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A música do século XX e a Teoria

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Matemática da Informação:

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 10, n. 20, jul./dez. 2011
o ruído e outras incorporações
da modernidade1
Twentieth-Century Music and
the Mathematical Theory of
Information: Noise and Other
Embodiments of Modernity
Pablo Alberto Lanzoni2
Lizete Dias de Oliveira3

Resumo
O presente artigo discute alguns dos elementos que foram incorporados pela música ocidental, no
decorrer do século XX. Com amparo na Teoria Matemática da Informação, discorre-se sobre ruído,
silêncio, aleatoriedade, música eletrônica e tecnologia nas distintas manifestações exercidas na
música do período. Com o intuito de traçar paralelos entre tais expressões e as aproximar dos
conceitos de interferência, variedade, ordem e desordem, intencionalidade e redução de incerteza,
recorre-se às produções de Ashby e Moles, que discutem a informação através de sua Teoria
Matemática. As discussões musicais são constituídas pelos trabalhos de Chaves, Griffths, Grout e
Palisca que examinam e apresentam a modernidade.
Palavras-chave: Comunicação. Música. Ruído. Teoria Matemática da Informação.

Abstract
This article discusses elements that were incorporated into Western music during the twentieth-
century. Supported by the Mathematical Theory of Information, it discusses the concepts of noise,
silence, randomness, electronic music and technology in their different manifestations in the music
of that time. In order to draw parallels between these concepts and to bring them closer to the
concepts of interference, range, order and disorder, intentionality and reduction of uncertainty, this
1 Artigo recebido em 29-7-11. Aprovado em 31-8-11.
2 Mestrando em Comunicação e Informação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Bacharel em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: pablolanzoni@ibest.com.br.
3 Professora no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pós-Doutora em
Ciência da Informação pela Universidade do Porto. Doutora em Arqueologia pela Université de Paris I (Pantheon-
Sorbonne). E-mail: lee7dias@gmail.com.
article has as its basis the work of Ashby and Moles that discusses information through Mathematical
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Theory. In this article, a discussion on musical modernity has the works of Chaves, Griffiths, Grout
and Palisca as its basis.
Lanzoni, Pablo Alberto. – Oliveira, Lizete Dias de. A música do século XX e Teoria Matemática da Informação: o ruído e...

Keywords: Communication. Music. Noise. Mathematical Theory of Information.

N
o decorrer do século XX, a música transpôs inúmeros de seus paradigmas.
Novos elementos foram incorporados em a música preocupada em expressar
o século das guerras, das revoluções, das ideologias, dos regimes totalitários,
da tecnologia e da informação. O ruído, presente em algumas das manifestações
desse tempo, foi absorvido pela arte e se transformou em forte elemento na expres-
são da música do século XX.

Em música, pode-se atribuir duas acepções ao ruído: interferência e fonte musical.


Interferência refere-se a notas erradas, desafinações, entradas equivocadas, respira-
ções ofegantes, suspiros, espirros, tossidos, remexer das cadeiras, ranger de portas,
enfim eventos que perturbam a execução e entram em atrito com o discurso musi-
cal estabelecido. Em diferentes momentos do século XX, através de ressignificação,
manipulação, reordenação, organização, racionalização e codificação, tais ruídos
constituem-se, no entanto, como fonte musical, como princípio gerador. Incorporado
ao discurso, o ruído constitui-se na própria música e, portanto, em informação.

No presente artigo, discute-se a trajetória da incorporação do ruído na música oci-


dental, em diferentes movimentos do século XX. Alude-se, também, ao silêncio, à
aleatoriedade e à música eletrônica, através da leitura da Teoria Matemática da
Informação em seus conceitos de interferência, variedade, ordem e desordem, in-
tencionalidade, redução de incerteza.

