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ENCONTROS

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Coleção Encontros

Antonio Cicero Lucio Costa


Antonio Risério Maio de 68
Boris Schnaiderman Manoel de Barros
Capoeira Mário Pedrosa
Carlos Drummond de Andrade Mário Schenberg
Cildo Meireles Milton Santos
Clarice Lispector Nara Leão
Darcy Ribeiro Newton da Costa
Dias Gomes Nise da Silveira
Eduardo Coutinho Paulo Emilio Sales Gomes
Eduardo Viveiros de Castro Paulo Mendes da Rocha
Fernando Gabeira Roberto Piva
Florestan Fernandes Rogério Duarte
Geração Beat Roberto Mangabeira Unger
Gilberto Freyre Rogério Sganzerla
Gilberto Gil Sérgio Buarque de Holanda
Gilberto Mendes Silviano Santiago
Hélio Oiticica Tom Jobim
Ismail Xavier Tom Zé
Jomard Muniz de Brito Tropicália
Jorge Luis Borges Vinicius de Moraes
Jorge Mautner Zé Celso Martinez Corrêa

PRÓXIMOS LANÇAMENTOS
Ailton Krenak
Aloísio Magalhães
Flávio de Carvalho
Octavio Ianni
Waly Salomão
Gilberto Mendes

organização
Marcelo Ariel
Encontros
6 Apresentação por Marcelo Ariel
12 Manifesto Música Nova 1963
18 Música, não música, antimúsica 1967
36 Como vai nossa vanguarda? 1970
42 Este é Gilberto, um homem de vanguarda 1970
50 Gilberto Mendes explica a questão: o que é música nacionalista? 1974
56 A procura do humor além da música 1974
62 Música Nova: Pra quê fazer? 1977
68 “Não me interessam mais discussões estéticas” 1981
76 Da Ars Nova até a “Música Nova” 1981
82 Música Nova, um conflito entre criação e público 1981
94 “O meu ideal era ser compositor de um Brasil socialista” 1984
120 Conversa com Gilberto Mendes sobre música e política 1986
126 “Nós quisemos mudar tudo” 1988
132 Som santista alcança o mundo 1995
140 Música Nova aponta para o próximo milênio 1997
146 Em conversa 1997
154 Gilberto, o erudito 1998
162 Gilberto Mendes, a nota erudita 1999
172 Um grão de poesia nas dunas da MPB 2002
180 A música sempre nova de Gilberto 2003
190 “Fui um autodidata” 2007
204 Cronologia
Apresentação
por marcelo ariel
GILBERTO MENDES

Apresentação
por marcelo ariel

Marcelo Ariel é poeta.

Para Gastão Frazão ( In memorian)

Gilberto Mendes é um compositor clássico romântico que


construiu uma série de ilhas musicais no oceano de harmonias
possíveis da música dos séculos XX e início do XXI. Ele é um
criador de todos os tempos nesse tempo e por isso, podemos
considerá-lo nosso contemporâneo dentro de um sempre que
inclui os tempos idos e os tempos da atualidade, suas compo-
sições estão em constante estado de diálogo com o mar, com a
poesia e com os problemas centrais desse tempo e de todos os
tempos. Podemos afirmar que sua música é uma versão imaterial
da Ilha de Urubuqueçaba e como esta ilha litorânea, também
atravessada pelo vento de duas revoluções, uma a da descoberta

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ENCONTROS

da harmonia, que equivale a descoberta de uma nova terra, de um


Paradiso, de um Brasil e de uma América, e todo compositor tem
um pouco de Cristovão Colombo, a outra a do dodecafonismo, da
música atonal, das novas formas da harmonia de Schoenberg e
cia, o dodecafonismo, uma das escolas da chamada Música Nova
é apenas um dos ventos que atravessam a profunda e serena ilha
musical de Gilberto Mendes, mas estes ventos produzem ecos,
ecos de Schumann, de Stravinski, de Brahms, de Debussy, de
Beethoven. Ecos dos mestres, Gilberto nunca deixou de seguir os
rastros harmônicos deixados pelos mestres, é como se ele fizesse
música para merecer ouvir os mestres, coisa que ele declara em
uma das entrevistas deste volume. Como um Dante que encon-
trou mais de um Virgílio. Existe em Gilberto o mesmo ímpeto
pela busca do Paradiso, como um encontro entre o mundo e a
mitopoética do cinema clássico e o elogio de uma certa alegria
de viver, típica dos caiçaras do litoral, uma alegria sereníssima.
Sua música é uma música que vêm das músicas, que nasce
de um disciplinado, irrequieto, inventivo, bem-humorado e
sempre surpreendente ouvido interior, podemos sem sombra de
dúvida, afirmar que Gilberto Mendes é um compositor-síntese
de todos os movimentos de vanguarda da história da música,
que ele sabiamente soube contornar o ímpeto “nacionalista”
e alencariano de um Villa Lobos sem contudo negar a rigorosa
pesquisa estrutural de Villa que incorporava outros elementos, da
natureza e até citava outros compositores em suas composições,
procedimento que Gilberto iria repetir com mais ousadia formal
e com uma leveza que faltava ao genial autor da “Bachianas”, ele-
mentos do jogo cênico do teatro, do cinema, sua própria asma,o
som dos navios indo atracar no cais, contos de Cortázar, poemas
de Drummond, Hilda Hilst e Flávio Viegas Amoreira, tudo é mo-
tivo para a partitura cinematográfica de Gilberto Mendes, como
afirma o pianista e compositor Antônio Eduardo em seu artigo
“O músico Gilberto Mendes” para a revista Sibila:

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GILBERTO MENDES

“[...] sua obra, revela influência de Schumann, Debussy e


Prokofieff, modelos que marcaram a produção para piano do
compositor. Entretanto, é importante ressaltar que, mesmo
alimentado por esses autores, Gilberto Mendes chegou a re-
sultados pessoais, conseguindo extrair novos acordes e novas
relações sintáticas de uma harmonia tradicional já desgastada.
Combinou a harmonia debussysta com o modalismo e os ritmos
do jazz negro e, se não bastasse, algo do piano sofisticado de
Duke Ellington também é aí vivenciado. (...) Gilberto Mendes
reverencia esses seus modelos, fazendo-o de modo particular,
integrando em sua linguagem composicional todo o material e
meios de expressão à sua disposição, passando até mesmo pelos
timbres jazzísticos dos musicais norte-americanos dos anos 1930
e 1940, por músicos como Friedrich Hollaender, David Raksin
ou nomes como Count Basie, Earl Hinnes, fazendo-o de modo
abusivamente criativo em nome de sua liberdade inventiva, de
suas próprias fantasias e de seu autodidatismo.”

Autodidata e por isso um grande e rigoroso amador no senti-


do que Barthes confere ao termo em suas memórias, o de alguém
que faz porque ama. É fácil notar que em Gilberto Mendes, a mú-
sica é entendida como “a substância mesma da vida e das coisas”,
existe ainda uma insuspeitada cosmogonia nas composições do
Gilberto, que inclui todas as formas da difícil beleza do invisível
dentro de sua obra .O estudo dessa cosmogonia ainda está para
ser realizado, ouso dizer que maior legado de sua obra será esta
abertura cosmogônica para as harmonias sutis da própria vida,
vivida como uma misteriosa e surpreendente aventura.

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É fácil notar que em Gilberto
Mendes, a música é entendida
como “a substância mesma da
vida e das coisas”, existe ainda
uma insuspeitada cosmogonia
nas composições do Gilberto, que
inclui todas as formas da difícil
beleza do invisível dentro de sua
obra .O estudo dessa cosmogonia
ainda está para ser realizado, ouso
dizer que maior legado de sua obra
será esta abertura cosmogônica
para as harmonias sutis da própria
vida, vivida como uma misteriosa e
surpreendente aventura.
Manifesto Música Nova
damiano cozzella, rogério duprat, régis duprat,
sandido hohagen, júlio medaglia, gilberto mendes,
willy corrêa de oliveira, alexandre pascoal
GILBERTO MENDES

Manifesto Música Nova


damiano cozzella, rogério duprat, régis duprat, sandido hohagen,
júlio medaglia, gilberto mendes, willy correia de oliveira,
alexandre pascoal

Publicado originalmente na
Revista Invenção, em Junho de 1963.

compromisso total com o mundo contemporâneo:

desenvolvimento interno da linguagem musical (impressionis-


mo, politonalismo, atonalismo, músicas experimentais, serialis-
mo, processos fonomecânicos, e eletroacústicos em geral), com
a contribuição de debussy, ravel, stravinsky, choenberg (sic),
webern, varèse, messiaen, schaeffer, cage, boulez, stockhausen.

atual etapa das artes: concretismo: 1) como posição generalizada


frente ao idealismo; 2) como processo criativo partindo de dados
concretos; 3) como superação da antiga oposição matéria-forma;
4) como resultado de, pelo menos, 60 anos de trabalhos legados
ao construtivismo (um kandinsky, mondrian, van doesburg,
suprematismo e construtivismo, max bill, mallarmé, eisenstein,

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ENCONTROS

joyce, pound, cummings) – colateralmente, ubicação de elemen-


tos extramorfológicos, sensíveis: concreção no informal.

reavaliação dos meios de informação: importância do cinema,


do desenho industrial, das telecomunicações, da máquina como
instrumento e como objeto: cibernética (estudo global do sistema
por seu comportamento).

comunicação: mister da psicofisiologia da percepção auxilia-


da pelas outras ciências, e mais recentemente, pela teoria da
informação.

exata colocação do realismo: real = homem global; alienação


está na contradição entre o estágio do homem total e seu próprio
conhecimento do mundo. música não pode abandonar suas
próprias conquistas para se colocar ao nível dessa alienação,
que deve ser resolvida, mas é um problema psicosociopolítico-
-cultural.

geometria não euclidiana, mecânica não newtoniana, relativi-


dade, teoria dos «quanta», probabilidade, (estocástica), lógica
polivalente, cibernética: aspectos de uma nova realidade.
levantamento do passado musical à base dos novos conheci-
mentos do homem (topologia, estatística, computadores e todas
as ciências adequadas), e naquilo que esse passado possa ter
apresentado de contribuição aos atuais problemas.

como consequência do novo conceito de execução-criação


coletiva, resultado de uma programação (o projeto, ou plano
escrito): transformação das relações na prática musical pela
anulação dos resíduos românticos nas atribuições individuais
nas formas exteriores da criação, que se cristalizaram numa
visão idealista e superada do mundo e do homem (elementos

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GILBERTO MENDES

extramusicais: (sedução» dos regentes, solistas e compositores,


suas carreiras e seus públicos – o mito da personalidade, enfim).
redução a esquemas racionais. – logo, técnicos – de toda comu-
nicação entre músicos. música: arte coletiva por excelência, já
na produção, já no consumo.$’

educação musical: colocação do estudante no atual estágio da


linguagem musical; liquidação dos processos prelecionais e le-
vantamento dos métodos científicos da pedagogia e da didática.
educação não como transmissão de conhecimentos, mas como
integração na pesquisa.

superação definitiva da frequência (altura das notas) como único


elemento importante do som. som: fenômeno auditivo complexo
em que estão comprometidos a natureza e o homem. música
nova: procura de uma linguagem direta, utilizando os vários
aspectos da realidade (física, fisiológica, psicológica, social,
política, cultural) em que a máquina está incluída. extensão ao
mundo objetivo do processo criativo (indeterminação, inclusão
de elementos «alea», acaso controlado). reformulação da questão
estrutural: ao edifício lógico-dedutivo da organização tradicional
(microestrutura: célula, motivos, frase, semiperíodo, período,
tema; macroestrutura: danças diversas, rondó, variações, in-
venção, suíte, sonata, sinfonia, divertimento etc... os chamados
«estilos» fugato, contrapontístico, harmônico, assim como os
conceitos e as regras que envolvem: cadência, modulação,
encadeamento, elipses, acentuação, rima, métricas, simetrias
diversas, fraseio, desenvolvimento, dinâmicas, durações, timbre
etc) deve-se substituir uma posição analógico-sintética refle-
tindo a nova visão dialética do homem e do mundo: construção
concebida dinamicamente integrando o processo criativo (vide
conceito de isomorfismo, in «plano piloto para poesia concreta,
grupo noigandres).

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ENCONTROS

elaboração de uma «teoria dos afetos» (semântica musical) em


face das novas condições do binômio criação-consumo (música
no rádio, na televisão, no teatro literário, no cinema, no «jingle»
de propaganda, no «stand» de feira, no estéreo doméstico, na vida
cotidiana do homem), tendo em vista um equilíbrio informação
semântica – informação estética. ação sobre o real como “bloco”:
por uma arte participante.

cultura brasileira: tradição de atualização internacionalista (p.


ex., atual estado das artes plásticas, da arquitetura, da poesia),
apesar do subdesenvolvimento econômico, estrutura agrária
retrógrada e condição de subordinação semicolonial. participar
significa libertar a cultura dêsses entraves (infraestruturais) e
das superestruturas ideológico-culturais que cristalizaram um
passado cultural imediato alheio à realidade global (logo, provin-
ciano) e insensível ao domínio da natureza atingido pelo homem.

maiacóvski: sem forma revolucionária não há arte revolucionária.

são paulo, março 1963

damiano cozzella
rogério duprat
régis duprat
sandido hohagen
júlio medaglia
gilberto mendes
willy corrêa de oliveira
alexandre pascoal

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Música, não música, antimúsica
damiano cozzella, rogério duprat, gilberto mendes
e willy corrêa de oliveira Por Júlio medaglia
GILBERTO MENDES

Música, não música, antimúsica


damiano cozzella, rogério duprat, gilberto mendes e willy corrêa de oliveira
Por Júlio medaglia

Originalmente publicado no
Suplemento Literário do Estado
de S. Paulo, em 22 de abril de 1967.

Quais as correntes ou compositores verdadeiramente revolu-


cionários no início do século e atualmente?
[Willy] Webernstravinskydebussysatiecagestockhausenboulez.
[Damiano] Talvez todos tenham sido. Quem teria feito o primeiro
jingle? Interessante é que, parece, foi na França.
[Gilberto] Debussy, Schoenberg, Stravinsky, Satie, no início
do século; depois Webern, Messiaen, Varèse, Schaeffer, Cage,
Stockhausen, Boulez; sem esquecermos a contribuição atual de
George Harrison, Paul McCartney, Henry Mancini e Nino Rota.
[Rogério] Deixa isso para lá.

