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Trabalho, Subsistência e Dinheiro Modos Criativos Na Economia Mbya PDF
Trabalho, Subsistência e Dinheiro Modos Criativos Na Economia Mbya PDF
Elizabeth Pissolato*
Universidade Federal de Juiz de Fora – Brasil
*
Contato: epissolato@terra.com.br.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 22, n. 45, p. 105-125, jan./jun. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832016000100005
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O termo Mbya designa um dos três subgrupos guarani que vivem atualmente no Brasil, em todos os
estados das regiões Sul e Sudeste do país com a exceção de Minas Gerais, havendo ainda uma parcela da
população no Pará e em Tocantins. Seu maior contingente encontra-se no leste do Paraguai, mas os Mbya
estão presentes também nas regiões de fronteira do Brasil com a Argentina e o Uruguai. Na Enciclopédia
dos Povos Indígenas no Brasil há uma projeção de que a população mbya total estaria atualmente próxi-
ma de 27.000 pessoas. No Brasil, conforme dados de 2008, seriam os menos numerosos em comparação
com os Guarani Kaiowá (31.000) e Ñandeva (13.000), nesse período somando cerca de 7000 pessoas
(Ladeira, 2003).
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Os donos ou mestres de espécies animais, em guarani designados pelo termo -ja , frequentemente tradu-
zido como “dono espiritual”, mantêm relação de proteção e controle sobre os indivíduos da espécie em
questão. No contexto da caça, é um consenso a ideia de que é preciso ter o consentimento do dono para
a captura de presas.
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externas (jurua) e controla, por sua vez, a recepção e destino dos recursos,
espera-se de quem ocupa tal função a capacidade de distribuir com generosi-
dade tais recursos.
As casas de alguns caciques ou as despensas anexas à sua cozinha ou
às chamadas “cozinhas comunitárias” presentes em várias aldeias atualmente
costumam concentrar estoques de alimentos ou outros itens que são objeto
de desejo e, quando possível, de demanda por parte de moradores da aldeia.
A propósito, o comentário a respeito de modos não generosos de caciques que
“não ajudam”, retendo alimentos ou outros itens para seus parentes próximos,
aparece muito frequentemente como motivação para o abandono de aldeias.
Nos itens seguintes, pretendo desenvolver alguns pontos a propósito de
implicações político-econômicas deste modelo de reciprocidade, se assim po-
demos chamá-lo, para uma aproximação da multiplicidade de práticas presen-
tes no contexto atual das aldeias mbya.
Reciprocidade e trabalho
Em sua análise sobre a apropriação, a circulação e o uso do dinheiro
entre os Cinta-Larga, João Dal Poz (2010) demonstra como o “endinheira-
mento” que teve lugar nas últimas décadas em torno da exploração de madeira
e diamante em terras cinta-larga não levou a rupturas importantes, muito ao
contrário, acompanhou os princípios que estão na base de um sistema que an-
tecede a presença dessas atividades e do dinheiro aí, fundado na reciprocidade
assimétrica.
Partindo da crítica à equação entre reciprocidade e simetria, e com base
numa análise da chefia amazônica (como, por exemplo, em Clastres, 1978),
o autor propõe que a relação entre um chefe cinta-larga e os moradores de
uma aldeia, ou a relação entre o zapivaj, “dono de casa”, e seus seguidores
funda-se na reciprocidade assimétrica entre alguém que fornece casa (local)
e alimentos (ou festas) de forma generosa, de um lado, e os que “trabalham”
para o primeiro, de outro.
Dal Poz (2010) nos mostra, por um lado, como essas funções ordenam,
na mitologia cinta-larga, a relação entre o demiurgo Gora e seu ajudante Kot,
fundando o modelo de vida aldeã; e, por outro lado, como tal modelo continua
vigente no contexto das atuais mediações e obrigações dos chefes cinta-larga
junto aos diversos agentes econômicos externos.
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Nhanderu, literalmente “nosso” (nhande) “pai” (-ru), é o termo que designa a divindade criadora da
humanidade mbya e fonte das capacidades vitais e do conhecimento xamânico responsáveis pela per-
manência das pessoas mbya na terra. O termo costuma ser usado na referência genérica ao conjunto de
“pais” divinos que habitam diferentes posições ou direções no “alto” (yva), fazendo par com Nhandexy
(“nossa mãe”). Os “ajudantes”, “soldados” ou “servos” de Nhanderu se fazem presentes em relatos sobre
os trabalhos dos deuses, seus feitos quando da criação da Terra, e em imagens sobre a hierarquia celeste.
