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Saúde comunitária numa favela de Chicago

É possível que, apesar das contradições da medicina, se possam


desenvolver as possibilidades da política?
O exemplo que vou descrever não irá criar uma nova ordem social. É,
no entanto, o começo de um esforço para libertar as pessoas da
medicalização da saúde, de modo quem possam perceber as possibilidades de
serem cidadãs engajadas na ação da política.
O exemplo envolve uma comunidade de cerca de sessenta mil pessoas
na zona oeste de Chicago. A comunidade é pobre e negra, e a maioria
depende da previdência social. A comunidade tem uma associação de
moradores constituída de voluntários, não ligada ao governo. Essa
associação abrange uma área em que há dois hospitais.
A vizinhança era originalmente constituída de brancos, porém, na
década de 1960, passou por uma transição racial, e num período de alguns
anos, tornou-se majoritariamente constituída de negros.
Ambos os hospitais continuaram ( como na época colonial) a servir à
comunidade branca que ali vivera antes da transição. Os negros, no entanto,
lutaram para conquistar o direito de acesso aos serviços hospitalares.
Isto se tornou uma luta política e a associação de moradores
finalmente “segurou” os dois hospitais. A direção das duas instituições,
então, aceitou pessoas da vizinhança, empregou pessoas negras em sua
equipe, e passou a prestar assistência à comunidade, ao contrário do que
antes fazia , quando só atendia os pacientes brancos.
Após alguns anos, a associação sentiu que era tempo de parar e olhar
para a saúde da comuniade. Como resultado de suas análises, descobriu que,
embora houvesse “segurado” os hospitais, não havia evidência significativa
de que a saúde das pessoas tinha melhorado só porque o controle dos
serviços médicos estava nas suas mãos.
A associação, então, entrou em um contato com o Centro de Serviços
Urbanos, onde eu trabalho. Pediram-nos para investigar por que, mesmo
controlando os hospitais, a saúde do povo não havia melhorado em nada.

Causas de hospitalização

Havia sido acordado que faríamos um estudo dos registros médicos


dos hospitais para ver por que as pessoas haviam recebido atendimento
médico. Também investigamos os registros do atendimento de emergência
para determinar a frequencia dos vários problemas que traziam as pessoas
aos hospitais.
Descobrimos que as sete razões mais comuns para a hospitalização,
pela ordem de frequencia, eram:

1 – Acidentes de carro
2 – Ataques interpesoais
3 – Acidentes (outros)
4 – Problemas brônquios
5 – Alcoolismo
6 – Problemas relacionados a drogas (administradas por médicos ou
não)
7 – Mordidas de cachorro

O pessoal da associação ficou perplexo com tais descobertas. A


linguagem médica é centrada na doença – embora os problemas detectados
pouco tivessem a ver com elas. A medicalização da saúde levou-os a pensar
que “doença” era o problema para o qual os hospitais se destinavam;
descobriram, no entanto, que os hospitais estavam lidando com muitos
problemas que nada tinham a ver com “doenças”. Este foi um passo
importante na concientização de que os modernos serviços médicos estão
lidando frequentemente com o “passar mal” e com os problemas sociais,
muito mais do que com doenças. E tanto o “passar mal” quanto os problemas
sociais são da alçada dos cidadãos e suas organizações comunitárias.