Qual o sentido e a função da vanguarda no início do século e


hoje?
[Damiano] I) – Não te dá brotoejas o termo “vanguardas”? Acho
que está desgastado; é melhor não usar mais. II) Tem sempre

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ENCONTROS

sido um brinquedo muito caro em música. Dá seus resultados,


certo, mas é caro. Semelhante à pesquisa pura, usa excessos de
capital, coisa de que nós não dispomos. Qual a entidade que
jamais vai patrocinar atividades desse tipo no Brasil? Mas disto
os vanguardeiros gostam porque, em geral, sofrem da síndrome
de J.C. III) A estética descobriu a vanguarda e esta se estetizou.
De estetas, como você sabe, foge-se sempre em disparada! IV)
O que parece fundamental é que o “artístico” que está pifado.
A vanguarda não existe sem a “cultura dita superior”, que ela
advoga: o Xenakis se persignou todo à mera menção de um con-
sumo à larga e defendeu a tal “quantité d’inteligence” posta na
pesquisa. Ah! O mistério da criação...V) Em decorrência é tímida.
Não ousa criticar as coisas. É boazinha. Justifica rés e lás, harpa
com serrote etc. Se, pelo menos, em meio a uma manifestação
aparecesse o Corpo de Bombeiros...
[Rogério] “Esqueça”.
[Gilberto] Até há pouco, a mesma função, em fases diferentes, no
sentido da destruição do edifício lógico-dedutivo da organização
tradicional e sua substituição por uma nova sintaxe não discur-
siva, analógico-sintética; tal como aconteceu na literatura com
Mallarmé, Joyce, Pound, no cinema com Einsentein, nas artes
plásticas com Klee, Kandinsky, Mondrian, Calder etc. Em uma
fase, início do século, completa-se o trabalho de liquidação da
tonalidade começado no século anterior. Via atonalismo (dode-
cafonismo em Schoenberg, escala de tons inteiros em Debussy) e
politonalismo (o choque das segundas menores em Stravinsky). A
“Sagração da primavera” beira o som concreto, o ruído, com seus
complexos sonoros quase estáticos. Webern representa o elo com
a fase seguinte e interessa, não pelo seu serialismo, mas porque
reduziu a música ao intervalo e ao som isolado, independente,
compondo estruturas que realizam saltos autônomos que pode-
ríamos saltar de pré-eletrônicos. As experiências individuais e até
antatômicas da fase anterior caminham para uma integração.

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GILBERTO MENDES

Com Messiaen adquirem valor funcional, ritmo, intensidade e


ataque. E surge a “neue musik”, em Boulez e Stockhausen, com
a serialização total de todos os parâmetros. Na música concreta
(Varèse, Schaeffer, Henri) e eletrônica o ruído é incorporado de-
finitivamente à música. E chegamos às últimas consequências de
todo um ciclo evolutivo: à ordenação puramente sintática, obe-
diente a exigências puramente formais. Yannis Xenakis, que aqui
esteve recentemente, representa bem esse beco sem saída, a crise
atravessa a música contemporânea. Hoje sentimos a necessidade
de partirmos para um novo ciclo, uma nova música semântica,
conforme dissemos em nosso manifesto “música nova”, “em face
das novas condições do binômio criação-consumo, tendo em
vista um equilíbrio informação semântica – informação estética”.
E atendendo às solicitações da realidade brasileira que exigem
uma arte participante. Cage representa o ponto de partida do
novo ciclo, com o golpe de morte que deu na “aura” da obra de
arte musical. Erik Satie, com suas maratonas de pianistas e outras
“gozações” musicais, foi o percursor.
[Willy] Invenção!

Das diversas correntes atuantes, quais as mais consequentes


ou vanguardistas?
[Rogério] Chacrinha, Orlando Dias, Simonal e Jô Soares.
[Damiano] Costuma-se esquecer sistematicamente o Spike
Jones, grande artista. No Brasil, Torres, Florencio e Rielinho,
pioneiros (1935) do “happening”.
[Willy] Chacrinha?
[Gilberto] A do Chacrinha na TV. Não tenhamos dúvidas.
Podeira justificar a defasagem existente na arte contemporânea
entre produção e consumo? Por que razão a vanguarda vive
marginalizada?
[Rogério] No Brasil? Bem, produção e consumo são fases de um
mesmo processo: comércio de significados (como tomates, feijão,

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ENCONTROS

televisores, sabão em pó, mobília etc.). Com os dados fornecidos


pelo “marketing”, produz-se para uma faixa determinada de
consumo. Com a liquidação do artesanato, ou a coisa é assim ou
é suicida. “Objeto único” só é solicitado por quem pode pagá-
-lo (o carro que usamos é produzido em linha de montagem; o
Rolls-Royce só podem comprar alguns milionários ou ídolos de
iê-iê-iê). Por isso, marchandetablô é uma profissão sem futuro.
Consumo de “arte” é compra de “status”. Um grupo inferior-rural
de consumo, consome em “arte”, folhas velhas de revista, Tonico
e Tinoco, penicos de barro, caixotes velhos como móveis. Seu
oposto – grupo A urbano – quadros originais, nacionais e estran-
geiros, porcelanas chinesas, móveis de estilo ou de antiquários,
música de “vanguarda” etc. Pertencer à uma classe é “morar”
nas coisas que essa classe consome, saber discuti-las, possuí-
-las (você nunca viu os caras discutindo marcas de uísque?). Eis
uma classificação que nós, do MARDA, fizemos do consumo de
música: (cinco faixas de consumo por capacidade de aquisição)
– A) grandes empresários e industriais “líricas oficiais”, discos e
“tapes”, finos e importados, música de vanguarda. B) gerentes,
pequenos proprietários, profissionais liberais “réussis”: alguns
clássicos, românticos, alguma prática de concertos. C) intelectu-
ais, universitários, professores etc; impressionistas, “modernos”,
Stravinsky, música eletrônica, concreta, jazz, festival brasileiro,
Vivaldis e renascentistas. D) bancários, comerciários, funcio-
nários públicos, donas de casa: bossa, iê-iê-iê, Altemar Dutra,
tangos, boleros, não concertos, às vezes coleções de “clássicos” da
Seleções. E) industriários, domésticas, camelôs, pedreiros: Orlan-
do Dias, Moreira da Silva, boleros, programas de auditório. Tudo
isso para dizer que não há defasagem não: há a produção feita
em vista do consumo de massa (linha de montagem) e aquela
feita para um grupo restrito. Para nós (que a turma insiste em
chamar de “músicos de vanguarda”) não há discrepância na taxa
de redundância sintática entre Gardel, Tijuana, Brás, Xenakis,

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GILBERTO MENDES

Beatles, Boulez, Melacrino, música popular brasileira, música


eletrônica, iê-iê-iê, Moreira da Silva, Stockhausen, compreende?
Não nos interessa se elas uma mais ou menos “originais” do que
as outras, isto é, se a uma análise estática dos signos sonoros
que usam, oferecem um maior ou menor índice de “taxa de
circulação”. Existe, sim, uma “discrepância semântica”, que é a
que nos interessa, e da qual músicos como nosso amigo Xenakis
nada sabem e não querem tomar conhecimento. Significados se
evidenciam ao nível do consumo, e basta. Participação da massa
(de que já tanto falamos) é a unificação dos dois estágios do
processo: você acaba não sabendo quando acaba a produção e
começa o consumo; é tudo uma coisa só – produzir consumin-
do, consumir produzindo. Quanto ao fato da “vanguarda” ser
marginalizada, não sei se você nos está incluindo nisso. Se está,
não acho, não: ela está até muito integrada e atuante, vivendo
o dia a dia musical do país e do mundo, solicitada profissional-
mente, consumindo e produzindo como qualquer outro setor
profissional. Marginalizados continuam os homens do “concerto
tradicional”, aferrados à execução dos seus longos Vivaldis,
Bethovens, Bachs, e “vanguardistas históricos” para meia dúzia
de velhos chatos. Não querem se convencer de que o que eles
chamam de “arte” não existe mais.
[Willy] Não se trata de justificar. Constato que a produção de
vanguarda está para o consumo assim como a máquina ferra-
menta está para o consumidor.
[Damiano] Bem, já é a forma ocidental de se fazer as coisas:
começa-se de ricos e pobres. Tenho certeza de que na China
não há tal defasagem. Mas deixa isso para lá. De qualquer forma,
parece que é mesmo o costumeiro isso de você, operando com
os signos de uma linguagem ao nível de sua sintaxe, terminar
pondo a mostra novos significados. Você inventa nova palavra,
a denotar nova coisa. Intelectuais se exitam, mas o sistema julga
perigosa, de início, se alvoroça e tenta rechaçá-la (os ouvidinhos

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ENCONTROS

de pau, como diz o Rogerio, continuam não ouvindo Webern


em João Gilberto ou na música de cinema). Mas, ao fim e para a
grandeza da Arte, tranquilamente a engloba. Webern, no Muni-
cipal, é bisado – e ele, você e nós sabíamos disso desde o início.
O problema maior não se situa entre a produção e o consumo e
sim entre os vários tipos de consumo: o saguão da FAU com 210
pessoas qualificadas? O horário nobre da TV? Você quer se espe-
cializar? É necessário? Que preço você paga por isso? Mas, daqui
para diante, há um critério sólido com que se operar: consumo
é venda e o que não é vendável está perdido. Ponto.
[Gilberto] A música erudita anda muito mal colocada. É difícil
interessar um jovem pela chatice de um concertão tradicional,
desses do Municipal, por exemplo, quando eles têm a melhor
música popular que já se fez em toda a história da música à sua
disposição. É preciso tornar a música erudita também objeto de
comunicação de massa. Atualizar sua apresentação, como faz o
“Musikantiga”, recentemente o conjunto mais aplaudido em um
programa de Elis Regina pela TV, mais do que Wanderleia, Nara
Leão e outros monstros sagrados apresentados no mesmo show.
Vanguarda é marginalizada porque ninguém reconhece o bolo no
signo novo (Décio Pignatari). Uma coisa só pode ser considerada
bela dentro de padrões já existentes (Sarraute).

Qual seria a função da música na atualidade?


[Rogério] Mus = - NnS k/i log 2k/i log?
[Damiano] Parta do consumo, claro. Qualquer ponto onde
música possa ser consumida, em mil níveis. E faça sinfonias,
jingles, trilhas sonoras, arranjos, samba e iê-iê, concertos para
piano. Qualquer tipo de mensagem, já porque, nas condições
atuais, você nem ninguém sabe qual é a mais importante, nem
é para se saber. Não são todas úteis? Mas atenção aos desígnios
do cliente, que ele tem sempre razão! E, se a verba permite, faça
uma eventual “pesquisa”; até mesmo artística. Você sabe que a

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A música erudita anda muito
mal colocada. É difícil interessar
um jovem pela chatice de um
concertão tradicional, desses
do Municipal, por exemplo,
quando eles têm a melhor
música popular que já se fez em
toda a história da música à sua
disposição. É preciso tornar a
música erudita também objeto
de comunicação de massa.
ENCONTROS

nossa firma, estabelecida em São Paulo à rua Gomes de Carvalho,


103, está aparelhada para satisfazer quaisquer pedidos musicais.
Consultas sem compromisso. Rapidez, pontualidade e preços
módicos. Sigilo, onde reclamado. Fone 61-3714.
[Willy] Divertir! A “obra de arte” requer sempre do consumidor
uma atitude ativa. O divertimento, ao contrário, penetra no
consumidor.
[Gilberto] No Brasil, deixar a banda passar...

Existem possibilidades de uma utilização criativa do folclore?


[Damiano] O folclore que eu estou vivendo é Altemar Dutra,
Chacrinha, João Carlos Martins, jingles, orquestra sinfônica,
Roberto Carlos, escola de samba, ópera e Armando Belardi, Dercy
Gonçalves, o Caçulinha – enfim, é grandioso, industrializado. Não
conheço outro e qualquer outra ideia dele não me faz sentido. E,
Nossa Senhora, Julio, se é possível trabalhar-se com ele!
[Willy] E = MC2
[RD] Claro, ele está aí se recriando todos os dias no jingle, no
rádio, nos discos, na TV, na parada de sucesso etc. Ou você que-
ria saber se eu acho que uns palhaços podem continuar a fazer
“sinfonias” na base de um folclore que não existe mais?
[Gilberto] Tem dó, você ainda me vem com essa?
Existem possibilidades de uma relação entre música popular e
erudita ou de uma aniquilação desses conceitos (como juízo de
qualidade?).
[Willy] Não digo nem que sim nem que não, muito antes pelo
contrário.
[Damiano] Ignore a qualidade. A questão é adaptação à indus-
trialização. A chamada música popular usa, por exemplo, uma
fórmula interessante, a curta duração, à qual os músicos eruditos
devem logo aprender a ceder – extratos, condenações. Talvez,
também, já que se trata de um mundo diversificado e já que não
somos abelhas, quanto mais categorias melhor – o hábito de ler

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GILBERTO MENDES

símbolos de classe logo se supera. O público se modifica muito


rapidamente e a TV vai dar outra direção às coisas.
[Rogério] Axiologia é lá com o Yulo Brandão (quer o endereço?
Peça ao Carlos Lacerda, o músico da Bahia, não o outro).
[Gilberto] Em oposição dialética, crítica, a música popular urba-
na, como a folclórica, pode ser inter-relacionada com a erudita,
em uma mesma obra. Nada além, como diria Orlando Silva. Não
vamos recomeçar com o negócio de uma “linguagem brasileira”.
[Rogério] Compositor, para nós, é um “designer” sonoro, capaz
de trabalhar de encomenda, é compositor profissional. Não há
mais lugar para o artesão que “compõe” uma “sinfonia”, uma
“suite”, um “concerto para piano”, umas “variações” por ano,
experimentando nas teclas de um piano segundo a inspiração de
sua musa, para depois conseguir, as custas de mil humilhações
e cavações, que algum genial maestro ou solista “execute” a sua
obra: isso é amadorismo. Meu trabalho é exercido através da fir-
ma “AUDIMUS Ltda.” – Produções Audiovisuais. Produzimos, eu e
o Cozzella, jingles, spots, trilhas sonoras para filmes publicitários,
documentários, longa-metragem, arranjos musicais, projetos
para “musicais” em rádio e TV e por aí a fora. Se o Boulez quiser,
dê-lhe o nosso endereço e telefone, tá?