Por uma música ruidosa


“Não será nosso dever encontrar meios sinfônicos de expressar nosso tempo, meios
que evoquem o progresso, o arrojo e as vitórias dos dias modernos? O século do
avião merece sua própria música.” (Griffiths, 1998, p. 97) A observação lançada por
Claude Debussy (1862-1918) em 1913, circunscrita em um tempo de sentimentos
exacerbados, é paralela aos manifestos dos compositores pertencentes a um grupo
distinto: o movimento futurista italiano. No período de agitação artística imediata-
mente anterior à Primeira Grande Guerra, o movimento futurista buscava sua ex-
pressão também em uma nova música.
Ah, o início do século passado... compositores se apropriavam dos sons do dia-a-dia para

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a sua música futurista, para o seu Despertar de uma cidade, como fez Luigi Russolo,
compositor máximo do efêmero futurismo musical. Não apenas as sensações fortes
estavam à flor da pele musical, também o ruído estava na moda, a barulhada era coisa do

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presente que se pretendia futuro. (Chaves, 2006).

O compositor italiano Russolo (1885-1947) procurou expressar os sons e ritmos das


máquinas e das fábricas em uma música estridente, dinâmica e profundamente
sintonizada com a modernidade. Em 1916, publicou A arte dos ruídos, afirmando
que “toda manifestação da nossa vida é acompanhada de ruído”. Nesse manifesto,
Russolo lançou “alguns princípios de uma música na qual não haveria nem dó maior
e muito menos ré menor ou qualquer outra sombra da música tradicional”. (Chaves,
2009). Este manifesto pode ser entendido como um manual de produção sonora,
no qual Russolo propõe categorizações de ruídos que incluem grupos de explosões,
trovões e rangidos; apitos e assobios; gritos, freadas e folhas; murmúrios e sussur-
ros; barulhos de batidas em metal, madeira, pele ou cerâmica e um grande grupo
dos ruídos humanos e animais. Para expressá-los, construiu os intonarumori – en-
tonadores de ruídos –, uma série de aparelhos destinados a produzir e reproduzir a
variedade de estampidos, estalos, roncos, rangidos e zumbidos.

A intenção do manifesto de Russolo era transformar o ruído em elemento primeiro


de manipulação dentro de uma obra musical, apresentando-o como o próprio dis-
curso musical. Para os futuristas, o ruído era o genuíno elemento de construção e o
desenvolver de uma nova linguagem para expressar, em música, as transformações
advindas com o novo século, expondo uma arte apropriada à sociedade industrial.
Para o movimento futurista, o ruído tornou-se informação. No entanto, para a tradi-
ção da música ocidental, que acabara de se lançar às concepções impressionistas e
atonais, o ruído de Russolo continuaria sendo ruído.

Segundo Moles (1978, p. 118), a Teoria Matemática da Informação define ruído como
“um sinal indesejável na transmissão de uma mensagem por um canal”. Tal concep-
ção, que entende o ruído como interferência ou sinal inconveniente e o opõe à defini-
ção de informação, não pode ser utilizada para expressar a música futurista.

Variedade é a definição mais abstrata e universal da informação em todas as suas formas.


Pode imaginar-se que a variedade constitui o supraconjunto de todas as configurações
possíveis de que qualquer tipo particular de informação representará um subconjunto.
(Ashby, 1984, p. 14).

Por serem configurações de variedade, informação e ruído não se distinguem intrin-


secamente, sua diversidade está no contexto no qual estão inseridos. A informação
não tem significado, valor de uso ou de troca intrínseco, contudo, para determinado
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sistema, a informação representa uma variedade codificada, e ruído, uma variedade
não-codificada. O significado, portanto, se constitui em função do contexto: sem con-
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texto não há significado. (Ashby, 1984).

Outra dicotomia extraída da Teoria Matemática da Informação entende a informação


como equivalente à ordem e ao ruído, à desordem. O modo como as relações infor-
mação-ruído e ordem-desordem são subdividas implica a flexibilidade sistêmica, ou
seja, a capacidade de o sistema sobreviver por longo período, mediante adaptações
estruturais ao ruído ou à desordem.

