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LAUDO ANTROPOLÓGICO

OS ENAWENE-NAWE E A ESTRADA SAPEZAL-JUINA

Perito: JOÃO DAL POZ NETO, Dr.

Processo no. 1998.36.00.005807-4


Classe 07100 – Ação civil pública
Rqte.: Ministério Público Federal e outros
Reqdo.: Espólio de Camilo Carlos Obici
1ª Vara da Justiça Federal - Seção do Estado de Mato Grosso

Juiz de Fora, MG

agosto de 2006
Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
1ª Vara da Justiça Federal - Mato Grosso

ÍNDICE

INTRODUÇÃO ................................................................................ 3

A SOCIEDADE ENAWENE-NAWE: HISTÓRIA E CULTURA ................. 15

OS IMPACTOS DA CONSTRUÇÃO DA ESTRADA.............................. 42

AS MEDIDAS MITIGADORAS ......................................................... 67

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA........................................................ 72

ANEXOS ...................................................................................... 79

FOTOGRAFIAS........................................................................ 80

MAPAS................................................................................. 89

TABELA
Tabela 1: O ciclo das estações enawene-nawe ............................................... 30
Tabela 2: Série histórica da população enawene-nawe ................................... 35
Tabela 3: Mudanças culturais 1974–1997 ........................................................ 43

FIGURA
Figura 1: Povos indígenas no noroeste de Mato Grosso .................................. 16
Figura 2: A aldeia enawene-nawe.................................................................... 25
Figura 3: Interior de uma casa enawene-nawe ............................................... 26
Figura 4: Proposta de limites da MIA, 1986 ...................................................... 48
Figura 5: A delimitação da FUNAI, 1991............................................................ 49

GRÁFICO
Gráfico 1: Crescimento demográfico dos Enawene-Nawe ................................ 36

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INTRODUÇÃO

Este laudo traz os resultados da perícia antropológica realizada no


cumprimento do mandado expedido na Ação Civil Pública – Processo no
1998.36.00.005807-4, da 1ª Vara da Justiça Federal de Primeiro Grau em
Mato Grosso (ao qual está apenso o Processo no 89.0000058-6), requerida
por MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E OUTRO contra ESPÓLIO DE CAMILO
CARLOS OBICI, na qual os autores requerem, além de medida liminar para a
paralisação das obras da estrada em construção na área indígena Enawene-
Nawe (no sentido Sapezal-Juina), o reflorestamento da extensão desmatada
e a indenização por danos ambientais e danos morais, que teriam sido
ocasionados “com a prática de aliciamento do povo Enawenê-Nawê, na
medida em que contribuiu para a perturbação de seu modus vivendi e afronta,
por essa via, o patrimônio cultural brasileiro” (conforme a petição inicial, fls.
21 dos autos).

Foram formulados à perícia antropológica quinze quesitos pela FUNAI,


às fls. 139-140, e dois pela União Federal, às fls. 144. A audiência para
instalação dos trabalhos periciais aconteceu no dia para 29 de março de
2006, às 14:00 horas; na ocasião, os assistentes técnicos designados pelas
partes não compareceram à Secretaria da 1ª Vara, em Cuiabá. O prazo
estipulado para realização dos trabalhos foi de 60 dias, ao qual o perito
solicitou prorrogação.

A vistoria in loco efetuou-se entre 30 de março e 12 de abril de 2006,


período que foi despendido no deslocamento à cidade de Brasnorte, na visita à
área indígena Enawene-Nawe, em entrevistas e no levantamento documental
em Cuiabá. Na área indígena, convoquei duas reuniões para a coleta de
depoimentos dos Enawene-Nawe presentes, uma no acampamento de pesca
no rio Preto (Adowina), um afluente da margem esquerda do rio Juruena, no
dia 4 de abril, e outra na aldeia Matokodakwa, situada na margem esquerda
do rio Iquê, no dia 7, para as quais Pedro Henrique Passos e Jair Aparecido de
Sá, respectivamente, encarregaram-se da tradução. No trajeto para a aldeia,
foi possível observar e fotografar os vestígios remanescentes da estrada ora
sub judice, na margem direita do rio Juruena. Ali, então anotei os comentários

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adiantados por Menakaloseene Ainiharekase, que me acompanhava na visita à


aldeia. As coordenadas geográficas foram obtidas através de um aparelho
GPS, modelo Garmin 12. Para a realização dos trabalhos de campo, agradeço
o apoio ali prestado por diversas pessoas, dentre as quais Pedro Passos e
Edison Rodrigues, da equipe local da OPAN – Operação Amazônia Nativa,
Cleacir Alencar Sá, Sandra Helena Maia e Jair Aparecido de Sá, da equipe de
Saúde OPAN/FUNASA e Laloalohiene e Menakaloseene Enawene-Nawe, que
serviram de pilotos.

Além das informações assim obtidas, procedi a quatro entrevistas com


pessoas que, de alguma maneira, acompanharam os desdobramentos na vida
social da comunidade indígena dos acontecimentos que motivaram a presente
Ação. Em Brasnorte, no dia 3 de abril, entrevistei Pedro Henrique Passos,
mestre em Antropologia (PUC/SP) e indigenista da equipe da OPAN junto aos
Enawene-Nawe. Em Cuiabá, no dia 9, Andrea Jakubaszko, mestre em
Antropologia (PUC/SP) e ex-indigenista da equipe local da OPAN; e no dia 10,
Kátia Silene Zorthêa, pedagoga, mestranda em Educação Pública (UFMT), ex-
indigenista da equipe local e atual coordenadora técnica da OPAN; e Gilton
Mendes dos Santos, agrônomo e antropólogo, doutorando em Antropologia
(USP) e ex-membro da equipe de pesquisa do GERA/UFMT.

Os documentos compulsados (ver Bibliografia) provêm, em sua maior


parte, dos arquivos da OPAN e de fotocópias gentilmente cedidas pelo s
antropólogos Marcio Ferreira da Silva (Departamento de Antropologia/USP) e
Gilton Mendes dos Santos (GERA/UFMT), além do meu acervo pessoal, que
inclui recortes de jornal e relatórios diversos. Da mesma maneira, Andrea
Jakubaszko e Pedro Passos providenciaram o acesso às respectivas
dissertações de mestrado.

No que tange à bibliografia sobre a sociedade Enawene-Nawe, esta se


enriqueceu sobremaneira nos últimos anos, com vários estudos etnológicos e
ambientais relevantes. Um histórico do contato, Os Enauenê-Nauê: primeiros
contatos, foi escrito por Thomaz de Aquino Lisbôa (1985), um dos
participantes. Acerca deste período, contamos ainda com os Diários
manuscritos do irmão jesuíta Vicente Cañas, que cobrem o período de 1980

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até abril de 1987, ano de seu assassinato na própria área indígena,


possivelmente por grileiros de terra. Apenas na década seguinte
empreenderam-se estudos técnicos mais abrangentes, por meio de um
projeto pioneiro financiado pelo Fundo Nacional de Meio Ambiente, do
Ministério de Meio Ambiente, quando uma equipe de pesquisadores, formada
por um antropólogo, um agrônomo e um biólogo, incumbiu-se da descrição
do ciclo anual de atividades dos Enawene-Nawe. Os relatórios com os
resultados alcançados pelo projeto foram reunidos na coletânea Estudo das
potencialidades e do manejo dos recursos naturais na Área Indígena
Enawene-Nawe (Silva, Marcio Ferreira da et alii, 1995).

A partir daí, seguiram-se vários artigos e comunicações do antropólogo


Marcio Ferreira da Silva, do Departamento de Antropolo gia da USP, que
examinaram a estrutura social, o sistema de parentesco e as relações de
gênero entre os Enawene-Nawe, bem como suas articulações com a esfera
cerimonial e os ciclos de produção e consumo (Silva, 1996a; 1996b; 1997;
1998a; 1998b; 2001; 2005). Por sua vez, a dissertação de mestrado de
Gilton Mendes dos Santos (2001), apresentada à UNICAMP, tratou dos
modos de subsistência, envolvendo tanto aspectos técnicos como simbólicos
das práticas de coleta, de pesca e de agricultura. Em sua tese de doutorado,
que o autor defendeu na USP em 2006, ele voltou aos mesmos temas, agora
sob a perspectiva mais geral das relações entre as concepções cosmológicas
e os processos ecológicos em questão.

Já a dissertação de mestrado de Andrea Jakubaszko (2003), que


enfocou a experiência histórica dos Enawene-Nawe, destacou ali os principais
elementos e aspectos que mobilizam o discurso indígena, em particular as
suas representações sobre a exterioridade. Registram-se neste estudo
narrativas minuciosas e demais informações históricas complementares,
inclusive no que tange à construção da estrada Sapezal-Juina, que devem
servir de referência para os fins desta perícia.

Por último, cabe citar a tese de doutorado de Maria Clara Weiss (1998),
defendida na Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz, na
qual propõe um modelo de atenção primária de saúde para as populações

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indígenas com base no estudo do caso Enawene-Nawe, e a dissertação de


mestrado de Pedro Henrique Passos (2005), na PUC/São Paulo, na qual
reflete sobre as ações indigenistas ali desenvolvidas pela OPAN – Operação
Amazônia Nativa.

Face aos quesitos formulados pelas partes ao perito antropológico e


aos assistentes técnicos, ficaram estabelecidos os seguintes objetivos para os
trabalhos periciais:

- levantamento das fontes históricas, documentais e etnológicas


relativas aos Enawene-Nawe, para assinalar os marcos temporais da
ocupação indígena da área em litígio e suas redondezas; descrição do modo
de vida indígena e seus meios de subsistência;

- avaliação da extensão e das formas de ocupação territorial atual e


remota pelos Enawene-Nawe e por empreendimentos econômicos na região
em foco, situando seus marcos históricos, culturais, geográficos e ambientais;

- exame do processo administrativo de identificação e delimitação da


Área Indígena Enawene-Nawe pelo Poder Executivo Federal, analisando sua
adequação à ocupação indígena;

- histórico do processo de contato dos Enawene-Nawe com os diversos


segmentos da sociedade nacional; e

- inventário dos fatos relativos à construção da estrada citada e suas


conseqüências para o modo de vida indígena, bem como uma estimativa das
ações para a reparação dos danos sociais e culturais.

Para facilitar a leitura, procurei reunir os quesitos e as informações mais


relevantes em três tópicos: o primeiro sobre a sociedade Enawene-Nawe; o
segundo sobre os efeitos do processo de construção da estrada e sua
posterior paralisação; o terceiro, as possíveis medidas mitigadoras dos danos
causados. O mapa em anexo foi elaborado, para fins desta perícia, a partir
dos dados colhidos nas fontes documentais que a subsidiaram e no transcurso
dos trabalhos de campo.

Por último, ainda nesta introdução, resta assinalar as definições legais


que dizem respeito aos direitos e ao patrimônio cultural dos povos indígenas

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no Brasil, bem como a interpretação a ser dada ao conceito antropológico de


cultura, a que necessariamente recorrem. Isto porque, naturalmente, são
esses conceitos e definições que fundamentam os procedimentos técnicos
adotados nesta perícia, para fins de verificar os efeitos e danos culturais
resultantes da tentativa de construção da estrada Sapezal-Juina.

Acerca desta questão, o Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 19 de


dezembro de 1973), no artigo 2, determina que se respeite “a coesão das
comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes”
e, no artigo 47, da mesma maneira, “o patrimônio cultural das comunidades
indígenas, seus valores artísticos e meios de expressão”. Ao mesmo tempo,
imputou como crime “contra os índios e a cultura indígena”, sujeito à pena de
detenção, “escarnecer de cerimônia, rito, uso, costume ou tradição culturais
indígenas, vilipendiá-los ou perturbar, de qualquer modo, a sua prática”.

Promulgada em 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil


renovou os marcos legais adotados no tocante aos direitos culturais dos
povos indígenas, tal como se observa:

- no artigo 210, que assegurou no ensino fundamental o “respeito aos


valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” e, no caso das
comunidades indígenas, “a utilização de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem”;

- no artigo 215, que garantiu a todos “o pleno exercício dos direitos


culturais e acesso às fontes da cultura nacional” e o apoio e incentivo à
“valorização e a difusão das manifestações culturais”; e em seu parágrafo 1 o ,
a proteção às “manifestações das culturas populares, indígenas e
afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional”;

- no artigo 216, que arrolou como patrimônio cultural brasileiro “os


bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, que incluem “as formas
de expressão”, “os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas,
artísticas e tecnológicas”, “as obras, objetos, documentos, edificações e

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demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais”, e “os


conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”; e, nos parágrafos 3 e 4,
que previu normas legais para estabelecer os “incentivos para a produção e o
conhecimento de bens e valores culturais” e determinar a punição aos que
causarem “danos e ameaças ao patrimônio cultural”; e

- no artigo 231, que reconheceu aos índios “sua organização social,


costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

A Constituição de 1988 expressou, sobretudo, uma melhor


compreensão dos legisladores sobre a importância da questão cultural para a
vida nacional, tomando-a no seu sentido mais abrangente, que abarca
também a noção de identidade e a valorização das manifestações de minorias
e grupos étnicos. No âmbito da legislação penal, em conseqüência, para
alguns de seus comentaristas, tal preocupação deveria ensejar a tipificação
correlata do crime de “etnocídio” (Alencar & Benatti, 1993). Na literatura
antropológica, entende-se como etnocídio “a imposição forçada de um
processo de aculturação a uma cultura por outra mais poderosa, quando esta
conduz à destruição dos valores sociais e morais tradicionais da sociedade
dominada, à sua desintegração e, depois, ao seu desaparecimento” (Panoff &
Perrin, 1979: 67). Nos termos do aparato criminológico, tal como propõem
Alencar e Benatti (1993: 21), o etnocídio seria o “crime, culposo ou doloso,
consistente na destruição parcial ou total da identidade étnica e cultural que
dão a cada grupo étnico ou etnia o seu caráter próprio”.

Ora, de um ponto de vista mais geral, parece-me que o conceito de


etnocídio assim definido alcançaria a toda gama de situações e
acontecimentos recorrentes na história do Brasil e no processo de formação
da sociedade brasileira, nos quais se conjugavam as mais diversas formas de
violência – massacres, escravidão, maltratos, disseminação intencional de
doenças, preconceitos culturais e intolerância religiosa -, que resultaram na
submissão e no aniquilamento de inúmeros povos indígenas. Exemplos

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recentes deste quadro trágico, nas décadas de 1960 e 1970, foram


apontados pelo antropólogo Shelton Davis em seu livro Vítimas do milagre –
neste caso, “as doenças, a morte e o sofrimento humano, que se
desencadearam maciçamente sobre os índios brasileiros”, foram o resultado
direto da política de desenvolvimento econômico dos governos militares, uma
decorrência estrutural do chamado “milagre econômico” do Brasil de então
(Davis, 1978: 15). Em particular, na região amazônica as políticas oficiais e os
subsídios fiscais e outros viabilizaram a expropriação sistemática dos recursos
naturais das terras indígenas por grandes empresas privadas, estatais e
multinacionais:

“Gigantescos projetos rodoviários, de mineração e de pecuária foram planejados


para atravessar territórios dos índios na Amazônia brasileira, e em seu rastro
trouxeram doenças, morte e destruição cultural para as tribos indígenas” (p. 12).

A trama das relações entre índios e demais segmentos da sociedade


nacional, na opinião do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, deveria ser
analisada a partir de um prisma decisivamente sociológico (Cardoso de
Oliveira, 1962; 1963; 1972 [1964]), a partir do que chamou de “situações de
fricção engendradas pelo contato interétnico”:

“Chamamos ‘fricção interétnica’ o contato entre grupos tribais e segmentos da


sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos competitivos e, no mais
das vezes, conflituais, assumindo esse contato muitas vezes proporções ‘totais’,
i.e., envolvendo toda a conduta tribal e não-tribal que passa a ser moldada pela
situação de fricção interétnica. Entretanto, essa ‘situação’ pode apresentar as
mais variadas configurações (...). Desse modo, de conformidade com a natureza
sócio-econômica das frentes de expansão da sociedade brasileira, as situações
de fricção apresentarão aspectos específicos” (Cardoso de Oliveira, 1962: 86).

A noção de “fricção interétnica” traduziria, para este autor, as relações


de produção e de exploração econômicas impostas pelas “frentes de
expansão” (extrativa, agrícola, pastoril), cuja singularidade introduz -se ao
sabor de fatores tanto históricos como estruturais (p. 87). A ênfase
metodológica, destarte, está sobretudo na situação de contato, a ser
percebida como uma “totalidade sincrética”: “duas populações dialeticamente
‘unificadas’ através de interesses diametralmente opostos, ainda que
interdependentes, por paradoxal que pareça” (p. 85-86).

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Caracterizada assim pela existência de interesses conflitivos entre as


partes, a situação de contato pode de ser apreendida nos seus distintos níveis
de operação: econômico, ou o “grau de dependência” entre índios e regionais;
social, a capacidade de organização e orientação para fins definidos; e político,
os meios escolhidos (o poder, a autoridade) pelas partes do “sistema de
dominação” em questão. As relações de dependência mútua, num dado
momento do contato entre as etnias envolvidas, segundo a hipótese do
autor, cristalizar-se-iam então de maneira irreversível, em particular no plano
econômico. Os índios precisariam, ora em diante, de mercadorias
industrializadas; os regionais, da mão-de-obra e das terras indígenas.
Interesses diametralmente opostos que os unem e assim dinamizam relações
antagônicas, cuja resultante tomaria a forma do que Cardoso de Oliveira
designou de “sistema interétnico”. No seio deste, para a satisfação de suas
novas necessidades, o grupo indígena “fica acorrentado à sociedade
tecnicamente mais poderosa”; ao passo que esta, em vista de sua
reprodução em nível local, necessita dos territórios indígenas onde investiu
seus recursos (Cardoso de Oliveira, 1974: 135).

O objetivo principal do estudo das áreas de fricção interétnica, nesses


termos, seria a construção de modelos que facultassem um certo grau de
previsibilidade às situações de contato entre índios e frentes de expansão.
Para isso, Cardoso de Oliveira serve-se da noção de “potencial de
integração”:

“Sendo o sistema interétnico a ‘unidade’ substantiva de conhecimento, nada


mais natural do que considerar a integração social em termos dos elementos que
o compõem. E como os elementos mais dinâmicos e mais impositivos do sistema
tendem a ser os que fazem parte do subsistema mais poderoso (ex.: sociedade
brasileira), pode-se dizer que o processo em questão significa integração do
índio na sociedade nacional” (Cardoso de Oliveira, 1967: 45).

A despeito de o autor propugnar seu afastamento analítico da


orientação aculturativa que dominava a antropologia brasileira de então, nota-
se na teoria da fricção interétnica um arraigado, mas nem sempre explícito
vetor teleológico: um destino inevitável que subtrairia as sociedades indígenas
do seu “isolamento” e condicionaria sua acomodação a uma identidade

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genérica e generalizante, índios (cf. Ribeiro, 1970). Assim, por exemplo, diz a
certa altura Cardoso de Oliveira:

“Contudo, pode-se dizer, preliminarmente, que o destino das sociedades


indígenas, enquanto sociedades, é o de sua descaracterização progressiva, na
medida em que vão sendo integradas às economias regionais” (Cardoso de
Oliveira, 1962: 87; grifos meus).

E mais conclusivamente, adiante:

“Em última análise, são os membros dessas sociedades [indígenas] que se


acomodam num sistema social que os aliena” (Cardoso de Oliveira, 1963: 43).

É bom que se diga, todavia, que nenhuma sociedade humana se afigura


uma instância autocontida, estanque ou imune ao que sucede no seu entorno.
Isto porque, como observou a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha
(1985) ao comentar as definições de índios e comunidades indígenas nos
textos legais, a cultura, no seu sentido antropológico, é “algo continuamente
recriado em todas as sociedades”, e portanto não se acharia na cultura de
qualquer sociedade “uma fidelidade objetiva a padrões ancestrais”. A língua, os
ritos, as crenças, a ordem social, as técnicas e os artefatos materiais são
parte de culturas vivas, e estas são, naturalmente, passíveis de “mudanças
históricas dentro de lógicas que lhes são próprias”. Ao mesmo tempo, as
expressões culturais empregam-se como elementos de distinção por
excelência, quando através delas uma sociedade afirma-se diante das demais,
e assim expressa a sua identidade própria. No caso em que as mudanças
culturais debitarem-se a causas exterio res (forçosas ou não), os
antropólogos referem-no como um processo de “aculturação”: “o conjunto
de fenômenos que resultam de um contato contínuo e direto entre grupos de
indivíduos de culturas diferentes e que provocam mudanças nos padrões
culturais de um ou dos dois grupos” (Redfield et alii, 1936).