Até que ponto pode a cultura europeia interessar ou não um


compositor brasileiro?
[Gilberto] Sobretudo a cultura e tradição de outras galáxias deve
interessar o artista. Dialogar com Alpha 60, consultar seu Depar-
tamento de Semântica Geral, à av. Heisenberg...
[Damiano] Uma rádio alemã tem 45% de seu tempo dado a
sinfônicas ou quartetos de cordas. As vítimas se obrigam a subir
aquela subida: Os três Bs, O divino surdo, O heroico passado, A
5.a, a 6.a, A grande cultura, Permanência, O presente não cria,
ou Duvide-se dele etc. Problemas de europeus. Nós copiamos
outro sistema, porém, e o “hard-sell” dos norte-americanos põe

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ENCONTROS

em atuação competitiva todas as faixas de onda permissíveis em


uma dada área. Emissoras comerciais têm a captar ouvintes,
não dão a menor pelota para considerações de Haute Culture,
esta é na sua cultura, o mercado em larga quantidade. Jingles,
paradas de hits, perecibilidades. Nós também temos concertos
e até transmissões de música fina, diretamente de Marte. É no-
vamente a questão de ver quem é mais ouvido e de com quem
você quer se comunicar. Veja, ademais, que nunca deu pé jogar
de avestruz, nem de um lado nem do outro.
[Willy] Interessa como signo = bloco semântico.
[Rogério] Nós estivemos todos por lá, para conhecer melhor tudo
que aconteceu de bom. A partir do momento, porém, em que
se parte para uma atividade mais especificamente interessada
no consumo de massa e seus canais de comunicação, na nova
linguagem desses meios, parece evidente que se deixe de levar
em conta as “brincadeiras” dos Boulez, Xenakis, Pousseurs etc. A
Europa vai ter que engolir um bocado de América (Norte e Sul).
Faça um itinerário de sua pesquisa e uma autoanálise.
[Rogério] Lembra daquele filme Do mundo nada se leva? A
mulher recebeu por estravio, uma máquina de escrever e virou
escritora. Assim foi comigo: descobri, uma vez, um violoncelo
na casa de uma velha amiga e comecei a esfregá-lo; dois anos
depois, na base brasileira, já era profissional (estudei com Co-
rozza e Varoli). Sofri um bocado nessa profissão, mas não me
arrependo (só de Sinfônica Municipal foram nove anos). Logo
comecei a escrever minhas besteiras e estudar com o Toni e
Santoro (ambos ex-cupinchas do Koellreutter). Até 1956, várias
toadas, danças, serestas, noturnos; aí melhorou um pouco: va-
riações, suites, sonatinas, líricas; em 1958, em um estalo tardio,
descobri que o dodecafonismo não era pecado: quarteto de
cordas, concertino para oboé, trompa e cordas, variações para
12 instrumentos e percussão, peças para celo solo. Webern,
mesmo, só “manjei” em 1960 (incrível, não?). Lembra que você

29
GILBERTO MENDES

mesmo me pôs em contato com o Cozzella e os poetas concretos


do grupo Noigandres? E, ainda na terrível base brasileira, foi
aquela loucura de ouvir montes de música, analisar partituras e
engolir verborragia dos livros. E voltamo-nos, todos, para Boulez
e Stockhausen, música concreta e eletrônica. A essa altura, dois
outros caras já privavam conosco Willy C. de Oliveira e Gilberto
Mendes. O primeiro a se mandar para as europas foi o Cozzella:
em 1961 por pr’Alemanha, e a correspondência que mantivemos
foi básica para nós (experiência de laboratório e dos concertos
de Darmstadt e Donaueschingen, em que o Cage já dava sérias
cacetadas). Em dezembro desse ano, fizemos aquele, para nós,
importante festival de música contemporânea (Orquestra de
Câmara de São Paulo dirigida por O. Toni, canal 9, VI Bienal em
que tocamos Webern, Stockhausen, Boulez, Maiusumi, Cozzella,
Willy, Gilberto e o Organismo (poema do Décio Pignatari que
eu musiquei, primeira experiência do grupo com poemas con-
cretos). Por esse tempo, nós todos largamos brasa no estudo da
teoria da informação, comunicação, cibernética e outros trecos.
Nossos bate-papos com o grupo Noigandres e os materiais que
lemos nesse tempo creio que foram vitais: já nos atiçavam, am-
bas as coisas, para um “approach” semântico da criação, já que
estávamos todos voltados (hoje não temos dúvidas sobre isso) só
para os problemas de sintaxe. Outro fato também nos conduziu
à busca de significados: em 1962, um sujeito corajoso, Walter
Hugo Khouri, encomendou-me uma trilha sonora para o filme A
ilha, sendo essa a primeira experiência de qualquer membro do
nosso grupo em cinema. No mesmo ano, foi nossa vez de tirar a
cisma: Willy, Gilberto e eu fomos a Darmstadt cursando Pousseur,
Boulez, Ligeti, Stockhausen e música eletrônica (lá encontramos
também você). Lá ouvimos quaquilhões de músicas, todas iguais,
apesar de nascidas de uma “grande preocupação com um baixo
índice de redundância e uma alta taxa de informação original”.
Pontilhismos boulezianos, mamadas stockhausianas, concretos

30
ENCONTROS

e eletrônicos chatos de todo o mundo, fricotes xenakissianos,


partituras imensas, cheias de enormes divisi ligartianos, grafis-
mos vários (eu mesmo levei uma partitura em círculos de leitura
complicada e execução quase impossível, agora, tardiamente,
editada pela Pan American Union). Visitamos vários laborató-
rios concretos e eletrônicos já sem muito entusiasmo. Todos os
nossos trabalhos desse período se caracterizam por uma alta
elaboração matemática, rigorismo cheio de “estruturas abertas”
e “acasos controlados”, enfim, “construtivismo aleatório”... Nossa
ida à Europa foi proveitosa na conclusão da impossibilidade de
prosseguir nas brincadeiras de sintaxe. As manifestações de Cage
e dos mais jovens cupinchas de Stockhausen (de antiarte) nos
chocaram de início, mas nos fizeram pensar. Sentimos que vivía-
mos em um mundo diferente (as Américas), mundo da indústria,
mundo da indústria, da criação coletiva e anônima, da “jungle”
com regras desregradas e uma ideia começava a nos tomar:
“deixar a Europa pra lá...” Nosso Manifesto música nova ( revista
Invenção, junho de 1963) assinado por Cozzella, Willy, Gilberto,
você, Hohagem, Alexandre Pascoal, por mim e meu irmão Régis,
embora ainda cheio de eruditismos e anseios artísticos, já dava
novas cartas: compromisso total com o mundo contemporâneo,
caráter coletivo da criação, liquidação das “pintas geniais”, refor-
mulação das práticas de apresentação musical, ação sobre o real
como “bloco”, e, o mais importante, necessidade da elaboração
de “um quadro semântico” que levasse em conta o consumo
pelos canais da comunicação de massa e suas implicações. Por
esse tempo, Pignatari, Cozzella e eu estávamos interessados na
“impessoalidade” da criação em “computer”. Estudamos progra-
mação com o Ernesto de Vita; Décio fez uns projetos com o Luiz
Angelo Pito, Cozzella e eu tivemos um trabalho monstruoso para
“ensinar” a IBM a compor Mozart e outras peças permutacionais.
Concomitantemente, todos nós nos decidimos a entrar no con-
sumo (em coerência com nossas posições, profissionalizando-

31
GILBERTO MENDES

-nos): fizemos montanhas de músicas para disco, TV, teatro,


publicidade, cine-arte etc. (note bem, manipulando significados
quase sem consciência disso). Como Grupo Música Nova, dei-
xamos de existir em 1964: Cozzella, Pignatari, Régis e eu fomos
para Brasília – você ainda se encontrava na Alemanha. Cozzella
foi o primeiro a realizar em São Paulo, com um grupo de alunos
de jovens, espetáculos que resolveram chamar po aí de “música
aleatória”. Em Brasília, juntamente com um grupo de alunos de
“composição” do Santoro (este não participava da coisa, mas
topava tudo que fazíamos), organizamos um grupo de “música
experimental”, nome sob o qual valia tudo. Lá, repetimos algumas
experiências feitas pelo Cozzella, algumas das quais você havia
também participado na elaboração (leitura coletiva de jornais,
projetos de composição coletiva, regência sonora, estruturação
por blocos quantitativos, escalas de comportamento, grupos de
densidade e instrumentalidade, ação dentro do público etc). Com
a ida de Décio e Cozzella para Brasília, a coisa ferveu: semântica
e cultura de massa (e reconheço que foi difícil livrar-me comple-
tamente de uma “casca” de muitos anos de “artistas” de músico
de estante, de maestro, de defensor da “Grande arte”...). Metemos
a cara na coisa; a participação pública foi surpreendentemente
grande e realmente criativa – desse trabalho comum com o
público surgiam inúmeras ideias e maiores incentivos ainda
a nossa linha de conduta – estávamos para estrear um novo
programa na TV local, quando uma série de acontecimentos
modificou a estrutura daquela universidade, fato, aliás conhe-
cido de todos, o que nos obrigou a voltar para São Paulo. Aqui
fundamos o MARDA (Movimento de Arregimentação Radical
em Defesa da Arte) e prestamos uma série de homenagens a
alguns monumentos de São Paulo, proverbialmente chamados
de “mau gosto” – fotografado e publicado na Manchete de 13 de
agosto de 1966. Portávamos cartazes em defesa do mau gosto
e contra qualquer critério de juízo. Porque tudo é arte e nada

32
ENCONTROS

é arte: o que vale é o significado. A arte acabou (embora muita


gente ainda vá viver dela algum tempo, enquanto houver alguns
“compradores de arte”.
[Damiano] Acho que Rogério já disse o essencial.
[Gilberto] As partituras que trouxe de minha primeira viagem
à Europa em 1959 mudaram definitivamente o rumo de minha
composição. Do estudo das peças de Stockhausen e Boulez nas-
ceram meus trabalhos seriais dessa época. Começava a viver, a
adquirir a informação adequada. Novo contato com a Europa,
desta vez diretamente como centro da neue musik em Darmstdat,
permitiram-me achar meu próprio caminho. Data dessa época,
de uma pesquisa pessoal, sem influências, meu trabalho “nas-
cemorre”, para vozes, percussão e fita magnetofônica sobre um
poema concreto de Haroldo de Campos. Sua forma: esquema-
-processo cibernético de direção. Segue-se outro ciclo. Levando
às últimas consequências uma ideia aleatória “bolada” para o
“nascemorre”, venho compondo Blirium 9. Já tenho prontas
três possibilidades: A) para 12 cordas; B) para 12 instrumentos
diferentes; C) para piano solo ou acompanhando no máximo por
cinco instrumentos. A última parte será para grande orquestra.
Blirium C-9 foi executado no Festival de Música de Vanguarda
organizado por Diogo Pacheco para a VIII Bienal de São Paulo,
naquele concerto que deu o que falar, no Teatro Municipal, por
Paulo Herculano ao cravo. Pedrinho Mattar ao piano e Ernesto
de Luca a percussão. A peça não oferece uma partitura fechada;
somente instruções de realização. O instrumentista escreve a par-
titura, que é aleatória em todos os parâmetros, inclusive quando
feita de citações de outras músicas, eruditas ou populares, de
qualquer época, trabalhadas e montadas pelo executante, de
acordo com o meu “programa”. Total participação do intérprete
na criação, portanto. Toda ocorrência, certa ou errada, é válida,
dentro de um objetivo de acertar. Às vezes uma realização desco-
ordenada e cheia de erros, por isso mesmo, poderá sair excelente.

33
GILBERTO MENDES

Por exemplo, um esbarro, com seu timbre/ruído característico,


poderá enriquecer o quadro que se procura compor. Cheguei
a esse tipo de experiências, curiosamente, menos pelo “estudo
de música” e mais pelas informações que recebi das teorias de
comunicação de massa, da teoria dos signos, da possibilidade
e, sobretudo do contato com a poesia concreta. Do estudo de
“nasce-morre” surgiu toda uma música feita só de fonemas sem
melodia. O parâmetro “altura” figura somente na formação de
blocos de sons intervalados em microtons. Trabalho também
no poema “bebacocacola” de Pignatari, o qual me surgeriu uma
ideia músical semelhante a de um moteto de Machaut em ré
menor – breve será ouvido. Noutro trabalho, “cidade”, sobre o
poema de de Augusto de Campos, aproveitei o estudo que fizera
da colagem, em um quadro de Rauschenberg, e dos jingles de TV,
organizando um “happening” à base de elementos publicitários,
utilidades domésticos, material de escritório, enfim toda a flora
e fauna do folclore urbano.

Aproveito ainda com o cinema Tony Richardson, Demy, Godard,


Lester, lendo jornal (a guerra do Vietnã, a política nacional), indo
à praia, ao mercado. “Ouviver” (alô, Willy!) a vida, sobretudo
com meus filhos, que me ensinam a matemática moderna e a
gostar dos Beatles, e a de The Mamas & the papas.
[Willy] A) período nacionalista = fusão da música modal do
nordeste com a música da idade média. B) dodecafonismo. C)
serialismo de todos os parâmetros. D) pesquisas eletroacústicas.
E atualmente: música semântica = música de signos. Considero
cada vez mais importante o mundo dos signos – o mercado
comum do significado; as comunicações de massa; a cultura
de massa. Uma comunicação com endereço certo. Portanto, a
comunicação como “obra de arte” veiculada para os “eleitos”,
os “happy few” é simplesmente desprezível! A comunicação
como divertimento (Walter Benjamin), utilizando todo o aparato

34
ENCONTROS

técnico das comunicações de massa e baseada na teoria do com-


portamento e com uma função crítica definida – eis a questão.
Vocês têm algo a dizer sobre o chamado “nacionalismo musical”
do Brasil?
[Rogério] Citamos Décio Pignatari em declaração feita neste
mesmo Suplemento: “& o que vemos de novo em andamento
é o processo de provincianização da cultura & não é a toa que
certos trechos do “Bicho” lembram o “Juca Mulato” & na capa
da revista Civilização Brasileira lá está aquele pescador dos
velhos bons tempos & a rede de nylon pesa sete vezes menos,
não apodrece, não precisa secar & os grandes países pesqueiros
com barcos – fábrica & “SONAR” para localizar cardumes, são os
maiores interessados em financiar o nosso folclore...!”.

35
GILBERTO MENDES

Como vai nossa vanguarda?

36
ENCONTROS

[sem crédito]

37
GILBERTO MENDES

Como vai nossa vanguarda?


[sem crédito]

Originalmente publicado no
Jornal da Tarde, em
29 de outubro de 1970.

Quem conhece Mesias Malguashca, compositor equatoriano


de vanguarda que é considerado um dos melhores do mundo, que
trabalha com Stockhausen e Jorge Peixinho na Alemanha desde
1967? Quem conhece Luís de Pablo, compositor espanhol de van-
guarda, que desde 1953 trabalha com música serial e aleatória na
Espanha? Quem conhece Gilberto Mendes, José Antonio Almeida
Prado e Marlos Nobre, compositores de vanguarda brasileiros?
E Mesias Malghashca conhece Luís Pablo, Gilberto Mendes, o
peruano Cesar Bolaños?
Por causa desse isolamento entre os compositores america-
nos, que não se procuram, que não se conhecem, o Instituto de
Cultura Hispanica de Madrid realiza todos os anos desde 1968,
o Festival de Música de América y España. Este ano três brasilei-
ros foram convidados para participar do festival e dos debates
sobre música: Gilberto Mendes, José Antonio de Almeida Prado
e Marlos Nobre. E dois outros brasileiros tiveram suas músicas

38
ENCONTROS

apresentadas no festival – Villa-Lobos e Oswaldo Lacerda. Gil-


berto Mendes acaba de voltar de lá.
– Foi muito importante que os compositores da América,
principalmente da América Latina, se conhecessem. Esse festival
provou que o futuro da música erudita está aqui, embora atual-
mente o centro da vanguarda seja Darmstadt, na Alemanha, onde
mora Stockhausen. Os latino-americanos formam uma segunda
frente, menos acadêmica que a europeia. Uma prova disso foi o
que aconteceu nos debates: todo mundo falava da situação da
música em seu país, e eu falei também. Falei de um trabalho que
fiz em Brasília, mas que não podia ser mais reproduzido porque
eu não havia anotado nada. Que inclusive eu achava que não
se devia anotar nada. No começo, houve uma forte reação do
pessoal de formação europeia, que acha que suas obras e seu
nome devem passar para a posteridade. E no final, quase todos
aderiram. Stockhausen nunca aceitaria isso.
– Houve uma tendência nesse festival muito importante: a
vanguarda. Oitenta por cento das músicas apresentadas eram de
vanguarda, sem que o festival tivesse essa preocupação. E depois
dos debates, os organizadores chegaram à conclusão, conosco,
de que esse festival devia ser dedicado à vanguarda, chegando
até a não aceitar músicas tradicionalistas. Inclusive Guillermo
Espinosa, diretor da divisão musical da OEA, que organiza o
Festival de Washington, ultraconvencional, chegou à conclusão
de que é preciso transformar aquele festival.
O festival foi muito bom para Gilberto Mendes, que há
três anos procurava conhecer compositores sul-americanos,
espanhóis e portugueses. Já tinha introduzido quatro deles no
Brasil – José Vicente Aguar, César Bolaños, Mario Lavista e To-
mas Marco – mas tinha muitas dificuldades de conhecer outros.
Com o festival, além de conhecer todos os compositores, trouxe
partituras das obras de quase todos eles – que também levaram
partituras dos brasileiros para seus países.