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O termo xondáro, corruptela de “soldado”, é usado tanto nesse contexto, referindo-se aos rapazes que
comporiam a “polícia” de um cacique ou líder de uma parentela, como também no do ritual, onde define
o participante de danças de um estilo ao qual se aplica o mesmo termo. Num ou noutro caso estão impli-
cadas habilidades como destreza e coragem.
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que afirma como aspectos fundamentais do “viver bem” entre parentes a capa-
cidade de “contar” e a recíproca do “falar-aconselhar”.
Levando seu “pessoal” consigo, líderes fundam locais, organizam ativi-
dades, definem posições, estabelecem maneiras de “trabalhar com a Funai”
e de manter outras relações com brancos no âmbito da aldeia. O estatuto de
Terra Indígena, a presença mais ou menos efetiva da Funai e de outras organi-
zações governamentais ou não governamentais implicam, por sua vez, articu-
lações com padrões externos de organização do trabalho e de ganho.
O que me parece muito interessante no mapa da multiplicidade atual das
aldeias mbya é a distância que as dimensões do “acompanhar” e o “trabalhar
para” alguém teriam assumido. De um lado, nos situamos aqui no interior de
uma questão central à Amazônia, aquela da dinâmica entre obediência e au-
tonomia, que, entre os Mbya, se expressa de um modo especial no campo do
xamanismo (ver a seguir). De outro lado, essa distância nos permite discutir
processos contemporâneos que articulam formas individuais de captação de
recursos e a presença do dinheiro com padrões amazônicos de reciprocidade.
Esses pontos serão desenvolvidos a seguir, partindo de uma observação que
me parece ter caráter bastante geral para aldeias mbya atualmente.
Acompanhar um homem ou casal mais velho que encabeça um grupo
de parentes é uma prática que orienta a trajetória de muitas pessoas ou casais
mais jovens com vínculos consanguíneos e de afinidade com os primeiros.
Isso implica morar junto deles e muitas vezes, também, segui-los em seus
deslocamentos. Ou, como alguns dizem, segue-se a “orientação” desse líder.
Essa pode ser política e/ou xamânica – “espiritual”, para usar uma tradução
mbya. Assim, no primeiro caso, por exemplo, em um contexto de separação
de outra parentela ocupando uma área conjunta, acompanha-se um grupo que
se autonomiza e vai embora dali. No segundo caso, “escutam-se” os conselhos
do líder a partir de suas impressões obtidas em sonhos ou na reza; tomam-se
tais conselhos para os próprios deslocamentos, coloca-se a própria saúde e a
dos filhos sob a proteção desse líder, etc.
“Trabalhar para o cacique”, por sua vez, tem implicações que a figura do
castigo parece sugerir. Tais castigos em trabalho são, por exemplo, a capina
de uma área, a limpeza de caminhos na aldeia, ou ainda, como já teria obser-
vado Schaden (1962, p. 104-105), o trabalho em sua roça. Essas tarefas, bem
como algumas participações em projetos ditos “comunitários”, como roças
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propostas enquanto tal, costumam ter um alto índice de rejeição por parte dos
moradores de uma aldeia, mesmo entre parentes próximos do cacique.
Se em tempos passados o “puxirão” correspondia ao padrão de trabalho
entre grupos guarani tanto no contexto da atividade agrícola quanto noutras
atividades, como a construção de casas (Schaden, 1962, p. 57-61), e se po-
demos associá-lo ao modelo amazônico da reciprocidade assimétrica em que
os moradores de um local trabalham para um chefe que faz festa/oferece ali-
mentos com fartura, atualmente o trabalho – em particular o trabalho em roças
– parece ter se deslocado desse lugar, ainda que o modelo de reciprocidade
assimétrica continue orientando, em boa medida, as relações com chefes de
aldeias/chefes de grupos de parentesco.
Comentando sobre um projeto de “roça comunitária” proposto em 2001
pela Emater para a aldeia de Parati Mirim, Sérgio, professor na aldeia naquele
período, observou o seguinte sobre a noção de “comunitário”. Afirmando que
ele, tal como os demais homens casados do local, trabalhavam para o sustento
da própria família (nuclear), disse-me que a noção só caberia à reza, única
atividade que se poderia dizer “comunitária” no seu entender. A mesma roça
era mais tarde objeto de crítica por outros moradores que reclamavam da falta
de liberdade para colher ali, estando os produtos sob o controle do cacique e
sua esposa.
Minha hipótese, seguindo a sugestão de Sérgio, é que fora da generosida-
de estendida da palavra (que dá direção/aconselha/reza/sopra para curar), a re-
ciprocidade entre líder local e moradores implica hoje, mesmo que assumindo
feições mais centralizadas, um grau de liberdade de escolha e de mobilidade.
