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ESTUDOS FEMINISTAS:

ENTRE PERSPECTIVAS
MODERNAS E PÓS-
MODERNAS

Mary Alves Mendes*

Introdução adotava basicamente as premissas


iluministas da universalidade e essen-
O Feminismo, considerado uma cialismo. Tal adoção era justificada pela
importante corrente político-cultural crítica luta primeira e reivindicação daquele
não só da filosofia, mas das ciências sociais momento que estava relacionada não só à
de uma forma geral, vem procurando ao condição de visibilidade e igualdade da
longo da sua trajetória contribuir com mulher na sociedade, como a introdução
perspectivas ou abordagens que geral- da categoria analítica "mulher" fazendo
mente se contrapõem aos pilares filosóficos parte dos estudos acadêmicos. Em tempos
e sociológicos mais tradicionais 1 . Embora mais recentes, década de 1980, esses
o termo suscite revolução, dada a sua estudos passaram a ter um caráter mais
relação com o histórico "Movimento amplo, relacional, denominado de estudos
Feminista" e com a introdução da categoria de género. O que não significa dizer que os
"mulheres" como objeto de estudos no meio vieses essencialistas e universalistas não
acadêmico, nem sempre se pode falar de estivessem presentes nessa época e que
posições revolucionárias se levarmos em não estejam atualmente.
consideração que os estudos feministas Em geral, o percurso dos estudos
também aderiram a teorias e metodologias feministas está associado, em parte, à
tradicionais. A fase inicial dessa trajetória própria história paradigmática das ciências
conhecida como estudo de mulheres sociais'. Pode-se observar na literatura

* Doutoranda de sociologia da Universidade Federal de de Pós-Graduação de Antropologia da UFPE.


Pemambuco-uFPE. Integrante do Núcleo de Estudos mryani @ uol.m.br
da Família, Gênero e Sexualidade-FAGES, do Programa
feminista uma diversidade de abordagens fundacionalismo e essencialismo3.
que perpassam as vertentes teóricas de Contrapondo-se também às epistemologias
cunho liberal, marxista, socialista, pós-modernas pela via do realismo crítico
psicanalista, estruturalista e pós- está Caroline New, discutindo a teoria do
estruturalista. Essas abordagens estão posicionamento feminista à luz das críticas
condensadas na trajetória dos estudos dos realistas e dos pós-estruturalistas e
feministas através do que se denominou de rejeitando a concepção de privilégio
feminismo da igualdade, feminismo da epistêmico feminino nessa teoria.
diferença e estudos relacionais de género. Nas perspectivas feministas pós-
Diante dessa heterogeneidade teórico- modernas, numa posição considerada
metodológica, pretende-se discutir o perfil mais radical, o feminismo dispõe de teóricas
desses estudos, que estão inseridos tanto como Julia Kristeva, Hàlene Cixious, Jane
em abordagens consideradas moderna Flax, Judith Butler, Luce Irigaray e Joan
quanto pós-moderna. O aspecto a ser Scott, que rejeitam todas as totalidades,
enfatizado é que essas perspectivas teórico- afirmam a instabilidade da identidade e
metodológicas não se apresentam de forma propõem uma desconstrução nos termos
homogênea e plena em suas escolhas da diferença sexual. Numa posição mais
epistemológicas. E o que Nany Fraser e moderada aparece Michelie Rosaldo, que
Linda Nicholson (1990) vão denominar de rejeita o essencialismo e universalismo nos
"quase metanarrativas", ao afirmar a estudos de gênero reivindicando o seu
existência contínua de categorias entendimento a partir da divisão institucional
essencialistas e universalistas no percurso das esferas doméstica e pública; e ainda
dos estudos feministas; o que Sandra Kate Fullbrook, que utiliza o pragmatismo
Harding (1990), em outros termos, vai de Richard Rorty e propõe que toda a vida
chamar de "ambivalência", ao mostrar o social e identidade individual estejam
empirismo feminista e a teoria do inclusas em narrativas partilhadas e
posicionamento feminista como estratégias herdadas. Rorty, em seu próprio diálogo
epistemológicas feministas de tendências com o feminismo, indica antes a
consideradas modernas ou iluministas, mas importância da utilidade, do que a validade
que em determinados aspectos absorvem, na construção do objeto.
mesmo de forma tímida, categorias pós-
Estudos Feministas:
modernas; e David Lyon (1996) vai enfatizar enfie per5peCtlVas
como hesitação de um pós-modernismo Dos estudos de mulheres aos estudos de modemase
pós-emas
pleno. género
A exposição segue a discussão teórico-
metodológica existente entre as diferentes Considerados inovadores, no sentido de
abordagens, indo além dos discursos introduzir a categoria mulheres enquanto
feministas, em si, para dialogar com a teoria objeto de análise, os estudos feministas t-laryflvesMendes

sociológica de forma mais ampla. Dentre estão inseridos em dois patamares


as posições feministas inseridas em epistemológicos; inicialmente, um que se
tradições filosóficas consideradas referia aos estudos de mulheres' e que
modernas destaca-se as teóricas figurava intensamente nas metanarrativas
habermasianas como Seyla Benhabib, que histórica e filosófica iluminista da natureza
utilizando o pensamento de Habermas e humana universal, ao considerar as
moldando-o à teoria feminista faz críticas e mulheres enquanto classe homogênea, e
se contrapõe à concepção pós-moderna outro, mais recente, de caráter relacionai
de Jean-François Lyotard que rejeita as que são os chamados estudos de gênero,
metanarrativas e qualquer tipo de provocando "uma mudança não apenas de