39
GILBERTO MENDES

– A Argentina foi quem teve a melhores apresentação no


Festival. É um país de cultura muito universal, sem ranços na-
cionalistas, e que por isso pode evoluir muito. No Brasil, depois
do Manifesto do Maestro Camargo Guarnieri a favor da música
autenticamente brasileira houve um grande atraso em nosso
avanço musical. Hoje já existe um Festival de música de van-
guarda aqui, na Guanabara. Mas é um concurso, e como todo
concurso não é bom, limita a criação em função dos gostos do
júri e do público.
– Já os Estados Unidos, fora John Cage, teve uma repre-
sentação fraca, a mais convencional. Foram mal escolhidos os
representantes de lá, um país tão desenvolvido na música de
vanguarda. Inclusive a Argentina está tão bem informada na
vanguarda porque seus melhores compositores estão morando
lá, onde tem condições para trabalhar. Até o velho Ginastera está
mudando, em contato com a música de vanguarda.
A música de Gilberto Mendes apresentada no festival foi
“Blirium A-9”. O nome blirium foi inventado por ele, inspirado no
nome de um remédio. A letra A é para indicar a série dos bliriuns
– A-8, B-9, C-9, D-9. E-9 é o número de pulsações.
A letra A faz a peça ser tocada por doze cordas. É uma música
aleatória, cujas partituras individuais devem ser preparadas pelos
instrumentistas segunda a programação do compositor. Não
existe portanto uma partitura tradicional, mas apenas instruções
específicas e detalhadas para o trabalho do intérprete. O maestro
deve coordenar a entrada dos intérpretes e as diversas combi-
nações possíveis dos grupos instrumentistas, que deve preparar
com antecedência. Conhecem-se os dados, mas os resultados
são inesperados, dependendo de combinações ao acaso, de uma
comunicação inversa (músico-maestro e não maestro-músico).
A letra B indica variações ao plano. E a letra C não tem re-
gente: os ponteiros de segundos de um relógio é que indicam o
grupo de notas que deve ser tocado.

40
ENCONTROS

– É uma espécie de exercício de coordenação motora do


intérprete. Dependendo da coordenação individual do intér-
prete a métrica se estabelece. Há uma série de problemas que
o intérprete tem que resolver na hora, como esquema de notas,
timbres. É outro elemento aleatório.
“Blirium A-9” foi apresentada no festival pelo Grupo Alea, de
Luís de Pablo, compositor espanhol que participou da Jornada de
Música Contemporânea de Paris, com John Cage, Pierre Boulez
e Salvieira Bussoti, três grandes nomes da vanguarda.
De José Antônio de Almeida Prado, aluno de Messiaen, apre-
sentaram “Cantus Creationis” para quatro grupos instrumentais.
De Marlos Nobre apresentaram “Concerto breve para piano e
orquestra”, que concorreu o ano passado no I Festival de Música
de Vanguarda da Guanabara. De Oswaldo Lacerda “Variações e
fuga para quinteto de sopro”. E de Villa-Lobos, o “Concerto para
piano e orquestra nº 1”, em dó maior.
Agora que voltou, Gilberto Mendes pretende divulgar as parti-
turas que trouxe de outros compositores. E já começou essa divul-
gação, no Festival de Música da Primavera, em Santos, onde mora.
Gilberto, 47 anos, fazia parte do grupo de músicos que cam-
panha a vanguarda brasileira: Willy Correa de Oliveira, Rogério
Duprat, Damiano Cozzella. Depois, Duprat e Cozzella passaram
a trabalhar com música popular e da “velha guarda da vanguarda
brasileira”. Sobraram ele e Willy Correa de Oliveira.
– Só nos últimos 15 anos comecei a evoluir musicalmente. E
passei a trabalhar com música aleatória, com partituras de dez
laudas sem uma nota, só com instruções para o que fazer. Fui
também três vezes para a Europa, para festivais e para estudar.
De certa maneira sou obrigado a fazer só música aleatória, por-
que não há material nem recursos para fazer música concreta e
eletrônica. O máximo que podemos fazer é música eletroacústica,
com gravadores e só gravadores.

i
41
GILBERTO MENDES

Este é Gilberto,
um homem de vanguarda

42
por sonia mateu
GILBERTO MENDES

Este é Gilberto,
um homem de vanguarda
por sonia mateu

Originalmente publicado no
jornal Cidade, em
16 de novembro de 1970.

Ele queria ser trombonista de jazz: desde criança era apaixo-


nado pela música norte-americana. Por problemas de família,
só pode começar a estudar música com 18 anos, quando entrou
para o conservatório. Depois de três anos de tória e harmonia,
descobriu que podia compor e resolveu aprender composição
com o professor Sabino de Benedictis e depois com Claudio San-
toro, até que conheceu o maestro Olivier Toni, da Orquestra de
Câmara de São Paulo. Descobriu então que composição é coisa
que não se aprende. Cada um tem seu estilo e, se for ensinar,
vai transmitir o seu modo de compor e as suas tendências. Foi
assim que Gilberto Mendes, um dos grandes nomes da vanguarda
internacional, começou a compor.
Ele fazia a música e levava para Olivier Toni fazer um co-
mentário: nada de ensinar regras, e sim, apenas criticar a forma
utilizada. O regente, que entre 1956 e 1960 dominava o cenário
44
ENCONTROS

artístico de São Paulo lançou na época Rogério Duprat, Willy


Corrêa de Oliveira e Gilberto.
A música brasileira, nessa época, com Olivier e Damiano Co-
zzella retornava ao movimento de vanguarda, parado desde o fim
da Segunda Guerra, quando começou a vigorar o nacionalismo.
O contato com poetas concretistas, principalmente Décio
Pignatari, amigo de Pierre Boulez, que retornava da França, in-
fluenciou os compositores. Em 1962, na revista Invenção, Gilberto
Willy e Duprat lançaram, juntos com outros compositores, um
manifesto sobre a música nova.
Depois, começou a participar e realizar festivais de música
contemporânea. “Foi quando Santos entrou na história”, diz
Gilberto, “por meio do Ars Viva, criado para divulgar a música
de vanguarda. Começamos a organizar concertos que eram
apresentados em São Paulo e repetidos em Santos. Filmes tam-
bém, estourando com a Semana de Música Contemporânea,
em 1963, para cá, Festival de Música Nova e este ano, Festival
da Primavera”.
“Santos é conhecida como centro de música de vanguarda,
graças a esses festivais, divulgados em revistas de diversos países.
A Sectur tem promovido alguns e agora esperamos que a Prefei-
tura resolva oficializá-los, porque significam muito em termos
de turismo e cultura para nós”.
Darmz, da Alemanha, era o centro de música nova, depois de
1950, com o curso de férias realizado todo ano, acompanhado de
festival e concertos. “Sempre participei desses cursos, mantendo
contatos com grandes nomes na vanguarda internacional, Sto-
ckhausen, Boulez, Poucelle e outros”.
“A nossa música está no mesmo nível que a deles, só que
nós na temos a divulgação necessária. Ninguém se interessa em
promover compositor de música de vanguarda. Mesmo agora
quando participei do I Festival de Música de America Y España,
promovido pela OEA em Madrid, não fui como representante do

45
GILBERTO MENDES

governo e sim convidado por um amigo, o regente argentino Alci-


des Lanza, que indicou meu nome para a comissão organizadora”.
Gilberto gosta de fazer música, escreve para mais de seis
revistas internacionais sobre vanguarda, participou de festivais
em diversos países, tem suas músicas apresentadas e editadas
nos Estados Unidos, Portugal, Espanha e Alemanha, e agora ter-
minou de compor mais uma obra: Atualidades: Kreutzer 70, que
vai ser apresentada hoje e quarta, no auditório do Teatro Itália,
pelo pianista Paulo Affonso de Moura Ferreira, a violinista Valeska
Radeliche e cinco integrantes do coral de Câmera de São Paulo.
A música é baseada no livro de Tolstoi, Sonata Kreutzer, onde
ele faz um comentário sobre a “Sonata Kreutzer”, de Beethoven.
Paulo Affonso e Valeska não vão tocar seis instrumentos, apenas
representarão cenas eróticas. Um trecho do livro de Tolstoi será
falado pelos integrantes do coral, em cinco línguas: espanhol,
francês, alemão, russo e português.

O pensamento de Gilberto Mendes:

“A música de vanguarda é a música de nossos dias, a única. É


a música erudita de sempre: nada mais simples do que isso. Essa
distância com o público é facilmente explicada. O artista inventa
um signo novo, e como é novo, não tem ainda significação. Só
quando passa a ser muito usado, é então entendido”.
“A música erudita é arte de laboratório, como a obra de Mo-
zart, que até hoje não é entendida. Como também de Chopin,
que foi supervanguarda, Vivaldi, Beethoven e Debussy, que são
agora facilmente compreensíveis e aceitos. A única diferença é
que a música nova está mais afastada do povo do que a outra
esteve. Houve um avanço muito grande, experimental, e o povo
não acompanhou.
Como a pintura e a escultura, a música é reflexo da nossa
ciência, da nossa filosofia. Ela acompanhou a evolução e lançou

46
A música de vanguarda é
a música de nossos dias, a
única. É a música erudita de
sempre: nada mais simples
do que isso. Essa distância
com o público é facilmente
explicada. O artista inventa
um signo novo, e como
é novo, não tem ainda
significação. Só quando passa
a ser muito usado, é então
entendido.
GILBERTO MENDES

montes de signos novos, que ainda não foram apreendidos por


uma maioria. Mas, mesmo assim, agora o povo chega mais ra-
pidamente a aceitar a vanguarda do que antigamente, no tempo
de Beethoven e dos outros”.
“Nós não queremos dizer nada com as nossas composições.
Apenas criar formas novas. A música não foi feita para ser com-
preendida, nem dizer nada. A gente faz para o prazer do som.”
“O artista sempre está preocupado com a forma. Flaubert tem
razão: da forma nasce a ideia. Até Schuman, um super-romântico,
confessou que ficava preocupado em terminar bem o acorde.
Numa obra baseada nas velhas regras de harmonia, se usa um
tom menor (que todo mundo acostumou a sentir que é triste), já
sei que minha música, naquele trecho vai dar essa impressão. Na
vanguarda ainda não dá para quase ninguém sentir o alegre ou o
triste, porque o povo ainda não está acostumado com os novos
sons. Quando ela estiver muito usada, com muito significado,
todos passarão a senti-la.”
“Um compositor de música de hoje, como eu sou, não pode
querer que o povo aceite facilmente. Se aceitasse, não seria
vanguarda, que é isso, está sempre muito na frente, seu próprio
nome explica.”
“‘Beba Coca-Cola’ é um passo atrás na minha evolução como
compositor. A aceitação que tem comprova isso. Todo mundo
acaba gostando da música depois de ouvi-la algumas vezes.
‘Nasce morre’ já não é acessível ao público e é, até agora, a minha
melhor composição”.
“Caetano Veloso, Gilberto Gil, os Beatles, Jimi Hendrix são
quase compositores eruditos. Só falta um empurrãozinho, mas
eles sabem que não podem dar esse passo em suas músicas,
porque senão deixarão de ser popular. Eles conhecem a fundo
música concreta, mas tem que se manter na posição de compo-
sitores de música popular, para ser digeridos mais facilmente
pela massa. Eles precisam do público.”

48
ENCONTROS

“É só citar ‘Number Nine’, dos Beatles, para provar como eles


conhecem música concreta. Essa não é popular, é puramente
de vanguarda.”
“Vanguarda não é, por exemplo, pegar o folclore e reformular
em cima e sim se utilizar dele para criar novas formas. Mas essa
reformulação, feita por compositores do popular, é válida, é o
grande valor deles.”
“O jazz é outro tipo que precisa só de um empurrãozinho
para chegar a ser erudita. Agora talvez o iê-iê-iê substitua o jazz.”
“Na música concreta e eletrônica a ordem é deformar o
som até descobrir um outro. Com apenas um simpes gravador
a gente pode fazer música concreta, gravando sons diferentes e
fazendo colagens com outros também gravados. Já a eletrônica
necessita de geradores, que fazem combinações de vários tipos
de frequências. Passa-se o som por um filtro, até chegar ao que
a gente imagina.
Assim, a criação é puramente formal. A partir daí é que se
constrói uma linguagem com formas, comprovando que o meio
é a mensagem, como na teoria de Berlo e McLuhan.”

49
Gilberto Mendes explica a questão:
o que é música nacionalista?
Por Valeria Garcia
GILBERTO MENDES

Gilberto Mendes explica


a questão: o que é
música nacionalista?
Por Valeria Garcia

Originalmente publicado no
jornal Última hora, em
17 de março de 1974.

Entre os dilemas da música de vanguarda no Brasil parece


interessante colocar este: “A pesquisa musical e de vanguarda foi
prejudicada pela chamada música nacionalista?”
Gilberto Mendes, músico e compositor dos mais impor-
tantes, que foi justamente quem formulou essa afirmação vai
esclarecer-nos sobre tão categórica e definitiva questão, abrindo
assim o debate de ideias sobre a idade dos nossos compositores
vanguardistas, como Rogerio Duprat, Willy Corrêa de Oliveira,
Damiano Cozzella e tantos outros.

