de São Paulo, um novo ciclo agrícola que já existia em Campinas em 1830, e cuja
expansão atingiu, por volta de 1880, a região de Espírito Santo do Pinhal, uma cidade
paulista em cuja região a ocupação, por mineiros e paulistas vindos de outra região,
remonta o início do século XVIII, e que teve o apogeu de seu desenvolvimento no
contexto da expansão da economia cafeeira.
Financiados pela riqueza acumulada pelo café, vários casarões urbanos foram
construídos em Espírito Santo do Pinhal nas últimas décadas do séc. XIX,
principalmente depois da instalação da ferrovia na cidade, e nas três primeiras décadas
do séc. XX, e constituem um importante acervo arquitetônico do ecletismo e da história
do ciclo do café no estado de São Paulo. Em geral, localizam-se no centro da cidade,
principalmente próximo à Praça da Matriz.
Para a análise e compreensão da história das cidades e das pessoas, a
arquitetura tem papel relevante por materializar, nas edificações, os modos de vida e
de construção de uma época. Além de referência urbana, as edificações são a história
materializada. Nesse sentido, entende-se que os bens de relevância histórica e/ou
arquitetônica devem ser devidamente documentados e inventariados, antes mesmo de
qualquer ação preservacionista.
Nesse sentido, este trabalho84 apresenta o relato de uma experiência de
utilização de instrumentos de inventário aplicados às edificações históricas Espírito
Santo do Pinhal, através da exposição de um levantamento completo. Trata-se da
elaboração de um registro amplo que inclui levantamentos métricos, fotográficos,
documentais e entrevistas, de edificações ecléticas em sua maioria, patrocinadas pela
camada da população local formada por proprietários rurais e negociantes bem
sucedidos. Numa perspectiva de preservação do patrimônio cultural já foram
identificados 34 imóveis que deverão ser conservados integralmente, uma vez que
expressam um somatório de valores urbanísticos, históricos e arquitetônicos relevantes
para o local. Desse total, foi realizado o levantamento completo em 14 edificações. As
etapas necessárias para a elaboração do inventário do patrimônio material de Espírito
Santo do Pinhal foram guiadas por publicações já existentes, baseando-se em seu
trabalho de sistematização, e também a partir da análise de diferentes metodologias
aplicadas pelo IPHAN, e pelos governos de vários estados. O levantamento sistemático
consta de registro das características formais das edificações e de análise tipológica,
sistematizadas em ficha de identificação contendo dados históricos e construtivos,
fotografias e plantas.
84O presente artigo foi elaborado a partir da dissertação de mestrado “Arquitetura residencial urbana:
Espírito Santo do Pinhal, 1880-1930”, orientada pela Profa Dra Maria Ângela P. C. S. Bortolucci e defendida
em 2011 na EESC-USP.
194
A construção do inventário de bens arquitetônicos é etapa indispensável no
processo de registro de bens culturais, trabalho necessário no sentido de incentivar a
preservação dos mesmos e viabilizar ações municipais nesse sentido. A organização
desse amplo registro pretende, através dos instrumentos de inventário, fornecer
subsídios para o conhecimento e a conscientização da sociedade local sobre seu
patrimônio, como documento histórico e arquitetônico, e a necessidade de preservá-lo.
1. A cidade
Espírito Santo do Pinhal, cidade paulista que teve sua formação na mesma
época do surto cafeeiro e seu desenvolvimento por ele patrocinado, situa-se na região
sudeste do Brasil, a leste do estado de São Paulo, a 199 km da capital paulista, a 95 km
de Campinas e apenas 20 km da fronteira com o sul do estado de Minas Gerais. Foi
fundada em 27 de dezembro de 1849. Cidade de pequeno porte, sua população é de
40.480 mil habitantes distribuídos em 392 km2, sendo o perímetro urbano de 10 km2.
Pinhal85 originou-se a partir de uma doação de terras que estava relacionada a
uma disputa entre fazendeiros pela sua posse. Sua origem foi singular, uma vez que a
cidade não surgiu a partir de povoações preexistentes nem teve seu sítio escolhido com
o intuito de se formar uma aglomeração. O local onde hoje se encontra o centro,
iniciado em 1849, foi escolhido por ter sido o palco de confronto relevante envolvendo
os donos das fazendas. Trata-se de um lugar alto, um espigão circundado por córregos
e ribeirões na parte mais baixa, fazendo parte de um amplo entorno de topografia
montanhosa. O núcleo inicial foi organizado em torno da praça da atual Igreja Matriz
(Praça da Independência), então capela, de onde partem algumas ruas em tabuleiro de
xadrez até o limite das divisas originais do patrimônio.
Os casarões urbanos financiados por essa riqueza advinda da cultura cafeeira
foram construídos em Pinhal nas últimas décadas do século XIX, principalmente
depois da instalação da ferrovia na cidade, e nas três primeiras décadas do século XX, e
constituem ainda um significativo acervo arquitetônico na cidade. São belas residências
construídas para fazendeiros de café e profissionais liberais enriquecidos, como
médicos e advogados, em sua maioria no período compreendido entre 1880 – o início
do progresso da cafeicultura na cidade – e 1930, que, em decorrência da quebra da
bolsa em Nova Iorque, gerou um processo de estagnação na economia local e
consequentemente, na produção arquitetônica.