À primeira vista parece que a distinção entre “ruído” e “sinal” se faz facilmente na base
da distinção entre ordem e desordem. Um sinal nos parece essencialmente um fenômeno
ordenado, enquanto uma estática, um parasita, são fenômenos desordenados, uma
mancha informe na estruturação da imagem ou do som. (Moles 1978, p. 119).

Para Moles, essa distinção conceitual entre os binários sinal (ordem) e ruído (desor-
dem), sem contexto determinado, é inadequada. O autor exemplifica sua abordagem,
descrevendo os processos de transmissão e gravação radiofônicos de concertos de
música nos quais, notas e acordes emitidos por instrumentistas antes de uma exe-
cução e que pertencem à categoria dos sons musicais são considerados uma série
de ruídos “inoportunos” para a radiofusão, não sendo conveniente retransmiti-los. Já
o conjunto de aplausos que permeia um concerto, embora constituído de choques
de impulso elementar e desprovido de periodicidade, participa da retransmissão
radiofônica, mesmo não sendo entendido na concepção de um som musical.

Ao se convencionar que informação e ruído são intrinsecamente permutáveis, tor-


na-se evidente que, sem contexto, não pode haver a definição de informação. Não
existe, portanto, diferença absoluta entre ruído e informação. Tudo o que não é in-
formação, redundância ou relação codificada é ruído, e esse é a única fonte possível
de novas configurações.

O movimento futurista significou novas possibilidades e aflorou novas concepções


em uma música preocupada em expressar as modernidades advindas dos primeiros
anos do século XX. Os futuristas, por meio de seus manifestos e dos intonarumori,
inseriram na linguagem musical distintos elementos, de forma que a discussão do
futurismo em música, estabelecida através da articulação entre ruído e informação,
é inerente à elucidação do contexto sobre o qual se produzirá significado, uma vez
que o ruído já é a própria música e, portanto, informação.
Outras sonoridades

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Em 1926, George Antheil (1900-1959) estreou, em Paris, seu Ballet Mécanique,

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composto para o conjunto de oito pianos, oito xilofones, pianola, duas campainhas
elétricas e hélice de avião. Àquela altura, o movimento futurista já havia ficado para
trás, mas, evidentemente, a música havia se apropriado das modernidades de seu
tempo. Para Grout e Palisca (1994, p. 744), uma das características mais evidentes
da música do período é “o número enorme de novos sons que passaram a ser con-
siderados como musicalmente utilizáveis”.

Ao discutir as sonoridades urbanas em música das primeiras décadas do século


XX, é indispensável a referência ao compositor franco-norte-americano Edgard Va-
rèse (1883-1965), cujo Hyperprism (1922-1923), peça de 5 minutos para pequena
orquestra de duas madeiras de registro agudo, sete metais e vários instrumentos
de percussão, pode ser sentenciada como um produto do meio urbano. Segundo
Griffiths,

embora haja referências aos sons da cidade, notadamente com a utilização de uma sirene,
a peça surte efeito antes refletindo que representando a impressão de velocidade e brusca
vitalidade que a Nova York dos anos 20 deve ter causado num homem criado na província
francesa antes do advento do automóvel. (1998, p. 101).

A obra de Varèse proclama uma nova era que começava para a música, uma era de
ímpeto científico em contraste com as evocações pastorais e literárias do romantis-
mo. A incorporação de elementos antes considerados interferências, perturbações,
ou seja, “ruídos”, torna-se recorrente em obras de compositores das primeiras déca-
das do século XX, na busca pela expressão mais fiel de uma sociedade dita moder-
na, em um século de profundas transformações sociais, tecnológicas e científicas.