– O fenômeno da chamada música nacionalista é um fenô-


meno tipicamente brasileiro. Nem na vizinha Argentina, nem
em outro país. Aconteceu com a mesma força que ocorreu no
Brasil. Na Argentina, por exemplo, que sempre se destacou pela

52
ENCONTROS

música de primeira categoria no cenário internacional, com


compositores de primeira linha, o movimento não chegou a ser
um entrave ao desenvolvimento da música “não nacionalista”.
Havia e há – até hoje, paralelamente aos músicos de vanguar-
da, compositores que trabalham em música de fundo folclórico
– que seria o que se chama de “corrente nacionalista”.
Eu já abordei com bastante precisão esse problema, em uma
das minhas aulas do Festival de Inverno de Ouro Preto do ano
passado, explicando sobre essa questão da música no Brasil.
Lembrei, então, que as correntes nacionalistas se baseiam quase
que fundamentalmente no folclore. Não faço crítica em relação
à corrente propriamente dita e, sim, quanto ao modo como o
tema é abordado.
A técnica composicional da corrente está ainda ligada ao
século passado e os compositores desse tipo de música são o
que pode ser chamado de “clássico-romântico”. Isso engloba,
desde as formas sonais até ao desenvolvimento dos temas que
formam um conjunto de fatores determinantes, como etapa do
desenvolvimento da música ocidental. A música brasileira está
nela integrada.
Os compositores nacionalistas brasileiros ainda se utilizam
de uma técnica composicional supergasta e não existe uma razão
válida pela qual a música dita “nacionalista” ou folclórica deva
caracterizar a nacionalidade de uma música. Pelo contrário,
quanto mais original e nova ela for, mais brasileira e interes-
sante será como invenção e arte. Pode-se citar como exemplo,
o fato de o material folclórico ser utilizado sempre em relação a
sistemas já falidos e nunca como novas formas de desenvolver
um tipo de música, seja ela eletrônica ou concreta. Um modo de
ser inventivo, usando temas folclóricos, seria partir de material
folclórico indígena e fazer com ele um tipo de música eletrônica.
E não desenvolver o tema em forma musical de sonata seguindo
os princípios da tonalidade.

53
Um modo de ser inventivo,
usando temas folclóricos, seria
partir de material folclórico
indígena e fazer com ele um
tipo de música eletrônica. E não
desenvolver o tema em forma
musical de sonata seguindo os
princípios da tonalidade.
No Brasil, a corrente nacionalista foi liderada por Camargo
Guarnieri e seus discípulos. E foi muito forte, coincidindo de
certa maneira, com o que Mário de Andrade escreveu no “Ensaio
sobre música brasileira”. Por ter morrido cedo, Mário de Andrade
– figura fabulosa – não pode corrigir os “foras” que deu a respeito
da música, o que faria, fatalmente, se tivesse vivido mais tempo.
Porém – essas ideias vieram ao encontro de alguns importantes
manifestos da época, como o de Zhdanov (russo, que considerava
a arte de vanguarda como decadentista e pequeno-burguesa).
A reunião de todos esses fatores fortaleceu e liquidou com o
início da música de vanguarda no Brasil, muito distante do tipo
de preocupação dos nacionalistas que intertavam, consideran-
do importante tudo, o que tivesse raízes folclóricas. Ora, nessa
época, os compositores brasileiros de vanguarda (Guerra Peixe
e Claudio Santoro) estavam em pé de igualdade com os demais
compositores estrangeiros na retomada da linha evolutiva da mú-
sica ocidental, seriamente abalada pela Segunda Guerra Mundial.
No Brasil, na época, se refletiam princípios de uma música
puramente experimental o que ocasionou uma verdadeira guerra
contra os vanguardistas brasileiros. Foram teorizações errôneas
que afogaram o movimento. Até o momento em que Willy Corrêa
de Oliveira, Rogerio Duprat, Damiano Cozzella e eu retomamos,
muito tempo depois, aquela linha de pesquisa que tinha sido a
abandonada.
Hoje, é uma glória sentir a repercussão da música de van-
guarda no público jovem e universitário, quando me lembro das
15 ou 20 pessoas que eram as únicas habituées dos concertos de
música aleatória.

i
A procura do humor
além da música
Por Enio Squeff
GILBERTO MENDES

A procura do humor
além da música
Por Enio Squeff

Originalmente publicada no
Estado de S. Paulo,
em 11 de janeiro de 1974.

O maestro Eleazar de Carvalho inclinou-se respeitosamente


para a pausa tranquila mantida pela Orquestra Sinfônica da rádio
e televisão Polonesa, tirou do pódio uma bola de futebol e chutou
contra a plateia. O resultado – contam alguns críticos poloneses,
não foi nem a surpresa nem a indiferença. A estreia mundial da
peça Santos Football Music, do compositor Gilberto Mendes, um
dos professores da I Bienal Internacional de Música, acabaria
mesmo em um divertido bate-bola, indiferente à sisudez da sala
de Filarmônica Nacional da cidade de Chopin.
Piada? Para a indiscutível seriedade com que os poloneses
tratam o Festival de Outono de Varsóvia, a peça do compositor
brasileiro, atualmente com 50 anos, talvez sugerisse o pior. Mas os
mesmos críticos a quem a peça surpreendeu divertiram-se com
a ideia e, no final insólito, uniram-se aos aplausos do público.

58
ENCONTROS

Dias depois, do outro lado do Atlântico, sorvendo tranquilo a


vida pacata de Santos, Gilberto Mendes reconsideraria o êxito da
estreia de sua obra e concordaria com uma ideia de Stravinsky,
segundo a qual os aplausos do público não são, às vezes, para os
aspectos essencialmente musicais de uma composição. Mesmo
assim, concluiria, como sempre, que valeria a pena continuar na
mesma opção que o desviou do curso de direito e o mergulhou
na angústia diária de aguardar o fim do expediente de uma
repartição pública de Santos, para o momento de varar a noite
compondo músicas que sua imaginação ia inventando.

O começo
Neste começo difícil, várias barreiras desafiaram a constân-
cia do compositor. Totalmente ignorante do código do mundo
musical a que se propôs dominar, Gilberto Mendes sofreu todas
as dúvidas de uma iniciação tardia. Até os 18 anos não tocava
nenhum instrumento e desconhecia os mais rudimentares
elementos da técnica de composição. Era uma situação angus-
tiante a que logo se juntaria a pesquisa incansável na busca de
uma linguagem própria diante das várias alternativas da música
contemporânea. Já nessa época, atreladas ao sucesso mundial
de Villa Lobos e à identificação do nacionalismo com posições
ditas progressistas, aos compositores brasileiros propunham-
-se apenas duas opções absolutamente irreconciliáveis: ou o
nacionalismo ou a alienação da própria identidade nacional.
“Era tanta a força da onda – confessa Gilberto Mendes – que
não resisti por muito tempo. Preocupado, como sempre, em ser
coerente com minhas convicções, deixei-me levar pelo nacio-
nalismo e compus a partir do folclore.”
Não era, seguramente, um começo original para quem se
preocupava com a originalidade. Mas a persistência e a aceita-
ção de uma situação de fato, mostraram-se, no fim das contas,
um exercício útil. Quando, anos mais tarde, conheceu Olivier

59
Toni, seu professor e intérprete, coordenador atual da I Bienal
Internacional de Música, já Gilberto Mendes arrolava em suas
experiências várias mazelas produzidas por um certo sectarismo
e alguns trabalhos que ainda hoje o compositor considera como
perfeitamente válidos.

Vanguarda
Então, quase de repente, emergiu em Santos o movimento da
vanguarda musical que reuniu em um só grupo músicos e poetas
concretistas da década de 1950. A esta altura, Gilberto Mendes
tinha já a seu lado todos os companheiros de quase 20 anos de
luta: Willy Corrêa de Oliveira, Olivier Toni e os que mais tarde
seguiram outros caminhos, Damiano Cozzella e Rogerio Duprat.
Para Gilberto Mendes, divisava-se a possibilidade de desen-
volver não apenas um trabalho ilimitado de pesquisa sonora,
mas também de ser um dos cabeças de festivais e concertos cujas
consequências iriam repercutir além do escândalo que provo-
caram certas apresentações em Santos ou mesmo no interior
convencional do Município de São Paulo. Datam desses anos
de profunda polarização para a música brasileira – vanguardis-
tas e nacionalistas só há pouco deixaram de se hostilizar – as
quatro viagens que Gilberto Mendes fez a Europa, divulgando e
acelerando os contatos dos brasileiros com os compositores do
exterior e a série de peças que foi compondo ao longo de vários
anos. Agora, porém, já dono de seu ofício, Gilberto Mendes tanto
preencheria pautas de partituras em peças dentro da mais estrita
técnica serial, ou dodecafônica, como projetava inesperados
acontecimentos claramente antimusicais – teatro musicado,
happenings e outros.
“Sou de um mundo em decadência” – explica – “mesmo
que quisesse, não poderia deixar de refletir alguns dos aspectos
desse mundo.”
ENCONTROS

Humor
Magro, amargando uma asma que o persegue sempre, Gil-
berto Mendes, depois dos tempos inglórios de sua iniciação,
reservou para seu futuro um humor contagioso que ri de si, da
música e das próprias agruras de seu problema respiratório. Para
a asma que o condenou praticamente a viver em Santos – uma
fatalidade que absolutamente não o incomoda – o compositor
criou a música “Asmatur”, na qual, em meio a gargarejos e os
sons de um moteto medieval, promove uma agência imaginária
de turismo – através da qual chega-se ao país sem asma. É este,
também, o sentido de uma peça sem música “Pausa e menopau-
sa” executada este ano, no início da Bienal de Música e de seu
maior êxito em termos de público, o moteto “Beba Coca-Cola”,
um extra inevitável no repertório de vários corais paulistas.
“Com essa peça de Gilberto Mendes – comenta Olivier Toni –
ocorre o fenômeno dos números definitivamente incorporados
ao repertório musical, quase como uma abertura de Rosini. Não
é por nada que aqui em São Paulo, todas as apresentações bem-
-sucedidas de certos conjuntos corais, suponha, inevitavelmente,
um extra como o ‘Beba Coca-Cola’.”
Em “Santos Football Music”, as intenções humorísticas de
Gilberto Mendes não se esgotam no puro divertimento. São,
conforme ele mesmo afirma, uma homenagem à cidade que
o resguardou da asma do ar poluído de São Paulo e ao time de
futebol que projetou o nome de Santos no exterior. Mas, desta
vez, o aspecto musical no sentido estrito participa de modo nada
acidental. Junto com a intervenção do público, como torcida,
ou do regente, como árbitro, existem as partes da orquestra que
exigem uma interpretação segura e nada improvisada. Volta às
origens? Gilberto Mendes não sabe responder com segurança,
aos 50 anos, porém, não pretende se negar a um remoto senti-
mento romântico que de vez em quando ainda o atinge.

i
61
Música Nova: Pra quê fazer?
Por João Marcos Coelho
GILBERTO MENDES

Música Nova: Pra quê fazer?


Por João Marcos Coelho

Originalmente publicada na
Folha Ilustrada, em
4 de novembro de 1977.

Como é que você se coloca diante das teses sustentadas por


Koellreutter na abertura deste Festival de Música Nova?
Sou totalmente contra. Vejo o compositor em duas posições
básicas. Fazendo música funcional, está integrado no sistema
em que vive, o capitalismo, e sua música é servil, conformista,
aceita passivamente o sistema. Sempre houve e sempre haverá
artistas que adotam este comportamento. Agora, também sempre
haverá artistas que estarão em suas casas, com toda liberdade,
escondidos, não tendo nada a ver com isso aí, elaborando a forma
revolucionária, o signo novo.

Você não sente uma necessidade mínima de se comunicar,


através de sua obra, com o público por menor que ele seja?
A mim não interessa, em absoluto, a comunicação. Por um
motivo muito simples: toda obra feita pelo homem, só pelo fato
de ser feita pelo homem, comunica automaticamente.

64
ENCONTROS

Então você cria para quem?


Farei sempre a obra para mim mesmo. Acredito piamente que
ela virá a se comunicar, aí o problema é apenas de ela vir a ser co-
nhecida, divulgada, executada. O compositor que não faz música
funcional está elaborando a música do futuro, construindo a estru-
tura nova e absolutamente despreocupado com a comunicação.

A polêmica, que tinha se afastado do Festival de Santos, parece


ter voltado com todo vigor este ano. Faça um balanço de seus
resultados.
Aqui houve um pouco de tudo, todas as facetas de que
se compõe a música nova – música eletrônica, instrumental,
concreta, aleatória, teatro musical, multimídia. Mas a tônica
deste Festival foi excelente: a palestra de Koellreutter levantou
problemas que resultaram em um debate de alto nível. Inclusive,
eu não me canso de repetir, a gente não faz este negócio com o
objetivo de público, de encher salas.
Este é sempre o problema quando vamos buscar patrocina-
dor, seja a Secretaria de Cultura de Santos ou a Funarte. Estes
patrocinadores querem muito público. Então a gente tem que
explicar que este é um festival de música muito reservada, uma
música muito impopular. Se a música erudita em si não tem o
grande público que possui a música popular, imagine a música
erudita nova, de pesquisa, que está no estágio mais atual do
processo da linguagem da música do Ocidente. Esta música
não pretende, nem nunca pretendeu, público. De maneira que
não nos desaponta ver uma sala vazia. Mas, estranhamente, não
temos tido salas vazias. Para mim, 80 ou 100 pessoas já são sala
cheia. Nunca me preocupei com este tipo de problema.

O III Encontro Nacional de Compositores, realizado em Brasília


há um mês e meio, parece ter sido bem mais controvertido do
que os anteriores, não?

65
Vejo o compositor em duas
posições básicas. Fazendo
música funcional, está integrado
no sistema em que vive, o
capitalismo, e sua música é servil,
conformista, aceita passivamente
o sistema. Sempre houve e
sempre haverá artistas que
adotam este comportamento.
Agora, também sempre haverá
artistas que estarão em suas
casas, com toda liberdade,
escondidos, não tendo nada a ver
com isso aí, elaborando a forma
revolucionária, o signo novo.
E, nos anteriores foi o deslumbramento poder conhecer
compositores de outras partes do Brasil. Veja, fiquei amigão do
Waldemar Henrique. Neste, porém, já começaram a aparecer as
posições divergentes. O Guilherme Bauer, por exemplo, e o Paulo
Affonso, fizeram críticas à atuação de Marlos Nobre à frente do
Instituto Nacional de Música. E a represália quem sofreu foi o
Festival de Santos. Bauer traria o conjunto Ars Contemporânea,
do Rio de Janeiro, sob o patrocínio da Funarte. Uma semana
antes do concerto, recebi um telegrama do Bauer cancelando o
concerto; no dia seguinte, um da Funarte também comunicando
o cancelamento. Só pode ser por causa das críticas de Bauer feitas
em Brasília à política do órgão.

Que medidas práticas para edição de partituras, catálogos e


gravações foram tomadas neste III Encontro?
Recebemos algumas visitas inesperadas. Apareceu lá um
editor da Ricordi, demonstrando um claro pavor do xerox (a gente
é obrigado a xerocar nossas partituras para execuções porque
não há como editá-las). Mas este pavor não era por nossa causa
não. Eles querem anular o xerox para continuar não editando
as produções. É preciso acabar com o xerox de outra maneira:
editando a preços baixos. Também produtores de discos, como o
Marcus Pereira, estiveram lá, e acabaram desapontando a gente.
Como ele começou bem, com aqueles discos de mapeamento
musical do Brasil, nós o vimos cheio de ideias e projetos que,
no fundo, infelizmente, são os mesmos de qualquer gravadora
comercial. No fundo, ele quer editar a obra do Nazareth, mú-
sica de massa. Quer lançar Chopin, chorinho, estas coisas que
vendem muito. E nós ficamos sem saber o que ele foi realmente
fazer lá, já que nossa música não tem, msmo, possibilidade de
atingir um público amplo.

i
“Não me interessam mais
discussões estéticas”
[sem crédito]
GILBERTO MENDES

“Não me interessam mais


discussões estéticas”
[sem crédito]

Originalmente publicada no
Caderno de música, n. 4, em
janeiro/fevereiro de 1981.