Os registros de imagem mais antigos de Pinhal, que datam da década de oitenta
do século XIX, indicam uma cidade com vínculos arquitetônicos tradicionais,
percebidos nos casarões edificados no alinhamento e nas laterais dos lotes, com
telhados geralmente de duas águas com beirais, ainda construídos em taipa. Na década
seguinte é notório o aumento no número de edificações, e percebemos que, apesar das
poucas modificações empreendidas, já é possível encontrarmos construções da classe
abastada começando a incorporar os princípios do ecletismo, como as platibandas.
85No decorrer do texto iremos nos referenciar à cidade apenas pelo nome Pinhal, por ser esta a forma mais
usada por seus moradores.
195
Em Pinhal, a arquitetura eclética foi introduzida pelo fazendeiro de café, que
frequentemente visitava São Paulo e Rio de Janeiro, e que, conhecendo também as
cidades europeias, buscou inspiração na produção arquitetônica destes lugares para
executar sua própria residência urbana, que deveria representar sua posição social e
econômica. A consolidação dessa imagem do fazendeiro de café passou
necessariamente pela remodelação de sua residência urbana. Dessa forma, esse
ecletismo produzido em outros lugares e especialmente na capital da então província
de São Paulo serviu de para novas apropriações e reinterpretações locais.
Apesar de ser importante acervo arquitetônico, ao longo dos anos, grande parte
dessas edificações vem sendo destruída ou descaracterizada, sendo escassos os
registros, documentação ou estudos mais aprofundados.
2. Instrumentos de inventário
Para a análise e compreensão da história das cidades e das pessoas, a
arquitetura tem papel relevante por materializar, nas edificações, os modos de vida e
de construção de uma época. Além de referência urbana, as edificações são a história
materializada. Nesse sentido, entende-se que os bens de relevância histórica e/ou
arquitetônica devem ser devidamente documentados e inventariados, antes mesmo de
qualquer ação preservacionista.
O trabalho de inventário do patrimônio arquitetônico é a principal ferramenta
de documentação, e cria um amplo panorama dos bens arquitetônicos de uma
localidade. A partir do levantamento de dados necessários, como a construção do
conhecimento histórico de como surgiu a edificação, quais suas características
primitivas, seus elementos construtivos, suas alterações ao longo do tempo etc, pode-se
reunir as informações para a elaboração de um inventário, que deve seguir um
procedimento metodológico específico e que servirá de base para a elaboração de um
dossiê sobre a edificação.
Numa perspectiva de preservação do patrimônio cultural, visando à
legitimação e perpetuação, nessa sociedade, de seus bens culturais, seja pelo
reconhecimento e preservação do objeto, ou através de sua documentação, vem sendo
elaborado amplo registro das edificações, através de levantamentos métricos,
fotográficos, documentais e entrevistas. Tais instrumentos de inventário serão um
caminho para o conhecimento e a conscientização da sociedade local sobre seu
patrimônio e a necessidade de preservá-lo.
196
pelo Ipac – Bahia, as fichas elaboradas pelo DPH – São Paulo, e também pelo IPHAN,
bem como textos de apoio que abordam a questão da metodologia para inventários.
Entre as edificações de interesse histórico na cidade, correspondentes ao ciclo
do café, já foram identificados 34 imóveis que deverão ser indicados para serem
conservados integralmente, uma vez que expressam um somatório de valores
urbanísticos, históricos e arquitetônicos relevantes para o local. Além disso, já foi
realizado levantamento em 14 edificações, cujos registros terão implantação no lote,
planta, fotos internas e fotos externas, além de uma ficha de levantamento contendo
dados sobre a edificação. O levantamento documental é de primordial importância ao
possibilitar a análise e avaliação dos dados vistos “in loco”.
Figura 1. Mapa do centro da cidade com a localização dos casarões. (Fonte: Ferreira, 2010)
A escolha dos casarões obedeceu aos seguintes critérios:
cronológico, edificados entre 1880 – início do progresso da cafeicultura na
cidade e portanto da riqueza – e 1930, período da quebra da bolsa, que gerou um
processo de estagnação na economia local e consequentemente, na produção
arquitetônica;
localização das residências, em sua maioria implantadas no centro da
cidade;
disponibilidade das fontes, a fim de facilitar o trabalho e reduzir tempo;
diferenças tipológicas e formais de exceção, dificilmente encontradas em
cidades de pequeno porte com relação ao mesmo período;
edificações que apresentarem risco de demolição, devido ao risco de
perdê-los sem documentação;
197
residências onde ainda exista mobiliário de época, possibilitando uma
reconstrução mais consistente do modo de vida da época.
