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Quem não tem rouxinol, canta com Sabiá

Flávia Aninger de Barros

No ensaio de David Sales, as figuras do sabiá e da palmeira são apresentadas a partir de


seus referenciais de construção. O primeiro referencial, surgido da necessidade de fazer surgir
ícones não europeus, mas plenos de significado nacional, vem da crítica de Almeida Garrett, em
seu Parnaso Lusitano, quando ele defende a idéia de que a bela Marília, de Tomás Antônio
Gonzaga, estaria melhor acompanhada por cardeais, sabiás e flores do cafeeiro. Garrett conviveu
com Gonçalves de Magalhães que, indo buscar em Paris os novos modelos românticos, critica
nossa poesia dita brasileira, por estar vestida de portuguesa, e por sonhar com um rouxinol, ao
ouvir o sabiá.
O ensaio de Gonçalves de Magalhães na revista “Niterói”1, marco da expressão
romântica, apontava para elementos distintivos de nossa natureza americana, como o sabiá, que
nesta ocasião cantava no galho de uma laranjeira, recusando-se a pousar em qualquer outra
árvore que não fosse genuinamente nacional. Ser romântico era ser anti-lusista, e o sabiá era tão
nosso quanto a terra. Quem precisa de rouxinol? Gonçalves Dias, então, retoma este
representante da terra em “Canção do Exílio”, tornando-o marco de brasilidade. É interessante
notar, no entanto, que os dois autores eram amigos e conheciam as idéias um do outro. A
intenção anti-lusa de Magalhães se concretiza na exclusividade pretendida por Gonçalves Dias,
em seu poema, onde podemos ler nas entrelinhas: “O sabiá pertence às palmeiras da minha terra,
onde canta como nenhuma ave européia jamais cantou. Só as minhas terras têm palmeiras e
sobre elas os nossos sabiás cantam”. Atrevo-me a acrescentar aos dados de David Sales, a
informação de que, em 1859, Macedo Soares intitula Gonçalves Dias como “soberbo cantor” e o
considera o mais alto dos líricos, por ter cantado a gente e as coisas do país.2 Gonçalves Dias e o
canto do Sabiá se identificam e se confundem.
A necessidade de diferenciar e separar, exaltando o que era exclusivamente brasileiro, no
entanto, não muda o fato de que o canto do sabiá tinha o mesmo objetivo do canto do rouxinol
europeu: proclamar a sensibilidade romântica. Vestido de América, é lógico.
1
MAGALHÃES, Domingos Gonçalves de. Ensaio sobre a literatura no Brasil.” Niterói”, revista brasiliense.
Paris, Dauvin et Fontaine, 1836, 1(1): 146
2
CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. Vol 2. Editora Itatiaia. Belo Horizonte, 1993.
A questão do Sabiá-símbolo também já havia sido levantada por Afrânio Coutinho, em
seu “A Literatura no Brasil”, com detalhes que foram igualmente tratados por David Sales, sem
nenhuma discordância, ou nova informação. O ensaio de David Sales se preocupa em marcar
estes símbolos, como “argumentos ideológicos” de um nacionalismo ainda adolescente, termo
usado por Afrânio Coutinho, na obra citada.
O fato deste duplo símbolo ter sido cunhado sobre uma impossibilidade, porém, é
mencionado por Sales, já que sabiás cantores e palmeiras não se combinam. A imagem escolhida
por Gonçalves Dias e eternizada como símbolo nacional, não passa de uma mentirinha
romântica, de uma idealização ambiental. Ambos têm porte altaneiro, estão perto do céu, das
coisas sublimes, mas seria “fantástico” ver um sabiá cantando numa palmeira. O romantismo
vigente precisava de cenários assim para expressar seus ideais. Pena que a única espécie de
sabiás que habita as palmeiras não cante. Obviamente um detalhe de somenos importância para
um romântico preocupado em visualizar o ambiente de seu canto.
Terminada a expressão anti-lusista, o imaginário poético se acostumou mais às palmeiras,
ainda que impossíveis palcos para os sabiás, do que aos prosaicos cafeeiros ou laranjeiras e
possível ou não, nelas os sabiás continuaram cantando, como o quiseram Carlos Drummond de
Andrade, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira, para expressar outros momentos de nossa
nacionalidade. O Sabiá passou a representar não apenas a nossa singularidade como país, mas o
nosso canto poético em particular.
Carlos Drummond de Andrade em “Europa, França e Bahia”, questiona “os olhos
brasileiros” com relação à Europa, da mesma forma que o jovem Gonçalves Dias deve ter feito,
cantando sua saudade em Portugal.
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos
minha boca procura a “Canção do Exílio”.
Como era mesmo a “Canção do Exílio”?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!3
Uma outra releitura aparece, trecho a trecho, traduzida em outras palavras, mas fiel à
disposição das idéias no poema, em “Nova Canção do Exílio”, dedicada a Josué Montello, autor
de um livro sobre o mesmo Gonçalves Dias. A singularidade do país aparece nos adjetivos
“belo” e “fantástico”, jamais usados por Dias e traduzidos por Drummond, com o seguinte
requinte sutil:
3
ANDRADE, Carlos Drummon de. Reunião. Livraria José Olímpio Editora, Rio de Janeiro, 1969
onde tudo é belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe. 4

Os símbolos erigidos a partir de nossa necessidade de afirmação, mesmo que seja através
de uma fantasia e o “longe”, que nos acena, seduzindo a alma cabocla com um canto de rouxinol.
O canto do Sabiá prevalece, no entanto, até hoje, vencendo festivais e em músicas sertanejas,
consagrado como majestade “num lugar todinho meu”, onde o sentimento de pertencer à terra
surge novamente, tão romântico como sempre foi.

4
idem

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