Nem o chefe é mais o doador de alimentos de sua roça, sendo antes e
principalmente um mediador dos recursos que vêm de fora da aldeia, os quais,
inclusive, permitem, em certas ocasiões, a promoção de festas. Nem também,
por sua vez, aqueles que “seguem” o chefe estariam dispostos a “trabalhar
para” ele. Noutras palavras, a generosidade do cacique na partilha de recursos
em grande parte tomados – ou que se “pega” – dos brancos não implica a con-
trapartida em trabalho com esforço físico concentrado, forma que hoje parece
associada a uma noção negativa de submissão à chefia.
Considerando o universo multilocal em que se estende o socius mbya,
“ficar” é já uma forma de apoiar um líder local, um cacique. Trazer gente para
habitar sua aldeia é um empenho e um atestado de prestígio para caciques
capazes de fazê-lo.
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Reciprocidade e movimento
Os comentários anteriores nos levam a uma primeira proposição. Como
teria observado Dal Poz para os Cinta-Larga no texto acima referido, não cabe
distinguir uma “economia de prestígio” de uma “economia de subsistência”.
A propósito reconhece o autor para o caso estudado “um único padrão ético
ajuizado por uma mesma sentença moral que tanto desaprova a mesquinhez
com relação às coisas quanto o ciúme excessivo entre as pessoas” (Dal Poz,
2010, p. 14-15).
O mesmo podemos dizer para o caso mbya, onde a economia de prestígio
conecta tanto a generosidade na distribuição de recursos materiais quanto de
orientação e/ou cura “xamânica” (em sentido amplo), através do aconselha-
mento, da oratória, do ritual. Também na matéria do “ciúme”, akate’ÿ, termo
que se aplica tanto a coisas quanto a pessoas, a ética define como negativa sua
presença excessiva. Assim, por exemplo, ao aconselhar que não se “mesqui-
nhe” com filhos e filhas (Cadogan, 1959, p. 117-118).
Na prática, a circulação de pessoas entre aldeias diversas, o envolvimen-
to em casamentos que levam homens e mulheres a deixarem muitas vezes
de viver com seus filhos e filhas de uma união anterior, a saída sem aviso de
parentes, tudo isso exige um exercício importante de controle do ciúme.
O tema do deslocamento parece assumir um lugar crucial aqui. Não ape-
nas famílias ou grupos mais estendidos de parentesco podem se autonomizar
em relação a um local e ao líder que antes “seguiam”. Também o fazem ra-
pazes e moças – às vezes bem jovens –, ou homens e mulheres adultos, em
visitas a parentes ou em “passeios” que fazem a outras áreas mbya, quando é
o caso de encontrarem aí condições de permanência e estímulos para deixarem
o local de onde partiram.
Entre os Mbya, colocar-se sob a proteção de um parente mais velho ou
autonomizar-se de um líder – que é, antes de tudo e justamente um líder do
grupo de parentesco a que se está ligado, parece constituir a dinâmica por ex-
celência da socialidade. Proteção e seu correlato, a obediência, em um polo;
autonomia e capacidade de achar a “própria orientação”, no outro.
Tal dinâmica teria sido já observada no campo do xamanismo e do ri-
tual por autores como Nimuendaju (1987, p. 77; 84-85) e Schaden (1962,
p. 122), ao apontarem as feições individual e coletiva do canto-reza guarani.
É comum que as pessoas mbya se ponham sob a proteção de um opita’i va’e,
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juntando-se à sua opy, à sua reza, mas não deixem, por outro lado, de buscar
(individualmente) o que possam receber (diretamente) das divindades como
canto e/ou “inspiração” próprios.
Minha sugestão neste texto é que uma tal dinâmica entre proteção-obedi-
ência e autonomização, que opera sempre com uma abertura, como podemos
ver no xamanismo, orienta a reciprocidade de modo geral, isto é, quando fala-
mos de economia (política, ritual e de subsistência).
Voltando ao mapa das aldeias e à multiplicidade de formas diversas assu-
midas na atividade da subsistência e na política local, parece-me possível dizer
que aqueles mesmos polos da proteção e autonomização organizam as práticas
e orientam escolhas diferenciadas por pessoas, casais ou famílias corresidentes.
Por um lado, viver em um dado local implica colocar-se sob o “olhar”
de quem assume ali uma posição de líder político (talvez também xamânico).
Manter-se nesse local, como sugeri anteriormente, confere prestígio ao líder e
implica expectativas quanto à sua generosidade. Envolve, também, potencial-
mente, algum apoio político frente a outras lideranças que venham a se cons-
tituir (por exemplo, quando um grupo de parentesco vivendo na mesma área
começa a assumir posições contrárias às daquele primeiro líder), e também
alguma adesão ou colaboração no tratamento e solução de questões internas
ou na relação com instâncias externas as mais diversas.