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objeto de estudo ou de forma de percepção a fase seguinte, era a de conhecer mais a
deste, mas de campo epistemológico" realidade social em que estava inserida a
(Rago, 1996 p.31). mulher, "questionar a depreciação da
De forma geral, os estudos feministas esfera feminina" (p8) e conseqüentemente
tinham o propósito de tornar as mulheres analisar o processo hierárquico e sócio-
visíveis, denunciar as desigualdades e histórico da desigualdade entre os sexos,
explicar as causas da condição de era o chamado "feminismo da diferença"; e
inferioridade e discriminação das mulheres por fim, a fase em que esses estudos
na sociedade. Com esse propósito, diversas questionavam o sentido universal e
abordagens teóricas explicativas foram generalizado de mulher, negando as
construídas e inseridas em diferentes concepções que tomavam este termo como
tipologias que se apresentam distintas um fato único e que poderia ser explicado
algumas vezes e superpostas em outras, em todos os lugares, sob os mesmos
dependendo da visão ou ênfase que lhe ângulos. Passaram, então, a adotar o
atribui determinado(a) teórico(a). Allan G. caráter relacional e a concepção de
Johnson (1997), e Sylvia Walby (1996), por construção social, não fazendo mais sentido
exemplo, as classificaram em feminismo as generalizações e nem a busca das
radical, liberal, marxista ou socialista. origens da condição feminina, pois recorrer
Michèle Barret (1996), optou por sintetizá- a esse tipo de análise seria orientar-se por
las em duas ondas, uma referente ao princípios universais e essencialistas5.
feminismo liberal e outra referente ao Aliado a essa tendência relacional aparece,
feminismo radical. Joan Scott (1989) as então, o termo "gênerd' substituindo o termo
classificou nas teorias do patriarcado, "mulheres", como urna forma também de
marxista, e psicanalítica (esta última dividida integrar e legitimar os estudos na academia
entre o pós-estruturalismo francês e as e ampliar o seu campo de investigação,
teorias anglo-americanas das relações de referindo-se agora não mais somente às
objeto). Lengermann & Niebrugge-Brantley mulheres, mas a'"organização social da
(1993), utilizaram como classificação a relação entre os sexos", conforme afirma
diferença dos gêneros, desigualdade entre Scott (1989).
os gêneros, e a opressão de gênero. Uma das representantes dessa fase do
Por trás dessa diversidade de abor- feminismo foi Michelle Rosaldo (1994),
Estudos Feministas: dagens e tipologias está a própria trajetória teórica da análise relacional e social na
entre perspectivas
modernas e dos estudos feministas que pode também pesquisa feminista, e pioneira no uso do
pós-modernas
ser evidenciada em três fases (Fonseca, termo gênero. Essa autora criticava os
1996): uma em que as pesquisadoras pesquisadores que buscavam por origens,
acadêmicas feministas influenciadas pelo verdades universais e dicotomias6 o que,
movimento feminista, que denunciava e segundo ela, acabava reforçando a visão
MaryAlves Mendes protestava contra as discriminações e de que diferenças deveriam ser explicadas
violências às mulheres, tornava público em pela fisiologia sexual. Sugeria, então, que
seus trabalhos os instrumentos de se considerasse o papel das mulheres e
dominação reclamados pelo movimento dos homens como produto das ações
feminista. Depois desse momento de humanas, localizadas em sociedades
denuncia, veio a necessidade de colocar a históricas, rejeitando as convencionais
mulher como centralidade dos estudos, suposições sexistas de que a dominação
tomá-la visível, mostrar a sua presença nos masculina e a sujeição feminina são
mais diversos espaços e igualar o seu status universais. A questão, para ela, não era
ao do homem, era a primeira fase contrapor um sexo ao outro, mas averiguar
denominada de "feminismo da igualdade; as desigualdades de gênero a partir das