A utilização do ruído em Varèse ecoou na música de outros compositores. De forma


peculiar, com 4’33 (1952), John Cage (1912-1992) reconstitui, outra vez, o ruído
em música. A obra 4’33 está dividida em três movimentos, composta pela inação.
Sejam quantos forem os executantes da obra, eles não devem agir em favor da pro-
dução do som. Cage propõe, com essa peça, a filtragem dos ruídos provenientes da
sala de concertos, em uma fatia de tempo por ele arbitrada, através de um discurso
produzido exclusivamente pelo transcorrer desse tempo, que é preenchido sem codi-
ficação/descodificação ou organização/desorganização. A obra de Cage transcende
a fronteira entre informação e ruído, quando a música que não se ouve já é a própria
música. É a ausência de intencionalidade, mais que a ausência de forma, que sepa-
ra as naturezas da informação e do ruído.
Os elementos presentes em uma sala de concertos em 4 minutos e 33 segundos
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jamais serão idênticos a outros 4 minutos e 33 segundos ou a outra sala de con-
certos, o que aporta o ineditismo à experiência perceptiva de 4’33, que se abre ao
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acaso. Kostelanetz (2000) situa a peça de Cage como um expoente da arte inferen-
cial. Uma obra de arte inferencial (inferential art) não oferece caminhos para seus
significados, de maneira que não apenas se reconhece uma inferência, mas outras
coisas adicionais.

Segundo a Teoria Matemática da Informação, não existem canais sem ruído, como
consequência, a informação dentro de um sistema não deve ser apenas conhecida,
mas claramente distinta dessa variedade definida como ruído. Ao se descontextuali-
zar a obra de Cage e ao tomá-la referência, é possível interpretar o ruído em música
de forma distinta: um silêncio determinado em qualquer passagem de uma obra mu-
sical será, necessariamente, preenchido por sons externos, ou ruídos, uma vez que
o silêncio absoluto é fisicamente impossível, de forma que tais sons se constituiriam
em parte da obra. Assim, toda peça musical produziria, durante sua execução, sons
intencionais e sons não-intencionais, de forma que a concepção de ruído, extraída
da Teoria Matemática da Informação, passaria a inexistir, pois a informação abran-
geria tanto as informações sonoras quanto as ruidosas.

Em Atmosferas (1961), o compositor György Ligeti (1923-2006) utilizou sons até


então inimaginados que atravessaram as fronteiras da própria música, despertando
verdadeiras “ilusões auditivas” no ouvinte. (Griffiths, 1998, p. 166). Embora todas as
sonoridades de Atmosferas sejam produzidas pela própria orquestra sinfônica que
a executa, as texturas resultantes da partitura são tão complexas e ativas que não
podem ser percebidas em seu conjunto. Para Griffiths (1998, p. 166), em uma obra
como essa, o ouvido seleciona, efetua suas próprias combinações e até registra
sons que não foram emitidos. Conforme Ashby (1984), tais sonoridades já estariam
contidas em um dos subconjuntos constituintes da variedade, detentora de todas as
configurações possíveis de informação.

A exploração, na primeira metade de século, de diferentes sonoridades da orquestra


abriu caminho para que, na década de 50 (séc. XX), a música eletrônica se estabele-
cesse em terra firme. Conforme Chaves, essa gama de possibilidades levou à música
novos desafios:

Adeus às buzinas de carro de Gershwin, os tiros de pistola de Erik Satie, as hélices de avião
de George Antheil, as máquinas de datilografia de Paul Hindemith. Não havia mais nada que
a música não pudesse fazer, nada que os instrumentos não pudessem conjurar. Exagero?
Um pouco, talvez. Mas de lá para cá, das Atmosferas de Ligeti e de 2001: uma odisséia no
espaço (que Ligeti embalou com sua música) muito se andou, muito se produziu, trazendo

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para dentro da música o que não era música. (2006).