Enquanto um saber científico sobre o próprio homem, a Antropologia


desenvolveu-se a partir do final do século XVIII sob um aparente paradoxo, o
reconhecimento de que a unidade biológica da espécie humana coexistia, em
todos os quadrantes do mundo, com a observação de uma extrema
diversidade cultural, ou de modos de vida (Laraia, 1986: 10). Nestes termos,
a assunção de um verdadeiro projeto antropológico haveria de demandar: a

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construção de um certo número de conceitos; a constituição de um saber


empírico; a definição da diferença cultural como um problema essencial; e, por
fim, um método indutivo de observação e análise (Laplantine, 1995: 55-57).

Foi apenas em 1871 que Edward Tylor, em Primitive culture, formulo u


uma definição mais abrangente para o termo cultura, segundo uma
concepção universalista que exprime a totalidade da vida social do homem:

“Cultura, ou civilização, em sentido etnográfico amplo, é aquele todo complexo


que inclui conhecimento, crença, arte, lei, moral, costume e quaisquer outras
capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”.

De forma objetiva, a definição de Tylor abrange todas as possibilidades


de realização humana, pois a cultura é a expressão da totalidade da vida
social do homem. Além do mais, denota a sua dimensão coletiva e a
necessidade de aprendizado a cada geração - em oposição à idéia de
aquisição inata ou de uma herança biológica (Laraia, 1986: 25; Cuche, 2002:
35).

Uma concepção mais decididamente relativista no estudo das culturas,


que anima ainda hoje a antropologia norte-americana, deve-se a Franz Boas
e aos princípios metodológicos que emergem do particularismo histórico que
sustentou. Segundo ele, a cultura não deveria ser vista como um mero
agregado de elementos individuais, mas uma entidade complexa, um conjunto
integrado de fatores variados - condições ambientais, fatores psicológicos,
conexões históricas, proposições lingüísticas etc. Cada cultura, desse ponto de
vista, representa uma totalidade singular, uma realidade específica, um
desenvolvimento original condicionado pelo meio social tanto quanto pelo
meio geográfico, e ainda pela maneira como emprega e transforma os
“materiais culturais provindos do exterior ou de sua própria criatividade”
(Boas, 1940).

Nestes termos, a cultura existe como um produto, que dispõe de uma


certa autonomia - seus significados, sua originalidade e sua coerência devem
ser, assim, compreendidos por dentro, não por meio de intuições românticas
incontroláveis, mas mediante uma documentação objetiva. Um costume
particular, como ensinou Boas, só se pode explicar se relacionado ao seu

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contexto cultural. Pois cada cultura é dotada de um estilo particular, que se


exprime através da língua, das crenças, dos costumes, da arte; e este espírito
próprio a cada cultura influi sobre o comportamento dos indivíduos.

De acordo com Ruth Benedict, uma das principais discípulas de Boas,


embora as culturas sejam constituídas de elementos díspares fortuitamente
reunidos pela difusão, são também “integradas segundo padrões bastante
diferentes e individuais”. Deste modo, a ordem alcançada não é apenas o
reflexo da função pragmática que desempenha, mas deve-se a “um princípio
de acordo com o qual os elementos culturais reunidos são reorganizados em
padrões coerentes, segundo certas necessidades interiores que se
desenvolveram dentro do grupo [social]” (Benedict, 1932). Os traços
culturais são remodelados de acordo com as feições da cultura e integrados
no conjunto. Assim como os estilos de arte, as culturas como conjuntos
organizam “padrões consistentes de acordo com cânones inconscientes de
preferências que se desenvolvem dentro da cultura”. A compreensão do
significado dos pormenores depende do contexto de motivos, emoções e
valores institucionalizados nessa cultura (Benedict, 1934). É assim a visão do
nativo, sobretudo, o que importa na coleta do material no trabalho de campo,
na medida em que é a sua interpretação de aspectos destacados de sua
sociedade que pode conduzir o antropólogo a relativiz ar a própria
interpretação do que ali observou. Como resultado, a sociedade européia
deixaria de servir de parâmetro inconteste, e o relativismo cultural
proporcionaria as novas bases de tolerância para os padrões de vida
coexistentes e válidos que a humanidade criou.

Ainda no âmbito da antropologia cultural norte-americana, Clifford


Geertz concentrou-se numa abordagem interpretativa dos fenômenos
culturais. Segundo ele, a cultura consiste em “estruturas de significado
socialmente estabelecidas”; o que faz dela um assunto público, pois é preciso
que os símbolos sejam reconhecidos pelos demais membros do grupo.
Pautada por um conceito semiótico, de inspiração weberiana, a cultura é
assim concebida enquanto um conjunto de mecanismos simbólicos que, ao
mesmo tempo, organiza e orienta a conduta humana. Na verdade, Geertz

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entendeu ser necessário reduzir a idéia de cultura a um tamanho adequado,


de dimensão menos vasta, uma noção mais restrita, especializada e
operacional e, ademais, teoricamente mais poderosa. Dentre as definições de
cultura que sob esta ótica apresentou, destacam-se:

a) “um sistema ordenado de significados e símbolos (...) em cujos termos os


indivíduos definem seu mundo, revelam seus achados e fazem seus
julgamentos”;
b) “um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em
símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas
por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e suas atividades em relação à vida”; e
c) “um conjunto de dispositivos simbólicos para o controle do comportamento,
fontes extra-somáticas de informações” (Geertz, 1978).

Deste apanhado de pressupostos e definições com vistas a um conceito


antropológico de cultura, como se vê, não se pode inferir a imobilidade nem a
passividade das formações culturais, quaisquer que sejam elas. Com efeito, a
cultura é dinâmica, como sublinharam os autores do “manifesto sobre a
aculturação” de 1953, no seminário realizado na Universidade de Stanford, e
os sistemas culturais estão num contínuo processo de modificação:

“a mudança que é inculcada pelo contato não representa um salto de um estado


estático para um dinâmico mas, antes, a passagem de uma espécie de mudança
para outra. O contato, muitas vezes, estimula a mudança mais brusca, geral e
rápida do que as forças internas” (apud Laraia, 1986: 99-100).

Fica claro, portanto, que a presente perícia há de tratar, tão-somente,


desta última forma de mudança cultural, de modo a averiguar se, do ponto de
vista dos próprios Enawene-Nawe e de eventuais observadores, teriam ali
ocorrido mudanças forçosas ou danosas aos seus padrões culturais. E para
isso, adotando aqui os procedimentos sugeridos por Cardoso de Oliveira
(1974), é preciso caracterizar a situação de contato em seus distintos níveis
de operação, seja a dependência econômica, a desorganização social ou o
estabelecimento de relações coercitivas e arbitrárias que teriam resultado do
processo de construção da estrada Sapezal-Juina.

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
1ª Vara da Justiça Federal - Mato Grosso

A SOCIEDADE ENAWENE-NAWE: HISTÓRIA E CULTURA

Quesitos da FUNAI
1) Qual o grupo indígena ameríndia ocupante da terra indígena Enawene-Nawe?
2) Quais os traços culturais e identitários que caracterizam a cultura desse
grupo (lingüística, cosmovisão, economia e apropriação cultural do território)?
3) De quando data o contato desse grupo indígena com a sociedade nacional?
4) Em que condições foram travados os contatos entre o grupo indígena e a
sociedade nacional?
5) Registram-se conflitos entre o grupo indígena e nacionais após o contato?
6) Caso positivo o quesito anterior, como se deu o conflito e suas
conseqüências, tanto para os índios como para os nacionais?

A área indígena Enawene-Nawe, declarada pela Portaria do Ministério da


Justiça 464 (de 13/09/1991) e, após sua demarcação física, homologada
pelo Decreto Presidencial s/n de 2 de outubro de 1996, constitui-se em
habitat tradicional dos Enawene-Nawe (também conhecidos pela alcunha
“Salumã”), falantes de uma língua da família Aruak. Situada nos municípios de
Juina, Comodoro e Sapezal, no noroeste do Estado de Mato Grosso, numa
região de transição entre o Cerrado e a Floresta Tropical no vale do rio
Juruena, formador do rio Tapajós, compreende em seu interior a Estação
Ecológica Iquê. Contígua a outros territórios tradicionais indígenas - dos Paresi
a leste, dos Nambikwara ao sul, dos Cinta-Larga a oeste e dos Myky e
Rikbaktsa ao norte - está assediada, entretanto, por intensa ocupação
econômica do entorno, basicamente a monocultura da soja e da cana-de-
açúcar a leste e sudeste e o desmatamento para pastagens ao norte. De fato,
as nascentes e os formadores dos principais rios que banham o território
enawene-nawe, por estarem fora das áreas indígenas demarcadas, sofrem
com a poluição por agrotóxicos e outros impactos diretos (estradas, aterros,
erosão e barragens). Há ainda registros freqüentes de atividades garimpeiras
junto da rodovia MT-319, limite oeste da área indígena e da Estação Ecológica
do Iquê.

No trecho abaixo os antropólogos Marcio Silva e Pedro Passos (2000:


615) traçam um breve panorama da vida social dos Enawene-Nawe, que nos
servirá de introdução aos temas a serem abordados adiante:

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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“Neste território, os Enawenê-Nawê se concentram em uma única aldeia,


atualmente localizada à margem esquerda do rio Iquê. No entanto, durante o
ciclo anual, esta população desenvolve um grande conjunto de atividades
produtivas e cerimoniais, ocupando os mais diferentes pontos de seu território.
Além dos produtos agrícolas, a dieta Enawenê-Nawê é fundamentalmente
composta de peixes, frutos silvestres, mel e insetos comestíveis, coletados
durante expedições que percorrem, várias vezes por ano, todas as partes de seu
território.”

Figura 1: Povos indígenas no noroeste de Mato Grosso

Talvez a mais antiga referência a este povo indígena seja a do padre


Manuel Ayres de Casal em 1817, na sua Corografia Brasílica, onde se lê que
na comarca do Juruena, “país muito pouco conhecido dos cristãos, e
dominado por várias nações de índios bárbaros”:

“Os Tamaré [Waimare, provavelmente, um dos ramos dos índios Paresi] dominam
as adjacências do rio Juyna, primeiro ramo notável dos que engrossam o Juruena
pela margem ocidental: os Paccahás vivem ao norte dos derradeiros; os
Sarummás mais ao Setentrião, encostados no mesmo Juruena; e mais abaixo os
Uhayhás” (Casal, 1817).

A indicação geográfica obtida por Aires de Casal, de fato, não é distante


do local onde os missionários jesuítas da Missão Anchieta encontraram os
Enawene-Nawe um século e meio depois. Outras informações muito precisas

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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foram dadas pelos índios Paresi (ou Haliti, como se denominam) ao Coronel
Cândido Mariano Rondon - além dos subgrupos Kaxiniti, Kozarini e Waimare,
existiriam ainda dois outros, de paradeiro então desconhecido:

“Para terminar o estudo da divisão da grande tribo dos Paricí convém dizer que
os Uaimaré ainda falam em 2 grupos seus parentes, que não sabem dizer para
onde foram: o grupo Salumá e o grupo Oazané. Durante a expedição de 1909 o
Major Libânio [Coluizorocê, o principal guia paresi da expedição] esperava
encontra-los. Acrescenta o Major que os Oazané eram filhos de Kamaicôrê e os
Salumá seus netos. Ambos viviam na margem esquerda do Juruena. Os Oazané
faziam canoas da casca do jatobá, comiam peixes e algumas aves (mutum, jacu,
inhambu) e não comiam ‘bicho de pêlo’. Salumá comia tudo, como Uaimaré”
(Rondon, 1946: 72; ver tb. Anônimo, 1916: 267).

Os traços descritos acima, todavia, teriam sido invertidos, posto que


são os Enawene-Nawe (que foram chamados de “Salumã” pelos intérpretes
paresi por ocasião das primeiras visitas à sua aldeia, em 1974) que
navegavam em canoas de casca (depois substituídas por canoas de madeira e
hoje, de alumínio e motor de popa), comem peixe e evitam a carne de
animais de caça. Num balanço minucioso das fontes que registraram a
designação “Salumã” desde o século XVIII, bem como os indícios de sua
localização geográfica, Bartomeu Meliá (s/d) chegou à conclusão análoga, de
que seu habitat tradicional estava no rio Juruena, entre a foz do seu afluente
Camararé e a do Papagaio.

Por volta da década de 1950 deu-se um novo surto de exploração dos


seringais nativos em Mato Grosso, com respaldo de empréstimos do Banco
de Crédito da Amazônia, que alcançou as matas do rio Juruena e, ali,
deparou-se com os ocupantes indígenas – além dos Rikbaktsa, os quais
travaram uma guerra intensa contra os seringueiros que invadiam seu
território, foram avistados indícios de outros índios na área em foco:

“Na altura do rio Camararé, afluente pela margem esquerda do rio Juruena, índios
deram sinal de presença. Os índios do Camararé, conforme informação do Pe.
Thomaz de Aquino Lisboa, foram chamados pelos Paresí de Salumã (...). Mas nos
primeiros contatos por sinais, não ficaram os seringueiros sabendo com que
grupos indígenas lidariam” (Dornstauder, 1975: 11).

Em 1962, o padre jesuíta Thomaz de Aquino Lisbôa, da Missão Anchieta


– MIA, em viagem pelos rios Papagaio e Juruena, ouviu de seringueiros relatos
semelhantes:

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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“nas imediações dos rios Camararé e Doze de Outubro, Juruena acima (...),
moravam uns índios de índole pacífica, pois não hostilizavam os trabalhadores.
Mas esses índios trancavam os córregos, a fim de que os brancos não se
aproximassem de suas moradias” (Lisbôa, 1985: 10).

Duas décadas depois, em novembro de 1971, o sertanista da FUNAI


Fritz Tolksdorf avistou a aldeia dos Enawene-Nawe durante um sobrevôo, ao
norte da Reserva Nambikwara:

“Um relato sobre a descoberta (...) de uma aldeia indígena da forma – incomum
– de uma estrela de sete pontas, está causando espanto entre os indigenistas
(...).
Além de suas cabanas estarem dispostas como se fossem pontas de uma
estrela, a aldeia tem no centro uma estranha construção do formato de uma
torre (...).
Como desconhecia a existência da aldeia naquela região, pediu ao piloto que
voasse em círculos sobre o local, ficando então surpreso com a disposiç ão das
cabanas e com a torre central” (Correio do Povo, 1972a).

Tão logo foi publicada nos jornais a notícia da aldeia em forma de


estrela, um outro sertanista, João Peret, afirmou que já a conhecia desde
1968, quando participou das expedições de “pacificação” dos bravios Cinta-
Larga, vizinhos a oeste dos Enawene-Nawe:

“‘Aliás – disse – essa aldeia se assemelha mais a uma bicicleta do que


propriamente a uma estrela e está localizada à margem direita do rio Primavera
[um afluente da margem direita do rio Camararé]’ (...).
‘Foi em 1968, na época dos conflitos com os Cintas-Largas. Íamos, eu e o
delegado Hélio José Bucker, da FUNAI, fazer uma inspeção à aldeia dos Cintas-
Largas quando, na região do rio Aripuanã, nosso avião teve que desviar-se um
pouco para Leste e, então, passou sobre aquele aldeamento curioso’, afirmou.
Combinaram, então, jogar para os índios alguns presentes que se destinavam
aos Cintas-Largas e foram atacados por saraivadas de flechas. Calcularam que
na aldeia, de 18 choças, viviam uns 300 índios, que são de estatura mediana,
cabelos longos e bronzeados. O aparelho em que viajavam chegou a passar a
100 metros de altitude, pelo aldeamento” (Correio do Povo, 1972b).

Ainda em 1971 o jesuíta Thomaz Lisbôa havia buscado o contato


pacífico com os Myky, um pequeno grupo indígena situado na margem direita
do rio Papagaio, afluente da margem direita do Juruena, adotando um método
menos traumático, de respeito à cultura, cuidados com a saúde e defesa dos
direitos à terra. Em 1973, este missionário obteve novas informações sobre
os índios do Camararé - desta vez, o piloto de avião Oscar Magalhães, a
serviço da Missão Anchieta, sobrevoara uma aldeia nas proximidades da
margem esquerda do alto rio Juruena. Em 23 de novembro do mesmo ano,

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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os padres Thomaz Lisbôa e Adalberto Holanda Pereira, além de um chefe


nambikwara (então, os missionários supunham tratar-se de um grupo desta
etnia), realizaram um sobrevôo de reconhecimento:

“Localizamos uma aldeia velha com várias casas e muita capoeira à volta. Um
pouco à frente, localizamos uma aldeia nova, pequena, com derrubada recente,
ainda não queimada, situada na margem esquerda do rio Juruena. A aldeia
situava-se acima da barra do rio Camararé, logo abaixo da barra do rio Juína.
Divisamos uma grande lagoa nas adjacências da aldeia nova e esses foram os
pontos tomados como referência para uma futura expedição por terra, para a
atração desse novo grupo indígena” (Lisbôa, op. cit.: 11).

Em julho de 1974, os jesuítas Thomaz Lisbôa e Vicente Cañas,


acompanhados de intérpretes nambikwara e iranxe, fizeram uma primeira
expedição terrestre. Nas imediações da lagoa vista no sobrevôo, acharam
sinais da presença dos índios: tapagem de pesca, um cesto, rastros recentes
e uma trilha, que os levou à clareira de uma pequena aldeia, formada por
cinco casas. Os moradores haviam se retirado naquela madrugada:

“Entramos nas casas, para ver os objetos. Havia panela de barro, alguns xires
[cestos] de pesca, feixes de urucu, e pouco mais do que isso. As casas eram
pequenas e mal-acabadas. Logo deduzimos que era uma simples aldeia de caça
e pesca, uma aldeia de passagem, para onde os índios desconhecidos vinham de
tempos em tempos” (id., ibid.: 14).

Adiante pela trilha, chegaram ao pátio de uma aldeia grande, mas


abandonada, de oito casas grandes já em estado precário:

“Era aldeia de moradia, pois fora servida por imensas capoeiras de antigas roças.
Reconheci nela a aldeia velha que vimos no sobrevôo. Dentro das casas,
enormes panelas de barro, pilões, cabaças” (id., ibid.: 16).

Passados alguns dias, os expedicionários retornaram ao local,


acompanhados agora por intérpretes rikbaktsa. No dia 28 daquele mês
chegaram afinal à aldeia nova, composta por sete casas – e ali, os intérpretes
constataram que aqueles índios não eram nem de língua nambikwara e nem
rikbaktsa, mas provavelmente da família Aruak. Os expedicionários
permaneceram poucos instantes na aldeia – as mulheres e as crianças
esconderam-se , atabalhoadas, e eles saudaram apenas um homem de meia
idade, portador de deficiência física. No dia seguinte, os expedicionários foram
surpreendidos pelas visitas ao seu acampamento:

“Os três índios aproximaram-se e chegaram até o local, onde estávamos


acampados. Traziam arcos e flechas, sendo um deles mais idoso e os outros dois

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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de meia-idade. Cabelos compridos caindo nas costas e aparados na região


temporal, acima das orelhas. Boa estatura, mais brancos que escuros, trazendo
no peito adornos de algumas penas encastoadas em peças arredondadas e
trabalhadas, de coco de tucum, tendo tiras finas de algodão apertando o bíceps
e a barriga da pena e, nos tornozelos, fitas mais largas. O pênis embutido em
palhinha amarrada. Nas orelhas, traziam argolinhas pretas, também de tucum,
nas quais estavam presas conchas brancas de forma triangular” (id., ibid.: 20).

Os expedicionários foram levados para a aldeia, em meio a expressões


cada vez mais amistosas. Ali receberam alimentos, entregaram mais facões e
machados, tiraram fotografias e, inclusive, filmaram algumas cenas deste
primeiro contato (uma cópia em vídeo deste filme encontra-se nos arquivos
da OPAN, em Cuiabá):

“O índio mais idoso, a certo momento, retirou-se para o mato. Depois de algum
tempo voltou, trazendo três mulheres, mais dois homens e um menino de uns dez
anos. Um dos homens era velho, apoiava-se num bastão. As mulheres tinham
cabelos compridos, aparados acima das orelhas, tal como os homens. Usavam
cintos com muitas voltas, feitos de tucum. Traziam minissaias feitas de algodão
e tingidas de urucu. Na barriga das pernas traziam argolas de borracha. À altura
do umbigo, tinham muitos traços desenhados, tatuagens. Como os homens,
traziam tiras finas de algodão apertando o bíceps. Nas orelhas, brincos iguais
aos dos homens. Uma era bem velha, a outra, de meia-idade e a outra, mais
jovem. (...) Elas foram buscar beiju e trouxeram mais de dez bolos. Mostraram-
se muito expansivas, alegres e comunicativas” (id. ibid.: 20, 24).