Depois de você ter passado um ano lecionando música na Uni-


versity of Wisconsin-Milwaukee, gostaríamos que fizesse um
paralelo entre o ensino musical nos Estados Unidos e no Brasil.
O ensino musical nos EUA é o mais profissional possível.
Eles ensinam mesmo a tocar piano, trombone, violino ou cantar.
Não perdem o menor tempo. Os alunos reclamam do professor
que não dá matéria, que relaxa. Isso se explica. A vida america-
na é baseada em uma cruel, impiedosa competição. Você tem
que vencer mesmo seu adversário, em um concurso, em uma
prova. Tudo lá é competição. Por exemplo, no começo do ano
letivo, os professores anunciam as vantagens e as virtudes de
seus cursos, em comunicações coladas nos corredores. Se ele
não conseguir alunos, olho da rua, caso seu contrato esteja no
fim. As universidades competem umas com as outras. Também

70
ENCONTROS

fazem propaganda, anunciam suas vantagens. Por tudo isso, o


ensino é basicamente tradicional. A composição e a execução
musicais são ensinadas de acordo com concepções tradicionais,
os núcleos experimentais, de vanguarda, constituem coisa de
luxo, uma extravagância permitida para dar um certo charme,
porque eles sabem que isso não vende...

E o ensino no Brasil?
Acho que o ensino no Brasil vai como vai o Brasil. Há uma
generalizada falta de motivação. Então, o professor pode relaxar,
o aluno quer relaxar. Não há metas, funções nobres pela frente.
Uma estrutura mental se decompõe. Falta uma nova ideologia,
com base no homem, no esforço coletivo. Mas chegará o dia,
está pintando, sob muitos aspectos.

Em relação à função da música na sociedade, como você com-


para os EUA e o Brasil?
A função de tudo nos EUA é vender. A música é algo que
deve ser consumido. Então, para comercializá-la, há verdadeiras
grandes empresas, como são as sociedades mantenedoras das
orquestras de Chicago, Nova York, Boston. As agências de empre-
sários, as gravadoras, as editoras, tudo tem que vender, vender...
Não vejo função nenhuma da música na sociedade brasileira. A
música popular, por ser popular, às vezes começa como que a
exercer isso que parece ser sua função, mas logo é absorvida pelo
sistema, seus compositores são transformados em ídolos. De um
modo geral, é mero entretenimento, ópio do povo, como o futebol
e a televisão. Falta ainda à nossa música popular a grandeza, a
profundidade e a humanidade de certa música popular latino-
-americana. Há um tipo de pobreza que, pelo menos, leva uma
conscientização política, a uma solução do problema, vejam aí
a Nicarágua. A pior coisa do mundo é este pseudodesenvolvi-
mento em que vivemos aqui, o mito da tecnologia, a ilusão de

71
GILBERTO MENDES

progresso que a economia de mercado dá. Não há coisa mais


vazia, vulgar, deprimente, desumana do que o wellfare sueco,
norte-americano, belga. Eu já experimentei estas “civilizações” e
posso lhes garantir isso. No entanto, elas são modelos que nossos
economistas fingem ter pela frente como objetivo. Ainda bem que
jamais atingiremos esses estágios de “civilização”, por uma razão
lógica: o bem-estar dos países superdesenvolvidos depende do
mal-estar dos subdesenvolvidos. Logo... A grande reforma que
uma nova estrutura social deve propor é a reforma do homem,
não a econômica. Uma sociedade de igual distribuição de bens,
não de abundância.

Como foi sua formação musical?


Autodidática, basicamente, no que diz respeito a composição,
com períodos de trabalho junto a compositores como Cláudio
Santoro e, principalmente, Olivier Toni. Toni é realmente uma
pessoa a quem devo muito na minha vida, pelo menos três anos,
mais ou menos, de papos que deram um sentido profissional ao
meu trabalho em música. Minha iniciação musical foi no Conser-
vatório Musical de Santos, onde estudei harmonia com Savino de
Benedictis e piano com Antonieta Rudge. Também frequentei os
Ferienkurse fuer Neue Musik, de Darmstadt, duas vezes.

Você teve uma fase nacionalista? Como rompeu com ela? Como
você vê esse problema de linha estética?
Tive uma em obediência aos resultados de discussões em
torno do Manifesto Zhdanov. Mas durou pouco, porque não
tenho formação “de ouvido”, nacionalista. O que eu sempre
gostei, desde criança, foi mesmo de Chopin, Beethoven, depois
Schumann, Stravinsky, Bartok, Debussy, Não ouvi folclore, nem
ciranda, pois sempre morei em Santos, onde não tem folclore. A
grande influência que sofri mesmo foi a música de rádio e cine-
ma, a música norte-americana, desde o jazz, negro ou branco,

72
Duke Ellington ou Benny Goodman, até os musicais da Broadway
e de Hollywood, Fred Astaire, Bing Crosby, Dorothy Lamour, Alice
Faye, James Cagney, por isto eu curti muito a velha Chicago e
Nova York, quando estive nos EUA. O meu grande mito musical do
passado é Fred Astaire. A música de Jerome Kern, Richard Rodgers
(que vi pessoalmente, velhinho, em um musical em Nova York
em que trabalhou a Liv Ullman, do Bergman, foi uma emoção),
Gerswhin, Cole Porter, Irving Berlin... É interessante verificar
como essas canções norte-americanas saíram diretamente do
lied alemão. Se a gente mudar o tipo de acompanhamento sin-
copado para um acompanhamento à maneira do romantismo
musical, elas viram algo muito aproximado de Schumann, Hugo
Wolf, Richard Strauss, Brahms. Tive muitas fases, e agora não
sinto que rompi com nenhuma delas. Todas contribuíram com
componentes para a minha linguagem musical. Não tenho esse
problema de linha estética a que você se refere. Toda vez que me
perguntaram isso, eu respondo, ultimamente, e volto a repetir
agora, que não me interessam mais discussões estéticas. Como
diria Gramsci, quero me reformar como homem. Uma vez refeito
o homem, uma vez surgida uma nova vida de afetos, surgirá uma
nova estética. Homem novo, música nova. Como homem ainda
velho que sou, ainda burguês (mas pelo menos progressista),
continuo compondo para mim mesmo, pela “alegria da criação”,
para usar uma expressão de Shostakovitch. E na esperança de que
Manuel de Falia estivesse certo, quando tranquilizava Joaquin
Turina com estas palavras: “quien se divierte ejerciendo su oficio
tiene muchas probabilidades de divertir también a los demás...”.

Você atua em uma área identificada como erudita. Ela se opõe


à popular?
Sobre esta história de erudita e popular não dá para falar
assim rapidamente. Dá uma verdadeira tese de doutoramento.
Vejo as duas músicas como dois aspectos, às vezes contraditórios,
GILBERTO MENDES

às vezes complementares, de uma mesma coisa em processo


dialético, como tudo na vida. Do ponto de vista da comunicação,
a obra erudita cria o signo novo, em um campo de invenção li-
vre, de laboratório, a obra aberta, enquanto que a obra popular
manipula os signos que adquirem significado pelo uso em larga
escala, significado de massa, é a obra persuasiva. Esta é uma clas-
sificação do Umberto Eco e que me parece aceitável. Mas que dá o
começo de uma discussão que realmente não me interessa mais.
Se eu continuo fazendo a minha música dita erudita – impopular,
se preferem – é porque se trata de uma necessidade como que
fisiológica. Não posso segurar a coisa. E cuido dela não ter de
modo algum prioridade sobre o meu aperfeiçoamento como ho-
mem. Jamais colocar a condição do artista acima da condição do
homem. Ao contrário do “refugiado apátrida ex-soviético”, como
o pintor russo Victor Koubak se define, que finalmente exultou
de felicidade ao escrever “artista-pintor” no espaço reservado
à profissão, em seu documento de permanência na França,
ao contrário dele, eu gostaria de escrever no meu documento:
“homem, que também faz música, a serviço do povo”, em uma
nova estrutura social coletiva, em comunhão espiritual. É aqui
que eu vejo o novo, realmente. Ocorre-me também o episódio de
um outro artista soviético, o compositor Arvo Pyat, que também
emigrou para poder compor música dodecafônica! Será que es-
ses dois “artistas” não sabem realmente olhar para a frente? Ver
realmente onde está o novo? O novo pode surgir de estruturas
sociais novas.

Como você caracteriza sua linguagem musical hoje?


Hoje, como não poderia deixar de ser, a minha linguagem
musical é o estágio atual do meu desenvolvimento através de
todas essas fases que atravessei. Tenho uma tendência a integrar
toda a minha experiência, não a de despojá-la segundo crité-
rios do momento em que vivo. Às vezes, em uma obra em que

74
ENCONTROS

estou até experimentando algo de novo, pinta uma ideia, uma


estrutura musical de outra obra bem antiga, e ela se cola ao que
estou fazendo, sem o menor problema. Sinto que cada vez mais
caminho para uma maior simplicidade. Dentro de mim não se
opõem música erudita e música popular; fazer uma ou outra são
duas maneiras de se abordar uma mesma música.

Seria possível especificar alguns procedimentos técnicos usados


por você?
A respeito de procedimentos técnicos, já disse que integro
toda a minha experiência passada. Assim, quando minha música
assume um caráter tonal, utilizo a técnica tonal. Quando a música
trilha um caminho atonal, adoto um procedimento serial livre,
pessoal. Se o som se torna microtonal, “ruidoso”, já o tratamento
é mais plástico, uma “escultura” do som ou o “gesto” do som, no
teatro musical. Ora antidiscursivo, ora discursivamente, e por aí
afora. Naturalmente, acredito estar desenvolvendo uma técnica
pessoal de costurar e fazer fluir tudo isso, e é aí que poderá ser
reconhecida uma linguagem minha. Pesquiso e desenvolvo
mais uma técnica que uma estética. Como Debussy, acho que a
música não se faz com teorias. Agora, explicar minha técnica só
é possível em uma aula de composição.

75
D

Da Ars Nova até a Música Nova


Por João Marcos Coelho
GILBERTO MENDES

Da Ars Nova até a Música Nova


Por João Marcos Coelho

Originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, em
26 de novembro de 1981.

Não se pode pensar a música brasileira das duas últimas


décadas sem atribuir um papel decisivo ao santista Gilberto
Mendes. Este compositor excepcional de 59 anos não é só o res-
ponsável pela descontração na música chamada erudita, através
de inúmeras obras instigantes que partem do choque para se
comunicarem rapidamente com todo tipo de público (“Santos
Football Music”, “Opera aberta”, “Beba Coca-Cola”).
Aposentado da Caixa Econômica de Santos, onde sempre
morou, Gilberto leciona atualmente no Departamento de Música
da USP, na Faculdade de Música de Santos e publica regularmente
artigos sobre música no jornal Tribuna de Santos. Estudou piano
com Antonieta Rudge, em Santos, e depois composição com
Cláudio Santoro e Olivier Toni. Em 1962, frequentou junto com
Willy Corrêa de Oliveira, Damiano Cozzella, Rogério Duprat e Ju-

78
ENCONTROS

lio Medaglia os festivais de Darmstadt, dirigidos por Stockhausen,


então a sensação da vanguarda europeia – e com eles assinou
o célebre Manifesto Música Nova, em 1963. Por encomenda do
Teatro Municipal de São Paulo, Gilberto acaba de compor seu
primeiro “Concerto para piano e orquestra”, que será estreado
nos próximos dias 4 e 6 de dezembro, tendo por solista Caio
Pagano: “Esta obra tem uma relação grande com o esquema
tradicional do concerto de Liszt e Brahms. Estou trabalhando
agora, quase sempre, a partir de materiais inexpressivos. Neste
concerto, explorei todos os intervalos contidos no tritono, de um
lado; e, de outro, estabeleci um plano de doze alturas, o que não
deixa de constituir uma serialização, ainda que parcial”. Gilberto
provavelmente lecionará música experimental brasileira na
Universidade de Austin, no Texas, em 1982/83. Seu depoimento:
“O disco teve uma importância fundamental na minha
formação musical. Primeiramente, ouvido através do rádio, no
tempo em que eu não tinha dinheiro para comprar uma vitrola
e discos. Formei meu gosto musical ouvindo as programações
eruditas da Rádio Elétrica de Montevidéu, Rádio Municipal de
Buenos Aires, e depois o programa ‘Música de mestres’, da Rádio
Gazeta de São Paulo.”
“Isso lá pelos anos de 1940. E os intérpretes na moda, então,
eram Arthur Schnabel, Wilhelm Backhaus, Walter Gleseking,
Wilhelm Kempf, Edwin Fischer, entre os pianistas; Bruno Walter,
Toscanini, Ansermet, Mengelberg, Furtwangler e outros, entre os
maestros. Estes mestres me deram os modelos que ainda tenho
até hoje para avaliar uma boa interpretação.”
“Quando comprei uma vitrola, o primeiro disco foi o Concerto
para Piano e Orquestra n° 2, de Beethoven, tocado por Schnabel.
Três outras gravações, porém, foram marcantes para mim nesse
primeiro período possuidor de vitrola: os ‘Prelúdios’ de Chopin
tocados pelo Egon Petri, para mim o modelo insuperável até hoje;
o ‘Carnaval’, de Schumann, pelo Claudio Arrau; e os ‘Estudos’ de

79
O disco foi, e continua sendo de
certo modo, muito importante
para os meus estudos musicais,
que têm sido, em sua maior
parte, autodidatas. Nestas
circunstâncias, o disco com
partitura na mão previamente
estudada é um auxiliar precioso.
Mas confesso que prefiro a
audição ao vivo, o som acústico,
cada vez mais, ainda que o
intérprete seja um estudante. A
comunicação humana é maior.
ENCONTROS

Chopin pelo Alfred Cortot. Outra paixão minha, a seguir, foi Lily
Kraus tocando Bartok e Mozart, e o Gieseking tocando Debussy,
sobretudo a ‘Suite Bergamasque’.”
“Depois da Segunda Guerra Mundial, apareceu o LP e pela
primeira vez discos de música da Renascença e Idade Média.
E dois discos marcaram minha iniciação na música desses
períodos: Madrigais italianos, pelo Coral do Vassar College dos
Estados Unidos, verdadeira joia com músicas do período Ars
Nova e Renascença; e, cantando e tocando no alaúde músicas
renascentistas. Isto lá por 1952, 1953.”
“Mas esquecia de falar das gravações de Leopold Stokowsky,
como ‘Petruchka’ e ‘A sagração da primavera’, de Stravisky, e
‘Tarde de um fauno’, de Debussy, ainda nos anos de 1940. O ex-
traordinário filme da Disney, Fantasia, teve tudo isso. Todas essas
coisas foram muito importantes para mim. Lá por volta de 1955,
apareceram dois LPs com um panorama da música concreta, com
obras de Pierre Shaeffer, Pierre Henry, Michel Philippot e Artuys.
Estas músicas tiveram uma influência decisiva em meu gosto
abrindo os horizontes para um universo que eu já suspeitava
existir, mas que ainda não tinha ouvido nada.”
“De volta de uma viagem à Europa, em 1959, trago dois
discos com obras de Webern, Boulez, Nono, Stockhausen, que
trouxeram nova contribuição aos meus estudos (através dos
discos, com partitura na mão). Poderia falar de uma infinidade
de discos que, se comprei, foi pelo significado que tinham para
mim. Mas estes agora citados, que eu me lembre, foram aqueles
verdadeiramente marcantes. O disco foi, e continua sendo de
certo modo, muito importante para os meus estudos musicais,
que têm sido, em sua maior parte, autodidatas. Nestas circuns-
tâncias, o disco com partitura na mão previamente estudada é
um auxiliar precioso. Mas confesso que prefiro a audição ao vivo,
o som acústico, cada vez mais, ainda que o intérprete seja um
estudante. A comunicação humana é maior.”