A música encontrou novo canal: o advento do gravador de fita finalmente tornou

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possível a musique concrète e a música eletrônica. Os estúdios que visavam a in-
corporar esse novo recurso rapidamente proliferaram, sobretudo em estações de
rádio, nas quais havia a disponibilidade de equipamentos. A Office de Radiodiffusion
Télévision Française (ORTF), em Paris, e a Nordwestdeutscher Rundfunk (NDR), em
Colônia, tornaram-se centros de compositores. Em Paris, se impôs a musique con-
crète e, Colônia, a música eletrônica.

A música de então ocupou-se dos próprios ruídos. É possível identificar duas rupturas
da musique concrète: trabalhar concretamente o som, devido ao fascínio dos compo-
sitores com a tecnologia, e o abandono dos intérpretes. Os Estudos de ruídos (1948),
de Pierre Schaeffer (1910-1995) podem ser anotados como uma carta de princípios
da nova música. Entre eles está o Estudo das estradas de ferro: com a ajuda de seis
maquinistas, Schaeffer gravou os sons ferroviários, depois trabalhou sobre eles, cor-
tando, alterando rotações, invertendo, quase os recompondo, através de gravadores
de fita em rolo. Chaves assim descreve o Estudo das estradas de ferro:

O que o ouvinte ouviu? Um apito. Outro apito. Trens ganhando velocidade sobre os trilhos.
Trens a toda a velocidade. A cadência das rodas nos trilhos. Trens resfolegando. O silêncio.
Novos apitos. Uma descarga de vapor. E já se foi o primeiro minuto da música. Música? Ruídos
de trens colados uns aos outros quase por acidente? Música, sim. Ruídos, sim. (2008c).

De acordo com Schaeffer (2010, p. 32), “resta mesmo pois uma terra de ninguém a
explorar. Ela existe em todas as artes do século 20, cuja natureza é de serem inse-
paráveis em um meio mecânico de expressão”.

Com o advento da gravação, a obra musical passou a ser observável como um pro-
duto temporal. Essa materialidade, permitida pela transmissão da música por ca-
nais espaciais e temporais, lançou as bases para a manipulação do material sonoro
que então poderia ser organizado de distintas maneiras.

Para Stravinsky (1996, p. 35), a música é inconcebível quando isolada dos elemen-
tos som e tempo. A aplicação do tempo sobre o espaço, através da gravação, confe-
riu à matéria temporal a divisibilidade. A continuidade indivisível da duração torna-se
divisível e manipulável, e a matéria sonora, baseada em princípios polifônicos, que
se estende ao longo da fita, pode ser cortada, recomposta, misturada a outras ma-
térias temporais análogas, em um exercício compositivo. É o processo de síntese
eletrônica, partindo de objetos sonoros, transformando-os, preparando e recompon-
do. A musique concrète, que materializa o objeto sonoro através de sua recriação,
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não estabelece distinção de princípios entre os fenômenos sonoros capturados do
ambiente, daqueles capturados de instrumentos musicais: todos são colocados no
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mesmo plano para o ouvinte. Os objetos sonoros apreendidos pela gravação tornam-
se independentes de sua origem, não existindo razão para que a música, a priori,
procure exclusivamente aqueles originários dos instrumentos “de música”. Todo
som, todo ruído pode ocupar lugar em uma orquestra. (Moles, 1978, p. 183).

Em Colônia, a intenção era criar música eletrônica exclusivamente com os recursos


surgidos das novas possibilidades tecnológicas. Griffiths esclarece:

O objetivo do grupo de Colônia era sintetizar todo e qualquer som a partir de frequências
puras, e foi o que Stockhausen tentou em Studie I (1953). Mas a experiência fracassou.
As sonoridades puras não se cristalizavam, como ele esperava, e a ideia teve de ser
abandonada até o advento de métodos e equipamentos mais sofisticados. Em certo
sentido, no entanto, o projeto foi um sucesso, pois Studie I, como outras peças eletrônicas
iniciais de Stockhausen, parece o mais próximo possível da perfeição, considerando-se os
aparelhos incipientes e as técnicas primitivas então disponíveis. (1998, p. 147).

