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Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura

Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128


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A SOBREVIVÊNCIA DA LITERATURA: DESAFIO INTELECTUAL E METODOLÓGICO

Elódia Xavier (UFRJ)

Lendo o texto de Apresentação deste II SENALIC, fui atraída pela proposta do

evento, segundo a qual “o principal objetivo direciona-se para o debate em torno de uma

abordagem multidisciplinar dos estudos da literatura.”E, como se trata de um Seminário

sobre Literatura e Cultura, resolvi trabalhar a relação entre essas duas instâncias,

motivo, para mim, de várias inquietações.

É notória a importância que a Cultura vem adquirindo, desde o início do século

XX, em função do avanço dos estudos antropológicos, sobretudo, para a teoria

feminista, lembrando apenas as famosas palavras de Simone de Beauvoir que abrem o

volume 2, do Segundo Sexo: “Ninguém nasce mulher; torna-se mulher”. O

construtivismo cultural passou a ser responsável por quase tudo. Assistimos, então, à

primazia do cultural, em que as premissas da sociedade são cada vez mais vistas como

culturalmente construídas.

Neste afã de construção/desconstrução, neste movimento de desnaturalização,

os limites foram sendo borrados e a interdisciplinaridade se impôs como modelo

metodológico. Surgiram, então, os Estudos Culturais, formando uma disciplina de tintas

democratizantes, de grande abrangência. Os estudos literários tiveram que expandir o

currículo para incluir os meios de comunicação de massa, dentro de um contexto social,

agora, invadido pela imagem.

A disciplina de Estudos Culturais fundamenta-se numa visão mais democrática e

inclusiva de cultura, numa articulação com os processos sociais. Em se tratando dos


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estudos literários, parece não ter havido grandes mudanças. Estudar, por exemplo, uma

obra literária em relação a seu contexto sócio-histórico não é nenhuma novidade.

Antonio Cândido sempre fez isso de forma admirável. A sua crítica sociológica é um

exemplo disso. Vejam o que ele diz em Literatura e Sociedade:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma


dessas visões dissociadas, e que só a podemos entender, fundindo texto e
contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho
ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro,
norteado pela noção de que a estrutura é virtualmente independente se
combinam como momentos necessários do processo interpretativo.
Sabemos, ainda, que o externo (no caso o social) importa não como causa,
nem como significado, mas como elemento que desempenha um papel na
constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (p.4)

Assim, o contexto, isto é, o externo, ao ser incluído na obra literária, passa a ser um

elemento estruturante, contribuindo para a realidade ficcional. Ora, não é bem isso o que

acontece com o processo interpretativo pelo viés dos Estudos Culturais, porque aqui a teoria

é politizada, visando sempre a uma leitura política dos textos literários. Isto é, uma leitura

que interfira na realidade social.

Com a avalanche dessa nova disciplina, os estudos literários foram invadidos por

questões outras, perdendo sua especificidade. Sendo a literatura a arte da palavra, o

estudioso do texto literário não pode perder de vista a questão da linguagem, elemento

estruturante da obra.

Tzvetan Todorov publicou um livro, A literatura em Perigo, onde mostra que a

literatura não participa mais da formação intelectual do indivíduo, pois os jovens não entram

em contato direto com os textos. O acesso à literatura, agora, é mediado pela história

literária, pela teoria

e, sobretudo, pelos críticos. Aqui, me ocorre o texto de José Castello, publicado em

OGlobo de 17/04, onde ele fala de sua paixão pelos clássicos. Começa assim:
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“Ainda de calças curtas, sem entender bem o que acontecia, descobri a


poesia de Manuel Bandeira. Na sala de aula, enquanto o professor falava
das escolas literárias e da importância das influências, eu lia Bandeira, o
livro camuflado entre meus cadernos, como algo vergonhoso, ou obsceno.
Lia e sufocava.(p.4)

Falando de Bandeira, João Cabral e Vinicius, Castello diz – “eles são os meus

clássicos. Os livros que me fundaram.” (p.4) Isto é, textos que são fundantes na formação

do indivíduo, contribuindo para a nossa subjetividade.

Esse é o autêntico contato com o texto literário e não aquele onde ele fica

comprometido pela parafernália teórica, que o abafa, tornando-o pretexto para outras

discussões. Todorov estabelece uma excelente comparação entre a construção de um

prédio e a interpretação de uma obra: “Para erguer um prédio é necessária a montagem de

andaimes, mas não se deve substituir o primeiro pelos segundos: uma vez construído o

prédio, os andaimes são destinados ao desaparecimento.” (p.32/3)

A interdisciplinaridade foi, inicialmente, a responsável pela perda da especificidade

dos estudos literários. A conseqüência dessa abertura borrou as fronteiras disciplinares,

abafando o texto, agora quase pretexto para outras discussões. Se isso pode ser visto como

enriquecimento, por outro lado, revela uma descaracterização, até certo ponto, prejudicial.