Ação comunitárias

Tendo visto a lista desses “passar mal” e dos problemas de ordem


social, a associação comunitária considerou o que deveria, ou poderia, fazer
em relação a eles. Irei descrever as três primeiras coisas que eles decidiram
fazer porque cada uma envolve um aspecto diferente.
Inicialmente, como bons estrategistas políticos, os moradores
decidiram enfrentar um problema supostamente fácil de resolver. Como não
queriam começar um trabalho para perder, olharam o final da lista e
escolheram “mordida de cachorro”, responsável por cerca de 4% das visitas à
emergência dos hospitais, ao custo de 185 dólares.
Como poderia esta questão ser melhor abordada? Eu estava
interessado em ver o pessoal da associação pensando o problema.
O governo da cidade tem funcionários que são pagos para serem
“capturadores de cachorros”, mas a associação não quis contatar a
prefeitura. Em vez disso, disseram: “Vamos ver o que podemos fazer por nós
mesmos”. Decidiram, então, pegar uma pequena parte de seu dinheiro e usá-
lo na “recompensa para cachorro”. Através dos clubes da comunidade,
anunciaram que, durante um mês, pagariam uma quantia de cinco dólares
por cada cão sem dono que fosse trazido para a associação, ou ainda, se o
local onde o cão estivesse fosse identificado de modo a poderem ir lá capturá-
lo.
Havia muitos cães agressivos na redondeza, assustando as pessoas.
As crianças da vizinhança, por outro lado, acharam que pegar os cães era
uma ideia maravilhosa. Assim, puseram-se a ajudar na busca. Em um mês,
160 cães tinham sido capturados e os casos de mordidas caninas
decresceram nos hospitais.
Duas coisas aconteceram como resultado do sucesso da iniciativa. As
pessoas começaram a aprender que sua atuação, mais do que o hospital,
determinava a sua saúde. Estavam , além disso, investindo na sua própria
organização, e envolvendo as crianças como ativistas na comunidade,
O segundo elenco de ações foi lidar com uma coisa mais difícil –
acidentes de carro. “Como poderemos fazer qualquer coisa se não sabemos
onde acontecem os acidentes?”, diziam as pessoas. Pediram-nos, então, para
obter informações que pudessem ajudar a lidar com o problema; achamos,
porém,muito difícil obter informações sobre “quando”, “onde”, e “como”
acontecia um acidente.
Decidimos voltar ao hospital e dar uma busca nos registros médicos
para determinar o tipo de acidente que levava pacientes para o hospital. Se
a medicina era um sistema relacionado às possibilidades da ação
comunitária, isto deveria ser possível. Mas não era. Os registros médicos
nada diziam. “Esta pessoa está passando mal porque foi atropelada por um
carro às seis horas da tarde do dia 3 de janeiro, na esquina da rua Madison
com Kedzie”. Algumas vezes, o registro nem sequer dizia que a causa tinha
sido um acidente de carro. Dizia apenas que a pessoa tinha tido uma “tíbia
quebrada”. É um sistema de registro que obscurece a natureza comunitária
do problema, focando a terapia e excluindo a causa primeira.
Começamos, então, a procurar o sistema de dados do
macroplanejamento. Finalmente, encontramos um grupo de
macroplanejadores que tinha dados referentes à tipificação dos acidentes
automobilísticos na cidade. Os dados estavam alocados num sistema
computadorizado complexo, para serem utilizados em macroplanejamento,
visando facilitar o tráfego de automóveis. Convencemos os planejadores a
fazer uma cópia que pudesse ser usada pela comunidade na sua intervenção.
Isto jamais havia ocorrido antes, ou seja, a comunidade utilizar tais
informações como “suas”.
No entanto, as cópias eram tão complexas que os membros da
associação não conseguiam compreendê-las. Então, com base nos números,
fizemos um mapeamento dos acidentes. Onde ocorriam os acidentes,
colocamos um X azul. Onde os acidentes provocavam mortes, colocamos um
X vermelho.
Fizemos isto durante três meses. Há 60.000 moradores no bairro.
Naquela área, em três meses, tinham acontecido mais de mil acidentes. Pelo
mapa, o pessoal podia ver, por exemplo, que durante três meses, seis
pessoas tinham saído feridas e uma havia morrido. Identificaram de
imediato o local como sendo a entrada do estacionamento de uma loja de
departamento. Estavam , então, prontos para agir, ao invés de apenas
receberem assistência médica; podiam negociar com o proprietário da loja,
porque a informação havia sido “liberada” do circuito fechado do grupo
médico e de macroplanejadores.
A experiência com o mapa teve duas consequências. Primeiro, deu
oportunidade para se inventarem novos caminhos de lidar com o problema
da saúde. A associação comunitária pôde negociar com o proprietário da loja
a mudança na entrada do estabelecimento.
A segunda consequência foi que se tornou claro que havia problemas
de acidentes que a comunidade não podia resolver sozinha. Uma das
principais razões para muitos acidentes era o fato de as autoridades terem
decidido transformar inúmeras ruas em vias principais para a circulação de
automóveis. Os veículos que trafegavam por ali eram a principal causa dos
acidentes envolvendo pessoas da região. Lidar com o problema não estava ao
alcance dos moradores, mas eles compreenderam a necessidade de procurar
outra associação comunitária envolvida em processo parecido, para, juntos,
poderem lidar melhor com a situação, adquirindo mais força para revindicar
políticas que sirvam aos seus interesses.
A terceira ação comunitária desenvolveu-se quando as pessoas foram
analisar os chamados “problemas brônquicos”. Perceberam que a boa
nutrição era determinante nesses problemas, concluindo que não dispunham
de uma alimentação rica em frutas e verduras. Na cidade, sobretudo no
inverno, estes produtos são muito caros. Por que, então, elas não podiam
cultivar suas próprias frutas e verduras? Olharam em volta, e parecia difícil
para quem vivia no coração da cidade. Então, deram-se conta de que muitos
deles moravam em apartamentos de dois andares: “Se a gente construísse
uma estufa no telhado, será que não daria para plantar nossas frutas e
hortaliças?”. Resolveram fazer a estufa num dos telhados, a título de
experiência, e, então, uma coisa fascinante começou a acontecer.
No começo, a estufa foi construída por causa de um problema de
saúde – nutrição adequada. A estufa era uma ferramenta, integrada ao meio
ambiente, da qual as pessoas iam fazer uso para melhorar suas condições de
saúde. Rapidamente, no entanto, começaram a perceber que a estufa
também era um meio de crescimento econômico. Isto aumentou o seu
orçamento porque, agora, não mais produziam apenas para o seu próprio
consumo , mas também para vender. Nos Estados Unidos, energia custa
muito caro, onerando ainda mais as pessoas pobres. Perdia-se muita energia
através dos telhados das casas. Assim, as estufas converteram a perda de
energia em, economia, pois o calor que escapava das casas para o telhado foi
canalizado para a estufa, que o conservava.
Outro aproveitamento da estufa surgiu por acaso. A associação
possuía um lar de idosos,e , um dia, alguém da casa descobriu a estufa. De
volta ao lar, contou aos outros idosos, que passaram a ir todos os dias ao
local para ajudar a cuidar das plantas. Então, o administrados do lar notou
que seus hóspedes haviam mudado. Estavam eufóricos, pois estavam se
sentindo úteis. A estufa tornara-se um instrumento para potencializar as
pessoas de mais idade – antes postas de lado, tonaram-se produtivas.
Todos começaram a se dar conta da tecnologia, através de uma
simples ferramenta – uma estufa. Seu produto final era saúde,
desenvolvimento econômico e conservação de energia (além de contribuir
para que pessoas mais velhas se tornassem produtivas). Um simples
instrumento, construído com um mínimo de investimento produzia
múltiplos resultados com poucos efeitos negativos. Denominamos a estufa de
“ multiplicidade”.
Muitos artefatos, numa sociedade moderna orientada para o
consumo, são o reverso da estufa. São sistemas que requerem uma complexa
organização com múltiplos investimentos que produzem uma única coisa.
Um exemplo: se você consegue bauxita da Jamaica, borracha da Indonésia,
petróleo da Arábia Saudita, madeira do Canadá e trabalho de todos estes
países, e processa estes recursos numa corporação americana para
manufaturar a matéria prima, poderá produzir apenas uma escova de
dentes elétrica! É o que chamamos de “unitilidade”. Tem inúmeros inputs e
apenas um output. É um único artefato, apenas uma escova de dentes. Se
um artefato é basicamente um aparelho que economiza mão-de-obra, então,
esta escova de dentes é um anti-artefato. Se você somasse todo o trabalho
posto na produção desta escova, ele seria infinitamente maior do que a
economia de trabalho dispendido na sua utilização.
A escova elétrica e os sistemas para a sua produção são a essência do
equívoco tecnológico. A estufa é a essência da possibilidade tecnológica. A
escova de dentes (“unitilidade”) é um instrumento que incapacita,
maximizando a exploração. A estufa (“multiplicidade”) é um instrumento
que minimiza a exploração e potencializa a ação comunitária.
Por outro lado, a estufa é um instrumento de saúde que gera a
cidadania e implementa a saúde. O enfoque institucional da saúde
despotencializa a capacidade comunitária, concentrando-se em instrumentos
terapêuticos e técnicas que exigem muitos input, com outputs limitados em
termos de padrão de saúde.