A manipulação da informação sonora levou os compositores a descobrirem novos e


ruidosos caminhos, reordenando o exercício da composição. Uma nota de determi-
nada altura, ao ser manipulada para menos de 16 Hz (16 ciclos de vibração por se-
gundo), deixava de ser ouvida como som para sê-lo como batida rítmica regular, com
ritmos subsidiários, fornecidos pelos componentes de frequência que lhe haviam
estabelecido o timbre. Em uma frequência ainda menor, uma única nota podia se
transformar em verdadeira forma musical. Os trabalhos em estúdio permitiam a uma
sinfonia de Beethoven transformar-se em um único som, de registro praticamente
inaudível e de altura extrema, devido à sua aceleração em dez mil vezes. (Griffths,
1998, p. 148). Similarmente, um único som poderia ser prolongado até a duração de
uma sinfonia pelo processo inverso.

Além da sintetização de sons, os computadores podem ser empregados, na música,


com outras finalidades. É possível alimentá-los com normas compositivas e, assim,
orientá-los a criar. Eonta (1963-1964) de Iannis Xenakis (1922-2001) é a conversão
em partitura da programação de um computador com leis matemáticas e outros
dados, determinando os limites do processo. O resultado foi apresentado em instru-
mentos acústicos convencionais: piano e quinteto de metais.

Foi, entretanto, em 1951, que o acaso tornou-se um propulsor do trabalho de Cage,


com Music of Changes, para piano, e com Imaginary Landscape n. 4, composta
para 12 rádios e 24 executantes, em uma partitura que lança a imprevisibilidade ao
ouvinte. A música aleatória vai justamente ao encontro dessa incerteza e abre novos

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caminhos.

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 10, n. 20, jul./dez. 2011
Em Klavierstück XI (1957) de Stockhausen (1928-2007), o intérprete se vê diante
de uma única página com 19 fragmentos de música a serem lançados em qualquer
ordem. Após executar um deles, o pianista deve percorrer a página, escolher outro
e tocá-lo com as indicações de andamentos, intensidade e toque fornecidas no fim
do primeiro. Cada fragmento pode ser tocado duas vezes, soando completamente
diferente na repetição. A peça termina após a terceira execução de qualquer um dos
19 fragmentos. Para Griffiths

é evidente que a este nível a composição aleatória nada mais é do que um prolongamento
limitado de liberdades que sempre foram aceitas na música composta, pois nenhuma partitura,
nem mesmo Structures de Boulez, pode determinar com exatidão cada detalhe sonoro. E
tampouco é totalmente nova a idéia de “forma móvel”, pois frequentemente obras de vários
movimentos eram submetidas a omissões ou reagrupamentos parciais. (1998, p. 164).

De acordo com a Teoria Matemática da Informação, essa forma combinatória examina


as possibilidades puramente lógicas do aparecimento de eventos equiprováveis, logi-
camente independentes, prescindindo de saber se eles se verificam ou não em um
sistema particular. (Ashby, 1984, p. 20). Sem possibilidades, não haveria informação.

Boulez, em seu segundo caderno de Structures para dois pianos, escreveu:

Será que toda a obra musical tem de ser encarada como uma construção formal com
direcionamento firmemente estabelecido? Não poderíamos tentar vê-la como uma sucessão
fantasmática na qual as “histórias” não têm uma relação rígida, nem ordem fixa? (1961).

Ao ouvinte não é possível transmitir a impressão de mobilidade formal em uma úni-


ca execução, menos ainda em se tratando de reprodução gravada. O entendimento
dessa informação está sujeito à repetição, à retransmissão. A flexibilidade e a espon-
taneidade de uma execução podem evidenciar um limitado grau de liberdade, mas
não a mobilidade formal. Compositores e interpretes têm procurado várias maneiras
de superar essa dificuldade, seja executando uma peça aleatória duas vezes no
mesmo concerto, seja recorrendo a elementos teatrais que chamem a atenção para
seu caráter fortuito, ou ainda, sugerindo ao ouvinte de uma gravação alterações de
volume e combinação dos canais de reprodução sonora.