A ficha de inventário deverá conter o maior número de informações possíveis
sobre o edifício, reunindo conhecimentos de vários aspectos para sua catalogação e
posterior análise. Essa ficha deverá apresentar:
nome da edificação;
número de registro;
localização e endereço original;
primeiro proprietário e atual proprietário;
construtor e época/ano da construção;
uso original e atual;
possibilidades de acesso ao bem inventariado;
data do levantamento e contato;
descrição e histórico arquitetônico, contendo descrição da área do entorno;
existência de projetos, fotos e móveis antigos, memoriais, documentação
sobre o imóvel etc;
intervenções realizadas;
estado de conservação;
descrição e caracterização da edificação: tipologia, partido, implantação,
características particulares, estilo arquitetônico;
dados técnicos, materiais e sistemas construtivos;
levantamento arquitetônico contendo representação gráfica da planta,
utilizando a ferramenta CAD;
levantamento fotográfico externo de todas as edificações e interno quando
possibilitado o acesso;
documentação iconográfica;
meios de preservação.
198
sistematizadas em ficha de identificação contendo dados históricos e construtivos,
fotografias e plantas. Todo o material coletado foi digitalizado com o uso da
ferramenta CAD.
Buscou-se a reconstrução da história do bem arquitetônico estudado, iniciando-
se pela coleta de dados da edificação. As fontes para essa etapa foram os acervos locais
públicos e particulares, com material iconográfico e bibliográfico, visitas de campo e
entrevistas. Em seguida foi definida a localização da edificação na malha urbana, e
posteriormente a tipologia arquitetônica, que tem relação com a função do edifício,
implantação e distribuição dos espaços internos. Os produtos dessa etapa são as
fotografias internas e externas e a representação gráfica da planta e da implantação.
Nesse momento buscou-se analisar a distribuição dos ambientes internos, bem como
hábitos e costumes na época da construção, e também classificar o estilo arquitetônico.
Procurou-se identificar também os sistemas e materiais construtivos,
permitindo o conhecimento da técnica construtiva utilizada no período da construção,
dos seus elementos estruturais e arquitetônicos característicos, e dos materiais e
métodos de sua utilização.
199
Entendemos que a opção do Comendador por construir sua residência nesse
local se deve ao fato de ser possuidor de quase todo o entorno nessa região, e, além
disso, também era imigrante como a maior parte da população desse local. Foi uma
pessoa de ideias progressistas, avançadas para a época, e pudemos perceber pelos
registros que era uma pessoa altruísta, livre de preconceitos. Talvez por tudo isso
Monte Negro tenha se sentido livre para se instalar em suas terras, em oposição à elite
do entorno da Igreja Matriz. Acreditamos, inclusive, na hipótese de ter sido o
Comendador de certa forma excluído da sociedade abastada da época, ainda que de
maneira sutil e velada, por causa de seus pensamentos de liberdade em uma época de
escravidão; de igualdade em um tempo da mais marcada discriminação social.
O terreno onde foi construído o sobrado em 1896 tem um pequeno declive. É de
uso residencial, elevado do solo com base de pedra e com porão que aproveita o
declive natural do terreno, e as paredes são de tijolos, fabricados na olaria da Colônia
Nova Louzã, de sua propriedade, contendo suas iniciais. Foi erguido no alinhamento e
com jardins laterais, sendo sua volumetria movimentada. Está implantado em lote
bastante irregular, com seu formato parecido com um triângulo, e três faces são
voltadas para diferentes ruas. A fachada frontal é simétrica, e as demais fachadas
voltadas para a rua apresentam apenas janelas. As fachadas voltadas para o jardim
lateral e para o quintal apresentam portas e janelas.
200
Figuras 4 e 5. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 4 mostra a implantação
do edifício, e a figura 5 mostra a planta do térreo. (Fonte: Ferreira, 2010)
201
Figuras 6 e 7. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 6 mostra a planta do
pavimento superior, e na figura 7 vemos a descrição arquitetônica e dados tipológicos e
construtivos. (Fonte: Ferreira, 2010)
202
Figuras 10 e 11. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 10 trata do estado de
conservação e das intervenções realizadas no edifício. A figura 11 mostra os dados históricos
encontrados e a proteção existente, quando há, dos órgãos de preservação. (Fonte: Ferreira,
2010)
Conclusão
A arquitetura do século XIX vem sendo progressivamente estudada e
reavaliada, em um processo iniciado há algumas décadas, passando necessariamente
pela quebra dos preconceitos. Esse movimento certamente está contribuindo para o
surgimento de uma nova consciência sobre a proteção e a restauração do patrimônio
cultural do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Essa arquitetura guarda
em si valores culturais, sociais e simbólicos. São representantes de distinção social e
poder econômico de uma época de importantes e significativas transformações. É
fundamental a preservação dessas referências que representam as raízes culturais do
lugar, documentos vivos da memória cultural da cidade.
A construção do inventário de bens arquitetônicos e posteriormente uma
análise da edificação em seu contexto mais amplo são etapas indispensáveis no
processo de registro de bens culturais, trabalho necessário no sentido de incentivar a
preservação dos mesmos e viabilizar ações municipais nesse sentido. Além disso,
almejamos propiciar um maior conhecimento do lugar, das pessoas e das edificações,
pois conhecendo a história entenderemos nosso presente. Verificamos uma
preocupante escassez de estudos referentes ao objeto, o que certamente impede que
ações que assegurem sua manutenção sejam devidamente tomadas. Não se preserva
aquilo que não se conhece, é preciso dar a conhecer para então saber preservar. Nesse
sentido, através do registro dessa arquitetura, pretendemos apresentar alguns
subsídios para contribuir para que haja maior conscientização sobre a necessidade de
preservação desse patrimônio como documento histórico e arquitetônico.