Por outro lado, viver nesse local é sempre uma alternativa entre outras,
isto é, uma experiência que estaria sempre sob o teste das emoções ligadas ao
que se concebe como “ficar bem” (-iko porã) ou “ficar alegre/sentir satisfação”
(-vy’a). Ou ainda, uma experiência que não impeça o grau de autonomia que
se deseja e se tem condições de assumir. Isso vale para a experiência pessoal,
mas também de grupos de parentesco que alcançam, a certa altura de seu de-
senvolvimento, condições, por exemplo, de fundar eles próprios “sua aldeia”.
No polo da “obediência” podemos situar as “leis” dos caciques ou dos
parentes mais velhos e a presença dos xondáro que buscam fazê-la valer. No
polo da “autonomia”, a capacidade de escolha sobre as próprias formas de
trabalho e sustento, e, no limite, a liberdade de ficar e ir embora ou fugir.
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O lugar do dinheiro
Como já foi dito, poucos são os homens e mulheres mbya que gostam
de se dedicar ao trabalho das roças atualmente. Mas muitos valorizam o que
chamam de “trabalhar na aldeia”: assumir postos como o de professor ou pro-
fessora, “merendeira”, motorista ou outras funções ligadas ao atendimento em
saúde e ao saneamento que geram salários. Essa maneira de “pegar dinheiro”
(-jopy perata) sem obrigar-se a uma relação de submissão a um patrão jurua
parece das mais interessantes atualmente, bem como a obtenção de dinheiro
através de benefícios governamentais como as aposentadorias e os recursos
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Observo que há uma distância a considerar entre a “comida de jurua”, por exemplo, vendida em marmi-
tex e consumida nas cidades em dias de exposição e venda de artesanato nas ruas, e a comida preparada
nas aldeias a partir de mantimentos trazidos dos mercados das cidades. Veja-se, a esse respeito, a noção
de “guaranização de alimentos regionais” proposta por Nadia Silveira (2011).
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relações travadas com brancos nas cidades longe de qualquer controle. Assim
também nas ocasiões diversas em que se pega dinheiro nos bancos.
Além disso, as práticas contemporâneas otimizariam, a meu ver, as possi-
bilidades de alteração de residência e de participação em contextos relacionais
diversos que o sistema multilocal mbya compreende. As “novas” maneiras de
pegar dinheiro e produtos dos mercados das cidades permitiriam não apenas
escapar, em certa medida, do controle e obrigação ao trabalho para um líder de
parentesco e das tensões possivelmente vividas no cotidiano de uma aldeia, da
qual e possível sair em “passeios” à cidade, mas também permitiriam a adoção
dessas mesmas maneiras de pegar dinheiro e produtos em novos contextos
residenciais.
Sistema aberto
Para concluir, tomo o comentário de Sahlins (1972) a propósito daquelas
que seriam as “primeiras sociedades da afluência”, sociedades de caçadores-
-coletores que, longe de submetidas pela escassez, viveriam conforme um
regime marcado pela prodigalidade (nas festas) e o valor da liberdade de mo-
vimento. O autor observa um sentido de aposta quanto à disponibilidade de
recursos de coleta e caça, e a valorização da capacidade de mobilidade que
contrastaria com outros valores que poderíamos supor, como a imprevisibili-
dade, a acumulação ou reserva.
Schaden (1962, p. 56), a despeito de entrever a “desintegração” de um
modelo tradicional guarani de reciprocidade a partir da “individualização eco-
nômica” que se processava, no seu entender, nas décadas de 1940 e 1950, obser-
vava, quanto ao uso do dinheiro: “O dinheiro existe para ser gasto; não se trata
de economizá-lo e à sua poupança não corresponde função na cultura Guarani.”
Convivendo, no início deste século XXI, nas aldeias guarani mbya, po-
demos dizer que o dinheiro continua sendo “para se gastar”. A propósito, só
vi a disposição de “juntar dinheiro” entre as pessoas de meu convívio quando
precisávamos comprar passagens interurbanas para a visita a parentes noutras
aldeias.
O modelo dos salários e da obtenção “individualizada” de dinheiro atra-
vés de benefícios ou pela venda de artesanato não se reverteu em desejo de
acumular. Muito pelo contrário, quem faz sumir dos olhos de outrem seus
próprios recursos continua sujeito à crítica por sua sovinice ou “ciúme”.
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Referências
CADOGAN, L. Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá.
São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, 1959.
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