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esferas de atividade doméstica e pública. Estado, mas em sua concepção micro, tal
O argumento central utilizado pela autora é qual a utilizada por Foucauft.
de que em toda sociedade, a assimetria
sexual corresponderia a uma divisão
Feminismo e Pós-modernismo
institucional entre as esferas de atividade
doméstica e pública, uma construída em
A crítica social pós-moderna se constitui
torno da reprodução, dos laços afetivos e
como abandono dos pilares tradicionais da
familiares, conferida geralmente às mulhe-
filosofia e conseqüentemente como
res, e outra relacionada à coletividade,
rejeição a qualquer base teórica
ordem jurídica e cooperação social,
fundacionalista e universalista. Lyotard
conferida aos homens. Nessa relação
(2000), é o teórico responsável pela
doméstico-público as atividades públicas
introdução do termo pós-moderno na
são mais valorizadas do que as domésticas.
discussão filosófica 7, concebendo-o como
A indicação de Rosaldo (1994) é que
descrença nas metanarrativas, enquanto
gênero fosse entendido em termos político
legitimadoras da ciência, e declínio do
e social, considerando-se as formas
poder de regulação dos paradigmas
específicas de relações sociais e
perante a variedade de especialidades da
desigualdades sociais, o que significa que
ciência e dos seus jogos de linguagem,
ele não deveria ser concebido como um
onde cada discurso gera o seu próprio tipo
fato unitário, determinado em todos os
de autoridade, tornando o conhecimento
lugares pelos mesmos tipos de
sensível às diferenças e adepto da
preocupações, mas como um produto diversidade cultural sem recorrer a
complexo de várias forças sociais. Ao invés
princípios universais'.
de simplesmente constatar e contrastar
Como se sabe, os pós-modernistas têm
diferenças dadas entre homens mulheres
criticado as epistemologias fundacio-
era preciso antes perguntar como essas
nalistas modernas, expondo o caráter
diferenças são criadas por relações de
contingente, parcial é historicamente
gênero. Dessa forma, se deveria evitar a
situado daquilo que tem sido visto como
tradição conceitual que via essência" nas verdades objetivas, necessárias, universais
características naturais que distinguem as
e não-históricas. Desdobramentos dessa
mulheres dos homens, e a que declara que
política pós-moderna podem ser vistos EsWdos Feministas:
a condição atual das mulheres deriva do também através da teoria feminista, que entm perspeCltvaS
que, "em essência", as mulheres são. modernas e
projeta o feminino como o lado negativo da pós-modernas
Seguindo na linha relacional, está polaridade. Connor (1 996,1994) mostra tais
também a historiadora norte-americana
desdobramentos recordando algumas
Joan Scott (1989), que rejeitando o uso
teóricas feministas como Julia Kristeva, que
permanente da oposição binária e
se preocupa com o 'lugar" a partir do qual
antagônica nos estudos de gênero, propõe MaryAh'es Meudes
as mulheres podem falar ou se auto-
uma desconstrução dos termos da
representar articulando, assim, o potencial
diferença sexual pela via teórica do pós- de um discurso que é considerado marginal;
estruturalismo francês de Jaques Derrida e Craig Owens, quando afirma que o
Michael Foucault, que vão eleger o discurso feminismo é um fenômeno pós-moderno
como instrumento ordenador do mundos. por excelência, em virtude da sua
autora entende gênero enquanto afirmação da diferença, sua recusa das
constituinte das relações sociais, e metanarrativas e críticas às estruturas de
enquanto forma de entender as relações poder representativas; e ainda Jane Flax,
de poder. Poder, entendido não em sua quando diz que as teóricas feministas fazem
concepção institucional de Classe ou parte do discurso pós-moderno ao
desconstruir noções de razão, de não são metanarrativas puras, devem ser
conhecimento, ou do eu, e pelo discurso consideradas quase metanarrativas. São
do outro marginalizado. Para essa autora, teorias sociais que identificam causas e
os valores iluministas modernos da características do sexismo nas culturas de
estabilidade, objetividade, universalidade, forma mais empírica do que filosófica. Elas
razão, e busca da verdade absoluta, são assumem métodos e conceitos que não
contraditórios com as noções feministas do consideram a temporalidade ou histo-
eu, do conhecimento e da verdade, que ricidade. Enfim, compartilham algumas das
tendem a buscar o descentramento e a características essencialistas e não-
interpretar a ambivalência, ambig0idade, e históricas das metanarrativas.
a multiplicidade, como o fez Lyotard ao Ilustrando essas características que
demonstrar que a realidade é instável, persistem ao longo da trajetória dos estudos
complexa e desordenada. feministas, Fraser e Nicholson (1990)
Embora feministas e pós-modernistas mostram que na década de 1960, teóricas
tenham tentado (re)pensar a relação entre como Shulamith Firestone invocou
a filosofia e a crítica social, desenvolvendo diferenças biológicas entre homens e
paradigmas da crítica sem filosofia, as duas mulheres para explicar o sexismo, dizendo
tendências têm partido de direções opostas, que o conflito de gêneros era a forma mais
é o que afirma Nancy Fraser e Linda básica de conflito humano e a fonte de
Nicholson (1990). Os pós-modernistas têm todas as outras formas. Na visão das autoras
se concentrado primariamente no lado isso é problemático numa perspectiva pós-
filosófico do problema, elaborando modernista, pois os apelos à biologia para
perspectivas antifundacionais e meta explicar fenômenos sociais são essen-
filosóficas para, então, dar forma à critica cialistas e monocausais 1t . Na década de
social. Para, as feministas, a filosofia esteve 1970, Gayle Rubin descreveu a neces-
sempre subordinada à crítica social, sendo sidade de formular uma teoria que levasse
assim, desenvolvem primeiro perspectivas em conta a opressão das mulheres em sua
políticas críticas para depois considerar o 'interminável variedade e monótona
status da filosofia. Como resultado, os pós- semelhança'. Umã forma interessante foi
modernistas oferecem críticas bem sugerida por Michelle Zimbalist Rosaldo,
elaboradas sobre o fundacionalismo e ao argumentar que Cera comum a todas as
Estudos Feministas:
entre perspectivas essencialismo, mas deixam a desejar em sociedades a sQparação entre uma esfera
modernas e suas concepções da critica social. Por outro doméstica e uma esfera pública. No
pós-modernas
lado, as feministas oferecem boas entanto, estas explicações mostraram-se
concepções da crítica social, 'mas tendem também problemáticas pelo seu viés
a se desviar para o fundacionalismo e essencialista e monocausal.
essencialismo9. No final da década de 1970, as teóricas
MaryAlves Mendes Em muitos casos as criticas feministas sociais feministas deixaram de falar das
continuam a apoiar-se nos tipos de pilares determinantes biológicas, da separação
filosóficos que deveriam descartar. das esferas doméstico/público, e desistiram
Orientadas pela demanda da prática da premissa da monocausalidade. Nessa
política as feministas tenderam, conforme investida de mudança aparece Nancy
Fraser e Nicholson (1990), a inclinar-se em Chodorow estudando a maternidade e
outra direção, o que tem levado algumas tentando explicar a dinâmica interna e
delas a adotar formas de teorizar que psicológica que levou muitas mulheres a
lembram os tipos de metanarrativa filosófica reproduzir divisões sociais associadas à
criticada pelos pós-modernistas. Mas as inferioridade feminina, pressupondo que
autoras frisam que essas teorias feministas todas as pessoas têm um senso do eu, que