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do Pinhal, Pinhal Print.
203
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de Espírito Santo do Pinhal. São Paulo, Impressora Latina.
204
PELAS CIDADES: JORNADAS DE PLANEJAMENTO
MUNICIPAL PELA PROTEÇÃO DA MEMÓRIA E DO
PATRIMÔNIO CULTURAL DOS MUNICÍPIOS86
Resumo
O trabalho é parte do Programa Urbanismo em Minas Gerais, da
Universidade Federal de Juiz de Fora – URBANISMOMG/UFJF, o qual
inclui atividades de pesquisa e extensao aplicadas as cidades do Estado de
Minas Gerais, Brasil, particularmente nas municipalidades da Zona da
Mata Mineira. A comunicaçao sintetiza os ultimos resultados, com
prioridade para as questoes socio-culturais e naturais, buscando contribuir
para o desenvolvimento urbano qualificado das cidades. Para discutir as
demandas atuais das cidades, participaçao se coloca como essencial na
perspectiva da gestao democratica das cidades. Neste sentido, foram
propostos oficinas com professores e servidores municipais, os quais foram
envolvidos nas discussoes relativas ao planejamento urbano, priorizando o
tema do patrimonio cultural. O trabalho tem o apoio do Ministerio da
Cultura e se vincula aos resultados da pesquisa em planejamento urbano
com o suporte da CAPES, CNPq, Min Cidades e FAPEMIG.
Introdução
A participação se coloca como essencial na atualidade, considerando as
possibilidades de gestões democráticas, de acordo com a Lei no10.257, o Estatuto das
Cidades, aprovado em 2001. Muitas dificuldades se colocam para pensarmos os rumos
futuros das cidades. Esta constatação não é de hoje e podemos dizer que planos não
86 O texto expõe resultados de atividades de pesquisa e extensão junto ao Grupo Urbanismo em Minas
Gerais, cadastrado no CNPq, vinculado ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de
Engenharia da UFJF. Estas atividades envolvem a continuidade de estudos anteriores com a participação
de professores, pesquisadores e alunos graduandos. Desde 1994, o NPE URBANISMOMG trabalha com
projetos de pesquisa envolvendo idealizações e realizações urbanísticas para as cidades mineiras,
inicialmente com o apoio do CNPQ e, posteriormente, com o apoio da FAPEMIG, que se inserem na rede
de pesquisa Urbanismo no Brasil, coordenada pela Professora Maria Cristina da Silva Leme, da FAUUSP.
A partir de 2005, os desdobramentos da pesquisa foram ampliados através de ações extensionistas
relacionadas aos municípios próximos à Juiz de Fora, abrangendo temas vinculados à questão do
Planejamento Urbano e Rural. Com o desenvolvimento do PROEXT Cultura, em 2008, foram realizadas as
oficinas de planejamento, com ações em municípios da região de grande aproveitamento.
UFJF . fabio.lima@ufjf.edu.br
205
faltaram. De tudo o que foi pensado e projetado para as cidades, pouco foi
implementado. O que temos hoje são aglomerações cada vez mais segmentadas e
desiguais. Novas ocupações e parcelamentos em áreas de proteção permanente se
tornaram lugares comuns nas expansões urbanas. Em muitos dos casos a própria
formação da cidade já foi definida de maneira inadequada. Para uma reflexão sobre o
futuro de nossas urbes torna-se necessário o entendimento, no passado e no presente,
das práticas e do pensamento sobre as cidades. Por esta via, temos a compreensão do
município na sua globalidade e a relação com os municípios do entorno, tendo em
vista a definição de diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento urbano e rural. Isto
implica considerar a inserção dos municípios em regiões de planejamento. Os temas
que se interpõem são diversos, como a proteção da memória e do patrimônio cultural,
a preservação da paisagem natural, a educação, a saúde, a assistência social, o
transporte e a circulação urbana e rural, a habitação, as infraestruturas urbanas, dentre
outros. Emerge, assim, a necessidade de se pensar em um desenvolvimento que
considere a inclusão social e a distribuição de renda.
A compreensão do município e sua região na globalidade e a relação com os
municípios do entorno, permite pensar diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento
urbano e rural conjunto destes municípios. O enfoque sobre os municípios numa
perspectiva de analise comparada busca uma aproximação sobre especificidades locais
e regionais em termos de demandas sócio-culturais. A capacitação através de oficinas
de planejamento de caráter multidisciplinar mostra-se necessária para o envolvimento
das comunidades envolvidas. Por meio destas oficinas se coloca a sensibilização com
relação aos temas relacionados ao planejamento urbano, com particular atenção para a
proteção da memoria e do patrimônio cultural, em suas diversas manifestações.