Os missionários, acertadamente, não estenderam sua permanência na


aldeia para evitar a transmissão de doenças. Em setembro de 1974,
organizaram uma segunda expedição, levando dessa vez intérpretes paresi
(um casal e três rapazes), cuja língua é também da família Aruak: foram
recepcionados no pátio da aldeia por dezenas de homens, mulheres e
crianças; as facas, os machados e os facões foram tomados sem a menor
cerimônia pelos anfitriões. De acordo com o julgamento do paresi Mozoiuané,
eles seriam os seus patrícios há muito desaparecidos, os “Salumã” (id., ibid.:
26-27).

Na verdade, os intérpretes paresi entendiam apenas parte do que os


outros falavam, e só conseguiram entabular diálogos à custa de muitos
gestos. Embora sejam ambas classificadas na família lingüística Aruak, de fato,
a comunicabilidade entre as línguas enawene-nawe e paresi não é plena,
devido a diferenças fonológicas e lexicais do mesmo grau que as existentes
entre português e espanhol.

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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Em outubro do mesmo ano, um novo sobrevôo permitiu aos


missionários verificar a localização precisa da aldeia, e buscar uma via de
acesso mais rápida – concluiram, daí, que a aldeia estava na margem direita
do próprio rio Camararé, próxima à foz do córrego Primavera (id., ibid.: 30).
A terceira expedição, desta vez subindo pelo rio Camararé, aconteceu em
julho de 1975 (id., ibid.: 31-32) e mais duas, em novembro e dezembro
daquele ano.

A partir de 1977, o jesuíta Vicente Cañas estabeleceu-se entre os


“Salumã”, para prestar assistência à saúde, preventiva e curativa, e ajudar a
fiscalizar as suas terras (id. ibid.: 52). Na opinião da antropóloga Virginia
Valadão, que realizou um documentário sobre o ritual “Yãkwa”, a ação da
Missão Anchieta junto aos Enawene-Nawe trouxe-lhes benefícios notáveis:

“O primeiro contato oficial dos Enawenê Nawê com os brancos foi em 1974, com
os jesuítas Vicente Cañas e Tomáz de Aquino Lisboa. Nessa época, a Missão
Anchieta estava revendo sua forma tradicional de atrair e civilizar populações
indígenas pela educação. A aproximação com os Enawenê Nawê foi lenta e
guiada por uma nova filosofia, que buscava mantê-los isolados da sociedade
nacional e concentrar as atividades na convivência com um mínimo de
interferência, no atendimento à saúde e na proteção do território. As
enfermeiras que mais tarde vieram a trabalhar com os Enawenê Nawê, por
exemplo, moravam nas casas comunais e aprenderam a língua. Foram
introduzidos apenas alguns instrumentos de ferro: facão, machado e anzóis,
procurando reduzir ao máximo a dependência de bens industrializados.
Essa postura da Missão Anchieta produziu alguns resultados positivos. Os
Enawenê Nawê não foram vítimas das tradicionais epidemias que, na maioria das
vezes, assolam os grupos indígenas logo após o contato e produzem efeitos
deletérios. Ao contrário, houve crescimento demográfico e os Enawenê Nawê
mantiveram intacto seu modo de vida tradicional e seus belos rituais” (Valadão
1998).

No tocante à sua denominação própria, o equívoco só se desfez em


1983, quando Vicente Cañas compreendeu que eles se chamavam “Enawene-
Nawe”, e que “Salumã” era apenas um nome próprio masculino (id. ibid.: 56-
58). O seu contingente populacional era de pouco mais de cem pessoas, e
eles já faziam largo uso de objetos de metal (machados, facões, arame para
anzóis, enxadas e panelas), produto de pilhagens em colocações de
seringueiros e aldeias dos Nambikwara (Jornal de Brasília, 1974; Mendes dos
Santos, 2001: 45).

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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Vejamos algumas observações ecológicas e uma descrição,


necessariamente sucinta, de suas atividades produtivas e cerimoniais; em
seguida, uma análise dos dados demográficos. Os Enawene-Nawe ocupam
um ambiente de transição entre o Cerrado da chapada dos Parecis e a
Floresta Tropical da planície amazônica, com solos onde predominam as
areias quartzosas distróficas – o que contribui para que os rios tenham um
baixo teor de nutrientes. A vegetação de savana é, aqui e ali, atravessada pela
Floresta Estacional Semidecidual e outras intermediárias. Uma vasta rede de
drenagem compõe a paisagem regional, na qual destacam-se os rios Juruena,
Doze de Outubro, Camararé, Papagaio e outros menores, como os rios Iquê,
Primavera, Mutum, Joaquim Rios, Preto e seus tributários, além de inúmeras
lagoas marginais e áreas alagáveis (Higa & Silva, 1995: 10). São rios, em
geral, de águas límpidas, com baixa turbidez, com pouca quantidade de
materiais ou elementos em suspensão. A rede hidrográfica orienta-se na
direção nordeste, e verte suas águas no receptor maior, o rio Juruena; este,
prossegue até a confluência com o rio Papagaio e, a partir desta, toma a
direção geral norte. Segundo os experts em ecologia Nilton Higa e Carolina
Joana da Silva:

“Considerando que os rios de águas claras não apresentam a produtividade alta


(...), que o local onde os Enawene-Nawe se encontram hoje situa-se próximo à
cabeceira do rio Juruena e que a maioria das suas lagoas também apresenta
nascentes, pode-se afirmar que a produtividade destes ecossistemas resulta
principalmente da ‘estabilidade de pulso’, representada aqui pela variação anual
do nível d’água. O controle exercido por este pulso mantém o desenvolvimento
destes ecossistemas em estágio precoce da sucessão ecológica, bem como pelo
padrão de drenagem (de meandro) deste rio, que possibilita a ocorrência de
inúmeras lagoas marginais nos principais tributários da região, onde
desenvolvem-se várias espécies de peixes, possibilitando assim a manutenção
dos estoques pesqueiros” (Higa & Silva, op. cit.: 11).

Desde meados da década de 1980, os Enawene-Nawe voltaram a


erguer suas aldeias na micro-bacia do rio Iquê, um médio tributário do rio
Camararé (Mendes dos Santos, 2006: 11). A aldeia Matokodakwa, onde hoje
moram, está situada na margem esquerda do rio Iquê, no ponto de
coordenadas S 12° 17’ 01,8’’ e W 53° 17’ 12,7” (ver mapa “A área indígena
Enawene-Nawe e a estrada Sapezal-Juina”, em anexo). Além da aldeia
principal, os Enawene-Nawe constroem acampamentos sazonais nos quais
desenvolvem atividades coletivas, muitas delas vinculadas a obrigações

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cerimoniais: acampamentos de pesca, de coleta de mel e de agricultura. De


acordo com Mendes dos Santos (2001: 54), “essa estratégia de ocupação do
território parece constituir-se na forma mais eficaz de organização das
práticas de produção e manejo dos recursos naturais”.

O modelo cosmológico enawene-nawe apresenta-se em três camadas


superpostas: no patamar subterrâneo, que inclui o subsolo e os acidentes
geográficos (o interior dos montes, as ilhas, o fundo das águas e as
cachoeiras), habitam os espíritos predadores, os yakairiti; no patamar
terrestre, formado pela superfície da terra, o meio da mata e o interior das
árvores, estão os humanos, os animais e os espíritos dakoti; e no patamar
celeste, que compreende o espaço além da abóbada visível, estão os espíritos
ancestrais, os enore-nawe (Mendes dos Santos, 2001: 56). Dizem os
Enawene-Nawe que a paisagem natural formou-se quando um herói chamado
Wadare, ajudado por outros Enawene-Nawe, decidiu derrubar a golpes de
machado uma árvore gigantesca, a única que existia na superfície plana e
deserta em que viviam. A queda desta árvore descomunal fez surgir os leitos
dos rios e as ondulações no relevo, bem como a cobertura vegetal. Desde
então, os Enawene-Nawe ocupam a região de cabeceiras, onde os rios não
são muito largos.

Abaixo, a descrição dos patamares do cosmos e seus habitantes, nas


palavras de Marcio Silva (1998):

“Os espíritos celestes são imortais, belos, generosos, alvos, brincalhões,


bondosos e saudáveis, vivendo num mundo de plenitude sexual e repleção
alimentar. A perfeição sociológica do mundo celeste se traduz no impecável
acabamento arquitetônico da aldeia dos ‘ancestrais’ assim como na pródiga
natureza circundante, fonte inesgotável de todos os prazeres gastronômicos, em
que tudo cresce e floresce sem precisar ser cultivado. Na aldeia celeste, todos
moram defronte às flautas de seus clãs, já que a uxorilocalidade [regra de
residência na casa da esposa] não opera neste patamar do cosmos. Além disso,
o ciclo ritual por eles praticado tematiza apenas os espíritos celestes dos clãs,
ao passo que os humanos, como veremos a seguir, se voltam não somente para
esses espíritos, mas também para os espíritos subterrâneos.
Os Enawene Nawe se referem aos espíritos celestes como seus ancestrais, com
eles estabelecendo relações que definem com as mesmas categorias de
parentesco que empregam para os ‘avós’ (atore/ahiro), e a eles tributam um
poder extraordinário de prevenção e cura das enfermidades. Em alguns casos, os
espíritos celestes procuram mediar as relações entre o doente e o espírito
subterrâneo algoz (isto é, a doença), identificado por um ou uma ‘xamã’
(sotairiti/sotailoti). Os espíritos celestes são ainda os donos do mel e de alguns

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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insetos voadores consumidos pelos humanos, e acompanham os Enawene Nawe


quando estes partem em expedições de pesca ou coleta, protegendo-os dos
perigos do mundo exterior à aldeia.
Enquanto isso, os espíritos subterrâneos são feios, implacáveis, sovinas,
preguiçosos, perversos, insaciáveis, promotores de doenças e da morte. Se os
espíritos celestes guardam entre si uma razoável homogeneidade física, os
espíritos subterrâneos podem assumir formas extremamente variadas, todas elas
dantescas. São donos ou, pelo menos, intermediários da quase totalidade dos
recursos encontrados na natureza, como o peixe, a madeira, os frutos e os
cultivos (mandioca, milho etc.). Uma vez que esses espíritos controlam os
recursos naturais, os Enawene Nawe deles dependem inexoravelmente para a
produção de alimentos e, portanto, para a reprodução da vida social. Esses
espíritos, que designam ameaçadoramente os Enawene-Nawe ora como ‘os
mortos’ (maî nawe), ora como ‘comida’ (hanini), não permanecem juntos em uma
aldeia, como fazem os espíritos celestes, mas, ao contrário, vivem separados
uns dos outros, solitários em seus domínios.
Os espíritos subterrâneos são preguiçosos a ponto de contar com que os
Enawene Nawe produzam alimentos não apenas para si, mas também para eles.
São tão preguiçosos, dizem os Enawene Nawe, que periodicamente aguardam
impassíveis uma grande quantidade de mingau produzido pelos humanos, que
deve ser vertido no chão durante as cerimônias. O alimento é absorvido pela
terra e corre diretamente para as panelas desses espíritos, que só têm o
trabalho de ingeri-lo. Caso os Enawene Nawe não os abasteçam, esses espíritos
se voltarão furiosos contra os humanos, e todos morrerão. Nesse sentido, a
mitologia enawene nawe é pródiga em cataclismas produzidos no passado por
espíritos subterrâneos que, por pouco, não dizimaram a humanidade totalmente
(...). Gatos escaldados, os Enawene Nawe procuram com afinco não enfurecê-
los de novo.
Em suma, enquanto o patamar celeste se define fundamentalmente como um
mundo do ‘entre-si’, o patamar subterrâneo é regido pela clave da alteridade em
toda a sua potência. Entre esses dois mundos, o universo dos humanos se
materializa como um espectro imperfeito do patamar celeste, inescapavelmente
permeável aos desígnios e aos caprichos do patamar subterrâneo. Logo, o
mundo dos humanos corresponde a uma combinação de princípios
cosmologicamente opostos, mas tornados sociologicamente complementares”
(Silva, 1998a).

A aldeia enawene-nawe apresenta uma configuração circular, composta


em geral por dez casas comunais retangulares (hakolo), dispostas no sentido
radial, e uma casa em seu interior (a casa-dos-clãs, haiti), que abrigam as
flautas e os adornos cerimoniais e certas atividades masculinas, conforme o
croquis abaixo:

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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Figura 2: A aldeia enawene-nawe


(Silva, 1998a)

Segundo Silva (1995), a parte interna das casas é dividida em seções


residenciais, separadas com esteiras de palha por áreas de circulação comuns.
Por sua vez, as seções dividem-se em repartições que abrigam, cada uma
delas, uma família nuclear. Do ponto de vista de um modelo ideal, a população
distribui-se nestas habitações segundo um princípio de uxorilocalidade: as
casas abrigam um ou dois grupos domésticos, cada um deles constituído por
um homem, sua esposa, seus filhos e filhas solteiros e suas filhas casadas,
acompanhadas de seus maridos e filhos. Segundo o pesquisador:

“O grupo residencial (os habitantes de uma casa) e o grupo doméstico (os


habitantes de uma seção de uma casa) constituem unidades sociológicas
importantes. O grupo residencial é responsável pela construção e conservação
da casa e além disso participa, como unidade corporada, da construção da casa
cerimonial. Os grupos domésticos cultivam roças de milho, dispostas em locais
distantes da aldeia e organizam as expedições de coleta de mel. A cada grupo
doméstico corresponde uma cozinha. As pequenas roças de mandioca,
normalmente vizinhas à aldeia, são de responsabilidade dos grupos familiares
(famílias), também encarregados da extração de lenha, da coleta de insetos
comestíveis e da pesca em pequena escala. À noite, cada grupo familiar reúne-
se em redes de dormir em torno de uma lareira, no interior de seus
compartimentos. A quase totalidade dos grupos familiares tem como núcleo um
casal. Além do marido e da esposa, estes grupos incluem os filhos solteiros e,
eventualmente, pai ou mãe viúvos de um dos cônjuges e os filhos da filha
solteira. Mães viúvas ou solteiras de filhos solteiros formam grupos familiares
independentes, desde que seus pais não sejam vivos” (Silva, 1995).

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
1ª Vara da Justiça Federal - Mato Grosso

Figura 3: Interior de uma casa enawene-nawe


(Silva, 1998a)

Além dos grupos residenciais, grupos domésticos e grupos familiares, os


Enawene-Nawe se dividem em clãs (yãkwa), que são grupos exogâmicos
patrilineares, nomeados e dispersos pela regra de uxorilocalidade – são eles:
Kailore, Aweresese, Kawekwarese, Mairoete, Anihiare, Lolahese, Maolokori,
Kawinariri, Kaholase e Atosairi, este último considerado extinto. Segundos os
Enawene-Nawe, os yãkwa são compostos de “restos” de uma ou mais tribos
de outrora, reunidos em torno de grupos de espíritos yakairiti. Sobretudo, os
yãkwa são responsáveis pela planta ideal da aldeia e pela rica e complexa vida
cerimonial. De acordo com Silva (1997; 1998a), os clãs agregam legiões de
espíritos subterrâneos (os yakairiti), espíritos celestes (os enore-nawe) e
humanos, todos associados a um conjunto de flautas, que desempenham
funções econômicas e cerimoniais consideradas essenciais na sociedade
enawene-nawe:

“Obedecendo a um rigoroso sistema de rodízio, um ou dois clãs de cada vez


permanecem na aldeia por um período de dois anos, durante a estação dos
espíritos subterrâneos - são os ‘anfitriões’ (hari-kare), produzindo uma grande
quantidade de alimentos de origem vegetal, que serão trocados por peixes
defumados, - capturados pelos demais clãs (yãkwa), que partem em expedições
que podem durar dois meses ou mais. (...)
O calendário nativo distingue duas ‘estações’ rituais básicas, uma que diz
respeito às relações com os espíritos celestes, coincidindo com o período de
enchente dos rios; outra, muito mais extensa, voltada para os espíritos
subterrâneos, durante os períodos de cheia, vazante e seca. Se ambas são
fundamentais para os Enawene-Nawe, a primeira é marcada por um grau de
formalismo muito menor que a segunda. Tanto é que, ao contrário das

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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cerimônias dirigidas aos espíritos subterrâneos, as primeiras podem ser


notadamente abreviadas por razões de ordem prática; as segundas, em hipótese
alguma. Cada estação ritual, por sua vez, se divide em dois momentos: uma
estação voltada para os espíritos subterrâneos, quando realizam o yãkwa e o
lerohi , e outra voltada para os espíritos celestes, quando realizam o saluma e o
kateokõ.
A estação dedicada aos espíritos subterrâneos se caracteriza, em linhas gerais,
pela seguinte dinâmica. Os “anfitriões” (hari-kare/lo), os homens e algumas
mulheres de um ou dois clãs, ficam na aldeia, assim como todas as mulheres dos
demais clãs. Enquanto isso, os homens dos outros clãs organizam grandes
expedições de pesca: são os yãkwa (durante a cheia/vazante) ou lerohi
(durante a estação seca). Porém os homens não saem sozinhos para pescar, já
que os espíritos clânicos os acompanham. Os celestes, para protegê-los dos
perigos do mundo exterior, os subterrâneos para atrair os peixes.
O que é curioso é que os homens não vão pescar com os espíritos de seus
próprios clãs, mas com os espíritos dos outros. Se os ‘anfitriões’ ficam na aldeia,
são os espíritos de seus próprios clãs que saem para pescar com os indivíduos
dos demais clãs. Inversamente, os espíritos dos clãs dos pescadores
permanecem na aldeia, fenômeno análogo ao princípio de exogamia: os espíritos,
assim como as mulheres de um clã, são - exatamente por isso - espíritos e
mulheres para os outros clãs.
As expedições pesqueiras podem ultrapassar dois meses, durante a
cheia/vazante, e três a quatro semanas durante a seca. Enquanto os homens
que saem se encarregam de acumular peixes que são imediatamente defumados,
os que permanecem na aldeia, junto com algumas de suas irmãs-anfitriãs,
processam uma grande quantidade de mandioca e de sal vegetal. Construída
simbolicamente a separação entre os que saem e os que ficam, os pescadores
retornam à aldeia paramentados como espíritos subterrâneos ameaçadores, lá
sendo recebidos pelos anfitriões, que não utilizam em seu corpo qualquer tipo de
adorno além dos emblemas da diferença sexual, de uso cotidiano.
Os anfitriões - oferecedores de mingau e de sal - se concebem como humanos
(ou, para ser exato, como Enawene-Nawe) e ali representam metonimicamente o
todo social. Enquanto isso, os homens que chegam das expedições representam
metaforicamente os espíritos subterrâneos que invadem agressivamente a aldeia.
Pouco a pouco, o grupo dos anfitriões domestica o grupo dos espíritos, fazendo
com que estes se abaixem e comam sal em suas mãos. O encontro desses dois
grupos é marcado por uma sucessão de cerimônias que incluem falas
ritualizadas, danças, execução de peças cantadas e instrumentais, sob a
responsabilidade exclusiva dos pescadores, representantes da alteridade. Os
anfitriões limitam-se a ficar sentados em torno dos círculos de dança, a manter
acesas as fogueiras que iluminam o pátio, aquecem os espíritos cantores, e a
cuidar para que não lhes falte comida.
Os anfitriões se definem (...) como uma comunidade de consangüíneos, perante
os pescadores, afins entre si. Os anfitriões são membros de um clã exogâmico ou
de dois clãs cujos membros não estabelecem naquele momento relações de
afinidade (...). Enquanto isso, os pescadores constituem um contingente
composto por indivíduos de mesmo gênero, mas de ‘espécies’ diferentes,
representantes de todos os demais clãs. Os homens que permanecem na aldeia
representam o papel de mulheres frente aos homens que vieram do exterior,
representantes dos espíritos: no cotidiano, são as mulheres que oferecem
mingau aos homens, e os homens, peixe às mulheres.
Males necessários, esses espíritos são concebidos (...) como afins com quem os
Enawene-Nawe não trocam. Precisamente por isso, os Enawene-Nawe não

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conceitualizam como troca (etuile) a grande quantidade de alimentos vertidos no


terreiro, que escoam diretamente nas panelas desses espíritos furiosos. Os
anfitriões, isto é os Enawene-Nawe – ‘doam sem qualquer expectativa de
retribuição’ (hane-hane). Trata-se muito mais de uma ‘compra de proteção’,
como se fazia em Chicago nos tempos de Al Capone, que de uma troca civilizada
de colares por braceletes.
Além dos parâmetros do formalismo e da rigidez, outras diferenças notáveis
entre as cerimônias relacionadas às legiões subterrâneas e celestes devem ser
assinaladas. Ao contrário do que acabamos de observar na relação entre os
Enawene-Nawe e os espíritos subterrâneos, os ritos que focalizam os espíritos
celestes nunca são marcados por climas de tensão e simulação de hostilidades.
Durante essa estação ritual, são empregadas flautas manufaturadas e guardadas
nas repartições familiares, ao contrário das outras, guardadas solenemente na
casa-dos-clãs. Além disso, os cânticos congregam a totalidade dos homens ou
das mulheres no centro da aldeia, não se verificando qualquer dispositivo de
diferenciação além dos de gênero. São abolidos os adornos e as pinturas: são
apenas humanos. Durante uma de suas fases, o salumã, os homens vão junto
pescar, enquanto as mulheres se empenham na preparação de mingau. O
encontro entre esses dois contingentes, com a volta dos pescadores, tematiza a
complementariedade e o equilíbrio produzido pela diferença sexual. Durante sua
outra fase, o kateokõ, que só ocorre bi-anualmente, os homens trocam mel,
‘muco vaginal masculino’ - produzido pelos homens para as mulheres - por
mingau, ‘sêmem feminino’ - produzido pelas mulheres para os homens” (Silva,
1997).