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é constituído no início da infância por discurso moral das mulheres em seus
intermédio da interação com o genitor próprios termos, de forma a descobrir seus
primário e que difere significativamente para padrões imanentes de adequação. Mas ao
os homens e para as mulheres, mas que é descrever o desenvolvimento moral das
ligeiramente semelhante entre as mulheres em termos de uma voz diferente,
mulheres. O que Chodorow tenta mostrar é não especificou quais mulheres e sob quais
que todas as ações têm traços da circunstancias históricas específicas
identidade de gênero. Fraser e Nicholson estavam elas falando. Fraser e Nicholson
afirmam que essa teoria também tem um ressaltam que esse modelo também tem
caráter metanarrativo porque ela propõe a caráter essencialista, e de quase-
existência de uma única atividade como metanarrativas. Observam, as autoras, que
algo natural, a maternidade. Para uma os vestígios do essencialismo vêm
perspectiva feminista torna-se complicado continuamente permeando a produção
porque deságua no essen-cialismo. A idéia acadêmica feminista.
de um senso do eu, especificado Mas ao tempo em que mostram a
diferentemente para mulheres e homens, presença de elementos analíticos
torna-se problemático quando recebe considerados modernos nas teorias
qualquer conteúdo específico, pois nem feministas pós-modernas, Fraser e
todo e qualquer tipo de interação humana Nicholson (1990) acabam reforçando esse
se dá dessa forma. perfil dos estudos, ao discordar da rejeição
A exemplo de Chodorow, outras teóricas de Lyotard às grandes narrativas históricas
feministas recentes construíram uma quase e às análises de macro-estruturas,
metanarrativa em torno de uma atividade propondo que se deva considerá-las nas
associada às mulheres e presente em pesquisas feministas pós-modernas. A
todas as culturas. Ann Ferguso, Nancy teoria proposta pelas autoras seria histórica
Folbre, Nancy Hartsock e Catharine e ajustada à especificidade cultural de
MacKinnon construíram respectivamente diferentes sociedades e períodos. As
teorias semelhantes em torno das noções categorias analíticas seriam flexionadas
de sexo-afeição, produção e reprodução, e pela temporalidade, com categorias
sexualidade. Cada uma identificou um tipo institucionais historicamente especificas.
básico de prática humana encontrada em Onde as categorias funcionalistas, não-
Estudos Feministas:
todas as sociedades. A dificuldade, na visão históricas seriam genealogizadas, ou seja, entre perspeCttvas
enquadradas por uma narrativa histórica e modernas e
de Fraser e Nicholson, é que essas pós.rndernas
categorias agrupam fenômenos que não mostradas de forma específica, temporal e
são necessariamente unidos em todas as cultural. Seria uma teoria comparativa e
sociedades e separa fenômenos que não não-universalista e dispensaria a idéia de
estão necessariamente separados. um tema da história para englobar diversas
Na década de 1980, a maioria das categorias, a exemplo de classe, raça, Mary Alves Mendes

acadêmicas feminista não procurava mais etnicidade idade e sexo. Ela ajustaria seus
as causas do sexismo, voltaram-se para métodos e categorias à tarefa específica
pesquisas mais empíricas e limitadas. do momento usando categorias múltiplas:
Mesmo nesta fase, traços de quase- A vantagem deste tipo de teoria, na visão
metanarrativas eram perceptíveis. Algumas das autoras, seria a sua utilidade para a
teóricas que deixaram de procurar pelas prática política feminista contemporânea.
causas do sexismo ainda se apoiavam em A hesitação das feministas diante da
categorias essencialistas tais como a admissão de um pós-modernismo pleno é
identidade de gênero. O trabalho de Carol lembrada também em David Lyon (1998),
Gilligan, por exemplo, propôs examinar o que resgata a colocação de Susan

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Hekman, de que boa parte das feministas pós-modernas aderem a algumas
pesquisadoras feministas critica as premissas 1/um/pistas quando, por exemplo,
epistemologias iluministas, mas pequena parecem concordar que toda a ciência e
parte se assume pós-moderna, talvez devido epistemologia possível devem estar contidas
dentro de formas modernas, androcêntficas,
à existência e influência da linhagem
ocidentais e burguesas, e ainda quando
feminista mais tradicional, que partilha das
assumem uma simetria entre verdade e
idéias iluministas de emancipação. Mas falsidade. Enfim, tanto os pensadores
rejeitar a fundamentação nem sempre feministas modernos como os pós-modernos,
significa abandonar a crítica social ambos estão com um pé na modernidade e o
sistemática da subordinação feminina, outro na pós-modernidade, gerando uma
ressalta Lyon. Mesmo aceitando o tensão considerada salutar entre as referidas
pluralismo e relativismo pós-moderno agendas, visto que refletem necessidades
algumas teóricas feministas não abrem políticas e teóficas legítimas.
mão das certezas. Luce Irigaray, por Harding mostra essa ambivalência
exemplo, segue na direção pós-moderna através das posições epistemológicas do
do discurso relacionando a questão da empirismo feminista e da teoria do
mulher à linguagem, mas não segue os posicionamento feminista. As empiristas
preceitos de desconstrução de Jacques feministas que discutem o sexismo e o
Derrida, que provavelmente desconstruida androcentriámo na pesquisa científica,
a dicotomia macho-femea, enquanto ela alegam a presença de tendências
defende uma subjetividade feminina androcêntricas no processo de pesquisa,
(Connor, 1994). Irigaray contesta a lógica desde a identificação e definição do
das estruturas patriarcais por elas utilizarem problema até a formulação de conceitos,
as mulheres como objetos de todo tipo de hipóteses, coleta e interpretação dos dados.
troca. A mulher só existe enquanto Os sujeitos cognoscentes para essas
mediação, transação, transição e teóricas empidstas surgem da situação real
transferência de um homem para outro de mulheres pesquisadoras: suas situações
homem. Ela é duplamente alienada, tanto como mulheres as fazem mais prováveis
de sua própria natureza física, como do que homens para detectar e falar sobre
mercadoria, quanto do seu próprio valor. Na os tópicos de preocupação feminista.
opinião de Connor, a teórica parece Embora desprezem ou ataquem os projetos
Estudos Feministas: pós-modernos no feminismo, o sujeito
entre perspectivas acreditar que a redução das mulheres a
modernas e valor de troca é universal. O que torna difícil, cognoscente do empirismo feminista,
pós-modernas segundo Harding, vive em tensão com as
segundo esse autor, pensar que a situação
possa ser modificada diante da suposição premissas do Iluminismo, pois ao tempo em
de que as mulheres são inevitavelmente que incorpora a idéia de produzir
silenciadas e tomadas objetos em todos os declarações menos tendenciosas e mais
Mary Aives Mendes aspectos, levando, assim, a uma objetivas, também insiste no que é proibido
concepção de homogeneidade e auto- ao empirismo: analisar e atribuir diferentes
identidade de exclusão das mulheres. valores epistemológicos às identidades
A ambivalência dos estudos feministas sociais dos pesquisadores. Outro problema
é discutida ainda por Sandra Harding em relação à epistemologia empirista é que
(1990), quando diz que agendas pós- ela não é aberta às diferenças de raça,
modernistas são encontradas nos projetos classe ou cultura das mulheres como
científicos modernos, e críticas feministas agentes do conhecimento, tendendo a
ao iluminismo não estão isentas dos expressar preocupações feministas de
projetos iluministas. Diz a autora, que forma homogênea.