Por esta via, o principal argumento para o desenvolvimento das Jornadas de
Planejamento em 2012 está relacionado à continuidade de projetos que envolvem
atividades de pesquisa e de extensão nas regiões do Estado de Minas Gerais, numa
perspectiva de análise comparada, com vistas à compreensão de especificidades locais
e regionais. Há o interesse em trabalhos conjuntos aos municípios, principalmente de
cunho sociocultural, que possam contribuir para o desenvolvimento urbano e rural
qualificado.
Vale mencionar que a participação no grupo de profissionais de outras áreas,
além da Arquitetura e do Urbanismo, como Turismo, Comunicação, Engenharias,
Geografia, Estatística e História, tem ampliado a visão sobre os problemas urbanos,
particularmente sobre a problemática relacionada à proteção do patrimônio cultural.
Eventos e publicações têm possibilitado a apresentação dos resultados da pesquisa e
ampliado os debates.
1. Planejamento e patrimônio
A construção das cidades como um processo longo na história revela densidades
de tempos diferenciados e contrastes entre o passado e o presente. Nos dias de hoje,
muitas são as dificuldades colocadas, em graus de complexidade distintos, em se
pensar os rumos futuros. Em Minas Gerais, particularmente, inúmeros planos, projetos
e propostas foram elaborados por técnicos na tentativa de organizar os sistemas e usos
da cidade, com o intuito de melhorar a vida urbana. No entanto, muito do que foi
206
pensado não foi executado como deveria, ou mesmo não se encaixou na realidade
efetiva.
Desta forma, como síntese deste processo, tem-se a formação de aglomerações
urbanas cada vez mais segmentadas e desiguais, com novas ocupações e
parcelamentos em áreas de proteção permanente como lugares comuns nas expansões
urbanas, além de inúmeros serviços nas áreas da saúde, educação, transporte, lazer,
entre outros, que representam o direito à cidade e, entretanto, não são oferecidos por
falta de um planejamento adequado.
O que se busca, em termos de aproximações sobre a história das cidades, é a
compreensão deste processo como uma chave de reflexão sobre o futuro das urbes, em
suma, o entendimento do passado e do presente, do que foi implementado e do que foi
pensado. Neste contexto, o passado atua na fundamentação das propostas sobre as
cidades existentes e as novas expansões, já que a percepção do processo contínuo de
transformações sobre as cidades coloca-se de modo emergente na atualidade, para que
se possa prever o seu futuro de maneira planejada.
A compreensão do município e sua região na globalidade, bem como a relação
com os municípios do entorno, possibilitam diretrizes urbanísticas para o
desenvolvimento urbano e rural conjunto destes municípios. Dentre outros fatores que
emergem, destaca-se a necessidade de se pensar um desenvolvimento que considere a
inclusão social e a divisão de renda, além da compreensão de que os temas se
interpõem neste cenário e são diversos, podendo ser aqui citados a proteção da
memória e do patrimônio cultural, a preservação da paisagem natural, a educação, a
saúde, a assistência social, o transporte e a circulação urbana e rural, a habitação, as
infraestruturas urbanas, dentre outros.
A perspectiva que se coloca, de análise comparada, busca a compreensão das
especificidades locais e regionais, acerca das demandas colocadas pelos municípios em
Minas Gerais, particularmente na região da Zona da Mata. Por esta via segue a atuação
do Programa Urbanismo em Minas Gerais da Universidade Federal de Juiz de Fora –
UFJF, através do Núcleo de Pesquisa e Extensão Urbanismo em Minas Gerais, tendo
em vista a definição de diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento urbano e rural
em bases sustentáveis. Pode-se destacar que a preservação da memória e do
patrimônio cultural inseridos no ambiente urbano e rural dos municípios auxilia muito
na formação da identidade cultural. Percebe-se que as transformações urbanísticas das
cidades intercalam diversas intervenções, as quais envolvem, muitas vezes, renovações
e reabilitações do seu ambiente construído.
É importante salientar a necessidade do entendimento das origens dos núcleos
urbanos para compreender todo o percurso histórico de sua sociedade e finalmente
propor mudanças e melhorias em suas projeções de crescimento. Para isso, os bens de
importância cultural e ambiental tangível e intangível de um município devem ser
considerados como parte da ambiência da cidade, fazendo dela única. As cidades que
se tornam genéricas, sem identidade ou sem referenciais não promovem fluxos e não
evoluem.
Dessa forma, o pensamento sobre a proteção e conservação do patrimônio
cultural, seja este ambientai, móvel ou imóvel, tangível ou intangível, deve estar
207
intrínseco ao pensamento sobre o desenvolvimento urbano. Para tanto, as cartas
patrimoniais e o Decreto-Lei Federal no 25, de 30 de novembro de 1937, em particular,
que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, devem ser
referências constantes sobre o destino das cidades.
208
urbanos e rurais, por um desenvolvimento em bases sustentáveis para as cidades
mineiras.