Homens e mulheres fazem trabalhos diferentes, de acordo com papéis


sociais bem delineados: as mulheres cozinham os alimentos, cuidam das
crianças, tecem redes e pulseiras de algodão, fabricam panelas de barro,
pescam pequenos peixes nas lagoas, plantam, buscam alimentos na roça e
outros locais, enquanto os homens buscam lenha, acompanham as mulheres
na colheita nas roças, derrubam e queimam as roças, pescam de diversas
formas, buscam resinas, cogumelos, mel, frutas, cipó e palha no mato, fazem
canoas e muitas outras atividades (Valadão, 1998).

De acordo com Silva (1998) e Mendes dos Santos (2001), embora os


Enawene-Nawe façam uso de alguns indicadores biológicos para a realização
das suas atividades, a agenda econômica decorre antes do complexo
calendário cerimonial que das condições climáticas regionais. De certa
maneira, a vida cerimonial estabelece uma mediação profunda entre a ordem
da sociedade e a ordem da natureza, dispondo um calendário de três grandes
“estações”: yãkwa, lerohi e salumã/kateokõ. Pautadas neste esquema
cerimonial, são empreendidas as principais atividades produtivas e as práticas
de subsistência no espaço aldeão ou no âmbito de diversos tipos de
acampamentos construídos em diferentes porções do seu território:

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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“No início da estação seca, os Enawene-Nawe promovem o plantio de mandioca


e de milho, seguido de uma breve cerimônia do lerohi. Partem imediatamente
para pescarias do lerohi nas calhas dos rios e em lagoas marginais, seguidas por
um período longo e complementar do ritual, que se estende até o fim da estação
seca. Com o início das chuvas, realizam uma breve cerimônia do salumã, seguida
de uma nova expedição de pesca e coleta de mel do salumã e, finalmente, de
um período longo e complementar daquele ritual. De dois em dois anos, as
Enawene-ro-Nawe [as mulheres] realizam a cerimônia do kateokõ, o que marca o
início de um ciclo ritual bienal. Com o fim do salumã/kateokõ, ocorre a
temporada do jogo de bola, imediatamente seguida de um breve período da
cerimônia do yãkwa, terminando com a organização das grandes expedições de
pesca do yãkwa. Este momento é seguido do período longo e complementar
deste ritual, a série cerimonial mais complexa do calendário enawene-nawe. (...)
Os futuros anfitriões devem, com dois anos de antecedência, providenciar o
cultivo de uma grande roça de ma ndioca, que irá permitir o oferecimento de
mingau durante as cerimônias que se estendem por semanas a fio. No primeiro
ano, roçam, derrubam e queimam uma área da floresta; no segundo, voltam a
roçar, queimam novamente o terreno e plantam os tubérculos. Ainda nesses dois
anos preparatórios, os futuros anfitriões são os líderes (ikineo) das expedições
de pesca durante a estação ritual dos espíritos celestes. Nos dois anos em que
são anfitriões, promovem duas colheitas anuais, uma para o yãkwa, outra para o
lerohi , seguidas do processamento e distribuição dos alimentos durante as
cerimônias praticamente diárias em alguns períodos. No último biênio,
desincumbidos das roças, lideram as expedições de pesca (honeregaiti) durante
a estação ritual dos espíritos subterrâneos” (Silva, 1998a).

Nas palavras de Mendes dos Santos (2001: 64), as estações yãkwa,


lerohi e salumã/kateokõ ancoram “as práticas econômicas e religiosas e uma
série de atitudes de grupos e pessoas”, enquanto marcadores temporais que
conectam os acontecimentos e infundem um ritmo próprio à vida social. Veja-
se, no quadro a seguir, o ciclo completo das estações, compreendendo as
principais atividades produtivas (agricultura, pesca e coleta) e rituais
desenvolvidas pelos Enawene-Nawe:

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ESTAÇÃO LOCAL ATIVIDADES

Ritual Agricultura Pesca Coleta Outras


mel; fabricação
rituais
colheita de milho armadilha de canoas;
(cantos,
aldeia verde nas roças para jogo de
danças,
próximo à aldeia pesca de bola
músicas)
barragem (hayra)
frutos fabricação
(buriti, de artefatos
barragem bacaba, (peneira,
acampamento
YÃKWA

(wayti) jenipapo); ralo, cesto,


colheita de milho
mel colar etc.)
aldeia seco nas roças
(harekare/lo) distantes da
anzóis sal limpeza do
aldeia
vegetal; caminho do
insetos yãkwa
cultivo das roças
de mandioca
aldeia rituais (familiares e
coletiva) e milho
de várzea
roças de milho
(corte da
caça de
vegetação); anzóis e
acampamento aves
colheita da fava, armadilhas
(macuco)
tubérculos,
algodão etc.
LEROHI

colheita de
venenos
aldeia rituais mandioca (roça
vegetais
coletiva)

roças de milho
(queimada e
acampamento plantio); colheita mel
da fava,
tubérculos etc.

aldeia rituais
SALUMÃ/KATEOKÕ

filhotes de
pássaros
mel;
(papagaio,
anzóis, frutos
periquito
venenos (bacaba,
acampamento etc.);
vegetais, castanha,
artefatos de
armadilhas jenipapo);
argila,
insetos
algodão e
outros
colheita de milho preparativo
verde e s para a
aldeia rituais
mandioca (roças estação
familiares) yãkwa
Tabela 1: O ciclo das estações enawene-nawe
(Fonte: Mendes dos Santos, 2001: 65)

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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Os Enawene-Nawe distinguem-se como exímios pescadores, fazendo


uso de variadas técnicas em diferentes locais e momentos do ciclo
hidrológico. Os peixes, dizem os especialistas, representam um recurso
escasso nos rios da bacia do Juruena, cujas águas são pobres em nutrientes.
Contudo, a baixa disponibilidade do recurso pesqueiro é amplamente
compensada pela assiduidade das pescarias e o espectro largo de espécies
consumidas - as mais comuns são piaus, traíras, matrinchãs, tucunarés e jaús
(Costa Júnior, 1995).

Os Enawene-Nawe pescam, praticamente, durante o ano inteiro, sendo


que as técnicas que empregam estão associadas aos fenômenos pluvio -
fluviométricos da região - período de estiagem (seca e vazante), de maio a
outubro; e período chuvoso (enchente e cheia), de novembro a abril. Para a
escolha da modalidade mais apropriada, ao lado de demandas rituais e de
outras relativas ao quinhão a ser obtido, importam ainda as características
próprias dos corpos d’água visados – rios de grande, médio e pequeno porte,
lagoas e áreas alagáveis. Utilizam-se, então, nas ocasiões apropriadas, de
anzóis (mayraytihi), arco e flecha (okori), venenos vegetais (aykyuna),
pequenas e grandes armadilhas (mata e mataxi) e construção de barragens
(wayti).

De acordo com o biólogo Plácido Costa Júnior (1995), no período da


seca são realizadas as pescarias aykyuna (venenos vegetais) em lagoas
marginais, ao lado de pesca com anzol (anzol de espera, linhada e anzol de
colher). Servem-se destas também para abastecer o ritual lerohi, e para este
fim quase toda a população, dividida em grupos, se desloca por duas ou três
semanas para acampamentos situados, em sua maior parte, nas lagoas de
maior porte ao longo dos rios Doze de Outubro (Kayawinalo), Camararé
(Wadanawina) e Juruena (Okamalare).

Na enchente, além dos anzóis, utilizam a armadilha mataxi, em forma


de cone, que é colocada nos riachos recém alagados para a captura de peixes
pequenos. Entre outubro e dezembro ocorrem as pescas rituais do salumã,
nas quais empregam tanto venenos vegetais quanto barragens. No final da
enchente as pescarias concentram-se nas áreas alagadas, utilizando anzóis,

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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armadilhas e arco e flecha. E, por fim, no período da vazante, realizam sua


pesca de maior vulto, tanto econômico como ritual, a pesca do yãkwa –
aproveitam, para isso, um dos momentos mais propícios do ciclo hidrológico,
quando os cardumes estão saindo das áreas alagadas para a calha dos rios
(Costa Júnior, ibid.: 102).

Observei durante os trabalhos periciais em abril de 2006, no


acampamento do rio Preto, as atividades cotidianas de uma pescaria para o
ritual yãkwa (ver caderno de fotografias, em anexo). Para sua realização,
divididos em quatro a cinco grupos, os homens constroem barragens em rios
de porte médio (em alguns casos, de até 40 metros de largura), verdadeiras
obras de engenharia que represam parcialmente o curso fluvial, onde se
encaixam dezenas de jequis (mata), ou armadilhas em forma de cone. A forte
sucção que ali se forma é suficiente para aprisionar os peixes que descem em
direção aos rios maiores. Os jequis são vistoriados três vezes ao dia, e os
peixes retirados são acondicionados em invólucros trançados, cujo formato
lembra “raquetes”, para serem moqueados em jiraus.

Tradicionalmente, as barragens têm sido construídas nos seguintes rios:


Joaquim Rios (Tinuliwina) e Mutum (Muxikiawina), ambos tributários do rio
Camararé; Nambikwara (Huyakawina), tributário do Doze de Outubro;
Papagaio (Hoyrawinalo), tributário da margem direita, e Arimena (Olowina),
Anasseuiná (Anasewina) e Rio Preto (Adowina), tributários da margem
esquerda do Juruena. Denominadas wayti, as barragens são erguidas num
mesmo local por sucessivos anos: nos levantamentos realizados em 1993-
1994, foram mapeados um total de 24 desses locais, utilizados pelos
Enawene-Nawe há pelo menos três gerações (Costa Júnior, 1995:128-132).

Através do contato com pescadores artesanais da região, os Enawene-


Nawe haviam se apropriado, já em meados da década de 1990, de algumas
redes de pesca, pouco utilizadas porém. A introdução anterior do anzol e da
linhada, todavia, havia significado uma “verdadeira revolução” tecnológica no
manejo dos rios e na produtividade do esforço pesqueiro, segundo Costa
Júnior:

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“Com o uso do anzol de espera, extensos trechos de margens de rios de médio e


grande portes puderam ser utilizados em pescas individuais principalmente no
período da seca, como também durante a enchente.
As linhadas e os anzóis de colher começaram a ser utilizados no canal dos rios,
principalmente em regiões de corredeiras (...), como também em alguns
remansos para a captura de peixes carnívoros e em extensos trechos do rio para
a captura de peixes omnívoros como o piau (...). As linhadas ainda são utilizadas
em grandes poços, regiões profundas do rio, onde são deixadas de espera para a
captura do jaú (...).
Estas inovações, juntamente com a introdução dos machados, facões e enxós,
que viabilizaram a substituição das antigas canoas de casca de jatobá por
canoas de tronco de cerejeira maciça, possibilitaram uma intensificação de
manejo de novos biótopos em diversificadas etapas do ciclo hidrológico, do
aumento do esforço de pesca per capita, aumentou-se a eficiência da
navegação pelo território” (Costa Júnior, op. cit.: 106).

A coleta de frutos, insetos, fungos e mel, via de regra, acontece nos


arredores da aldeia e dos acampamentos de pesca e de roças de milho, no
começo da estação chuvosa. A coleta fornece complementos alimentares e ,
também, matérias primas para enfeites, roupas e outros artefatos. Em geral,
dela participam mulheres, homens e crianças, sem muitas distinções (Mendes
dos Santos, 2001: 77). O mel é consumido, in natura ou misturado à água,
no dia a dia. O sal vegetal, por sua vez, um importante ingrediente dos rituais,
é obtido das cinzas de várias plantas silvestres, especialmente palmeiras,
dissolvidas em água, filtradas e depois fervidas até a completa evaporação
(id., ibid.: 80).

A agricultura, segundo Gilton Mendes dos Santos (1995a; 2001)


distingue-se à primeira vista pela forma de organização social da produção,
seja o cultivo de roças coletivas ou roças familiares, e pelas espécies vegetais
mais destacadas pela sociedade enawene-nawe, a mandioca (ketekwa) e o
milho (koretokwa). Num e noutro caso, outras espécies são ali também
cultivadas, embora em menor escala, como o amendoim, o urucu, o inhame,
a batata doce, o feijão fava e o algodão. De modo que, explica Mendes dos
Santos (2001: 88), “o modelo de agricultura baseia-se numa clara distinção
entre o cultivo do milho distante da aldeia, em solos mais férteis (...), e o
cultivo da mandioca ao redor da aldeia, com predomínio de solos mais
pobres”.

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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Ademais, as práticas agrícolas cumprem duas exigências vitais, o


consumo alimentar e a “troca” ritual com os espíritos. As roças familiares,
além do consumo da família e do grupo doméstico, objetivam o suprimento
de produtos agrícolas durante os meses em que transcorrem os rituais
salumã e kateokõ (Mendes dos Santos, 1995a: 46). Por sua vez, as roças
coletivas devem abastecer estritamente a população como um todo, durante
as performances cerimoniais.

Cultivam doze variedades diferentes de mandioca-brava e uma de


mansa, das quais elaboram vários tipos de alimentos. Nas roças de mandioca,
nos arredores da aldeia, predominam solos arenosos e mais esgotados. Além
das roças familiares, os Enawene-Nawe possuem uma roça de mandioca
coletiva, que serve aos rituais yãkwa e lerohi. Por sua vez, para o cultivo do
milho identificam as porções de terras mais férteis e irrigadas do seu território,
razoavelmente distantes da aldeia – ali erguem moradias provisórias, onde
permanecem durante o cultivo. Nos últimos anos, segundo Mendes dos
Santos (2001: 100), os Enawene-Nawe têm explorado a região das
cabeceiras do rio Mutum para o cultivo do milho.

Quanto aos dados demográficos, em 1975 os missionários jesuítas


contabilizaram uma população de 97 pessoas. Censos mais acurados,
entretanto, foram realizados em 1981 e em 1983, conduzidos pelo jesuíta
Vicente Cañas e indigenistas da OPAN. A partir de 1988, quando esta entidade
assumiu definitivamente o Projeto Enawene-Nawe, as informações censitárias
foram registradas com maior freqüência. A contribuição mais intensa de
antropólogos e outros pesquisadores e o convênio com a FUNASA para o
atendimento à saúde, a partir de 2001, aprimoraram os métodos utilizados
para os recenseamentos periódicos. A tabela abaixo, que contempla a
seqüência histórica dos dados demográficos disponíveis (ano, população e
fonte), registra o crescimento mais acelerado da população nos últimos anos:

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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Ano População Fonte


1975 97 Cañas/MIA
1981 131 Cañas/MIA; Weber/OPAN, 1981
1983 148 Lisbôa, 1985: 84-88
1984 156 Lisbôa, 1985: 58
1986 164 Cartagenes/OPAN, 1986
1987 168 Silva, 2002
1988 177 Silva e Sá/OPAN, 1995
1989 192 Silva, 2002
1990 199 Silva e Sá/OPAN, 1995
1991 211 Paula e Sá/OPAN, 1991
1992 220 Sá/OPAN, 1992
1993 229 Paula e Sá/OPAN
1994 237 Sá/OPAN, 1994
1995 245 Silva e Sá/OPAN, 1995
1996 260 Silva e Sá/OPAN, 1995
1997 268 Silva, 2002
1998 288 Wyatt/OPAN, 2002
1999 298 Wyatt/OPAN, 2002
2000 300 Wyatt/OPAN, 2002
2001 320 M. Silva, 2002
2002 337 Wyatt/OPAN, 2002; M. Silva, 2002
2003 365 OPAN/FUNASA, 2003
2004 385 OPAN/FUNASA, 2004
2005 403 OPAN/FUNASA, 2005
2006 435 OPAN/FUNASA, 2006
Tabela 2: Série histórica da população enawene-nawe

De acordo com o antropólogo Marcio Silva (2006), dentre outros


aspectos a assinalar, esses números revelam um firme e continuado
crescimento da população desde os primeiros contatos. Contudo, se a
população cresceu bastante de 1974 aos nossos dias, o ritmo tem se
acelerado ainda mais nos últimos anos. Em pouco mais de duas décadas, os
Enawene-Nawe já haviam mais que dobrado a população inicial. Porém,
considerando os dados do intervalo entre 1992 e 2006, percebemos que
agora o ritmo de crescimento é tal que permite dobrar a população em
apenas 14 anos.

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
1ª Vara da Justiça Federal - Mato Grosso

Demografia Enawene-Nawe

500

450

População
400

350

300

250

200

150

100

50

0
1975

1977

1979

1981

1983

1985

1987

1989

1991

1993

1995

1997

1999

2001

2003

2005
Ano

Gráfico 1: Crescimento demográfico dos Enawene-Nawe

Por outro lado, os dados censitários apontam para um contingente


populacional bem mais jovem do que o dos anos setenta. Atualmente, quase
dois terços da população é “criança” (dinwá), segundo a classificação nativa, o
que muito provavelmente, na opinião de Marcio Silva (op. cit.), pode acarretar
conseqüências importantes na sua capacidade produtiva – embora,
evidentemente, a questão não se esgota apenas nos aspectos econômicos.

No que tange aos conflitos que ocorreram em período anterior aos


fatos discutidos na presente Ação, cumpre destacar: a morte de um
topógrafo e seu auxilliar no rio Preto, em 1984; a morte de uma família de
agricultores nas cabeceiras do rio Canoas, em 1986; a morte do jesuíta
Vicente Cañas Costa às margens do rio Juruena, em 1987; e a invasão
através da gleba São Camilo, entre os rios Juruena e Sapezal, entre 1987 e
1989.

Desde fins de 1982 os Enawene-Nawe vinham retomando a exploração


da região do rio Iquê, de onde haviam sido afastados décadas antes pelos
ataques desfechados pelos Cinta-Larga. Em agosto de 1984, segundo o

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relato dos acontecimentos feito pelo padre Thomaz Lisbôa (1985: 88-95),
depois de plantarem suas roças de milho, um grupo de homens seguiu em
suas canoas rio Iquê acima, e avistou na margem esquerda um picadão com
cerca de arame. Alarmados com a invasão, foram ao acampamento mas não
havia ninguém no local – apenas um trator de esteira que danificaram. No
início de setembro, retornaram ao local, quando mataram dois homens e
feriram outros dois que ali faziam trabalhos de medição. Os fatos foram
noticiados pelo jornal “O Globo”, na edição de 10 de setembro de 1984:

“Identific ada a tribo que assassinou topógrafos

Cuiabá - Os índios que mataram dois topógrafos e feriram dois picadeiros terça-
feira passada no município de Juína, norte de MT, são da tribo Salomá. A
informação é do coordenador da Operação Anchieta (OPAN) em Mato Grosso,
Ivar Busatto que conseguiu entrar em contato por rádio com Vicente Canhas, da
Missão Anchieta. Canhas vive com esses índios desde 1976.
Os topógrafos mortos são Jorge Araújo e Orlando Vargas, da cidade de Juína. Os
nomes dos dois sobreviventes serão revelados hoje pelo Delegado da FUNAI
Amilton Monteiro.
Segundo as versões que chegaram a Cuiabá, o ataque dos Salomá teria ocorrido
há 30 quilômetros da margem esquerda do Rio Juruena, nas proximidades do seu
afluente Rio Preto, próximo também do local onde os índios Cinta Larga sofreram
um massacre anos atrás [a bem da verdade, onde os Cinta-Larga atacaram os
Enawene-Nawe].
Os Salomá ficaram irritados com as sucessivas incursões de brancos em seu
território.”

