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BÚSSOLA

Com o intuito de resgatar alguns hábitos do passado e ao mesmo tempo inovar em terrenos
férteis, adquirimos os equipamentos necessários para promover um campeonato de futebol de
mesa. Contávamos com o entusiasmo de um colaborador, cujos amigos, mais que cinquentões,
haviam mantido a paixão pelo jogo de botões. Não aquelas porcarias de acrílico, para iniciantes
e desinformados, mas botões de galalite. Aliás, registre-se a curiosidade: galalite é nome
comercial. O nome científico é caseína-formaldeído, produzida a partir do leite, com o acréscimo
em dose adequada de formol. Tanto quanto sei, importamos este material.

Pouco depois de nos termos apetrechado, faleceu precocemente o entusiasta maior pelo jogo,
justamente aquele que lideraria os eventos. A mesa para o jogo de botões ficou num canto,
como pequeno símbolo de que a fatalidade pode ceifar ideias no nascedouro. Passaram-se
meses até que decidisse instalar a mesa em nossa casa. As gatas, territoriais insuperáveis, logo
a inspecionaram, seguidas pela filha, prestes a celebrar seus dez anos. Dias depois resgatei os
meus botões e mostrei a ela a mecânica do jogo. A bem da verdade jogávamos segundo duas
regras: a do toque-toque, pródiga em gols, e a de um toque para cada lado, mãe da retranca e
dos placares escassos.

Todos de galalite, meus velhos botões envelheceram menos que eu em meio século e foi um
prazer retirá-los da pequena caixa de madeira que eu mesmo confeccionara na marcenaria do
Ginásio Industrial, que então funcionava ao lado da redação de O Progresso. Intruso, porquanto
não era aluno daquela instituição, lá passei horas e horas, que somadas seriam semanas,
aspirando o cheiro maravilhoso de madeiras saídas da serra circular, contornadas na serra fita,
preparadas na tupia e acabadas na enorme lixadeira. Sempre que entro numa marcenaria
respiro fundo e lembro que o Filho de Deus viveu sob esta atmosfera, observando e ajudando
José, o gigante do silêncio. Em todas as máquinas o perigo rondava e nem sempre éramos
prudentes. Volta e meia levávamos uma bronca do chefe da oficina por conta de nossos
descuidos.

Coloquei dois times em campo e voltei a jogar, com a mesma facilidade com que se anda de
bicicleta depois de anos de afastamento. Narrei algumas jogadas para minha filha, que mostrou-
se surpresa com os nomes de alguns botões: Drailton, Reyes, Afonsinho, Oberdan, Dario, Marco
Antônio, Zequinha, Rildo, Vogts, Alcindo, ... Um desfile de craques, que jamais jogaram juntos.
Ah, como é bela a liberdade de colocar no mesmo time jogadores do passado, que pertenceram
a clubes vários, sem a preocupação com o preço de seus passes, sem a camisa-de-força de
seus vínculos profissionais. Quantas saudáveis horas passei ao redor de mesas como esta,
montadas na cozinha de casa ou dispostas no piso, na casa de meus pais ou na de amigos.
Mais que um entretenimento, mais que um exercício de motricidade, o jogo de botões estimula a
coragem, a estratégia, a autoconfiança. Tudo sob a natural preferência por um ou outro botão,
normalmente os goleadores. Alcindo foi um deles. Era fatal.

Por falar em coisas antigas, por estes dias tive de descobrir a polaridade de imãs, ou seja,
descobrir a posição de seus Norte e Sul. Pesquisei algumas técnicas e concluí que a mais
simples é a que utiliza uma bússola: a face do imã que atrai a agulha da bússola é a do polo Sul.
No dia seguinte tentei comprar uma, por mais simples que fosse. Fui a uma dezena de
estabelecimentos, incluindo uma loja com artigos de pesca e um armazém no estilo antigo,
daqueles em que se encontra de tudo, de bacia de alumínio a bolinha de ping-pong, de vela a
coador de pano. Não encontrei.

Em tempos de jogos eletrônicos e GPS, reconheço que jogar botão e usar bússola parece
mesmo um pouco ultrapassado. Seja como for, o bom e velho futebol de mesa tem o dom de dar
pernas à imaginação e, no meu caso, de resgatar momentos da infância.

Quanto às bússolas, num tempo de tanta desorientação, em que muitos se deixam levar por
fantasias tolas e seduzir por novidades podres, num tempo em que muitos abjuram de suas
raízes espirituais e passam a acreditar até em gnomos, seria interessante que todos tivessem
uma, em local visível. Não para usá-la, senão para lembrar que sempre há um Norte a seguir.

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