209
representações da realidade urbana e rural, tendo em vista leituras atuais desta
realidade e projeções futuras. Tal mapeamento tem como base fotografias aéreas,
imagens de satélites, mapas e plantas urbanas, que, associadas ao trabalho de campo,
representam os seguintes dados: manchas urbanas, da sede municipal e dos distritos;
fragmentos vegetais relevantes; bacias hidrográficas – rios, ribeirões, córregos e
nascentes; cachoeiras e formações rochosas; estradas, caminhos e identificação das
referências culturais – dos bens imóveis e móveis nos municípios trabalhados.
210
Desta forma, procura-se estabelecer diretrizes que promovam o
desenvolvimento urbano e rural qualificado, considerando as especificidades e as
demandas locais e regionais, visando maior sensibilização da comunidade, permitindo
a visualização, espacialização, distribuição, zoneamento, potencialidades do
patrimônio ambiental e cultural das áreas em estudo, e possibilitando uma maior
interface entre os órgãos públicos, os pesquisadores e a comunidade.
As oficinas são interativas, envolvendo a participação comunitária de maneira
efetiva, não tendo o objetivo único de levar o conhecimento. Mais do que o sentido da
educação, a ideia é abrir uma via de mão dupla, no momento em que se leva e, ao
mesmo tempo, são trazidos conteúdos, através dos quais se entende melhor, com a
visão de quem é do lugar, o que aquela determinada comunidade valoriza e entende
como patrimônio. A oficina acontece durante um dia inteiro em cada cidade, sendo
dividida basicamente em três momentos: o momento inicial com a realização de
dinâmicas, um segundo que consiste em apresentação de conceitos acerca do tema, e o
momento final do jogo do patrimônio.
A primeira dinâmica (fig.3) tem por objetivo interagir os participantes de forma
descontraída, a partir de um jogo de perguntas aleatórias e apresentação pessoal de
cada participante. É desenvolvida com os participantes em circulo, e uso de balões com
cartões de perguntas que eles próprios fazem uns aos outros, com alguma relação
direta ao trabalho a ser desenvolvido pelo núcleo de pesquisa.
Outra dinâmica proposta é a do mapa mental (fig.4), que, além de ser uma
ferramenta de organização de ideias através de um diagrama, é uma forma de
exteriorizar suas opiniões. No caso do mapa mental da jornada de planejamento
municipal, o objetivo principal é fazer com que os participantes da oficina, ao
desenharem a imagem que tem em mente da sua cidade, destacando seus principais
pontos, sejam positivos ou negativos, despertem o sentido de pertencimento àquela
cidade. É a partir deste sentimento de pertencimento que surge a valorização do seu
211
lugar e assim a proteção deste. Para essa atividade, o público é divido em grupos, entre
os quais são distribuídos os materiais de desenho. Cada grupo elabora o seu mapa
mental da cidade e posteriormente apresenta a todos.
Após as duas primeiras dinâmicas, o grupo do núcleo Urbanismomg faz uma
breve apresentação (fig.5) dos principais conceitos e referências referentes à temática
patrimonial, desde o próprio conceito de patrimônio, relacionado à memória e
identidade, passando pelas diferentes formas de manifestação desse patrimônio e
proteção do mesmo, até os marcos legislativos e leis/programas de incentivo no que
diz respeito a essa questão. Nesse momento, é apresentado ainda um breve histórico
do local, com os bens e leis patrimoniais específicos do município trabalhado.
O jogo do patrimônio (fig.6), por sua vez, é a atividade final das oficias.
Consiste em um tabuleiro com cartas e dados, em versões física e digital,
desenvolvidas pelo núcleo de pesquisa. Traçado com a intenção de incentivar a
conservação dos patrimônios e a importância destes para a formação da identidade da
cidade, as cartas, que ditam o funcionamento do jogo, criam momentos fictícios de
vivencias do cidadão com o patrimônio e as problemáticas enfrentadas para a
preservação do mesmo. Abrangendo diversas formas positivas e negativas de ação, o
jogador é agraciado ou penalizado através do deslocamento pelo tabuleiro, até que um
grupo atinja a linha de chegada.
Conclusão
212
espaços construídos, tendo em vista os grupos e os seus territórios carregados de
significados e conteúdos.
Acredita-se que trabalhar em bases sustentáveis é uma opção viável para tais
cidades devido ao pequeno porte dos municípios e à maior facilidade de se ter uma
administração, planejamento e uma organização espacial urbana, ainda que estas
cidades sejam organismos vivos em constante crescimento e mutação. Entende-se
ainda que trabalhar com a conservação e preservação dos diversos tipos de
patrimônios locais é uma forma de se estimular a cultura local, proporcionar uma
identidade cultural, o reconhecimento dos munícipes em seu espaço, o interesse
turístico, e maior qualidade dos espaços públicos, com a conservação da história local e
regional.
213
esses municípios, sempre visando à importância da participação coletiva na construção
e consolidação do desenvolvimento urbano e rural em bases sustentáveis.
214
Figura 8. Cartilha do Patrimonio Cultural, também em fase de desenvolvimento para
os outros municípios, a saber, Pequeri/MG e Matias Barbosa/MG.. Fonte: acervo
NPE URBANISMOMG, 2012.