O jornalista Lucky de Oliveira (Correio Braziliense, 11 de setembro de


1984), por sua vez, apurou que a equipe de trabalhadores estava a serviço
do fazendeiro Eloy Monteiro de Carvalho, para demarcar terras
pretensamente tituladas pelo governo estadual, e deparou com um grupo de
quinze índios nas imediações do rio Preto, onde ocorreu o ataque - agredidos
a golpes de borduna e facões, morreram o topógrafo João Batista dos Santos
e o picadeiro Oswaldo Vargas, e conseguiram fugir os sobreviventes Nerino
Rodrigues de Camargo e Manuel de Oliveira Costa e Silva (Inquérito Policial
206/84, Terceira Vara Criminal, Terceiro Ofício). Como explicou Vicente Cañas
ao delegado da FUNAI Amilton Monteiro, deslocado ao rio Juruena para
verificar a situação in loco, as recentes picadas de medição atingiram o
córrego Olowina (rio Preto), lugar sagrado para os Enawene-Nawe (Lisbôa,
1985: 94).

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Por muito tempo, o clima de revolta e o revanchismo contra os índios


perduraram entre os moradores de Juina e das imediações; inclusive, na
ocasião, correram boatos sobre a preparação de uma expedição punitiva dos
fazendeiros (id., ibid.: 96, 105). Todavia, em função desses acontecimentos
foi criado um Grupo de Trabalho pela FUNAI para uma nova definição dos
limites da área indígena.

Em julho de 1986, desta feita nas cabeceiras do rio Canoas, um


afluente da margem esquerda do rio Iquê, próximo ao eixo da estrada Juina-
Vilhena, foram mortos pelos Enawene-Nawe oito pessoas de uma mesma
família – Antônio Ferreira, sua esposa e mais seis filhos. A gleba havia sido
grilada pelo fiscal da Secretaria da Fazenda de Mato Grosso, Joaquim Campos
Dourado, depois loteada e vendida e revendida a dezesseis famílias, dentre as
quais a de Antônio Ferreira (Inquérito Policial 70/86 da Primeira Vara Criminal,
Terceiro Ofício). No local atuavam também as madeireiras Estil e Paulicéia,
respaldadas em documentos visivelmente fraudados (O Estado de Mato
Grosso, edição de 17 de julho de 1986).

Nas cidades de Juina e Brasnorte, com isto, recrudesceram os boatos e


as ameaças de retaliação contra os índios e o jesuíta Vicente Cañas, o
responsável direto pela assistência prestada pela Missão Anchieta aos
Enawene-Nawe. É neste quadro tumultuado, que tem de um lado a angústia e
a revolta de parentes e conhecidos das vítimas e, de outro, os interesses
contrariados de certos segmentos regionais com o andamento da proposta
para a demarcação definitiva da área indígena, que se tramou a emboscada
que vitimaria o jesuíta às margens do rio Juruena, nos primeiros dias de abril
de 1987. Seu corpo mumificado foi encontrado por membros da Missão
Anchieta, no dia 16 de maio daquele ano, caído no lado de fora da barraca que
lhe servia de apoio para o trabalho indigenista. Além da perfuração por objeto
cortante na região abdominal, as autoridades policiais e os peritos verificaram
a existência de inúmeros sinais de violência no local (Jornal do Dia, 1987;
Diário de Cuiabá, 1987). Durante muitos meses, abalados pelo
desaparecimento do seu protetor, os Enawene-Nawe vivenciaram ainda a
apreensão acerca dos desdobramentos da crise, pois temiam serem atacados

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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em sua própria aldeia. Quase vinte anos depois, nem a investigação policial ou
o inquérito judicial foram ainda suficientes para esclarecer os autores e as
reais motivações do assassinato do missionário.

A última ocorrência conflituosa a ser comentada trata-se, justamente,


dos fatos que foram examinados no Processo no 89.0000058-6, da Primeira
Vara da Justiça Federal em Mato Grosso, impetrado por Camilo Carlos Obici e
outros contra FUNAI e União Federal, que se acha apensado à presente Ação.
No fulcro daquela iniciativa judicial (uma Ação de Manutenção de Posse),
estavam a Portaria da FUNAI PP/3544, de 19 de outubro de 1987, que
interditou a então chamada “Área Indígena Salumã”, e as medidas efetivadas
por uma equipe da FUNAI em novembro de 1988, com o acompanhamento
de índios Enawene-Nawe. Com o objetivo de coibir o loteamento e venda da
Gleba São Jorge (ou Gleba São Camilo, uma área desmembrada da Gleba
Sapezal), que vinha sendo promovida por Camilo Carlos Obici (o pretenso
proprietário das terras), a FUNAI proibiu o acesso ao local e apreendeu os
tratores que ali abriam picadões.

Em maio de 1987, o administrador regional da FUNAI em Vilhena, José


Eduardo da Costa, retransmitiu um comunicado do técnico Ariovaldo José dos
Santos, que, durante um sobrevôo, registrara o avanço das estradas e da
ocupação agrícola na região do rio Sapezal:

“Área Indígena Salumã limite leste constatamos a margem esquerda do rio


Sapezal, mais ou menos dez quilômetros ao norte linha telegráfica Rondon,
formação núcleo rural com serraria implantada, área de cerrado sendo
mecanizada, boa estrada de acesso, sendo que já existem invasões de picadas
(duas) atravessando o rio Sapezal até o rio Juruena (...) próximo córrego Pedra
de Fogo, margem direita, início mecanização de terreno no campo com estrada
de acesso local dirigindo-se a estrada núcleo rural. Verificamos ainda estrada no
divisor de águas Sapezal e Juruena, rumo norte, desviando após 15 quilômetros
a nordeste afastando do limite com a área indígena Salumã” (Santos, 1987).

Em outubro de 1988, alguns Enawene-Nawe em pescaria pelo rio


Juruena encontraram uma estrada e tratores, e comunicaram o fato aos
membros da equipe da OPAN – Operação Amazônia Nativa, entidade
indigenista que havia assumido a assistência a eles. Foram solicitadas
providências à FUNAI e ao governo estadual para a retirada dos invasores e a
demarcação definitiva da área indígena, parcialmente atendidas. Em destaque

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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abaixo, algumas observações recolhidas de relatórios de viagem dos técnicos


envolvidos:

No “Relatório de viagem à Área Indígena Salumã” (Cuiabá: FUNAI, 1 de


dezembro de 1988; fls. 239-244 dos referidos autos originais) o engenheiro-
agrimensor Arnold Luyten informa que, por determinação da superintendência
da FUNAI em Cuiabá, realizou em fins de outubro de 1988 uma viagem ao
local da invasão, acompanhado por Daniel Matenho Cabixi, coordenador de
Assuntos Indígenas do governo estadual, Marcos Mendes Batista, indigenista
da OPAN, dois policiais federais e índios Enawene-Nawe. Sobrevoaram a
região onde os índios haviam localizado as picadas de topografia à margem
direita do rio Juruena; subindo o rio Juruena, acima da barra do Camararé,
encontraram sinais de acampamento dos topógrafos invasores, onde os
índios estiveram dias antes, mas não encontraram ninguém; uma hora de
barco rio acima, avistaram uma picada e chegaram ao picadão aberto por
trator de esteira; adiante, avistaram o trator desmontado; mais à frente, um
outro picadão no sentido sul-norte, onde estavam mais dois tratores, logo
apreendidos. Na ocasião, foram colocadas placas de advertência “em todo o
percurso até a divisa da área interditada”. Dias depois, realizaram um novo
sobrevôo para plotar os picadões que, desde seu ponto terminal no rio
Juruena, invadiam a área indígena ao longo de 25 a 30 quilômetros.

Segundo o “Relatório de viagem” da equipe de servidores da FUNAI e


INTERMAT, que realizou a vistoria em março de 1989, a Gleba São Jorge,
situada entre a margem direita do rio Juruena e a margem esquerda do rio
Sapezal, “trata-se de uma área com terra de péssima qualidade e não possui
nenhuma benfeitoria senão trechos de estrada aberta” (Soeiro et alii, 1989;
fls. 221-222 dos referidos autos).

Em março do ano seguinte, o assistente técnico do INTERMAT –


Instituto de Terras de Mato Grosso, Jovan Benedito da Silva, vistoriou
novamente a Gleba Sapezal, para elaboração de “Laudos de Vistorias e
Benfeitorias” na Gleba. Ali foi recepcionado por Antonio Pereira de Barros,
conhecido como “Tico”, que já havia doze anos trabalhava para Camilo Carlos
Obici, pretenso proprietário das terras, e lhe forneceu as informações

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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necessárias sobre a situação da gleba. Na ocasião da vistoria, os então


ocupantes afirmaram que Camilo Carlos Obici seria possuidor de títulos
definitivos daqueles lotes e que poderia escriturar os interessados na compra.
Contudo, observou criticamente o técnico do INTERMAT:

“existe uma divergência quanto às posições das áreas no pedido de


Regularização de Posse [feitos ao INTERMAT], pois a maior parte ou seja 85%
dos pedidos incide totalmente dentro da Reserva Indígena Salumã, e os
ocupantes atuais compram as áreas do Sr. Camilo Carlos Obici que se diz
proprietário da Gleba São Jorge com 185.000 ha aproximadamente, cuja área em
fase de arrecadação é de 109.000 ha, através do Instituto de Terras de Mato
Grosso – INTERMAT” (Benedito da Silva, 1990; fls. 223-232 dos referidos autos).

Em resposta aos quesitos propostos neste tópico, de modo sumário,


foram assinalados os aspectos culturais considerados relevantes para uma
adequada compreensão da sociedade indígena em foco, bem como as
atividades produtivas que evidenciam a ocupação territorial plena e exclusiva
da área indígena pelos próprios Enawene-Nawe. Da mesma maneira, foram
apresentadas as referências históricas e a narrativa dos primeiros contatos
com segmentos da sociedade nacional e circunstanciados os conflitos mais
graves que vieram a ocorrer desde então. Nestes e noutros acontecimentos,
sobretudo, há de se observar a postura decidida e corajosa dos Enawene-
Nawe, por vezes extravasada com acirrada violência, ao levar a cabo a defesa
de seu território tradicional e seus recursos naturais, a despeito de percalços e
possíveis retaliações. Traço saliente do seu ethos, enfim, tal disposição
enérgica mostrou-se um fator crucial em todo o processo que culminou na
demarcação da área indígena a eles destinada, bem como nos eventos
relacionados à tentativa de sua invasão através da construção da estrada
Sapezal-Juina em 1998, que serão abordados no tópico seguinte.

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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OS IMPACTOS DA CONSTRUÇÃO DA ESTRADA

Quesitos da FUNAI
7) Entre os traços culturais antes descritos, quais sofreram e vêm sofrendo
influência pós contato?
8) Com abrupta penetração no território indígena, mormente com a construção
da estrada, pode-se identificar influências negativas no processo cultural próprio
do grupo?
9) Caso positivo o quesito anterior, quais os traumas advindos dessa
aproximação abrupta e ou precipitada do grupo indígena com a sociedade
nacional?
10) Houve desrespeito ao processo gradativo de aproximação do grupo indígena
com a sociedade nacional em face da construção da estrada?
11) O art. 231 da Constituição Federal reconhece a organização social indígena,
traduzida pelas suas tradições, e o direito originário pelas terras que ocupam
permanentemente. Desse modo, houve alguma forma de consulta aos índios
acerca da pretensão de se cortar estrada em seu território?

Quesitos do Ministério Público Federal


1) Se a estrada sub óculi adentrou a terra indígena descrita na peça inicial do
presente processo?
2) Qual a intensidade do tráfego de veículos e pessoas na estrada, ou seja,
esclarecendo qual o grau de utilização da via terrestre em foco?

Grosso modo, no entender de vários antropólogos e demais


profissionais que ali realizaram pesquisas ou prestaram serviços, até fins dos
anos 1990 (quando já se passavam mais de duas décadas dos primeiros
contatos), não parecia então haver agravos mais sérios à inteireza cultural da
sociedade enawene-nawe. A introdução paulatina de alguns elementos
alienígenas, como linhas, panelas, ferramentas e utensílios de pesca, não
acarretara embaraços à sua autonomia econômica. Até aquele momento, os
Enawene-Nawe não haviam sofrido mudanças culturais mais drásticas ou
depopulação, como ocorreu com tantos povos indígenas recém-contatados.

Para fins de uma avaliação pormenorizada, a pesquisadora Maria Clara


Weiss (1998: 47-48) organizou o quadro comparativo abaixo, onde
confrontou os traços culturais tradicionais e os novos elementos adquiridos.

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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ITENS CULTURA PRÓPRIA SUBSTITUIÇÃO INTRODUÇÃO


Pilão de tronco de
árvore
Borduna
Peneira de palha
Cuia de barro Bacias de alumínio
Utensílios de
Panelas de barro Panelas de alumínio
cozinha
Cabaça
Abanador de palha
Jirau
Ralador de madeira
Tigela de barro
Cesto de palha Tesoura
Rede de algodão Linha de algodão
Corda de tucum Sabão
Pente de taquara Camisa
Objetos domésticos
Saia de algodão Calção
e pessoais
Brincos de concha Espelho
Pulseiras de tucum Boné
Saia de algodão Isqueiro
Pente de taquara Lona
Instrumentos Flautas sagradas
musicais Chocalhos
Arco e flecha
Borduna Arame
Armadilhas Linha de nylon
Machado de pedra Machado de ferro Machado de ferro
Borduna na pesca Pesca com facão Facão
Tear Faca
Instrumentos de
Fuso Enxada/enxadão
trabalho
Cestos grandes Foice
Barragens de pesca Lima chata
Venenos vegetais Anzol/Chumbada
Máscara de mergulho
Redes de pesca
Arpões de pesca
Algodão
Mandioca
Feijão
Cultivos e coleta
Amendoim
Mel
Sal
Araras
Criação Gavião
Papagaio
Locomoção e Canoa de jatobá Canoa de cerejeira
comunicação Remos Rádio transmissor
Habitação e Malocas Casa do rádio
construção Casa das flautas Casa dos remédios
Agricultura
Pesca
Economia
Coleta
Artesanato
Remédios
Saúde Plantas medicinais Vacinação
Sistema tradicional Borrifação
Língua Aruak Escrita
Yãkwa
Religião Lerohi
Salumã
Tabela 3: Mudanças culturais 1974–1997
(Fonte: Weiss, 1998: 47).

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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De alguma maneira, desde os primeiros contatos amistosos em 1974,


o conservantismo cultural dos próprios Enawene-Nawe conjugou-se à firme
preocupação dos jesuítas Thomaz Lisbôa e Vicente Cañas da MIA - Missão
Anchieta em evitar interferências substantivas na vida da comunidade
indígena. Partilhando de uma visão renovada da ação missionária no âmbito
da Igreja Católica brasileira, sustentavam como princípios norteadores o
respeito à cultura indígena e uma convivência mais despojada no cotidiano da
comunidade indígena – um tipo de presença junto aos índios que o jesuíta
Lisbôa (1985: 56) chamou de “missão calada”. Segundo os relatórios da MIA
e da OPAN que foram consultados para fins desta perícia, nos primeiros anos
o trabalho destas entidades junto aos Enawene-Nawe consistiu, tão-somente,
num programa de vacinações e acompanhamento à saúde, enquanto
procuravam conhecer melhor seu modo de vida e sua língua. Ademais,
mostraram atenção ao problema da identificação dos limites do território
tradicional, para fins de elaboração de uma proposta para sua demarcação
(Schroeder, 1990).

A partir de 1977, a OPAN já estava integrada ao trabalho de assistência


aos Enawene-Nawe – na verdade, subsistiam relações estreitas com a Missão
Anchieta desde a fundação dessa entidade de voluntários em 1969
(Schroeder e Paula, 1989). Com a morte de Vicente Cañas em 1987, por
conseguinte, coube-lhe dar continuidade ao atendimento dos Enawene-Nawe.
As linhas de atuação da entidade para o chamado “Projeto Enawene-Nawe”
estão em sua página da internet, numa breve exposição:

“Seu objetivo é promover ações nas áreas de educação, saúde, economia e


defesa das terras indígenas. A sede do projeto localiza-se no município de
Brasnorte. (...)
Para a garantia da integridade do território indígena, a OPAN desenvolve junto
com os Enawene-Nawe um programa de fiscalização dos limites e o
monitoramento do seu entorno.
O programa de saúde prevê a imunização a doenças, combate à malária e o
apoio às formas tradicionais de saúde. Para os Enawene-Nawe, ao contrário de
tantos outros povos indígenas no Brasil, o contato com a sociedade brasileira
não significou depopulação: de 1974 a 2000, sua população subiu de 98 para
340 pessoas, com uma taxa média de crescimento em torno de 4% ao ano.
O estudo descritivo da língua falada pelos Enawene-Nawe permitiu iniciar, em
1995, um inédito programa de alfabetização na própria língua nativa, que se

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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diferencia por recusar a imposição de um espaço escolar exógeno e autoritário.


Recentemente, por solicitação dos Enawene-Nawe, o ensino da língua
portuguesa e a aritmética foram incorporados ao programa, no qual se discute
ainda temas políticos, econômicos e epidemiológicos da região e do País.
Em parceria com o GERA (Núcleo de Estudos e Pesquisas do Pantanal, Amazônia
e Cerrado da Universidade Federal do Mato Grosso) e a UNICAMP (Universidade
de Campinas) a OPAN empreendeu, com recursos do Fundo Nacional do Meio
Ambiente/MMA, o projeto de pesquisa intitulado “Estudo das potencialidades e
do manejo dos recursos naturais na área indígena Enawene-Nawe”.
Ainda no campo da economia, buscou-se ampliar a produção interna, através do
plantio de castanheiras e da introdução de outros cultivares. No momento, a
equipe está implementando um pequeno projeto de apicultura.
Nos últimos anos intensificaram-se os contatos com a população envolvente
assim a pressão das frentes econômicas, na forma de garimpos, madeireiras, e
pecuária e agricultura altamente tecnificadas. O desafio atual que se coloca é
de acompanhar e refletir com os Enawene-Nawe esta nova conjuntura regional”
(www.opan.org.br).

De acordo com o antropólogo Gilton Mendes dos Santos (2004: 43),


os Enawene-Nawe teriam permanecido “isolados e bastante desconhecidos
até final da década de 1980” por duas razões. Primeira, a baixa pressão sobre
as florestas até então – foi a partir do declínio do garimpo, na região noroeste
mato-grossense, que aumentou o desmatamento para pastagens, fazendas,
posses e núcleos urbanos. E segunda, a política indigenista adotada pela
Missão Anchieta e pela OPAN. Para ele, muito embora o ano de 1998 tenha
representado um “marco na história dos Enawene-Nawe”, devido à
negociação e ao aliciamento por produtores de soja do município de Sapezal,
com o apoio da prefeitura local, para a construção da estrada cortando a área
indígena, o quadro geral ainda é de estabilidade:

“Eles continuam ainda bastante ‘distantes’ da vida citadina moderna, praticando


suas ‘tradicionais’ atividades de pesca, agricultura e coleta, construindo suas
casas com o mesmo material e estilo de outrora e dando cabo, na íntegra, da
sua intensa vida cerimonial, que se constitui numa poderosa maquinaria social
que os remete sempre para os compromissos e obrigações internas, com a legião
de espíritos e os grupos sociais estabelecidos” (Mendes dos Santos, op. cit.:
45).

Esta foi, também, a conclusão a que cheguei por ocasião da vistoria


pericial em abril de 2006. Dentre outros fatos a comprová-la, cabe mencionar
que foi por mim observado no acampamento no rio Preto que visitei, o fervor
com que se entregavam às atividades na barragem de pesca (ver fotografias,
em anexo), uma das etapas preparatórias indispensáveis ao ritual yãkwa,

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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conforme descrito no tópico anterior. Com toda a certeza, na medida em que


assegurou aos Enawene-Nawe o necessário espaço territorial para a
reprodução de seu sistema social e econômico, a defesa intransigente e a
demarcação de suas terras representaram um fator determinante para a
vitalidade cultural que ora se observa.

A primeira iniciativa nessa direção deve-se aos jesuítas Cañas e Lisbôa


que, em correspondência ao presidente da FUNAI, em junho de 1978,
solicitaram-lhe a interdição urgente de uma área que compreendia a extensão
entre os rios Iquê e o Doze de Outubro, a oeste, e outra entre os rios Juruena
e o Papagaio, a leste (Lisbôa, 1985: 65-67, inclusive o croquis da área
indicada). Acerca da necessidade da interdição, acrescentaram os seguintes
argumentos:

“Com esse território estaremos assegurando para os Salumã [os Enawene-Nawe]


a possibilidade de uma sobrevivência digna. Qualquer restrição nesse território
seria condenar os Salumã à impossibilidade de sobrevivência como povo, pois as
terras dessa área, na sua grande maioria, são fracas e a maior fonte de
sobrevivência deles são os peixes que retiram com abundância dos muitos
córregos afluentes do Camararé e Juruena” (id., ibid: 66).

