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Infelizmente hoje em dia está virando crime fazer análises de filmes, seriados e livros sem avisar antes

que podem conter spoilers. Devo ser um sujeito das antigas mesmo. Muito raramente leio essas análises
sem antes ter assistido ou lido as obras, e acho muito esquisito quem assim faça e depois reclame de
spoilers no texto. Se não quer ter a experiência de assistir ou ler estragada, por que cargas d’água o
sujeito decide ler uma análise sobre a obra antes? Suponho reclame também de trailers, sinopses, capas,
contracapas, orelhas etc.

Mas, deixando esses eleitores da Dilma & Temer de lado, acho também muito estranho quem fetichiza
spoilers, como se eles tivessem o poder mágico de estragar a graça de ler ou assistir a uma história. Não
têm, nunca terão. Salvo para quem trata a “primeira vez” como se fosse a única. Ler é reler, já dizia a
legenda alquímica. E raramente as leituras seguintes à primeira não são melhores e mais proveitosas.
Mesma coisa com filmes e seriados. O problema é que muitos assistem e leem narrativas de ficção como
se estivessem apenas sendo informados de algo, como se essas narrativas fossem noticiário. Nesse caso,
de fato, se você já sabe do que se trata e como termina a história, para que perder tempo lendo ou
assistindo?

Mas a trama, o enredo, é parte da obra, não seu todo. Por mais que alguém tenha lhe contado tudo que
acontecerá, ainda assim isso não substitui nem diminui a experiência de ler ou assistir. Seria o mesmo
que ler uma partitura inteira e achar que escutou a música. Por isso afirmo: quem tem horror a spoilers
só tem amor pela trama da obra, mais nada. O que significa dizer que é bem provável jamais tenha
vivido uma experiência estética de verdade, apenas ficou entretido pela história. Ou seja, sua
spoilerfobia é sintoma de incultura.

Boa parte da culpa disso é da indústria cultural que rebaixou quase tudo aos limites do entretenimento.
Como poucas coisas se profissionalizaram mais durante o século 20 do que as técnicas narrativas, é difícil
encontrar alguma história que não faça uso ou abuso de táticas para prender a atenção do leitor ou
espectador na trama, desconsiderando toda contemplação estética. Confira, por exemplo, os inúmeros
relatos de desavisados que vão assistir a um filme de Terrence Malick e saem no meio esbravejando por
não estarem entendendo nada. É compreensível a reclamação, mas injusta, pois Malick é dos poucos a
não se render a esses esquemas narrativos-chiclete, e a maior parte de suas histórias não é contada, mas
mostrada em cenas belíssimas.

Lembro de quando o seriado 24 Horas hipnotizou multidões. Não tinha nada de mais ali, salvo um abuso
dessas táticas de prender a atenção (e, no caso, a respiração também). Era impossível terminar um
episódio sem começar outro, precisávamos saber o que aconteceria em seguida. E quase sempre era
mais do mesmo e no episódio seguinte a receita era repetida e assim foi por várias temporadas. Só
consegui largar do vício quando aprendi a pausar os episódios na metade. Aí, no dia seguinte, assistia de
uma metade à outra e com o tempo perdi o interesse porque toda a graça estava na amarração da trama
de episódio a episódio.

Tática semelhante é utilizada em Game of Thrones, mas o seriado tem sido conduzido de forma a não
durar mais do que o suportável, além de entregar bem mais do que apenas uma trama bem amarrada.
Por exemplo, poucas narrativas conseguem se manter matando personagens principais como fizeram em
Game of Thrones, tornando essa técnica não apenas uma tática para prender o espectador, mas um dos
principais instrumentos a levar o espectador a contemplar a obra no que tem de melhor, ou seja, no que
transcende o tempo da história e aquele mundo. Game of Thrones, aliás, é daquelas narrativas que
pedem para ser revistas. Porque quando a obra é boa é impossível assistir uma vez só.

Enfim, quer saber se sua spoilerfobia é mais do que sintoma, mas diagnóstico de incultura? É simples.
Escolha qualquer narrativa de sua preferência e veja se consegue discernir o conteúdo da forma, se sabe
expressar as duas coisas em poucas palavras. Se não conseguir, tenho uma má e boa notícia para você. A
má é que sim, você é inculto. A boa é que não é nenhum bicho de sete cabeças consertar isso. O
primeiro remédio está, ora veja só, em retornar a essas mesmas narrativas, rever, reler, até discernir
essas coisas. Mais vale uma única obra que você aprendeu a experimentar por sua forma do que
trocentas engolidas como se fossem pingos d’ouro.

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