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VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora
da Universidade de Brasília, 1995.
217
PLANO DE GESTÃO DA CONSERVAÇÃO PARA
EDIFICAÇÕES DE VALOR CULTURAL
Resumo
Esta comunicação trata do Plano de Gestão da Conservação como um
instrumento de planejamento que estabelece uma política de administração
para o uso adequado dos espaços e dos componentes construtivos, bem
como da manutenção periódica do imóvel. Aborda a carência atual no
âmbito técnico especializado da conservação do patrimônio construído dos
procedimentos para elaboração de um documento que concilie os processos
políticos e administrativos de dotações orçamentárias e de captações
financeiras versus as necessidades técnico-operacionais das obras e dos
serviços. O artigo apresenta o case do Plano de Gestão da Conservação da
Basílica da Penha, elaborado pelo CECI no ano de 2006, como uma
experiência exitosa para a garantia da integridade e autenticidade de um
bem cultural construído.
Introdução
O Plano de Gestão da Conservação para edificações de valor cultural é um
instrumento de planejamento que estabelece uma política de administração para o uso
adequado dos espaços e dos componentes construtivos, bem como da manutenção
periódica do imóvel. Tem como finalidade a garantia para a sociedade da integridade
física do edifício e dos valores de significância do bem cultural que se quer preservar.
Trata-se de uma ferramenta que se apresenta como um novo modelo de gestão a ser
adotado pelo Poder Público e pela Inciativa Privada na conservação do patrimônio
cultural construído.
No Brasil de hoje, é patente que os métodos correntes e as técnicas de projetos de
restauro privilegiam apenas a execução das obras, seguindo na contramão das
condutas mais avançadas para a salvaguarda da herança cultural construída. Há uma
lacuna no meio técnico especializado da conservação do patrimônio construído sobre
os procedimentos para elaboração de um planejamento integrado para a conciliação
dos processos políticos e administrativos de dotações orçamentárias e de captações
financeiras versus as necessidades técnico-operacionais das obras e dos serviços.
É comum constatar-se que os projetos de conservação são totalmente dissociados
das ações periódicas e contínuas da gestão e da manutenção da edificação. O
planejamento mais avançado tem que extrapolar as questões básicas e cotidianas
comuns às planilhas orçamentárias e aos cronogramas físico-financeiros dos projetos.
Não se fazer previsões ou se estabelecer parâmetros e custos quanto à manutenção da
CECI, tinoco@ceci-br.org
218
edificação que se pretende empreender a conservação e o restauro é uma prática lesiva
aos cofres públicos e a poupança privada.
Desde a criação de programas governamentais sistematizados de preservação, a
partir da década de 1970 até os primeiros anos deste novo século, as obras e os serviços
em edificações de valor cultural, sob a proteção do Poder Público, valem-se da
expertise dos profissionais e dos métodos operacionais da construção civil na condução
dos principais empreendimentos. O Curso de Gestão de Restauro do CECI , através de
viagens de estudos pelas principais cidades históricas do Nordeste e Sudeste do Brasil,
tem verificado que as expectativas quanto à qualidade final das intervenções tomam de
empréstimo parâmetros utilizados pelo mercado imobiliário, particularmente das áreas
das construções habitacionais e comerciais, nem sempre adequadas aos materiais,
técnicas e sistemas construtivos tradicionais. Dentre os vários materiais e
procedimentos aqueles que mais causam interferências nas edificações antigas são os
relativos às inovações tecnológicas, particularmente de materiais sintéticos para
impermeabilidade e estanqueidade das estruturas e revestimentos, conforto térmico,
comunicações etc..
Dos projetos da primeira hora do PCH – Programa de Cidades Históricas aos
atuais relativos aos eixos um e dois do PAC das Cidades Históricas não há previsões
de dotações orçamentárias (para o caso do Ente Público) ou de capacidade econômico-
financeira (no caso de Ente Privado) para se manter adequadamente o uso da
edificação, sequer num horizonte mínimo de dez anos.
Ainda em nosso meio, parece que a antiga assertiva do artigo 9º da Carta de
Veneza de 1964 de que a restauração é uma operação que deve ter um caráter
excepcional ainda não encontrou a ressonância no âmbito do Poder Público seja
federal, estadual ou municipal, e quiçá em alguns profissionais especialistas. A
restauração deve ceder à conservação. A política de manutenção tem se de ser
estimulada, implementada e garantida. Urge, portanto, uma mudança de paradigma.
219
Apresenta-se a seguir as experiências do CECI na elaboração e implementação do
Plano para a Basílica de Nossa Senhora da Penha, localizada na cidade do Recife, em
Pernambuco no período de fev/2006 a dez/2012.
220
Cadastrais (planta-baixa, fachadas, cobertas, usos, bens integrados); Patologias e
Danos; Autenticidade e Integridade; Gestão da Propriedade (caráter social da
comunidade, sustentabilidade, conservação atual); Planilha de Orçamento (estimativas
de custos); Cronograma Físico-Financeiro; Referências Bibliográficas; Glossário; Ficha
Técnica.