Nesse mesmo ano, entretanto, o governo estadual doaria à União


Federal uma área de 266 mil hectares para a instalação da Estação Ecológica
do Iquê, através do Decreto 1452, de 1/08/88, que se sobrepunha a uma
parte do território indígena tradicional (ver mapa “A área indígena Enawene-
Nawe e a estrada Sapezal-Juina”, em anexo).

Apenas em outubro de 1979 a FUNAI constituiu um primeiro Grupo de


Trabalho, coordenado pela antropóloga Ana Maria Ribeiro Lange (Portaria no.
630/E, de 22/10/1979), com a finalidade de verificar os limites descritos
acima para a área indígena e de avaliar a proposta de sua interdição. Contudo,
pouco se conhecia então sobre o modo de vida e a ocupação territorial dos
Enawene-Nawe – dentre outros motivos, porque os rudimentos lingüísticos
adquiridos pelo jesuíta Cañas não permitiam que indagasse a fundo sobre seu
habitat ou sua história passada. De modo que, as propostas de interdição que
este Grupo de Trabalho e o seguinte, coordenado pelo antropólogo Arthur
Nobre Mendes (Portarias 357/P, de 9/07/81, e 1057/E, de 30/07/81),
apesar de corretas em suas linhas gerais, não abrigaram o trecho de terras

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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destinado à Estação Ecológica do Iquê criada em 1978 (Decreto 1.452, de 1


de agosto de 1978).

Sob o impacto do massacre de um topógrafo e seu auxiliar pelos


Enawene-Nawe nas imediações do rio Preto, a FUNAI compôs às pressas um
terceiro Grupo de Trabalho em setembro de 1984, desta feita sob a
coordenação do antropólogo Rinaldo Sérgio Vieira Arruda, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (Portaria 1766/E, de 19/09/1984), para
proceder “os estudos visando à definição dos limites da área indígena (...),
bem como o respectivo levantamento fundiário”. E por último, após o
assassinato de Vicente Cañas, os três antropólogos anteriormente designados
referendaram uma nova proposta que a Missão Anchieta havia finalizado em
julho de 1986, com diferenças importantes em relação às anteriores – estas,
como já disse, vindas à luz em momentos diversos, não expressavam de
modo pleno a história, a organização social, a vida econômica e o sistema
religioso dos Enawene-Nawe:

“Desde então certas lacunas no conhecimento do grupo foram sendo


preenchidas, sendo corroboradas também pelas ações dos Enauenê-Nauê na
defesa de suas fronteiras.
O irmão Vicente Cañas desenvolveu um domínio razoável da língua tribal,
passando também a promover encontros de reconciliação dos Enauenê-Nauê
com os grupos tribais vizinhos, antigos inimigos. Encontraram-se com os Myky,
Pareci, Rikbaktsa, Cinta Larga e Nambiquara, em épocas diversas, trocando
presentes.
A reconciliação com os Cinta Larga consumada em novembro de 1981, permitiu a
volta dos Enauenê-Nauê ao centro de seu território tradicional, do qual faz parte
a área destinada à Estação Ecológica Iquê. Sua aldeia principal, antes à margem
direita do rio Camararé, situa-se desde então entre o rio Iquê e o rio Joaquim
Rios.
Por sua vez, a reconciliação com os Nambiquara, em 1985, permitiu a utilização
mais intensiva de outra parte do território. A área entre o córrego Toluiri Mazé e
o rio 12 de Outubro, que faz limite com a área indígena Pirineus de Souza, era
usada em parte pelos Enauenê-Nauê (pesca e coleta) e em parte pelos
Nambiquara (caça, coleta e extração de borracha)” (Lange, Ana Maria C. R.;
Mendes, Arthur Nobre; Arruda, Rinaldo S. V., 1987: 5).

Segundo os antropólogos, em conformidade com a proposta de Vicente


Cañas e Thomaz Lisbôa, o território necessário aos Enawene-Nawe teria os
seguintes limites:

“A Oeste: pelo córrego Sapezal e rio Papagaio;


Ao Norte: pelo rio Juruena, igarapé Anasseuiná e cabeceiras do rio Preto;

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Laudo antropológico – Processo 1998.36.00.005807-4
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À Leste: pela rodovia MT-319 e córrego Toluiri Mazé;


Ao Sul: pela área indígena Pirineus de Souza (Portaria 1126/E), área indígena
Nambiquara (Decreto 73.221/73) e pelo córrego Pedra de Fogo” (id., ibid.: 2).

Figura 4: Proposta de limites da MIA, 1986


(V. Cañas, T. Lisbôa e A. Iasi. Brasília, 31/07/1986)

Apenas em 19 de outubro de 1988 a FUNAI, através da Portaria


PP/3544, interditou “para fins de estudos e definição” a então denominada
“área indígena Salumã”, alijando-lhe todavia importantes trechos do território
tradicionalmente ocupado pelos Enawene-Nawe – ao norte, as cabeceiras do
rio Preto; a oeste, o igarapé Toluiri Mazé (cabeceiras do Iquê); e ao sul, o
córrego Pedra de Fogo. Ao que parece, a exclusão deste trecho ao sul atendia
os interesses de Camilo Carlos Obici, a parte requerida nesta Ação, que ali
promovia um loteamento e a instalação de fazendas, conforme exposto no
tópico acima (cfe. Processo no 89.0000058-6, apenso aos presentes autos).

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Figura 5: A delimitação da FUNAI, 1991

A área indígena Enawene-Nawe, com as reduções acima assinaladas, foi


afinal delimitada pela Portaria 464-MJ, de 13 de outubro de 1991, e, após a
sua demarcação física, homologada pelo Decreto s/n, de 2 de outubro de
1996, com a extensão de 742.088 hectares.

A participação dos Enawene-Nawe em todo o processo de demarcação


e na fiscalização da área indígena foi, e ainda tem sido decisiva, e para isso
contou com o estímulo e o apoio direto da OPAN, conforme projetos e
relatórios consultados em seus arquivos, para uma melhor interlocução com
os órgãos responsávei,; as viagens de vistoria, a colocação de placas nas

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divisas e a abertura e reaviventação de picadas (OPAN, 1990; 1991). Dentre


outros exemplos, a visita de alguns homens enawene-nawe a Cuiabá, “para
reclamar ao governo do estado sobre a atual situação com relação à
demarcação de suas terras e pedir uma fiscalização com maior rigor por parte
da Justiça visando evitar invasões”, conforme a reportagem publicada em “O
Estado de Mato Grosso”, em sua edição de 27 de outubro de 1988.

Ultimamente, os Enawene-Nawe têm pleiteado a incorporação à área


indígena de parte da microbacia do rio Preto, afluente da margem esquerda do
rio Juruena: além da ocupação ancestral e de moradia de legiões de espíritos,
os recursos naturais ali são indispensáveis à sua reprodução física e cultural -
solos férteis, peixes em quantidade e espécies vegetais que servem de
matéria prima para as atividades de pesca e rituais. De fato, é o único local
onde dispõem de jenipapo para os seus rituais, além de tufos adensados de
tabocas para flecha, bambus para flautas e palmeiras para a fabricação do sal
(fonte: OPAN, página da internet www.opan.org.br, 10/03/2006). Nesta
região, justamente, foi onde visitei um dos seus acampamentos de pesca por
ocasião desta perícia.

Desde 1998 os Enawene-Nawe ampliaram as expedições e os


acampamentos na região do rio Preto, particularmente entre os meses de
fevereiro e maio, para a construção de barragens de pesca destinadas ao
ritual yãkwa. A delonga na definição oficial da ocupação indígena vem
concorrendo para agravar os conflitos com fazendeiros e demais ocupantes
das vizinhanças. Em 2004 a FUNAI constituiu um Grupo de Trabalho para
estudo e identificação dessa área, posteriormente suspenso sem uma
justificativa plausível. Em setembro de 2005 o presidente FUNAI, Mércio
Pereira Gomes, visitou a aldeia Matokodakwa a pedido dos Enawene-Nawe
que, entre outras providências, insistiram na incorporação da área do rio Preto
(fonte: FUNAI, página da internet www.funai.gov.br, 20/09/2005). Os índios
remeteram também denúncias ao Ministério Público Federal e ao IBAMA, na
tentativa de conter ações predatórias em curso – derrubadas das matas
ciliares, assoreamento dos córregos, uso de agrotóxicos, retirada de madeira,
caça e pescas ilegais. Por diversas vezes, os acampamentos de pesca foram

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invadidos por estranhos, os tapiris incendiados e as barragens destruídas. E


em junho de 2006 representantes dos Enawene-Nawe vieram a Cuiabá,
trazendo novas denúncias ao Ministério Público Federal e à Secretaria Estadual
de Meio Ambiente (Sema) – segundo reportagem do jornal “Diário de
Cuiabá”:

“’Antigamente, não existia isso de fazendeiro, garimpeiro e madeireiro no rio


Preto. Aquilo ali era só aldeia. A cada ano que passa, porém, a região está mais
destruída. Não estão respeitando nada da legislação ambiental. São
desmatamentos, pontes, estradas, garimpos’, enumerou Kawalitiwalo Ene, uma
das lideranças do grupo que desembarcou na Capital.
Dizendo-se ‘cansados’ de levar o caso ao conhecimento da Funai (...), os
enawenê pediram ao MPF e à Sema ações de emergência para, ao menos,
assegurar a integridade da área. ‘Já fomos até em Brasília para cobrar uma
atitude da Funai, mas a entidade está muito fraca. Já não agüentamos mais
esperar’, justificou. (...)
Com o auxílio de um mapa, Donese [outra liderança] é capaz de identificar uma
dezena dessas antigas aldeias e de contar histórias e lendas a elas relacionadas.
Segundo ele, é possível encontrar artefatos que remetem à ocupação tradicional
daquele território. Até mesmo estes vestígios, contudo, estão ameaçados pelos
atuais ocupantes.
‘Estão abrindo estradas em cima de onde eram antigas aldeias’, denuncia
Kawalitiwalo, que diz ser cada vez mais tensa a relação entre os índios da etnia
e os atuais ocupantes” (Vargas, Rodrigo, 2006).

As observações feitas até aqui, em resumo, certificam um grau


acentuado de conservantismo cultural entre os Enawene-Nawe diante de
pressões e influências externas ao seu meio social. Num certo sentido, as
reações ostensivas em situações de ameaça ou de invasão do seu território
denotam uma atualização, bastante intensa, das salvaguardas prescritas pelas
tradições que os animam. Há de ser nos termos deste ethos cultural que os
caracteriza, portanto, que os gravames da tentativa frustrada de construção
da estrada Sapezal-Juina, o objeto da presente Ação, devem ser
considerados.

Em resposta aos quesitos reunidos neste tópico, cabe assim destacar


os aspectos seguintes: o caráter das tratativas que pretendiam o
consentimento dos Enawene-Nawe ao empreendimento, as condições sociais
e econômicas produzidas pela barganha e os seus efeitos mais duradouros no
contexto atual. Cada um desses aspectos, por sua vez, há de ser avaliado
sob o ponto de vista dos atores ouvidos nos trabalhos periciais – os

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Enawene-Nawe, os antropólogos e os indigenistas entrevistados -, das


informações existentes em relatórios técnicos e reportagens jornalísticas e
das observações colhidas em campo.

No mapa “A área indígena Enawene-Nawe e a estrada Sapezal-Juina”,


em anexo, está plotado o trajeto aproximado da estrada, com base nas
imagens de satélite obtidas na internet através do programa “Google Earth”
(2006). O trecho da estrada aberto em 1998, que adentrou o setor sudeste
da área indígena demarcada cerca de 55 quilômetros, atingiu a margem direita
do rio Juruena no ponto de coordenadas geográficas S 12° 09’ 18,6” e W 58°
46’ 57,5”, conforme as evidências que verifiquei in loco (ver fotografias, em
anexo). Partindo da Gleba São Camilo, no município de Sapezal, a estrada
tinha como destino a cidade de Juina, via a rodovia MT-319, que liga esta
cidade a Vilhena, em Rondônia, interligada por sua vez à rodovia federal BR-
364.

De acordo com Gilton Mendes dos Santos (2004: 45), além do acesso
entre estas cidades citadas, o empreendimento visava ainda facilitar o
escoamento da soja, a ser exportada pela hidrovia do Madeira, em direção ao
porto de Itacoatiara, no Amazonas – seja através da BR-364 para Porto
Velho, RO, ou da estrada projetada para Humaitá, AM. Convém dizer que, por
ocasião dos trabalhos de vistoria, não se observou nem foi noticiado qualquer
tráfego de veículos ou pessoas no trecho da estrada que adentrou a área
indígena, situação esta que, aparentemente, vem se mantendo desde o
embargo das obras por força de liminar oriunda da presente Ação (fls. 101-
102 dos autos).

A despeito de sua inatividade atual, os eventos em torno à construção


da estrada, repetindo aqui a avaliação do antropólogo Gilton Mendes (2004:
45-46), significaram um marco irreversível na história dos Enawene-Nawe,
um verdadeiro turning point em suas relações com segmentos e forças
externas: no novo contexto, sob o impulso da aquisição de barcos e motores
de popa (primeiramente recebidos de Camilo Carlos Obici e seus parceiros na
empreitada da estrada), logo buscaram algum domínio na língua portuguesa e
intensificaram o comércio com as cidades do entorno (Juina e Brasnorte) e o

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consumo de bens industrializados. Vejamos passo a passo como se deu este


processo.

De início, faz-se notar que a construção da estrada se apresentou aos


Enawene-Nawe como um fato consumado: quando foram avisados, as
máquinas já avançavam pelo seu território, e suas declarações contrárias não
foram admitidas nem obstaram a ação dos empreiteiros, intermediários e
autoridades municipais diretamente envolvidos na obra. Na verdade, a
construção da estrada era parte de um plano mais ambicioso, a apropriação
de uma extensa parcela da área indígena para sua conversão em lavouras de
soja. Nos termos do relato que fez Marikeroseene, o principal líder nas
negociações que então se travaram, os Enawene-Nawe jamais haviam
concordado com a construção de estrada ou a cessão de terras aos
fazendeiros:

“Antes, há oito anos atrás [isto é, em 1998], não entendíamos nada do mundo
de fora. Sempre achamos que o certo era não vender terra, não deixar os
brancos entrarem, ninguém fazer estrada aqui. Protegíamos nossa terra, e tudo
funcionava direito. O [ritual] lerohi era bonito, o yãkwa era bonito, o kateokõ
também. Tudo ia bem.
Estávamos pescando. Eu me encontrei no rio com cinco pessoas, eram Paresi e
Nambikwara. Eles vieram conversar: ‘Uma pessoa chamada Camilo quer um
pedaço de terra de vocês’. Eles não falaram em estrada ainda, falaram que
queria um pedaço de terra. ‘Essa pessoa chamada Camilo quer negociar com
vocês, ele quer um pedaço de terra, e vai dar muita coisa em troca: machado,
foice, anzol, lima, facão, carro, gasolina, posto de gasolina, médico, dentista.’
Passou um ano. Encontramos novamente com os Paresi, uma pessoa chamada
Frederico, e ganhamos alguns presentes: machado, panela, roupa, camisa. Dois
meses depois desses presentes de Frederico, chegou uma turma de Paresi para
visitar a aldeia Matokodakwa. Levaram mais presentes: anzol, machado, lima,
facão, faca, camisa... E aí disseram, à socapa, que Camilo queria a estrada. Ele
falou para mim, baixinho, que Camilo queria a estrada.
Depois dessa visita dos Paresi à aldeia, encontramos outra vez num
acampamento próximo, no rio Alowina, e então os Paresi nos levaram à fazenda
do Camilo. Foi a primeira vez que vimos o Camilo. Através dos intérpretes paresi,
começamos a conversar. Camilo fez a proposta de construção da estrada na
nossa terra. Eu e mais três Enawene-Nawe ficamos irritados. Falamos: ‘Não
queremos vender nossa terra, não queremos fazer estrada! Nós sentimos muita
saudade de nossa terra, e não queremos isso.’ E ficamos irritados com a
proposta. Os Paresi viram que estávamos irritados e falaram: ‘Não fiquem bravos,
porque os fazendeiros são muito bons. Os fazendeiros estão aqui para ajudar,
para serem bons’. Então Camilo interveio: ‘Vou dar carro, vou dar motor, vou dar
várias coisas em troca se vocês deixarem. Não é para ficar bravo’.
Teve uma reunião e depois outra reunião, e nós fomos chamados. Na fazenda,
na beira do rio, os fazendeiros tinham cinco barcos de alumínio com motores
novos e cinco barcos velhos. Os anciãos na aldeia, antes, haviam nos dito: ‘Não

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aceita nenhuma troca. Vocês vão pegar os barcos e motores para que possamos
reconquistar a terra do rio Preto. É isso que tem que fazer’. Nós não fizemos um
acordo, não aceitamos. Os anciãos disseram para pegar os barcos, porque
queriam ir para o rio Preto... Nós não tínhamos aceitado nenhum acordo. Mas os
tratores dos fazendeiros já tinham atravessado a linha divisória da demarcação
de nossas terras. Os brancos e os Paresi não estavam entendendo que não
tínhamos concordado, não tínhamos aceitado a estrada. Naquele momento os
anciãos recomendaram que pegássemos os barcos e motores e viéssemos
embora.
A construção da estrada estava acontecendo sem nosso acordo. Nosso plano
era outro, não era fazer troca. Apenas aceitar os motores. Mas as máquinas já
tinham começado, tinham atravessado a divisa demarcada de nossa área.
Ficamos tristes com isso. Fomos para a aldeia Matokodakwa conversar sobre a
situação. Já tinha acontecido.
Voltamos para a aldeia. Os anciãos insistiram, falaram: ‘Eles estão roubando
nossa terra, então vamos roubar também, vamos pegar para nós esses motores
que estão lá’. Camilo havia dito que podíamos pegar os motores, que em troca
da estrada iríamos ganhar dez motores e barcos novos, tudo novo. Ele disse na
reunião. Mas só tinha cinco motores e barcos novos.
Então, já tinha acontecido, Resolvemos chamar a Polícia Federal. A OPAN não
estava na aldeia naqueles dias. Depois resolveríamos com a Polícia Federal, para
mandar prender o Camilo. O que podíamos fazer era pegar os barcos e motores.
Já não tinha mais escolha” (entrevista no acampamento do rio Preto,
4/04/2006).

Outros informantes reiteraram que, de fato, os Enawene-Nawe não


foram consultados sobre a construção da estrada em suas terras, mas sim
constrangidos, de um lado, e aliciados pelos invasores de suas terras, de
outro:

Menalakaloseene: “A estrada estava sendo feita, e nós não sabíamos. Não


vieram comunicar. Depois, quando os Paresi vieram, a estrada já estava sendo
construída. Quando os Paresi vieram, trouxeram muitos presentes para as
mulheres, trouxeram lanternas, sapato, comida, roupa... Coisas que a gente não
conhecia. Os Paresi falavam do Camilo, que era pessoa boa, tinham muito
dinheiro. Mas eles já estavam fazendo a estrada, estavam roubando nossa terra.
E trouxeram esses presentes...”
Kamameene: “Ficamos três meses sem ninguém da OPAN na aldeia. Pensamos
que a OPAN tinha nos abandonado. E eles vieram com os presentes e a
estrada.”
Kolareene: “Eles não queriam só fazer a estrada. Eles queriam pegar um pedaço
de nossa terra. Eles demarcaram um pedaço, escondido, e disseram que só dali
para frente era dos Enawene-Nawe.”
Menakaloseene: “O Camilo falou que a estrada ia ser a divisa. Foi o André Maggi,
o prefeito [de Sapezal, à época] que mandou falar, da estrada para lá seria do
Camilo e do André Maggi. Estrada para lá, Maggi. Para cá, Enawene-Nawe”
Kolareene: “Eles [os empreiteiros] estavam armados nas reuniões [realizadas na
fazenda de Camilo Obici]. Os tratoristas também trabalhavam armados, com
revólver, cartucheira 28... Todos os tratoristas e o pessoal que estava
trabalhando tinham armas. Alguns Enawene-Nawe foram olhar o trabalho na

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estrada. Estavam cansados. O motorista do trator apontou a arma para eles...