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Mas as críticas à epistemologia ontologia e epistemologia, quanto dos pós-
empirista vieram através das teóricas do estruturalistas, para quem o conhecimento
posicionamento feminista, representada por e os objetos do conhecimento são múltiplos,
Dorothy Smith, Nancy Hartsock, Alisson existe um para cada discurso ou para cada
Jaggar, Collins e a própria Harding 11 . A sujeito. Ambos, realistas e pós-
experiência, resultante das atividades estruturalistas, criticam a teoria do
delegadas às mulheres, é o ponto central posicionamento por esta conceber o
dessa epistemologia. Smith, por exemplo, conhecimento surgindo espontaneamente
mostra que os diversos aspectos da divisão da experiência, pela aceitação de privilégio
de tarefas por gênero têm conseqüências epistemológico, e por ver as mulheres como
nas atividades sociais de homens e de categoria unificada 12 . Pós-estruturalismo
mulheres. Em geral, as teóricas dessa e realismo eliminam a idéia de experiência
vertente acreditam que a pesquisa do ponto como conhecimento não mediado. Todavia,
de vista das mulheres (ou posicionamento o realismo, ao contrário do pós-
feminista) pode superar a parcialidade e estruturalismo, não elimina a noção do
distorção das ciências androcêntricas sujeito, do agente, pois, segundo os
dominantes. Elas tomam posições mais realistas, se não houver o "eu" para vivenciar,
críticas e radicais do que o empirismo a epistemologia não existe, e as
feminista, no que diz respeito à experiências e conhecimentos tornam-se
homogeneidade das mulheres e às apenas efeitos de discurso.
-tendências anti-iluministas. Colocam-se Para os pós-estruturalistas a
contrárias à idéia de que princípios não- categoria "mulher' é apenas uma "essência
históricos de pesquisa possam assegurar nominal", e os corpos são materializados
representações mais perfeitas do mundo. através do discurso. Judith Butler
Mas tal qual as empiristas acreditam que (New,1998) diz que o feminismo ao distinguir
movimentos de liberação levam ao sexo e gênero, acaba naturalizando o sexo
crescimento do conhecimento, tornando e assegurando a sujeição e a diferença
possíveis novas formas de atividade entre os indivíduos. Propõe, essa autora, que
humana. A realidade, para essa vertente determinadas construções, como aquelas
teórica, é composta de várias estruturas que que estabelecem sexos opostos, sejam
se sobrepõem e entram em conflito. Essas abandonadas pelo feminismo, que por sua
Estudos FemnIstas:
razões levam Harding a afirmar que essa vez deve fixar-se numa "des-identificação entre pérspeütvas

teoria também vive em tensão com as coletiva". Carolina New contra-argumenta rnodenias e
pós-modernas
premissas centrais do Iluminismo. essas declarações dizendo que "os corpos
Em resposta à postulação feminista de têm poderes causais em si mesmo" (p363),
que a unidade entre as mulheres é possível, e que o sexo é comandado pelo gênero,
Caroline New (1998) é categórica ao mas é também extra-discursivo, pois
afirmar que esta se baseia numa embora os seus poderes causais sejam MaryflvesMendes

epistemologia que entende as experiências articulados através de entendimentos


das mulheres produzindo conhecimento de discursivos, sua ontologia não é por esse
interesses comuns, a exemplo da própria motivo dissipada. Para ela, "as mulheres são
teoria do posicionamento feminista, que sujeitos femininos, ou seja, seres sociais
defende que as mulheres são episte- que vivem dentro e através dos significados
mologicamente privilegiadas por sua locais atribuídos ao ser feminina" (p. 363).
posição social. Mas o seu empiricismo e a A proposta teórica de New (1998) à
forma como lida com experiência e Teoria do Posicionamento Feminista,
conhecimento foi alvo de críticas tanto dos pauta-se na abordagem realista epistêmica.
teóricos realistas, que fazem distinção entre Os Realistas acreditam que todas as