Dessa etapa destacam-se dois importantes documentos para a continuidade do
plano na segunda etapa e para o novo processo de gestão adotado pelos Capuchinhos –
a Declaração de Significância e o Mapa de Danos.
A Declaração de Significância da Basílica assim manifestou-se:
A Basílica de Nossa Senhora da Penha, da Ordem dos Frades Menores
Capuchinhos constitui um imponente edifício na paisagem urbana do Bairro de São
José – fortemente marcada pela presença das torres sineiras altas e delgadas e da
enorme cúpula do transcepto, símbolos de uma forte religiosidade – que norteou a
configuração urbana do início da formação da cidade.
A volumetria da Basílica destaca-se no contexto pela sua monumentalidade e
singularidade que, além da pertinência como elemento arquitetônico, o partido de
planta em cruz, ao gosto românico, coroa a devoção religiosa cristã tão forte na cidade
do Recife.
A Basílica de Nossa Senhora da Penha merece uma emergencial ação de
conservação por reunir os seguintes valores materiais e imateriais:
- Registra a monumentalidade da arte religiosa, de estilo eclético com influência
do neoclassicismo da segunda metade o século XIX, no bairro histórico de São José,
coração da cidade do Recife;
- Representa o vigor devocional e religioso, marcante dos séculos passados e que
perdura até os dias atuais, sem perda de valor, recebendo semanalmente milhares de
fiéis para as benções de São Felix e da Virgem ;
- Apresenta expressivos valores artístico e histórico, refletidos em sua concepção
de planta, volumetria e bens integrados, bem como a introdução de elemento
abobadado em cúpula na sua coberta, materializando o poder religioso na paisagem
urbana.
- É um dos mais representativos exemplares no Brasil das técnicas construtivas
do primeiro período da Arquitetura eclética . Os trabalhos decorativos em estuque,
particularmente nas técnicas do marmorino e escaiola, tanto no interior como no
exterior, fazem-na única no Nordeste do Brasil.
O conjunto desses elementos representa a permanência dos valores simbólicos e
documentais singulares, testemunho insubstituível da religião, da arte e da história,
merecendo o ato de preservação para conhecimento e usufruto das futuras gerações.
O Mapa de Danos foi elaborado a partir de fichas que permitiu a coletada em
campo de dados técnicos das deteriorações em todos os componentes construtivos.
Esse documento serviu de base não só para a definição e dimensionamento dos
serviços, mas, também, para a elaboração da metodologia de conservação da segunda
etapa.
O mapa foi configurado a partir da produção de sessenta fichas, contendo as
principais patologias responsáveis pela degradação da Basílica. Os danos mais
significativos estavam localizados nos telhados devido às infiltrações generalizadas
pelas ações inadequadas de alteração das técnicas e dos materiais; nas instalações
elétricas remanescentes de 1918 e pela proliferação de gambiarras e extensões de força
221
e energia improvisadas; nos revestimentos internos e externos das paredes, degradados
pela aplicação de tinta plásticas de base PVA látex.
222
dos procedimentos e dos materiais utilizados nas intervenções, não é possível se dar a
continuidade segura e econômica da conservação .
Conclusões
A modelagem e a aplicação do Plano de Gestão da Conservação é hoje uma
ferramenta útil à Administração das edificações de valor cultural. O Plano pode
garantir a eliminação de grandes intervenções de restauro num horizonte de até vinte
anos, proporcionando reduções significativas dos custos, possibilitando a permanência
dos valores de significância e de integridade da edificação.
O custo para a produção do Plano é relativamente baixo se comparado ao preço
final de um projeto elaborado nos moldes atualmente exigidos pelo IPHAN , pois pode
ser considerado como um projeto complementar pela Administração. Também, os
gastos com as inspeções e manutenções periódicas são reduzidos. Tomando-se por
base a área de 1.200m2 e a ordem de grandeza dos componentes construtivos e dos
elementos artísticos integrados e aplicados da Basílica da Penha, a Paróquia tem um
custo médio mensal de R$ 4.200,00 com mão de obra, mais R$ 1.800,00 com materiais.
Isto representará no longo prazo, no horizonte de vinte anos previsto no Plano, um
total de aproximadamente R$ 1.440 mil, que é apenas 10% do total a ser gasto com o
restauro em andamento . Evidentemente que alguns procedimentos de manutenção
exigirão maiores investimentos quando dos serviços previstos nas manutenções
quinquenais e decenais como as repinturas das fachadas externas, a substituição da
fiação da rede de energia elétrica, cujo horizonte de vida útil média é de dez anos, etc..
O cenário brasileiro para a gestão da conservação de edificações de valor cultural
deve ficar aberto às periódicas recomendações emanadas pelos organismos e reuniões
técnicas internacionais e nacionais. Os trabalhos que vêm sendo desenvolvidos pelo
CECI e outras instituições ajudam na ampliação desse conhecimento, pois também se
fundamentam em estudos realizados em teses de mestrado e doutorado por seus
associados, no âmbito da Academia, bem como na prática junto as entidades que
aceitaram essa nova maneira de pensar e agir sobre seus edifícios históricos.
223