Zico tinha muitas armas, andava sempre armado” (entrevistas na aldeia
Matokodakwa, 7/04/2006).
Marikeroseene: “Eles disseram que não eram ladrões, que queriam apenas fazer a
estrada. Mas os trabalhadores das máquinas, todos carregavam revólveres na
cintura. Nós ficamos com medo. Nós quase morremos. Era para nos intimidar.
Nós quase morremos. Pensamos que íamos morrer. Em outras ocasiões, quando
houve invasões, nós matamos os invasores, nem conversamos. Agora vieram
conversar, não estávamos entendendo. Nós procuramos a OPAN, mas não
estava na aldeia naquele momento. Pedro estava em São Paulo, seu pai tinha
morrido. O Camilo falava para não procurar a OPAN, não procurar a Polícia
Federal, o procurador da República. Dizia que ele [Camilo] era bom. Disse que ia
fazer documento, tudo certo para que as coisas fossem legais. A OPAN e a
FUNAI poderiam assinar o documento. E nós continuamos insistindo: ‘Não
queremos a estrada’. Não pensávamos que a estrada seria tão larga. Quando
vimos, ficamos tristes.” (entrevista no acampamento do rio Preto, 4/04/2006).

O indigenista Pedro Henrique Passos, então da equipe local da OPAN,


quando retornou à aldeia em maio de 1998 encontrou os Enawene-Nawe
inusitadamente abatidos, em meio à crise moral e social provocada pelas
negociações com os empreiteiros da estrada:

“Eles estavam sentindo, de maneira coletiva, uma mistura de deslumbramento e


decepção. Um deslumbramento com uma coisa nova, uma nova fase na vida
deles, frente aos motores, frente à relação com a OPAN, frente a uma mistura
de vergonha que tiveram por fazer à revelia da OPAN... Eles sabiam que fizeram
uma opção que não era consensual, principalmente entre as mulheres.
A estrada foi negociada com o testa-de-ferro do Maggi, o Camilo. O Camilo
negociou e usou alguns Paresi, principalmente o Frederico, que falava a língua. A
negociação teve início em janeiro de 1998, quando os Enawene-Nawe estavam
nas barragens. Negociaram a estrada em troca de alguns presentes: sete
motores, alguns sacos de milho, bonés, lanternas, camisetas, coisas desse tipo.
Aí a estrada apareceu, houve rumores, alguns Enawene-Nawe contaram...
Fizeram a estrada no tempo das chuvas, usando o maquinário da prefeitura de
Sapezal. Todo o maquinário era da prefeitura. Por isso a prefeitura está
envolvida... Não vimos, mas dizia-se que todo material era da prefeitura.
Os Enawene-Nawe sempre viram a equipe da OPAN de motor de popa. Pediam
motor, e a OPAN sequer dava carona... Então, quando aparece alguém dando
motor de popa, os Enawene-Nawe aceitaram na hora. Eles ficam muito
entusiasmados com os motores. Falaram inclusive que a OPAN podraia ir embora,
pois sempre foi sovina, e agora encontraram pessoas generosas. Para os
Enawene-Nawe a noção de reciprocidade é muito pertinente. Eles estavam
fazendo uma opção, mas não sabiam quais seriam os resultados, porque a OPAN
poderia ir embora... Um novo horizonte de relacionamentos com o mundo exterior
despontava naquele momento. A mistura então era de medo, deslumbramento e
incerteza. Era certo dar um pedaço de sua terra para os brancos passarem, em
troca de motor de popa, que tanto queriam? Estavam numa roleta, apostando
alto numa coisa que desconheciam...” (entrevista de Pedro Henrique Passos, em
Brasnorte, 3/04/2006).

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De acordo com as informações que obtive junto aos Enawene-Nawe e


indigenistas e antropólogos que ali estiveram, a estrada na área indígena fora
construída a mando de André Maggi, o então prefeito de Sapezal. Durante a
visita à aldeia Matokodakwa, por ocasião dos trabalhos periciais, o enfermeiro
Jair Aparecido de Sá, que trabalhou por cinco anos na Secretaria de Saúde de
Sapezal e hoje é da equipe de saúde OPAN/FUNASA, confirmou o uso
freqüente de maquinário da Fazenda Maggi nas obras da prefeitura, porque
esta não possuía mais que uma máquina pesada. Na época, acrescentou,
Camilo Carlos Obici era o principal empreiteiro do prefeito Maggi, e a estrada
não teria sido a única tarefa de que foi encarregado. Segundo Menakaloseene,
nos tratores utilizados na abertura da estrada estava escrito “Maggi” (vários
Enawene-Nawe já estavam alfabetizados, inclusive o informante).
Marikeroseene, por sua vez, atestou a participação direta do prefeito André
Maggi e de Camilo Carlos Obici nas negociações, inclusive, na reunião em que
entregaram os motores aos Enawene-Nawe – teria sido ele, afinal, o principal
responsável pelo amplo espectro de promessas oferecidas aos Enawene-
Nawe:

“Na reunião Camilo disse: ‘Eu sou muito bom. Além dos motores, eu vou construir
um posto de gasolina para vocês’. Na reunião, estava presente o André Maggi,
junto do Camilo. André Maggi, um velhinho, andou de braço dado com
Laloalohiene e comigo. Foi prometido o posto de gasolina. Camilo, André Maggi,
Blairo, filho dele, estavam juntos. Falaram que iam fazer posto de gasolina. Eles
falaram: Camilo, André Maggi e Blairo. Disseram que iam trazer médico, fazer uma
ponte sobre o rio Juruena. Eles disseram: ‘Não vai acabar, as coisas não vão
acabar’. Vou trazer camisas... Por que a OPAN não dá Toyota? vou trazer
Toyota para vocês. Por que a OPAN não dá motor? Vou trazer motor. Vou fazer
uma estrada até a aldeia de vocês. De asfalto. Na estrada, vocês vão poder
colocar uma corrente, para cobrar pedágio dos caminhões’, ele disse” (entrevista
no acampamento do rio Preto, 4/04/2006).

Já Menakaloseene confirmou que muitas vezes Camilo Obici referia-se a


André Maggi, e por isso me fez, acerca do atual processo judicial, a seguinte
pergunta durante a reunião na aldeia Matokodakwa (7/04/2006):

“Por que o processo não foi aberto contra o André Maggi? Foi o André Maggi que
mandou abrir a estrada. O Camilo era só empregado do André Maggi. Havia ainda
outro empregado, amigo do Camilo. O nome dele é Zico, e ainda mora em
Sapezal, amigo do Camilo”.

E acrescentou Kolareene, na mesma ocasião:

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“Tinha ainda outro amigo dele, Antoninho, que também trabalhou junto na
estrada. Camilo, Zico e Antoninho”.

Menakaloseene explicou daí, em detalhes, quais relações havia entre


André Maggi, Camilo Obici e os demais participantes da empreitada da
estrada:

“O Camilo era que comandava o trabalho na estrada. Era empregado do André


Maggi. O André Maggi mandava no Camilo, e o Camilo mandava nos outros.
O Camilo mandou os Paresi, de mesma língua, para falar conosco. O Camilo,
muitas vezes, falava o nome do André Maggi, que estava fazendo a estrada para
o André Maggi. Fazendo para ele. Nas reuniões, o Camilo falava que o André
Maggi tinha muito dinheiro para fazer a estrada, e que ia fazer escola na aldeia,
mandar dentista, enfermeiro. Também um posto de gasolina. O André Maggi ia
pagar um carro para os Enawene-Nawe. O dinheiro dele não ia acabar, ia fazer
tudo. Agora, ficaram os problemas para nós.
O André Maggi estava nas reuniões, e o filho dele também, o Blairo Maggi. O
Blairo Maggi [então suplente de senador] disse que ainda não era governador,
mas no outro ano ele seria governador e ia fazer a estrada. Ele falou na reunião”
(entrevista na aldeia Matokodakwa, 7/04/2006).

O antropólogo Gilton Mendes dos Santos (entrevistado em Cuiabá,


10/04/2006), que esteve na aldeia Matokodakwa pouco depois da primeira
fase de negociação, constatou a entrada de alimentos industrializados na dieta
dos Enawene-Nawe – arroz, macarrão, sardinha, muito milho. Segundo ele, a
conseqüência teria sido a baixa produção de milho nas roças no período
subseqüente, o que levou à quase perda de suas próprias variedades
tradicionais. O consumo de bens de fora aumentou bastante, conforme
Andrea Jakubaszko (entrevista em 9/04/2006), depois que passaram a
transitar mais com os barcos e motores de popa que ganharam dos
empreiteiros da estrada. Segundo o relato que a pedagoga Kátia Zorthêa
colheu de uma monitora do Projeto Tucum (um programa estadual de
formação de professores indígenas), que acompanhava as escolas dos
Nambikwara no município de Sapezal, os empreiteiros da estrada facultaram o
livre acesso dos Enawene-Nawe ao supermercado local:

“Ela falou que o supermercado de Sapezal ficava aberto para os Enawene-Nawe.


Ela os viu chegando de carro, pegar um carrinho, entrar no supermercado e
encher. Eram acompanhados por pessoas ligadas ao Camilo. Na época, os
Enawene-Nawe falavam de algumas pessoas: Zico, o Frederico Paresi – que
acompanhavam os Enawene-Nawe a Sapezal e liberavam o supermercado. (...)
Os supermercados eram abertos para os Enawene-Nawe.

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Quando estávamos na aldeia [em meados de 1998, junto com as representantes


da CAIEMT e do CIMI], vimos uma cena assim: numa cabaça, macarrão
mergulhado no óleo... (...) Observei que os Enawene-Nawe não sabiam utilizar a
comida adquirida fora em grande quantidade, usada de um jeito prejudicial à
saúde deles. Foi marcante essa coisa da alimentação” (entrevista de Kátia
Zorthêa, em Cuiabá, 10/04/2006).

Num outro plano, as transações em torno da estrada determinaram


outros efeitos graves, como a emergência de conflitos políticos, a maior
desigualdade econômica e os indícios de divisão social no interior da
comunidade indígena. Na sua dissertação de mestrado, Andrea Jakubaszko
(2003: 116) assinalou que, diante das negociações em curso, um membro do
clã Anihiare, Kamameene, colocou-se de maneira firme contra a decisão dos
demais de permitir a passagem da estrada e de aceitar bens em troca.
Mesmo sob o risco de agressões físicas, tentou avisar seus patrícios de que
“os construtores da estrada eram mentirosos e ladrões”, “Camilo era o
mandante (principal suspeito) do assassinato de Kiwxi [o jesuíta Vicente
Cañas]” e “a OPAN era amiga e estava alertando sobre os valores incorretos
das trocas efetuadas que eram pequenas em relação à importância da
integridade do território Enawene-Nawe”. Quando da vistoria pericial,
Kamameene confirmou o desentendimento político que a construção da
estrada lhes causou: “Metade dos Enawene-Nawe queria a estrada, a outra
não. Trouxe discussão na aldeia...”, disse ele. E acrescentou Kolareene, na
mesma ocasião:

“Nós vimos que a estrada ia trazer problemas, porque até a placa da


demarcação o pessoal do Camilo tirou e jogou fora. Desrespeitaram a
demarcação. Até o marco de cimento jogaram fora” (entrevista na aldeia
Matokodakwa, 7/04/2006).

Ao lado da dissensão política que ali se instaurou, as negociações em


torno da estrada promoveram, sobretudo, mudanças abruptas na ordem
econômica e social dos Enawene-Nawe. Com a introdução dos motores de
popa e barcos de alumínio, as canoas de madeira foram abandonadas, e
sequer o remo é mais usado em pescarias ou deslocamentos curtos. Porém,
nem todos foram de início beneficiados com a inovação tecnológica, o que
acirrou a competição interna e, com ela, uma maior desigualdade entre os
grupos domésticos que compõem a sociedade enawene-nawe. Basicamente,
a distribuição das benesses pelos empreiteiros contemplou os clãs mais

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poderosos, dos Kailore e Aweresese, aos quais pertenciam os que estavam à


frente das negociações (Jakubaszko, 2003: 115). A entrevista do indigenista
e antropólogo Pedro Henrique Passos, para fins da presente perícia, trouxe
uma contribuição relevante para uma compreensão analítica mais deste
processo de substituição tecnológica:

“De início foram sete motores. A transição levou anos. Nem todos os clãs tinham
motores. Os clãs mais fracos tiveram que se virar. A primeira mudança deve-se a
esse mal-estar, porque nem todos os clãs tinham motor. Criou uma divisão de
classe, de poder. Não só político e simbólico, mas do ponto de vista material. Os
clãs mais fracos tiveram que correr atrás, para competir na busca de alimento,
de peixe. Sotairiti, por exemplo, o primeiro a comprar um motor, parou tudo o
que estava fazendo e juntou-se ao filho para fazer artesanato, largaram todas
suas atividades para fazer artesanato para vender. Quem não ganhou motor
teve que mudar sua rotina, para acompanhar quem tinha motor...
Com artesanato compraram apenas dois motores. A aposentadoria viria a se
tornar a fonte de renda para comprar os novos motores. A OPAN achava que
seria para gasolina, mas a aposentadoria foi apropriada pelos Enawene-Nawe
através de um sistema de distribuição, de modo que todos pudessem adquirir
seus próprios motores. Isso foi um processo demorado.
Outros bens alienígenas trouxeram também um descompasso na dinâmica interna
– porque camisa nem todos ganharam, lanterna... e todos queriam! Os que se
sentiram de fora da jogada foram reivindicar nas fazendas: ‘E eu, e o meu
motor?’ Começaram a ir lá, em busca de generosidade, e lógico que
perturbavam. Na visão dos fazendeiros, dos peões, eles incomodavam, e
começaram a serem maltratados, mandados embora. Isso criou uma grande
celeuma. A vinda desde novo conjunto de bens simbólicos e materiais criava
diferenças entre quem tem e quem não tem. Toda cosmovisão dos Enawene-
Nawe está direcionada para o equilíbrio, e não tem como equilibrar esses
elementos de fora, porque não são eles que produzem... Os recursos naturais
são propriedade dos espíritos yakairiti, e os Enawene-Nawe emprestam esses
recursos. Mas um motor não é um recurso natural, não nasce na floresta, não é
propriedade dos yakairiti...
Também tem o problema da gasolina. Todas as saídas da aldeia que os
Enawene-Nawe fazem hoje são para essa finalidade. Vão pescar para vender no
porto [do rio Juruena] e comprar gasolina. Vendem colar e anel para comprar
gasolina. A atenção toda hoje está aí, porque os motores bebem gasolina, e eles
não têm como obter. É diferente dos recursos naturais, que se obtêm na relação
com os espíritos. Hoje eles têm 38 motores, e gasolina é seu maior problema. O
preço que estão pagando é alto. Todas as saídas são feitas para sustentar os
motores. Todas as relações com o mundo de fora são uma tentativa de resolver
o problema da gasolina” (entrevista de Pedro Henrique Passos, Brasnorte,
3/04/2006).

Na fase inicial das negociações, os empreiteiros da estrada asseguraram


um fornecimento regular de gasolina – mas logo sustaram-no, uma vez
efetivado o embargo das obras. Para Kolareene e outros Enawene-Nawe
entrevistados na aldeia Matokodakwa, a introdução dos motores e a contínua

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1ª Vara da Justiça Federal - Mato Grosso

necessidade de gasolina tornarem-se, na atualidade, o principal transtorno que


a tentativa de construção da estrada lhes acarretou:

Kolareene: “Eles trouxeram os motores e nós pensamos que era coisa boa
mesmo. Não sabíamos que iam estragar, que iam consumir muito combustível.
Não sabíamos que ia trazer os problemas que hoje estamos vivendo. No início,
achamos que era uma coisa boa. Eles [os empreiteiros da estrada] convenceram
os Enawene-Nawe que era bom. Não sabíamos dos problemas. Como manter os
motores, a gasolina?”
Ameiro: “Tudo isso que eles trouxeram hoje é problema na aldeia: motor, comida,
roupa...”
Kolareene: “Eles deram dois motores e dois barcos bem velhos, ruins, já
quebrando. Os primeiros que deram.”
Kamameene: “Nós achávamos que os barcos seriam bons para trabalhar. Eles
prometeram colocar um tanque de gasolina na aldeia. Tinha madeireiro e
fazendeiro no rio Preto, queríamos ir lá [por isso aceitaram os barcos e motores].
Hoje os motores estão estragados, dá muito problema... Eu [por isso] não queria
a estrada!”

A demanda aguda por dinheiro para os motores e a gasolina, inclusive,


levou alguns rapazes a procurar trabalho remunerado nas fazendas das
imediações, uma situação cuja continuidade poderia redundar em
subalternidade étnica e descaracterização cultural. Conforme a antropóloga
Andrea Jakubaszko, alguns Enawene-Nawe ficaram três ou quatro meses
trabalhando nas fazendas, por intermédio do paresi Frederico:

“Em setembro ou outubro de 1999, num acampamento de mel, os Enawene-


Nawe perceberam gente armada na região. O Frederico foi visitar o
acampamento e também estava armado. O discurso de Frederico, se pensarmos
em impacto cultural, questionava as mulheres que viviam peladas, que viviam
apenas de saia. Vários Enawene-Nawe vieram com a idéia de desmontar as
casas tradicionais e fazer de madeira ou alvenaria. Foi nesse período que
estavam trabalhando nas fazendas. Foi então que começaram a recuar: havia
muita gente armada andando por ali. Temiam que mexessem com suas
mulheres...
(...) Por certo tempo, estranhamente, os Enawene-Nawe entraram num
processo de baixa estima, balançaram suas referências culturais, tanto que
falaram em mudar as casas. Depois disso, a roupa entrou na aldeia de forma
muito visível – muitos dos homens, os mais jovens, mesmo na aldeia, agora se
vestem... O que isso quer dizer, na verdade? Os homens adotaram nossa
vestimenta” (entrevista de Andrea Jakubaszko, em Cuiabá, 9/04/2006).

Paulatinamente, a série de experiências negativas alimentou nos


Enawene-Nawe a decepção e a rejeição à estrada e seus empreiteiros: as
benesses e a gasolina mais escassas, a descortesia dos moradores de
Sapezal, a remuneração irrisória nas fazendas, as agressões e as ameaças de

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homens armados foram fatores decisivos para este novo posicionamento


(Jakubaszko, 2003: 117-118). Entre outros fatos, citaram também o
acidente de trabalho no qual um rapaz perdeu a falange de um dos dedos da
mão:

Ameiru: “Eu fui chamado para trabalhar na fazenda do médico japonês, doutor
Ito, de Sapezal. Pagava pouco. Não sabia o que era dinheiro. Lá tive acidente,
perdi um pedaço do dedo [ver fotografia, em anexo]. O próprio médico, dono da
fazenda, atendeu. No hospital em Sapezal. Depois que amputou o dedo, fez
tratamento e me mandou embora. Só pagou um pouquinho de dinheiro. Eu não
conhecia dinheiro” (entrevista na aldeia Matokodakwa, 7/04/2006).

Devido às atribulações pelas quais passaram, os Enawene-Nawe dizem


hoje, segundo a antropóloga Andrea Jakubaszko (entrevista em Cuiabá,
9/04/2006), que três dos participantes da construção da estrada, o intérprete
paresi Frederico, o prefeito André Maggi e o fazendeiro Camilo Obici, teriam
sido alvejados pela ação de profissionais hoenaytare, que “sopraram” contra
eles, e por isso morreram pouco tempo depois. Através do sopro, um
hoenaytare seria capaz de veicular as palavras mágicas que tanto prestam-se
para proteger a comunidade como para causar a doença e a morte dos
desafetos (Mendes dos Santos, 2006: 78, 83). Todavia, foi entre os próprios
Enawene-Nawe que se contaram as primeiras vítimas da construção da
estrada em 1998.

As sucessivas idas à fazenda de Camilo Obici e à cidade de Sapezal e a


presença de visitantes na aldeia Matokodakwa, de maneira indiscriminada,
propiciariam o contágio de epidemias e vários óbitos entre os Enawene-Nawe.
No ofício do coordenador da OPAN Ivar Busatto ao Ministério Público Federal,
em agosto de 1998, são informados três óbitos (dois adultos e uma criança)
por pneumonia registrados no ano (Busatto, 1998; Wyatt et alii, 1998). Entre
meados de julho e início de agosto, haviam sido atendidas mais de 30
pessoas acometidas no primeiro surto de síndrome viral - duas crianças com
quadro clínico grave de desidratação e pneumonia - e 55 pessoas no segundo
surto. No ano seguinte, conforme registrado no banco de dados mantido pelo
convênio OPAN/FUNASA, aconteceram mais seis óbitos (dois adultos e quatro
crianças), com sintomas de infecção respiratória e encefalite aguda. Segundo
o relatório da equipe de saúde OPAN/COSAI-FNS, constatou-se o incremento

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da mortalidade justamente no período crítico do processo de construção da


estrada Sapezal-Juina, com previsão de alteração no perfil de endemicidade e
cronicidade da sua população (Weiss et alii, 1998: 30, 35).