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crenças são socialmente produzidas, de considerada mais moderada, aparece
forma que todo conhecimento é apoiada no pós-modernismo pragrnatista de
transicional, nem os valores-de-verdade e Richard Rorty, uma modalidade mais
nem os critérios de racionalidade existem modesta de pluralismo moral que fica sob
fora do tempo histórico. Reconhecem a o limiar do universalismo e transcendência.
historicidade das teorias e as declarações Ele defende o ajuste local, pragmático, ao
de conhecimento. A evidência dos talos é invés da adjudicação universal, apontando
verificada mediante a coerência interna do a necessidade de cada pessoa confiar nas
relato, suas implicações, seus efeitos suas narrativas herdadas mais do que
práticos e suas avaliações (Bhaskar, 1979). suspeitar delas13 . A representante feminista
Os argumentos da Teoria do Posicio- da versão pragmatista, Kate Fullbrook, faz
namento Feminista, a partir da ótica realista, crítica as pós-estruturalistas dizendo que ao
incidem no nível do real, das estruturas que legitimar a alteridade absoluta da mulher
dão origem aos eventos da vida e das elas encarceram as próprias mulheres, visto
reações das mulheres a eles. As estruturas que as deixam fora da construção da
que proporcionarão a possibilidade de um cultura e da história (Connor, 1994).
posicionamento feminista são as estruturas Diferente dos realistas, que buscam a
sociais, os sistemas conceituais, as objetividade e tentam construir a verdade
crenças, os processos psicológicos, e as como correspondência à realidade porque
capacidades e riscos da diferença sexual. necessitam de uma metafísica que
Rebatendo as teóricas do posicio- diferencie crenças verdadeiras das falsas,
namento, New acredita não haver privilégio e de uma epistemologia com justificações
epistemológico para as mulheres nem para sociais, naturais e racionais que
qualquer outro grupo. O ponto de vista corresponda à realidade e a natureza
epistemológico de qualquer subjugado intrínseca das coisas, os pragmatistas, não
permite apenas a oportunidade de precisam nem de uma metafísica, nem de
conhecimento a partir da sua própria uma epistemologia, visto que visualizam a
posição de subordinação e o interesse de verdade não como correspondência da
utilizar esse conhecimento no sentido de realidade, o que os faz não necessitar de
empreender ações coletivas para combater uma avaliação da relação entre crenças e
a sua opressão. O posicionamento objetos e nem das capacidades cognitivas
Estudos Feministas:
entre perspectivas feminista é "o resultado eventual de um humanas. Para os pragmatistas, o desejo
modernas e programa político investigativo que objetiva por objetividade é o desejo de alcançar a
pós-modernas
construir unidade com base no maior concordância intersubjetiva, Para
conhecimento do mundo social" (p370). eles, a verdade possui significados à
Ele usa o conhecimento das mulheres para proporção das justificações14.
descobrir as causas das suas experiências Rorty (1994), em seu diálogo com o
MáryAlves Mendes comuns e as formas de mudanças feminismo, declara que a crítica feminista
desejadas. feita à ideologia machista via desconstrução
Além da versão pós-estruturalista, que deve, ao invés de perguntar se a construção
se constitui como a ala pós-moderna mais do objeto é válida, perguntar se ele está
radical da diferença na teoria feminista, construído de maneira útil aos fins
representada por teóricas como l-làlene feministas. Saber se suas críticas às práticas
Cixious, Luce Irigaray e Julia Kristeva, sociais machistas são científicas ou
afirmando a instabilidade da identidade, filosoficamente bem fundadas, não
rejeitando as totalidades, defendendo o valor interessa, como também não interessa
da alteridade, da diferença e da saber se o machismo distorceu as coisas.
disseminação do valor, outra versão, Segundo esse teórico, as feministas que

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tem pretensão de modificar o mundo social A teórica habermasiana Benhabib
não podem ter demasiado respeito pelas (1990), ao atestar que o sujeito epistêmico
descrições passadas das instituições do pensamento pós-moderno não é mais
sociais, pois não há nada de "natural" ou um eu isolado, é uma comunidade de eus,
"científico" ou "objetivo" em nenhuma discorda desse politeísmo de valores e
prática ou descrição, todos os objetos são conceitos da filosofia contemporânea
construtos sociais inclusive o próprio enquanto projeto para a agenda feminista.
feminismo O importante é o que se pode Ela elege a teoria social crítica como a que
melhor define os critérios cognitivos e
fazer para convencer as pessoas a agirem
diferentemente do passado, isso tanto os morais para a defesa de um conhecimento
baseado na prática discursiva da busca da
desconstrutivistas como os pragmatistas
compreensão entre iguais. Nesse sentido,
através do seu entendimento sobre
encaminha severa crítica a Lyotard, ao
objetividade verdade e linguagem vão
tempo que sai em defesa de Habermas.
ajudar. Todavia, Rorty alerta que o
Embora ambos rejeitem a função denotativa
pragmatismo como um conjunto de visões
da linguagem e reconheçam o conhe-
filosóficas sobre verdade, conhecimento,
cimento como prática argumentativa e
objetividade e linguagem, é neutro em
discursiva, eles se diferenciam no ponto em
relação ao feminismo e machismo, ou seja,
que para Habermas o conhecimento
ele.nâo fornecerá doutrinas feministas sobre
discursivo é contínuo e legitimado pelas
esses temas. As feministas deverão pensar
práticas diárias de comunicação,. enquanto
a filosofia pragmática e desconstrutivista
para Lyotard o "discurso" e o conhecimento
como um suporte lateral e não como um
narrativo" são radicalmente descontínuos
aliado em suas análises. e não precisam ser legitimados.
Contrapondo-se à inserção do pós-
Segundo a autora, a linguagem que
modernismo no contexto feminista aparece Lyotard defende não distingue a ação
também o feminismo habermasiatio,
"acordada" da ação "manipulativa". Mas é
representado por teóricas como Seyla
o próprio Lyotard que acusa Habermas de
Benhabib, Nancy Fraser e Drucilla Cornell.
reduzir todos os jogos de linguagem ao
Diferente da corrente pós-moderna que
meta jogo da verdade. Não é bem o que
preza pela diferença e desconstrução, essa
vertente abarca o universalismo e a pensa Benhabib, ao mostrar que a
reconstrução. Para essas teóricas, a concepção de linguagem como mídia Estudos Feministas:
ente perspecdvas
questão central do feminismo não é só cognitiva, aquela que Habermas defende, niademase
modificar os valores que contribuem para a é mais adequada do que a visão de pós-nisds

exploração das mulheres, mas operar nos linguagem como mídia evocativa que
discursos rumo a uma comunicação não Lyotard defende, visto que este teórico não
coercitiva e ao consenso, visando por fim a faz distinção entre poder e validade. Além
emancipação universal das restrições de desaparecer em sua teoria a linha entre
1-laryMes Mendes
discursivas de todos os tipos. Mas Nancy verdade e engano, consenso e coerção,
Fraser vê um complicador no pensamento dado que o conhecimento científico tem
de Habermas. Segundo ela, o modelo de pouca relação com executabilidade, esse
determinação social do valor para ele é conhecimento é descontínuo e ignora
cego ao gênero, o que conseqüentemente questões epistemológicas importantes,
acaba excluindo as mulheres. Ao apegar- como a distinção entre as ciências naturais
se demasiadamente à oposição absoluta e sociais, formação de conceito, formu-
entre o "sistema" e o "mundo da vida", ele lação de regras gerais, procedimentos de
não dá atenção a crítica feminista feita à verificação, e a interação entre a cognição
oposição público/privado, que revela o pré-teórica e teórica nas ciências sociais e
poder e a razão estratégica que opera junto
humanas.
aos interesses dos homens.