81
Música Nova, um conflito
entre criação e público?
Coordenação do debate por Cremilda Medina
GILBERTO MENDES

Música Nova, um conflito


entre criação e público?
Coordenação do debate por Cremilda Medina

Originalmente publicado em
O Estado de S. Paulo,
em 27 de dezembro de 1981.

Sobre a mesa, um assunto: música contemporânea brasileira.


E para discutí-lo, os compositores Gilberto Mendes (professor
da USP e da Faculdade de Música de Santos, organizador do
Festival Música Nova); Jocy de Oliveira (pianista, conferencista
em universidades e colégios norte-americanos), José Antonio
de Almeida Prado (pianista, professor de composição na Uni-
camp), Roberto Schnorrenberg (maestro, professor de música),
H.J. Koellreutter (professor de composição e teoria na Academia
Paulista de Música); os intérpretes John Boudler (da Sinfônica
Estadual, professor da Unesp e integrante do Grupo Percussão
Agora) e Airton Pinto (violinista, spala da Sinfônica Estadual,
professor na Unesp); os críticos de música do estado, Léa Vino-
cour Freitag e Zuza Homem de Melo. Para eles e o público em
geral, a grande pergunta:
“Por que a defasagem entre a criação contemporânea e o ouvinte?
Como vencer o abismo?

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ENCONTROS

Qual o seu conceito de música contemporânea e quais as prin-


cipais tendências existentes hoje no Brasil?
[Gilberto Mendes] Música contemporânea, no caso, é erudita.

Então já é uma conceituação: música contemporânea erudita.


Então há uma divisão nítida entre música erudita e música
popular?
[Gilberto Mendes] Há. E é nítida. Não tanto do ponto de vista
estético, mas no de comunicação de massa. Na música popular,
os astros são feitos sob medida para atenderem a exigências do
público. Por isso já condiciona a arte popular à música popular.
Já a música erudita é uma faixa aberta, em que a gente compõe
construindo, assim, estruturas livremente, sem a preocupação
de chegar a um resultado acessível ou compreensível ao grande
público. Isso é que estabelece a grande divisão entre as duas.

Haveria alguma faixa de criação híbrida que ligasse as duas?


[Gilberto Mendes] Há sim. Na medida em que uma música
popular, por exemplo, do Caetano Veloso e do Gilberto Gil, se
torna mais complexa, mais inventiva, ela começa a entrar na
outra área, razão porque, inclusive, os seus discos começam
a ser eruditos. Os Beatles foram também muito inventivos. Há
uma música deles, se não me engano, “Number nine”, que está
sozinha em um disco com outras bem fáceis e assimiláveis. Se o
LP inteiro fosse de peças como “Number nine”, teria encalhado
nas prateleiras.

Egberto Gismonti, como seria qualificado dentro desse racio-


cínio?
[Gilberto Mendes] Exatamente nessa faixa, se aproximando um
pouco do erudito. Eu não acompanho muito música popular, não
sei se ele é dos que tendem bastante ou pouco. Mas, na medida
em que ele se tornar difícil, complicado, ele venderá menos. Na

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GILBERTO MENDES

faixa popular, para se fazer algo simples, acessível, que atenda


ao grande público, basta um tipo de arte fácil. Por natureza,
elementar e tecnicamente primária.

Então, voltando à música contemporânea erudita...


[Gilberto Mendes] A música erudita contemporânea, na medida
em que é realmente livre e criativa, procura construir um signo
novo. Atua num campo de vanguarda em que realmente se afasta
do grande auditório. A diferença está nesse ponto: para se fazer
música popular, realmente não é necessário um domínio muito
grande do metiê musical. Já para a outra é preciso um conheci-
mento muito grande de música.
[Jocy de Oliveira] É difícil definir música contemporânea. No
entanto, para mim, música contemporânea é a que está sendo
escrita hoje, quer dizer, que reflete o mundo em que vivemos.
Então, naturalmente, ela é reflexo do passado e é projeção do
futuro. Se chegamos a esse ponto de dizer que não é aceita pelo
público, como diz o Gilberto, é porque talvez ela esteja trazendo
um elemento novo. Sendo nova, precisa então de um certo tempo
para ser amadurecida e ser assimilada pelo público. Eu acho que
aí é um problema também de acesso maior a esse público. Se o
público ouvisse mais, não haveria esse abismo entre criador e
ouvinte. Na música popular, no rock progressivo, há peças que
são supercomplexas e exigem do compositor um domínio musi-
cal muito grande. Além disso, usam tecnologia sofisticada, muito
mais do que nós, porque eles têm acesso a tudo isso. No entanto,
eles têm acesso à nossa música. Não vendem tanto quanto um
Roberto Carlos. Mas em relação a nós vendem muito bem. A
gente no máximo vende 200 discos, eles 20 mil. Então já é um
acesso. Já não estão na “torre de marfim”. Nós é que continuamos
na “torre de marfim”, porque não temos organizações, espaços,
meios para atingirmos o público.

86
A música erudita
contemporânea, na medida em
que é realmente livre e criativa,
procura construir um signo
novo. Atua num campo de
vanguarda em que realmente
se afasta do grande auditório.
A diferença está nesse ponto:
para se fazer música popular,
realmente não é necessário
um domínio muito grande do
metiê musical. Já para a outra
é preciso um conhecimento
muito grande de música.
GILBERTO MENDES

[Almeida Prado] Gilberto Mendes e Jocy de Oliveira são pessoas


que admiro muito pelo trabalho corajoso, solitário e, às vezes,
incompreendido que fazem há anos. Há um fato curioso, de que
já falei várias vezes: houve, na minha formação musical, um
período que eu chamo de “guarneriano”, quando fui aluno de
Camargo Guarnieri, em que eu via as coisas naquela ótica do Má-
rio de Andrade visto por Guarnieri. Meu encontro com Gilberto
Mendes, em Santos, mareou uma ruptura na minha formação,
na minha estética, porque pela primeira vez ouvi Stockhausen,
Boulez, Messiaen, Penderecki, música eletrônica, a própria
música do Gilberto, que era um negócio novo para mim. Então
o Gilberto é uma espécie de divisor de águas na minha formação.
Isso é um detalhe pitoresco que gostaria de destacar. Realmente
me pergunto: a gente compõe usando um signo novo para um
público que não está habituado a ele. Então começa o conflito.

Dá pra traduzir o significado desse signo novo?


[Almeida Prado] Seria o atonalismo, o seria1ismo, seriam os
ritmos novos, enfim, o não visto, o novo, o cromatismo excessivo,
o discurso não melódico, não fácil de repetir, de cantar, para a
maioria das pessoas. Então eu me pergunto: se a TV Globo ou
qualquer outra emissora contratasse um dos compositores con-
temporâneos “malditos” brasileiros, que são difíceis, para fazer
uma música para a novela “x”, será que essa música não seria
consumida? Pelo menos as pessoas a ouviriam segunda, terça,
quarta, quinta, sexta e sábado. Não seria essa uma porta para
que a música contemporânea passasse a ser consumida? Para
que vendesse disco e o público começasse a apreciar? Por que
não? Em uma dessas novelas, outro dia, um personagem disse
que estava lendo um livro de Marguerite Yourcenar, Memórias
de Adriano. No dia seguinte a edição quase se esgotou em todo
o Brasil. Suponha que a mulher dissesse: “Estou ouvindo a obra
de Jocy ou do Gilberto”. Será que o público não iria procurar os

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ENCONTROS

discos deles? Pergunto se não é falta de divulgação que bloqueia a


compreensão da música erudita brasileira. Em Guerra nas estrelas
há momentos de música eletro-acústica e os jovens adoram isso.
Quer dizer, é tão complexo quanto uma obra de Liguet, Pende-
recki, Messiaen. O problema é de divulgação.

Levantou-se a ideia da contemporaneidade de todas as épocas


dentro desse âmbito da música nova. Não haveria um conceito
estrito daquilo que está sendo escrito, mas um conceito de que
tudo o que se está fazendo não depende de época e de tempo?
[Schnorrenberg] Justamente o contrário. Enquanto há 30, 40
anos podia-se dizer que havia uma música de vanguarda – Luigi
Novo, John Cage –, com compositores se endereçando em um
caminho: música serial, concreta, aleatória, hoje não há direção
alguma. Há uma multiplicidade de tendências. Cada compositor
hoje é, praticamente, uma tendência diferente.
[Koellreutter] A situação musical no mundo todo se caracteriza
por um pluralismo de tendências. Esse pluralismo também se
caracteriza pela ausência de grandes compositores no sentido de
um Beethoven, por exemplo – para mim o último desses compo-
sitores foi Stravinsky. Hoje são mais escolas, grupos. A intenção
é uma tendência experimentalista, vamos dizer, em toda parte.
Diante desse fato, eu acho que não se deve falar em tendências,
mas em outras categorias: a música lúdica, quer dizer, arte-jogo
de um lado; a música aplicada, não no sentido norte-americano,
mas a música aplicada ao cinema, à terapia, ao teatro, à educação,
quer dizer, a música a serviço de uma atividade extramúsica: e,
finalmente, a música experimental. E aqui, de fato, entram os
compositores de música popular tanto quanto os da chamada
música erudita. O problema, a meu ver, é, de fato, a comunica-
bilidade da música. Quer dizer, escrever ou criar, inventar uma
linguagem musical a comunicar-se com o público, que não está
habituado a ouvir todos os musicais ou linguagens musicais

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GILBERTO MENDES

que estão sendo criadas entre nós. Mas, como observou Roberto
Schnorremberg, seria bom discutir quem é esse público que vai
aos concertos. O que ele procura? Por que o grande público quer
ouvir determinados tipos de música? Esse também é um proble-
ma. O outro só diz respeito a nós: é o de criar a linguagem mais
ou menos acessível ao público. Assunto igualmente importante
é determinar o valor da obra de arte. Ver em que consiste real-
mente esse valor, o que é uma obra boa e o que é uma obra ruim,
por exemplo. O pluralismo estético, entre nós, tornou-se muito
evidente nas ideias aqui emitidas. Quer dizer, cada um defende
mais ou menos uma estética pessoal e diferente dos outros. O
problema que acabo de acentuar não é, a meu ver, um problema
musical, mas um problema mais abrangente. Nós vivemos em
um mundo de integração. Integração quer dizer aqui que as
ideias se tornem realmente integráveis ao todo. Isso parte do
problema da imagem do mundo em geral. Para mim essa é uma
das grandes questões da atualidade: é justamente a realidade
que se apresenta nas ciências, por exemplo, depois da Segunda
Guerra Mundial, exige de nós uma modificação completa do
modo de pensar e também de sentir. Não é só na música, mas
em todos os campos das nossas atividades.
[John Boudler] De minha parte, sou obrigado a falar de um
ramo em que me aprofundei – a percussão. Minhas atividades
na orquestra incluem algumas obras de música contemporânea,
mas são de modo que realmente não posso sentir muito, porque
são peças encomendadas pelas Secretarias e órgãos públicos
por várias razões. A mais pura delas, justamente para ajudar a
causa da música contemporânea e, as menos puras, talvez, para
movimentar a ambição das direções das nossas orquestras. Na
universidade, a situação, a meu ver, é muito mais triste. Sou
norte-americano, radicado no Brasil há quatro anos. Nos Esta-
dos Unidos, a universidade realmente é o lugar onde a música
contemporânea respira um clima um pouco mais saudável. Pelo

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ENCONTROS

menos os professores e alunos podem reunir-se, tentar apresen-


tar obras, encomendar outras. Isso quer dizer que há uma certa
licença e um certo potencial. A universidade apoia e permite
ao professor e ao aluno um tempo para fazer experimentos,
ensaios, sugerir colaborações. Na minha opinião, a universidade
brasileira precisa de uma vocação que não só a pesquisa escrita.
Eu não sou compositor, sou professor e explico as minhas téc-
nicas, minha formação. Também sou instrumentista. Mas sou
obrigado a fazer pesquisas sobre tópicos que às vezes não têm
nada a ver com o meu trabalho e, ainda por cima, escrever isso
para continuar empregado na universidade, o que realmente me
aborrece muito. Minha participação no Grupo Percussão Agora é,
então, o único meio que tenho realmente para tentar movimentar
algo no campo da música contemporânea. Não trabalhamos
com qualquer verba oficial Mas, com muita sorte e trabalho, já
conseguimos umas duas excursões para o exterior, tendo outra
prevista para breve, sempre tentando apresentar obras novas,
fazendo contatos com compositores – os únicos que realmente
apoiam o grupo, inclusive escrevendo obras especialmente para
ele. Ainda sobre a universidade, eu acho que essa licença para
o artista experimentar, praticar, crescer, é indispensável. É claro
que tem de haver tempo e estímulo para a pesquisa, para escrever
e tal. Mas os concertos também são tão importantes quanto as
pesquisas. As tendências da música contemporânea são expostas
justamente nesses concertos, nesses encontros que devem ser
fomentados pela universidade.