Os textos de Stockhausen, providos de objetivos espirituais, visavam à meditação


musical, através de extrema concentração. Poeira de Ouro solicita ao intérprete mui-
to mais do que habilidades musicais.
Vive completamente só durante quatro dias guardando jejum em silêncio absoluto,
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com a possível imobilidade. Dorme apenas o necessário, pensa o menos possível.
Depois de quatro dias, bem tarde da noite, sem prévia conversação toca sons sim-
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ples. Sem pensar no que está tocando fecha os olhos, simplesmente ouve. (1968).

Não se deve esquecer o contexto dessa obra – 1968, época de hippies, do Maha-
rishi, da onda de liberdade e transgressão – que não encontrou semelhança em
nenhum outro momento do século, mas foi manifesto na música de seu tempo.

Os recursos empregados em diferentes momentos expressam e caracterizam um


período, que então se torna inconfundível. Sobre a utilização de informações não
musicais adicionadas à música, em uma constante reconfiguração da linguagem,
Chaves afirma:

Não é raro que compositores resolvam colocar em música o que não é música. Ou o que
não era para ser música. Precisamos voltar ao barroco, quando se resolveu representar
a raiva em música? Talvez só para lembrar que antes não era necessário chegar a tanto.
O mais que se cantava eram as coisas dos mundos divinos. Raiva contra Deus? Fogueira
na certa, naqueles tempos esquecíveis em que até Galileu desdizia o que recém tinha
dito. Depois, os sentimentos afloraram. A raiva nos tempos de Schütz. A fúria nos tempos
de Händel. A indignação nos tempos de Mozart. Até chegarmos ao período plenamente
freudiano do início do século passado, quando a música fazia sua própria psicanálise. E na
frente dos ouvintes, nem mais, nem menos. (2006).

Moles (1978, p. 130) refere-se ao ruído como “pano de fundo do Universo”, e sobre
ele deve se destacar a informação. Não existe informação sem ruído. Esse é fator de
desordem contingente, na intencionalidade da informação, intencionalidade que se
caracteriza por uma ordem qualquer.

Wisnik (1999, p. 33) afirma que o jogo entre som e ruído constitui a música. Para o
autor, o som do mundo é ruído: “O mundo se apresenta para nós a todo momento
através de frequências irregulares e caóticas com as quais a música trabalha para
extrair-lhes uma ordenação.”

Desde o início do século XX, operou-se uma transformação no campo sonoro da


linguagem musical, quando barulhos de todo tipo foram efetivados a seus cons-
tituintes. A introdução do ruído, além de atuar diretamente no código e forçar os
limites do espectro da carga informativa das mensagens, percorreu a modernidade
em música.

A linha limítrofe entre informação e ruído foi tênue para a música do século XX. Em
diferentes momentos, tais concepções foram atravessadas em uma música que deu
vazão às inquietações de seu tempo. O ruído ressoou forte e, com ele, diferentes sono-

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ridades pediram escuta. Da música ruidosa de Russolo às manipulações eletrônicas
pós-Segunda Guerra, distintos elementos foram incorporados à música que expressa

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 10, n. 20, jul./dez. 2011
a modernidade. Talvez não tenha validade discutir o ruído em 4’33, de John Cage, pois
o ruído que, sem controle, atravessa a inação dos músicos é parte constituinte de uma
música que não se ouve. Aqui, a linha parece ser muito mais tênue.

Conclui-se com as palavras de Stravinsky (1996): tudo o que pode ser considerado
como não música, através de certa consciência, em música se transformará.

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WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Compa-
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