232
Considerações Finais construção social e discursiva, des-
construindo, principalmente, as análises
Os estudos feministas, quer no que buscavam as origens e dicotomias.
enquadramento epistemológico iluminista, Mesmo seguindo na direção analítica
quer anti-iluminista, mostrou-se inovador pós-moderna, boa parte das teóricas
quando reivindicou a categoria mulheres feministas não a incorporou plenamente. A
enquanto objeto de análise frente a uma evidência está na ambivalência presente
ciência acadêmica androcêntrica, mas não em determinadas vertentes teóricas, que
se furtou também de ser essencialista e concomitantemente incluem categorias
fundacionalista, buscando em parte das analíticas moderna e pós-modernas.
suas análises uma categoria universal Todavia, se toma paradoxal a ambivalência
feminina, tal qual as idéias iluministas de feminista da política da diferença, se for.
uma natureza humana universal. considerado, como bem lembra Connor
Em determinados momentos utilizou por (1994), que valores fundacionais se
analogia a teoria marxista para explicar as legitimam através da idéia de identidade
discriminações e a desigualdade feminina ontológica, e que a identidade está muitas
através de categorias como o trabalho vezes associada a formas de degradação
doméstico e a sua representação dentro do cultural das mulheres. Apoiar-se no campo
contexto capitalista. Críticas surgiram a da identidade para reclamar os seus
essas analogias ortodoxas marxistas nos próprios efeitos e acolher teorias criticas
estudos feministas, e novas argumentações iluminista, que são elas em parte
se fizeram presentes através das análises responsáveis pela discriminação e
das teóricas habermasianas, que opressão feminina, é motivo de acirrados
acreditavam poder explicar a instituição das debates dentro e fora do feminismo.
esferas pública/doméstica e a posição da Talvez se possa associar essa
mulher nesse contexto pela intersub- ambivalência dos estudos feministas a uma
jetividade da ação comunicativa, livre de tentativa de síntese, uma terceira alternativa
dominação e obtida de forma justa e que não a moderna e pós-moderna e,
democrática através do consenso no portanto 'uma valoração totalmente outra
campo do discurso. do valor, uma valoração que sugere não a
Contrapondo-se ao fundacionalismo e inerência, mas a indeterminação inerente
Estudos Feministas:
entre perspectivas as metanarrativas, despontam as teorias do valor' (Connor, 1994, p. 168). Paradoxos
modernas e pós-modernas inspiradas em Lyotard e à parte, o feminismo segue na sua proposta
pós-rnoclenias
Foucault, na desconstrução de Derrida e de reavaliação própria dos valores da razão,
no pragmatismo de Rorty. Longe dos moldes da verdade e igualdade. Quem sabe Rorty
tradicionais da filosofia, a análise torna-se (1998) não tenha certa razão, quando
agora plural, local, e livre de qualquer aconselha antes a confiança do que a
Mary Alves Medes totalidade. Dentro desse quadro de suspeita em narrativas herdadas? Talvez se
formatação da crítica social pós-moderna possa admitir como Alisdair Macintyre
as teóricas feministas abandonam (Connor,1994) a possibilidade de uma
elementos analíticos que dizem respeito às justaposição e uma acomodação mútua
diferenças fisiológicas, desigualdades entre entre diferentes narrativas culturais e
as esferas pública e doméstica, e passam políticas.
a conceber a categoria mulher como uma

233
Notas

1 Johnson (1997) define o feminismo como um oscilante; Heidegger, com a afirmação da existência
conjunto complexo de ideologias políticas usadas prévia do Ser como causa da diferença, e negação
pelo movimento feminista para defendera igualdade da verdade como fundamentoda realidade; Simmel,
das mulheres com os homens, pondo fim à teoria com a busca do significado simbólico e cultural da
sexista; -e corno urna variedade de enfoques usados existência humana. Lyon (1998) chama também a
para analisar e interpretar a construção, imposição atenção para a diferença entre os termos pós-
e manifestação das desigualdades entre os sexos, modernismo e pós-modernidade, dizendo que
percorrendo desde aspectos institucionais até quando se fala em pós-modernismo a ênfase se dá
pormenores da prática cotidiana. Barrett (1996), sobre o cultural e quando se fala em -pós-
-de maneira similar a Johnson, o-define como a modernidade a ênfase é em relação ao social, mas
-defesa dos direitos iguais entre mulheres e homens precisamente ao surgimento de um novo estágio
e melhoria da posição da mulher na sociedade, do capitalismo, às novas tecnologias da informação
e a comunicação no processo de globalização e
2 Segundo Dias (1992:40), os estudos feministas consumo. Para Haivey (1996), opôs-modernismo
têm em geral contribuído para a renovação de é a lógica interna do capitalismo. De forma parecida
teorias e métodos nas Ciências Humanas, todavia, segué Jameson (2000), associando-o à lógica
do cultural do sistema capitalista.
enquanto objeto conhecimento, partflhacom essa
ciência as incertezas inerentes ao processo do
conhecimento. 'Est u di os os recentes da questão trazem explicações
baseadas na visão de Lyotard sobre o significado
1 Na trilha deste teórico, embora com algumas do pós-modernismo. Connor (1996) 0 define como
diferenças pontuais-encontram-se também os pós- pressuposto da rejeição da unicidade, naturalidade
estruturalistas Jacques Derrida e Michel Foucauk, e objetividade do mundo, e como pressuposto de
e o neopragmatista Richard Rorty. que os sistemas humanos funcionam tal qual -a
linguagem, são sistemas auto-reflexivos ao invés
Segundo Bruschini (1992), esses estudos de rei erenciais. Lyon (1998) o caracteriza como
estavam mais relacionados à descrição da condição abandono do "fundacionalisrno", colapso das
e do papel da mulher na história e na sociedade. hierarquias de conhecimento e substituição das
análises de cunho universal por -análises mais
localizadas.
Não é bem o que pensa Fraser e Nicholson
(1990), que declaram que em todas as fases do Estudos Feministas:
9 Mouffe (1996), lembra que ser pós-rnoderno:náo enfltperspeCltVas
percurso dos estudos feministas é possível se significa necessariamente ser anti-essencialisla.;A e
detectar características essencialistas e pós-modernas
autora lembra Diana Fuss, uma feminista pós-
universalistas. moderna defensora do essencialismo. Tais posições,
segundo Moulfe, tornam o corpo de teóricos pós-
6 Rosaldo (1994) faz crítica a Shulamittl Firestone modernos um tanto incoerente.
por esta buscar em suas análises as origens do
MaryAjvesMeiides
antagonismo sexual. Suas críticas encaminham-se Essencialistas porque projetam sobre todas as
também à Linda Gordon pela tentativa desta de mulheres e homens qualidades que se desenvolvem
universalizar a questão do controle da natalidade. sob condições sociais historicamente específicas.
Monocausais porque olham para um conjunto de
Segundo Lemert (2000), pode se tomar como características fisiológicas tentando explicar a
referência inaugural do pós-modernismo o ano de opressão das mulheres em todas as culturas (Fraser
1979 com a publicação dos textos, A condição pós- e Nicholson, 1990).
moderna, de Jean-François Lyotard, e A filosofia
e o espelho da natureza, de Richard Rorly. Mas II Para Srnith, o ponto de partida para a política
os seus progenitores, conforme Lyon (1998), foram feminista é as experiências das mulheres. Segundo
Friedrich Nietzsche, com seu anuncio do niilismo ela, o mundo se bifurca em duas esferas, pública e
marcando a existência de uma realidade fluida e doméstica, onde se criam conceitos que transfornam