De acordo com Andrea Jakubaszko (2003: 116), os Enawene-Nawe


atribuíram as epidemias e os óbitos ocorridos naquele período à sua própria
imprudência, por aceitarem a barganha pela estrada, e ao descuido com as
roças de milho no ano anterior – devido ao envolvimento com as novidades
trazidas pelos empreiteiros da estrada, eles não se dedicaram com a mesma
intensidade às roças de milho, o que os levou a comprar este cereal de
comerciantes e a defrontar-se com a fúria dos ciosos espíritos yakairiti.

Na entrevista que me concedeu para fins desta perícia, a antropóloga


comentou a explicação dada pelos Enawene-Nawe, de que os espíritos
yakairiti estavam furio sos. Após a morte repentina de duas crianças em
novembro de 1999 (um neto de Ataina, do clã Kailore, e a filha primogênita
do chefe Kawairi, do clã Aweresese), o principal opositor ao acordo com os
empreiteiros da estrada, que até então se mantinha afastado do cenário
público, dirigiu-se ao meio do pátio para um discurso de desagravo,
condenando a negociação e o acordo sobre a estrada:

“O Kamameene saiu no pátio para dizer: ‘Estão vendo como eu estava certo. A
ira dos yakairiti chegou’. E, segundo ele, isto estava acontecendo porque não
plantaram a roça de milho... Porque eles ficaram tão ocupados [com as
negociações da estrada] que não plantaram a roça de milho aquele ano. E daí,
para o Kamameene, em função da falta de roça de milho, as mortes. Portanto,
em conseqüência direta da estrada mesmo, não terem plantado a roça de milho
e as mortes, com diagnóstico não específico – muita dor de cabeça. Uma
terceira morte, de uma mulher, a Heggy [Wyatt, enfermeira da UNAIS] tinha
diagnosticado hemorragia subaracnóide, alguma coisa no cérebro, ela veio a
falecer passado um tempo. Foi um caos na aldeia, a epidemia, as duas mortes,
um caos devido à estrada, segundo os Enawene-Nawe” (entrevista de Andrea
Jakubaszko, Cuiabá, 9/04/2006).

Quanto aos efeitos mais duradouros da construção da estrada, estes


estão fundamentalmente relacionados à posse e ao uso dos barcos e
motores, cujo dispêndio de combustível e a mecânica especializada
extrapolam as condições e os recursos da comunidade indígena. Embora com
eles possam agora explorar recantos mais distantes do seu território,
reduzindo o tempo gasto nas atividades de pesca e demais deslocamentos, a

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nova tecnologia gerou preocupações e exigências inéditas, que “se traduzem


na busca frenética dos homens por combustível e manutenção dos motores,
o que tem exigido cada vez mais recursos financeiros, causando um crescente
colapso na economia enawene”, na avaliação abalizada de Mendes dos
Santos (2004: 45-46). Para a aquisição de mais motores (para os homens
dos demais clãs), a conservação da frota atual e o seu abastecimento, os
Enawene-Nawe precisam agora inverter a maior parte dos recursos
financeiros que conseguem auferir, inclusive a remuneração dos aposentados.
No relatório de atividades do Projeto da OPAN para o ano de 2000, consta
que a administração dos recursos da aposentadoria está por conta dos
parentes mais jovens (filhos, netos e genros), e que cerca de 70% do dinheiro
assim arrecadado é gasto em combustível e manutenção de motores de
popa; o restante, com a casa de trânsito em Brasnorte e a aquisição de
novos motores (OPAN, 2000).

De acordo com Pedro Henrique Passos, os Enawene-Nawe entendem


que foram enganados, porque esperavam uma oferta constante de bens
materiais, de forma permanente - e isto não aconteceu, ao contrário , eles
agora assumiram problemas que não têm como resolver:

Eles não se tornaram capitalistas – embora usem dinheiro e vendam certos


objetos -, mas agora dependem de uma sociedade capitalista para continuar
girando. Antes, o eixo da sociedade enawene-nawe girava independente. Agora,
para o sistema ritual yãkwa, que é o eixo dessa sociedade, continuar girando,
algumas engrenagens agora estão ligadas às nossas. Isso é um prejuízo, a
despeito das vantagens aparentes... A sociedade Enawene-Nawe agora tem
uma engrenagem conectada à nossa... Essa é a grande angústia deles. A
necessidade de obter combustível pode dar margem a negociações perigosas...”
(entrevista de Pedro Henrique Passos, 3/04/2006).

Nas palavras de Andrea Jakubaszko (entrevista, 9/04/2006), o que se


observa hoje é “a correria pelo dinheiro da gasolina, a correria por uma renda
para sustentar isso...”. Esta é, também, a conclusão dos próprios Enawene-
Nawe sobre a situação a que chegaram, conforme este balanço minucioso do
líder Marikeroseene que entrevistei no acampamento do rio Preto:

“Ficou um corte na mata [a abertura da estrada]. As árvores não existem mais,


ficou apenas a capoeira. E as coisas que nos deram acabaram logo. Acabou.
Eles falaram em ligar a estrada com a aldeia. Ficamos preocupados, poderia vir
doenças, poderia vir homens para roubar as mulheres. Também Camilo falou em

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trazer um padre. As pessoas poderiam sair para a cidade... Ficamos preocupados


em perder nossa cultura.
Muitos problemas vieram junto com a estrada. Veio muita coisa ruim. Muita
gente adoeceu: infecção nos olhos, vômito, diarréia e muita febre vieram no
contato com aquelas pessoas. Outro problema do Camilo, ele falava para gente
não fazer mais o [ritual] yãkwa, que não precisava mais fazer roça de milho,
porque ele ia dar milho. Nós não imaginávamos que o valor das coisas que foram
dadas era pequeno, e o estrago na terra era grande. Logo as coisas acabaram,
estragaram. Os motores quebraram, e não sabíamos como consertar. O maior
problema, depois, é que precisamos de dinheiro e não temos onde conseguir.
Agora precisamos de coisas que não temos. A FUNAI não dá dinheiro, a OPAN
não dá dinheiro. Não podíamos pegar dinheiro no banco onde André Maggi tinha
conta. Precisamos agora de dinheiro, e não temos como conseguir” (entrevista
de Marikeroseene, 4/04/2006).

Na carta que escreveram ao procurador da República em Mato Grosso


em agosto de 1998 (fls. 82-90 dos autos), pela mesma razão, os Enawene-
Nawe já então reivindicavam, com veemência, uma solução para o deficit
financeiro que agora consterna o presente e o futuro de sua sociedade – na
falta de alternativas viáveis, com efeito, pediam que o procurador autorizasse
a passagem da estrada para que eles pudessem cobrar pedágio...

Um resumo analítico do quadro atual me foi oferecida pelo antropólogo


Gilton Mendes dos Santos, em sua entrevista:

“A chegada dos barcos foi uma segunda ‘revolução industrial’; a primeira foi o
machado, as ferramentas. A segunda foi quando os Enawene-Nawe tomaram
posse dos motores. Isso marcou um novo momento na sua história, através da
intensificação das relações com o exterior. E, imediatamente, o problema da
gasolina – hoje, o grande problema econômico dos Enawene-Nawe, porque eles
não tinham domínio nenhum sobre essa dinâmica de gastos, em escala industrial,
sobre a relação custo/benefício. Foi uma explosão da economia: o dinheiro que
entrava deu, num primeiro momento, para comprar bastante comida. Mas,
depois, não deu para manter os motores – cada manutenção era setecentos
reais, mil reais. E, toda semana, ocorriam problemas nos motores – entrava
areia, água, falta de conservação, esqueciam de colocar óleo – enfim, muitos
problemas com os motores.
Vejo duas ordens de coisas. Primeiro, a alimentação, que causou impactos e
algumas doenças, que eram reportadas a essa alimentação diferente... Lembro-
me a reclamação do fluxo menstrual das mulheres, que havia aumentado porque
os espíritos yakairiti estavam com raiva, porque deixaram de produzir alimentos
para os espíritos, e apenas estavam consumindo alimentos que os espíritos não
gostavam. Depois houve um refluxo nesse processo dos alimentos, largaram uma
série de coisas e voltaram a produzir os alimentos mais tradicionais.
Segundo, o impacto dos barcos, que tem conseqüências importantes. Entrou um
outro sistema, um outro ritmo temporal, uma outra mecânica... Não houve uma
preparação, o impacto foi imediato, os barcos chegaram em grande quantidade,
automaticamente assimilados. Bons pilotos, eles sempre foram. Mas foi muito
rápido. E abandonaram as canoas, até afundaram. Não se fazem mais canoas,
acham-nas pesadas. Agora, só no museu...

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Os Enawene-Nawe não tinham a dimensão global do que estava acontecendo,


da legislação. Achavam que havia sinceridade do lado de lá, achavam que a
estrada podia ser uma coisa boa. Tinham a sensação de uma benevolência mais
justa, uma relação de troca mais durável, que não iria acabar. E não entendiam
quando alguém se posicionava contra... Quando começou a apresentar
problemas, ao exigir que a frota de barcos fosse mantida, principalmente
motores e barcos... Porque outras coisas também entraram, outros bens
manufaturados. Mas os impactos maiores foram dos barcos. Aí a ficha foi caindo,
como se fossem enganados...
Muitos se manifestaram antes. Quando os motores foram arrebentando, alguns
comentaram que a estrada ia ficar para sempre, mas os motores já estavam
estragados.
Quero ressaltar duas coisas, uma mais objetiva, a outra sociológica. A primeira,
foi um caminho sem volta, que não permite agora buscar alternativas menos
dispendiosas. O motor de popa naquelas condições, naquelas distâncias, naquela
realidade, é impraticável, dada a sua exigência de consumo, não carrega muito
peso - embora seja veloz. Isto impede introduzir qualquer alternativa mais
sustentável, é como comparar uma Ferrari com um Fusca... Rabeta, motor de
centro, barco grande, nada disso interessa agora os Enawene-Nawe. A
referência são aqueles motores de popa. E a frota só foi crescendo, dos 8
iniciais, agora são 35 ou 38...
Em termos mais sociológicos, como os Enawene-Nawe só gostam de coisas boas
e novas, tornou-se um esforço enorme, uma privação de tantas outras coisas
para manter a frota e conseguir uma certa igualdade de condições. Não é algo
coletivo e fraterno. Quem não tem barco não consegue usufruir da pesca, não
consegue colher milho em quantidade... Assim, os grupos precisam se esforçar
para conquistar uma situação de igualdade entre eles” (entrevista de Gilton
Mendes dos Santos, em Cuiabá, 10/04/2006).

Neste tópico, em resumo, demonstrou-se que a estrada que adentrou


em 1998 a área indígena Enawene-Nawe foi construída pelo empreiteiro
Camilo Carlos Obici e outros por ele encarregados, a mando do então prefeito
de Sapezal, André Maggi. Os Enawene-Nawe não foram consultados nem
suas declarações contrárias obstaram a ação dos empreiteiros, intermediários
e autoridades municipais diretamente envolvidos na obra. À comunidade
indígena, portanto, inclusive sob ameaça de coação física, restou aceitar a
estrada em suas terras como um fato consumado, em troca de alguns
poucos bens materiais (alimentos, roupas, barcos e motores de popa e
combustível) e de muitas promessas, logo abandonadas pelos empreiteiros da
obra. Com a construção da estrada, os empreiteiros pretendiam apropriar-se
de uma parcela das terras indígenas para sua conversão em lavouras de soja.

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As transações em torno da estrada determinaram, entre outros efeitos


nocivos, a emergência de conflitos internos e uma maior desigualdade
econômica e social. Ao lado da dissensão política, as negociações com os
empreiteiros promoveram, sobretudo, mudanças abruptas na ordem
econômica e uma dependência excessiva de bens e recursos oriundos da
sociedade envolvente. O abandono das canoas de madeira e a adoção de
barcos de alumínio e motores de popa, os primeiros deles como “doação” dos
empreiteiros, fizeram surgir uma demanda contínua de recursos monetários
para a aquisição de combustível e a manutenção da frota de barcos e
motores, hoje indispensáveis à realização de suas atividades econômicas e
rituais. Por outro lado, a entrada de alimentos industrializados na sua dieta e
os contatos mais assíduos nas cidades e as visitas na aldeia propiciaram maior
contágio de epidemias e de mortalidade entre os Enawene-Nawe.

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1ª Vara da Justiça Federal - Mato Grosso

AS MEDIDAS MITIGADORAS

Quesitos da FUNAI
12) Caso conclua-se pelo dano cultural ao grupo em decorrência da abertura da
estrada, qual os meios adequados a mitigar esses dados e de que forma poderá
ser aplicado?
13) Haverá custos à manutenção das formas mitigadoras ao dano cultural do
grupo indígena em comento, perpetrado pela construção da estrada?
14) Podem-se estimar esses custos?
15) Sejam feitas outras considerações pertinentes?

No tópico acima foram caracterizados os danos culturais e os impactos


econômicos, imediatos e atuais, devidos à construção da estrada Sapezal-
Juina. Em decorrência, observou-se uma maior intensidade de contatos com
agentes externos, uma drástica substituição tecnológica no meio de
transporte fluvial e uma ampliação no consumo de produtos industrializados.

Dado este novo quadro, evidenciam-se dois aspectos a serem


considerados na elaboração de uma proposta para mitigar os prejuízos
causados pela construção da estrada: de um lado, as pressões e os
interesses externos que ameaçam o território indígena e seus recursos
naturais e as atividades predatórias no seu entorno; de outro, a demanda
crescente por recursos financeiros que veio a debilitar o equilíbrio e a
autonomia da vida econômica dos Enawene-Nawe.

De modo a responder aos quesitos acima, de todo modo, a presente


perícia antropológica não poderia mais que assinalar propostas bastante gerais
para as ações mitigadoras a serem adotadas, tanto quanto apenas uma
estimativa da ordem de grandeza dos custos envolvidos. Nestes termos, são
apontadas as três iniciativas abaixo:

1. DIAGNÓSTICO SÓCIO-ECONÔMICO E AMBIENTAL

A realização de um Diagnóstico participativo permitirá alcançar os


seguintes objetivos: a avaliação extensa dos impactos ambientais causados
pelas atividades ilegais ou predatórias na área indígena e seu entorno; o
levantamento das potencialidades naturais e sócio -econômicas; o

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reconhecimento de iniciativas econômicas sustentáveis; e a identificação dos


condicionantes fundiários, administrativos e jurídicos para a proteção
territorial. Os resultados do Diagnóstico devem servir como subsídios para a
elaboração e a execução do Plano de Fiscalização Territorial e do Programa de
Geração de Renda.

Para sua realização, serão contratadas consultorias qualificadas (um


antropólogo; um indigenista; um engenheiro florestal ou biólogo; e um
agrônomo), que executarão os trabalhos num prazo de seis meses, sob a
coordenação de FUNAI e IBAMA/Ministério de Meio Ambiente. Os estudos
atenderão aos seguintes passos metodológicos: levantamento das fontes
secundárias e identificação das variáveis relevantes; aquisição das bases
primárias de informação (zoneamento ecológico-econômico, imagens de
satélite e sensoriamento remoto); trabalhos de campo setorizados; e
elaboração de diretrizes e propostas. Os custos para a realização do
Diagnóstico podem ser estim ados em R$ 300.000,00 (trezentos mil reais).

2. PLANO DE FISCALIZAÇÃO TERRITORIAL

Com o objetivo de garantir a integridade do território indígena e a


manutenção de seus recursos naturais, o Plano de Fiscalização ampliará e
consolidará as ações realizadas pelos Enawene-Nawe e os órgãos públicos
responsáveis (FUNAI, IBAMA), incorporando ações no campo jurídico e
assessoria com respeito aos impactos oriundos das áreas contíguas às terras
indígenas. Serão estabelecidas novas estratégias de fiscalização e rotinas de
trabalho e avaliados os prováveis impactos dos grandes empreendimentos
em andamento na região. Os instrumentais de sensoriamento remoto e de
geoprocessamento possibilitarão acompanhar a dinâmica da ocupação e gerar
um banco de dados sobre a estrutura fundiária do entorno das terras
indígenas, os limites e potencialidades da ocupação, a pressão demográfica
sobre os recursos naturais e os impactos concorrentes. Tal conjunto de
informações permitirá orientar as ações das diferentes instituições públicas
relacionadas à questão ambiental e produtiva, de modo proporcionar um

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debate mais consistente sobre as formas de ocupação menos agressivas às


comunidades humanas e ao meio ambiente.

De maneira complementar, deve-se implementar uma campanha de


esclarecimento, de cunho informativo e dissuasório, dirigida à população da
região noroeste, abordando a ilegalidade de garimpos e atividades madeireiras
em terras indígenas e as sanções cabíveis.

A metodologia e as atividades a serem programadas, com base nos


subsídios a serem produzidos no âmbito do Diagnóstico Sócio -Econômico e
Ambiental, terão a previsão de cinco anos. A consulta a planos semelhantes,
aplicados por órgãos públicos e outras entidades, estimou-se um desembolso
anual de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), totalizando R$ 5.000.000,00
(cinco milhões de reais) para o prazo previsto.

3. PROGRAMA DE GERAÇÃO DE RENDA

O Diagnóstico Sócio -Econômico e Ambiental, entre outras questões,


deverá examinar a própria experiência histórica acumulada pelos Enawene-
Nawe frente às políticas assistenciais e os projetos de desenvolvimento a eles
anteriormente direcionados, bem como as relações entre suas atividades
produtivas, os condicionantes ambientais que enfrentam e os impactos
ocasionados por empreendimentos econômicos e obras públicas existentes e
as projetadas no entorno e no interior das terras indígenas. A partir desse
quadro de problemas e de expectativas, será formulado um conjunto de
medidas com o objetivo de reverter o desequilíbrio atual que se instaurou na
vida econômica dos Enawene-Nawe, através de ações de curto, médio e
longo prazo, convergentes com os seus interesses, adaptadas à sua realidade
sócio -cultural e adequadas à matriz ambiental.

De modo simultâneo e complementar, o Programa deverá articular e


estabelecer diretrizes para os recursos provenientes de prefeituras municipais
(ICMS Ecológico e outros), governo estadual e órgãos federais (FUNAI,
IBAMA).

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Para fins de uma estimativa aceitável, tomou-se como exemplo o


“Programa de Compensação Ambiental Xerente – PROCAMBIX”, cujas
atividades pretendem aplacar os impactos causados pela construção da
Hidrelétrica de Lageado, no Estado de Tocantins. Deste modo, projetou-se um
custo anual na ordem de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais) para o
Programa de Geração de Renda destinado aos Enawene-Nawe, serem
aplicados durante cinco anos, o que totaliza um orçamento de R$
10.000.000,00 (dez milhões de reais).

Em termos metodológicos, o Diagnóstico, o Plano de Fiscalização


Territorial e o Programa de Geração de Renda deverão ser formulados e
executados a partir das seguintes orientações gerais:

- participação indígena na elaboração, execução e monitoramento,


buscando propiciar maior autonomia à comunidade indígena e formas de
organização socialmente melhor adaptadas;

- capacitação dos Enawene-Nawe e técnicos responsáveis pelas


atividades propostas, de maneira a assegurar a qualidade e a manutenção a
curto, médio e longo prazo dos serviços a serem executados e dos benefícios
esperados;

- assistência técnica qualificada para a execução das atividades, com


vistas à sua adequação e eficácia;

- cooperação e articulação interinstitucional, conjugando esforços e


recursos de todas as instituições e pessoas envolvidas para a execução dos
programas;

- continuidade das ações programadas, a curto, médio e longo prazo,


através de um amplo planejamento que consolide e racionalize os recursos
humanos e financeiros disponíveis.

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Em resumo, para atender os quesitos deste tópico, a análise do quadro


de vicissitudes atuais decorrentes da construção da estrada Sapezal-Juina
indica a necessidade de medidas mitigadoras em favor dos Enawene-Nawe,
tendo como objetivos principais a fiscalização territorial, a proteção dos
recursos naturais e a geração de renda. O orçamento total foi estimado em
15,3 milhões de reais, a ser aplicado no período de cinco anos.

Cuiabá, 31 de agosto de 2006

João Dal Poz Neto, Dr.


perito antropológico

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ANEXOS

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FOTOGRAFIAS

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MAPAS

1. T. I. Enawene-Nawe – mapa histórico, de solo e de recursos

2. A área indígena Enawene-Nawe e a estrada Sapezal-Juina

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A área indígena Enawene-Nawe
Parque do e a estrada Sapezal-Juina
Aripuanã
Acampamento Perícia antropológica
do rio Preto Processo: 1998.36.00.005807-4
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Reqte.: Ministério Público Federal e outros
Reqdo.:Espólio de Camilo Carlos Obici
1a. Vara da Justiça Federal
a Seção de Mato Grosso
Estação

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Perito: João Dal Poz Neto, Dr.
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