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U ma ode ao ser humano

A lberto Guzik

P
araíso Perdido é o mais bonito dos espetá- a Divina Comédia, de Dante, Paraíso Perdido
culos em cartaz na cidade. E também o percorre os caminhos do inferno para chegar à
mais polêmico. Sua estréia na Igreja de San- possibilidade da redenção. Obra metafísica,
ta Ifigênia, apesar de autorizada pela Cúria onde a reflexão tem mais importância que a nar-
Metropolitana, causou protestos de fanáti- rativa, a obra de Milton foi a fonte do espetá-
cos. Mas, ao ver o espetáculo, constata-se que culo, mas na encenação esse eixo foi comple-
só a intransigência e a carolice seriam capazes tado por citações de Vicente Huidobro, J. L.
de investir contra o trabalho de Antônio Araú- Borges e T. S. Eliot.
jo e do Teatro da Vertigem. Paraíso Perdido é O roteiro de Paraíso Perdido, articulado por
uma ode ao ser humano e ao desejo de trans- Sérgio de Carvalho, é apaziguante e conciliató-
cendência, que está na raiz de todo sentimento rio. A dor e a revolta causadas pela expulsão do
religioso. Éden levam à descoberta de que a aceitação da
Longe de ser irreverente ou profano, Pa- queda traz em si o caminho da redenção. Em
raíso Perdido, adaptado do clássico poema que tese, o roteiro poderia ter ousado mais no tra-
John Milton escreveu no século XVII, é um tamento do tema, usando mais recursos ficcionais
exercício de delicadeza e sensibilidade. A colo- e menos narrativas didáticas. Diante da virulên-
cação da montagem numa igreja não é gratuita cia dos protestos levantados pelo espetáculo, po-
nem impensada. Falando de Deus, da alma, do rém, entende-se a prudência do dramaturgo.
sentimento de perda do Paraíso, de queda, era A montagem revela a força de Antônio
parte essencial do projeto sua encenação num Araújo, diretor jovem que demonstra domínio
templo. E a atitude esclarecida da Cúria e da incomum da carpintaria do espetáculo. O ence-
Paróquia de Santa Ifigênia possibilitou ao públi- nador concebeu uma montagem processional.
co o acesso a uma obra de evidentes qualidades. O público acompanha o Anjo Caído pela be-
O poema original de John Milton, que líssima Igreja de Santa Ifigênia, transfigurada
muitos críticos comparam a William Shakes- pela iluminação inspirada de Guilherme Bon-
peare pelo vigor lírico, investiga os sentimentos fanti. A viagem assim realizada coloca o públi-
do homem ante a perda da graça divina. Como co em contato com as várias faces da humanidade

Alberto Guzik é crítico de teatro do Jornal da Tarde e pesquisador.

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sala preta

desgraçada. E não há como ficar indiferente à píritas e ateus. O espetáculo é exatamente o que
beleza plástica do espetáculo, aos figurinos fan- seus realizadores afirmam: “uma oração à nossa
tásticos de Fábio Namatame, à poderosa trilha maneira pela dignidade do homem”. Querer
sonora de Laércio Rezende, à emoção do elen- proibir sua realização é uma atitude retrógrada,
co talentoso e apaixonado. obscurantista, que não pode ser tolerada. Feliz-
Paraíso Perdido pode ser visto sem susto mente, são poucos os que pensam assim.
por católicos, cristãos, muçulmanos, judeus, es- (Jornal da Tarde, 13/11/1992)

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