Conclusões

Primeira: é muito importante que a ação tenha fortalecido a


organização da comunidade. Saúde é um tema político. Converter um
problema médico numa questão política é central para a melhoria da saúde.
Por este motivo, na medida em, que nossa ação desenvolveu a vitalidade e o
poder da organização, começamos a desenvolver um trabalho crítico na área
da saúde. Temos que acabar com a dependência de aparatos profissionais e
técnicas, e caminharmos na direção da construção comunitária e da ação
cidadã. A ação efetiva deve converter um problema técnico-profissional
numa questão política comunal.
Segunda: a ação efetiva identifica o que se pode fazer em âmbito local
com os recursos disponíveis. Identifica também as autoridades e estruturas
que na comunidade, atuam em prol dos seus interesses.
Terceira: a ação efetiva cria instrumentos para o uso do povo, sob o
seu próprio controle. Para desenvolver estes instrumentos pode ser
necessário reduzir a verba alocada no sistema de saúde. Na medida em que
a atividade de saúde da organização comunitária torna-se efetiva, a “bola”
da medicina deve murchar. Por exemplo, após os cães terem sido
capturados, o hospital perdeu clientes. No entanto, não poderíamos supor
que tal ação impedisse o sistema de saúde a crescer. A estrutura continuará
solicitando recursos e espaço. Mas nossa ação irá agudizar as contradições
das definições medicalizadas de saúde. Pode-se passar a ouvir coisas do tipo:
“ Olha, podemos ter economizado US$ 185,00 dólares em atendimento
porque mais de 160 cães não vão mais morder as pessoas. É um bocado de
dinheiro! Mas o dinheiro continua a ficar com aquele hospital. Quremos
nossos US$ 185,00 dólares! Queremos começar a negociar numa economia
que não se troque a ação comunitária por mais serviço médico. Precisamos
de recursos, não de terapia. Se vamos atuar em nosso próprio interesse,
vamos precisar dos recursos que a medicina reivindica para seus propósitos
terapêuticos, no sentido de diminuir nossas necessidades de atendimento.”
Os três princípios da ação comunitária de saúde sugerem que “outra
maneira de desenvolver a área de saúde” é basicamente deixar de ser
“consumidor de médico”, objetivando o pleno acesso ao atendimento. A
experiência descrita sugere que a doença é fruto da dependência aos
instrumentos, recursos, poder, devido às “unitilidades” que criam
consumidores.
Saúde é uma questão política. Requer cidadãos e comunidades. O
processo de ação comunitária pode produzir um “outro desenvolvimento na
área da saúde” ao traduzir problemas e recursos definidos como médicos, em
problemas politicamente comunitários.

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