Bastante discutíveis são certas novidades veiculadas pela mídia impressa. Em O Globo, de

17/4, encontramos uma crônica de Zuenir Ventura, intitulada “Uma tuiteratura?”, onde ele,

muito sutilmente, critica a inovação da Academia Brasileira de Letras que criou um concurso

de microcontos para textos com apenas 140 caracteres. Ele termina dizendo: “Por ora,

pergunto, como se estivesse tuitando: querer fazer literatura com palavras de menos não é

pretensão demais?” (p.7)Talvez vocês estejam achando que isso seria uma forma de

incentivo ao fazer literário. Concordo, mas e o resultado não deixaria a desejar do ponto de

vista literário?São questões que me inquietam. Aprecio em Todorov a abertura com que se
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refere ao ensino da literatura. Diz ele: “ Não ‘assassinamos a literatura’ (retomando o título

de um panfleto recente) quando também estudamos na escola textos ‘não literários’, mas

quando fazemos das obras simples ilustrações de uma visão formalista, ou niilista, ou

solipsista da literatura.” (p.92)

O multiculturalismo veio a reboque dos Estudos Culturais, criando espaço para as

vozes das minorias e para a produção de múltiplas verdades. Conquistas muito importantes

para a teoria feminista, agora voltada para a crítica ao universalismo unificado.O

desconstrucionismo de Derrida inspirou o processo analítico de desconstrução de gênero,

desenvolvido pelas feministas em substituição aos “estudos de mulheres”, agora incapazes

de responder aos desafios feministas, por serem descritivos e reiterativos. Chamo a

atenção de vocês para esse lado produtivo do culturalismo, presente nos saberes

disciplinares da sociologia, antropologia, história, literatura, filosofia e psicologia dos anos

oitenta e noventa, que trouxe a ideia da desnaturalização biológica das categorias de

homem e mulher. Já em 1949, Simone de Beauvoir, como vimos, dizia que não se nascia

mulher, que se tornava mulher. As feministas do final do século levaram essa afirmação às

últimas conseqüências de seu enunciado, uma vez que para elas não existem mulher e

homem enquanto categorias universais. Porque tudo é construção. Lembro-me que, quando

estive na Universidade de Cincinnati, nos EEUU, há anos atrás, vi muitas alunas usando

bottons onde se lia – “Anatomy ist not detiny”.Verdadeira batalha contra a determinação do

biológico.O entendimento que as relações de gênero são cultural e historicamente

construídas, aponta para a instabilidade de quaisquer caracterizações sobre masculino e

feminino.Isto é o fim do essencialismo, pois os sujeitos sociais parecem se perceber como

capazes de escolher e construir o seu gênero, combinações de novas e velhas formas de


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ser feminino, ou masculino, de características sensíveis ou mais agressivas, opções mais ou

menos conservadoras, mas sempre dentro da possibilidade de construção/desconstrução.

Na sociedade atual, sob a égide do individualismo, a sexualidade passa a ser uma

questão de preferência e se inscreve como um dos grandes eixos da construção de

identidades. Estéticas, estilos e preferências sexuais parecem ser uma questão de escolha.

Todas essas considerações feitas a propósito do construtivismo servem para nos

instigar a uma reflexão mais séria a propósito da literatura. Se a proposta culturalista foi

benéfica aos estudos feministas, abrindo espaço para a produção de autoria feminina, antes

invisível, vimos que a anulação das fronteiras disciplinares empobreceu os estudos

literários, ocultando-lhe a especificidade. Como fazer para conciliar essa abertura propícia à

teoria feminista com a retomada do prazer que a literatura proporciona? Aquele prazer que

nos é ensinado através dos estudos literários, onde o texto é priorizado e, como tal, fonte

inesgotável de encantamento. Para encerrar essas reflexões,repito, aqui, como minhas, as

palavras de Todorov: “Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me

vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver.” E ele continua:

Mais densa e mais eloqüente que a vida cotidiana, mas não radicalmente
diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras
maneiras de concebê-lo. Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos
dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao
infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece
infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo
real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples
entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que
cada um responda melhor à sua vocação de ser humano. (p.24)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura
Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128
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CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000.

CASTELLO, José.Bandeira no trampolim. In: Prosa & Verso. O Globo, 17 de abril de 2010.

TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Trad. Caio Meira.Rio de Janeiro: DIFEL,


2009.

VENTURA, Zuenir. Uma tuiteratura?. In: O Globo, 17 de abril de 2010.

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