234
as experiências em "construtos administrativos experiência produz conhecimentos, mas não
abstratos" produzindo, assim, duas formas de saber conhecimentos melhores, -rejeitando, assim, a
e fazer uma localizada no corpo e no espaço que concepção de privilégio epistemológico. Não faziam
ele ocupa e no qual se movimenta, e outra que vai distinção entre ontologia e epistemologia, tomando
além dele. Smith não defende o privilégio epistêmico a experiência indistinguível do conhecimento. Em
para as mulheres, ao contrário, diz que a posição relação às criticas de privilégio epistemológico,
social das mulheres produz um conhecimento não- Collins responde dizendo que osconhecimentos
conhecido ou negado dentro da ciência social. subjugados podem ser a chave para a mudança
Hartsock defende uma espécie de materialismo social, não porque sejam verdades completas, mas
histórico feminista, tomando como ponto de partida porque incluem informações e formas de pensar
a proposta de Marx e desenvolvendo um argumento que os grupos dominantes tem interesse em suprimir.
equivalente, o de que a posição das mulheres Numa posição habemiasiana ela defende que os
enquanto grupo oprimido lhes dá uma visão mais seres humanos têm interesses comuns que devem
apropriada do mundo social e as faz criar esquemas ser descobertos através do diálogo. Identifica
conceituais mais apropriados. A subordinação comunidades como sujeitos cognoscentes. Ver New
feminina e o privilegio epistemológico das mulheres (1998). -
podem ser compreendidos a partir da divisão
sexual do trabalho. Acredita que a vida e
perspectivas das mulheres são semelhantes, mas Tanto pragmatistas como desconstrutivistas
ao invés da experiência recorre a estruturas concordam que tudo é um construto social, não
fazendo sentido a distinção entre o que é "natural"
psíquicas. Diz ainda que o posicionamento feminista
é adquirido por meio da luta política e trabalho e o que é "cultural", entre aparência e realidade. A
científico e não da experiência. Jaggar também faz questão, por exemplo, em Roty, é saber quais
uma analogia com o marxismo estabelecendo o construtos preservar e quais descartar, quais os
sofrimento como o equivalente propulsor da história. mais úteis e os menos úteis.
A dor, segundo ela, motiva uma crítica que fornece
14
um conhecimento mais imparcial e mais A verdade não é uma questão de
compreensivo, que não é dado pela experiência correspondência com a natureza intrínseca da
cotidiana, mas também pelo trabalho teórico e realidade, e nem com a rejeição desconstrutivista
político. Para maiores detalhes ver New (1998). da 'etafisica da presença". Rorty baliza a verdade
através de critérios de justificação que são sempre
2
Em resposta às críticas pelo conceito de relativos. A verdade é uma noção absoluta, mas
experiência, que parecia funcionar às vezes como sua aplicação é relativa. Não há para ele uma
causa do conhecimento e às vezes sendo o próprio definição de verdadeiro que funcione para toda
Estudos Feministas: conhecimento, as teóricas do posicionamento linguagem, por isso não se pode falar de uma
entre perspectivas
modernas e polarizaram-se: Sandra Harding substituiu a noção natureza da verdade, só se pode falar sobre o que
pós-modernas de 'vida das mulheres' por informação sobre é relativo e o que é relativo está relacionado a
relações sociais. Argumentou em favor de uma critérios de justificação. Por isso é que, segundo
ciência que reconhecesse a natureza socialmente esse filósofo, não se deve esperar da filosofia
localizada do conhecimento cientifico. Collins e respostas definitivas, é preciso mudar a concepção
Jaggar desenvolveram o 'realismo de tradicional que se tem da sua utilidade por meio de
Mary Alves Mendes convergência' no qual diferentes grupos têm acesso um processo lento de mudança cultural. Isso
privilegiado a um aspecto das relações sociais. acontecerá a partir do momento que se abandonar
Faziam distinção entre epistemologia e ontologia. a distinção entre aparência e realidade (Rorty, 1998;
Stanley e Wise optaram por uma definição 1997; 1994).
fenomenológica de experiência. Para elas a

KkI
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