Para você que veio dos EUA, como se situa essa multiplicidade
de tendências musicais no Brasil de hoje?
[John Boudler] Todas essas tendências que tento realizar como
instrumentista, os festivais – tudo isso não me importa. Desculpe.
Eu sou um instrumentista e gosto de música contemporânea. Eu
trabalho muito nessa área com o objetivo de executar o máximo

91
GILBERTO MENDES

de peças possível, no sentido de divulgar. Eu me coloco como


transmissor de ideias. Há o compositor, o público e eu estou no
meio. É minha tarefa transmitir realmente o que o compositor
escreveu e não como o público quer. O Grupo Percussão Agora já
apresentou mais de 80 obras inéditas. Mas é óbvio que também
pensamos em marketing quando planejamos uma apresentação.
Então organizamos os programas em uma ordem crescente
em matéria de dificuldade das obras. O curioso é que algumas
pessoas ainda se referem ao grupo lembrando que, em 1978, no
Festival de Inverno de Campos do Jordão, fizemos um arranjo do
“Brasileirinho”, um choro, uma brincadeira. Nos EUA, os grupos
de música contemporânea, como o Nexus, sempre incluem em
seus concertos obras assim. O que se tenta é atrair as pessoas
para um espetáculo mais profundo. Nos quatro anos de minha
colaboração com o grupo, o público realmente sempre nos
prestigiou. Significa que construímos algo.
[Léa V. Freitag] Eu não concordo, inicialmente, com a modéstia
dos depoimentos dos participantes, porque, na qualidade de
crítica musical, eu compareci a muitos eventos em que essas
personalidades tomaram parte, ou como executantes, ou como
autores e senti uma receptividade muito grande de todas as
camadas, inclusive dos jovens. Seus nomes são consagrados,
têm público, têm um trabalho constante e respeitado. Então não
consigo ver muita diferença entre as dificuldades, assim, desses
trabalhos e o de outros músicos brasileiros. Gilberto Mendes, por
exemplo, atingiu grande popularidade com o seu “Beba Coca-
-Cola” e “Santos Futebol Music”. Todo mundo conhece e respeita
Gilberto Mendes na sua tendência irônica, em certas obras, na
sua constância dos festivais em Santos.
[John Boudler] Desculpe. Eu concordo plenamente. Mas vá a
um concerto do Festival de Música Nova em Santos: está vazio.
[Léa V. Freitag] Eu posso dar exemplos de concertos com salas
lotadas.

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ENCONTROS

[Gilberto Mendes] Não é verdade. Não está vazio.


[John Boudler] Mas você há de concordar que pela importância
do evento poderia reunir muito mais gente.
[Gilberto Mendes] Demos dois espetáculos com 80 por cento da
casa cheia. Está melhorando.

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“O meu ideal era ser compositor
de um Brasil socialista”
Por Eugênio Rondini Trivinho, Gil Nuno Vaz, Maria
de Lourdes Brandão Ribas e Mário Sérgio Soares
GILBERTO MENDES

“O meu ideal era ser compositor


de um Brasil socialista”
Por Eugênio Rondini Trivinho, Gil Nuno Vaz, Maria de Lourdes Brandão Ribas
e Mário Sérgio Soares

Originalmente publicado no
jornal Enfoco, no
outono de 1984.

Como se deu sua formação intelectual? O que despertou em


você seguir uma filosofia humanística?
Eu sempre tive interesse humanístico, interesse pela pro-
blemática social. Começou isso durante a guerra, que eu ouvia
pelo rádio, a batalha de Stalingrado, batalha chave da guerra. Pra
quem mais ou menos pegou os reflexos daquilo, após os anos
1945, 1946, 1947 houve um grande movimento no Brasil, pouca
gente lembra, pouca gente viveu. Eu vivi isso aí. 1946, 1947, 1948
o Brasil foi uma democracia liberal capitalista, uma chance que
não é dada hoje em dia. Todos os partidos atuantes, inclusive o
Partido Comunista Brasileiro tinha um senador da República,
que era o Luis Carlos Prestes, e todos os outros. Era realmente
um outro clima que permitia à gente se formar melhor nesse
sentido humanista.

96
ENCONTROS

Como se deu sua formação musical? Quais os músicos que te


influenciaram?
Olha, comecei a música tarde. Eu não sabia o que pretendia
nos meus 15, 16, 17 anos. Cheguei a ir para São Paulo estudar
direito, aí desisti e, ao voltar para sentes, com 18 anos, comecei
a estudar música. Estávamos no meio da 2ª Guerra Mundial e
não havia perspectiva nenhuma para os músicos. Se hoje em
dia não há, imagine naquela época. Então fatalmente eu tinha
que trabalhar em uma outra coisa. Além do mais eu estava
começando a estudar música; até eu ter um conhecimento que
me permitisse viver da música ia levar muitos anos. Aí fui ser
bancário, funcionário público, e fui levando essas profissões a
vida inteira, mesmo quando comecei a me entrosar realmente
com a música. Mas aí a vida continuava ruim, né, e como estava
bem empregado nas minhas coisas, fui levando sempre a música
como atividade paralela.
Minha formação foi basicamente como todo mundo que
tinha interesse pela música contemporânea. Contemporânea,
naqueles tempos, era outra. Debussy, Stravinsky, Schoenberg.
Eu estudei no Conservatório Musical de Santos, que hoje está
integrado ao Colégio Carmo, e por isso meio desaparecido, um
conservatório que vinha dos anos de 1920 e era muito bom. Um
dos professores daqui, meio transitoriamente mas, enfim, deu
umas aulinhas, foi o Mário de Andrade. A diretora era a Antonieta
Rudge, que foi uma das três maiores pianistas que o Brasil já teve:
eram ela, Guiomar Novaes e Magda Tagliaferro. O professor de
harmonia era Savino de Benedictis que tinha sido professor do
Mário de Andrade. Era um conservatório que dava uma boa base
pelo menos nessa parte inicial, acadêmica, da música. Agora,
para continuar essa parte, assim, contemporânea,você tem
que caminhar sozinho. Naquele tempo não tinha faculdade de
música, não tinha maiores ensinos, então era uma fatalidade o
compositor ser um autodidata, a não ser que ele morasse perto

97
GILBERTO MENDES

de um outro compositor. Eu morava em Santos e aqui não tinha


nenhum; eu tinha que ir a São Paulo. Então você estava muito
sozinho nessa parte de composição naturalmente os compo-
sitores que me influenciaram foram aqueles que eu estudava
sozinho ao piano: Debussy, Béla Bártok, Stravinsky e um pouco
de atonalismo. Não havia material a respeito de atonalismo
naquela época. A gente pegava mais por tabela, em livro que
dava uma ilustração...

Você teve problemas com a censura? O festival foi interrompido


algum ano?
Foi interrompido no começo, mas não por problemas de
censura. Todas as coisas no Brasil são assim. Por exemplo: tem
o primeiro corre tudo bem, depois tem o segundo porque houve
o primeiro, depois o terceiro, com muita dificuldade, e acaba. É
uma praxe bem brasileira essa aí. Foi o que aconteceu conosco.
Começou em 1962, 1963, e 1964. Em 1965, 1966, 1967 foi in-
terrompido. Em 1968 recomeçou, porque foi para a Secretaria
o Evêncio, que é jornalista. Ele me chamou: "Vamos fazer um
festival de música contemporânea". Eu fui lá e fiz. Tanto que o
festival com o nome de "Música Nova" nem sempre teve. Pra nós
músicos, que organizamos através da Sociedade Ars Viva, seria
sempre Festival de Música Nova. Mas, às vezes, o Festival teve
que ter outros nomes. Esse ano, por exemplo, chamou-se Festival
de Música de Vanguarda. Foi um ótimo festival, retornamos com
grande força. Em 1969 já não tínhamos novamente o apoio da
Prefeitura, mas tivemos do Governo Estadual, conseguido por
Klaus Dieter Wolf. Em 1970 estava de novo para morrer porque
veio a interventoria militar, mas dona Jurema me chamou para
fazer um festival de música. Chamou-se "Festival da Primavera",
porque tinha de ser, né, naquela época... para entrar novamente
de mansinho. Mas foi rigorosamente um festival de música
contemporânea. Em 1971 ela me chama outra vez e aí valeu

98
ENCONTROS

o nome de Música Nova, que funciona até hoje. Aliás, de 1968


pra cá não houve mais interrupção e se tornou, com todo, com
todo esse tempo, o festival mais velho da América Latina, talvez
até o mais velho da América toda, porque, que eu saiba, nem
os EUA tem um assim, sistematicamente sendo feito há tantos
anos. Na Europa sim, tem bem mais velhos: o de Donaveshigen,
Varsóvia, Darmstadt.

Como nasceu esse festival?


Esse festival nasceu exatamente para divulgar a música nova.
Esse nome Música Nova vem do seguinte: é um nome que vem
sendo usado internacionaimente para designar um tipo de músi-
ca que buscava uma nova linguagem, uma linguagem experimen-
tal, mais estrutural. Isso está multo ligado à música alemã. Na
Alemanha, aliás, tinha um nome, "Neue Musik", nós traduzimos
isso para Música Nova. Os americanos também usavam, natural-
mente por influência alemã, "New Music" . Essa linha assim mais
preocupada com a estrutura vem de Schoenberg, passou para o
Webern e houve um desenvolvimento que alguns compositores,
centralizados na Alemanha, levaram para o mundo inteiro. A
gente nessa época, sofria multa influência. Estudava-se muito
a partitura desses compositores. Fomos à Europa algumas vezes
e, quando lançamos o festival, foi exatamente para introduzir, no
Brasil, uma corrente de música dentro dessa linha. Fizemos um
Manifesto de Música Nova, e éramos nessa altura muito ligados
aos poetas chamados concretos, Haroldo e Augusto de Campos,
Décio Pignatari e, por sinal, graças a eles, tivemos um alargamento
do nosso conhecimento. Porque o músico foi sempre o menos
intelectualizado dos artistas, pelo próprio fato de dedicar muito
tempo ao estudo tanto técnico quanto instrumental.
O papo com músico naquela época de 1955, 1956, 1957
era muito ruim, era gente sem maiores lances de pensamento.
Então, eu e minha turminha de São Paulo a gente se ligava mais

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GILBERTO MENDES

no pessoal de outras áreas, procurávamos amizades com poetas,


arquitetos, gente que estava por dentro de uma série de coisas,
iam à Europa, liam revistas e artigos paralelos, realmente nos
ajudavam. Eu já tinha ido à Europa em 1959 e também trouxe
multo material nesse sentido. Uma coisa reforçou muito a ou-
tra. Então nasceu esse festival cuja finalidade era basicamente
mostrar esse tipo de música. Mas a coisa foi indo e mudando, e o
que era música nova naquela época, para gente, foi sendo outra
no passar dos tempos.

Como se deu a mudança na sua visão estética a partir do Ma-


nifesto Música Nova até hoje?
É a vida. Muita coisa aconteceu depois de 22 anos. Em 22
anos você vai viajando, experimentando coisas, vendo, vai
mudando de ideia. É natural, né? Tem gente que para. Para com
certa ideia e fica dono dela para o resto da vida, não muda. Mas
não é o meu caso.

Qual, dentre as várias linhas da filosofia humanista, você segue?


Não é nada mais nada menos do que o socialismo. Uma coisa
velha que vem de Cristo. Cristo pregou o socialismo. Nunca leu a
Bíblia? O socialismo, eu vejo como algo que só foi possível dentro
do que aconteceu no mundo ocidental. Não aconteceu na Índia,
na Japão, aconteceu no mundo ocidental, como coroamento do
pensamento cristão. Tem um frase do Murilo Mendes que diz: "O
comunismo é revolucionário frente ao capitalismo e conservador
frente ao cristianismo”.

A política tem alguma influência na música de vanguarda?


A música dita de vanguarda é uma música dentro da qual está
a música nova. Música nova seria música de vanguarda, que visa
exatamente um tipo de música inventiva, experimental, busca
de novas estruturas. E um compositor que faz isso pode perfei-

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Eu sigo nada mais nada menos
do que o socialismo. Uma coisa
velha que vem de Cristo. Cristo
pregou o socialismo. Nunca leu
a Bíblia? O socialismo, eu vejo
como algo que só foi possível
dentro do que aconteceu no
mundo ocidental. Não aconteceu
na Índia, na Japão, aconteceu
no mundo ocidental, como
coroamento do pensamento
cristão. Tem um frase do Murilo
Mendes que diz: “O comunismo
é revolucionário frente ao
capitalismo e conservador frente
ao cristianismo”.
GILBERTO MENDES

tamente ser um cara altamente interessado em política, como


acontece na Itália. Tem o Luigi Nono, por exemplo, do Partido
Comunista Italiano, que faz música assim. O Lucca Lombardi,
que está aqui, faz música politicamente engajada. Mas eu já ouvi
música dele tocada aqui e partituras que tem me mandado. É
uma música politicamente engajada mas só do ponto de vista do
texto. Do ponto de vista musical é música de vanguarda.
Então vocês irão encontrar compositores de vanguarda se
dizendo socialistas, comunistas. Inclusive nos EUA corrente
há uma corrente lá chamada “Repetitivo-minimalista", em que
muitos dos compositores se dizem, não propriamente socialis-
tas, comunistas por que lá o negócio é muito complicado, mas,
pelo menos são anarquistas, são não conformistas, não topam
a organização social dos EUA. O próprio compositor John Cage,
que é a figura mais importante da música norte-americana, tem
uma posição não conformista frente à política do país dele. Nada
impede de você fazer uma música com estruturas novas e ser
socialista, comunista.

A música de vanguarda não é muito aceita pelas pessoas em


geral, inclusive pelas pessoas que estudam música clássica.
Por quê?
Há um distanciamento muito grande, mas não só do músico
como do artista contemporâneo, que se colocou em decorrência
da posição dele, muito individualista no campo da arte. Fica
preocupado em fazer um negócio muito para ele próprio, para o
grupo dele, e desenvolve um sistema dentro do qual ele elabora
uma linguagem que também é muito dele. Então, quem vai gostar
daquilo e sentir é o amigo mais próximo, que está acostumado
com isso, e depois do amigo dele um grupinho mais próximo.
Esse tipo de arte, muito particular, muito individual, em cima
de uma estética muito privada, não tem chance nenhuma de
alcançar o grande público. Por esse lado, você já pode constatar

102
ENCONTROS

esse tipo de cotradição. Um autor desses pode até fazer parte de


um partido comunista e fazer esse tipo de arte. Ele como artista
não está percebendo que está tomando uma posição que se opõe
à participação política que ele tem. Está fazendo uma música
que não interessa de maneira nenhuma à esquerda. A gente vê
e sente, hoje em dia, mais de perto esse problema. Essa música
até indiretamente serve os interesses da burguesia. Serve por
ser uma coisa muito individualista e é mau fazer uma arte, por
melhor que seja, que reflita esse individualismo. Também por
ser assim muito difícil, muito alienada de tudo, não perturba
ninguém, deixa tudo como está, tudo direitinho. Esses seriam
os aspectos negativos. Não entra em discussão dizer se a obra é
boa ou ruim. Pode até ser uma obra genial.

Como se opera em seu trabalho a união entre o erudito e uma


proposta popular? Há choque entre essas tendências?
Não há choque, porque eu não vivo esse choque. Eu sou
basicamente um compositor, em que pese o nome erudito.
Tudo isso que venho falando vem de uma formação acadêmica,
acadêmica não só no mau sentido, mas no sentido de academia,
fazer exercícios de harmonia, de contraponto. Quando eu me
ligo aos concretos fica mais erudito ainda. É o erudito ligado
à criação livre, a formas novas, mas sempre erudito. Eu nunca
trabalhei no campo popular, nunca fui um compositor popular.
Tenho sido eventualmente; já fiz música para teatro, que poderia
ser popular, pode ser arranjada popularmente, mas não é bem
assim, também. Conforme a música que você faz, ela fica meio
no limite entre uma coisa e outra. Mas eu não fiz em quantidade
que pudesse dizer: “Estou ou para cá ou para lá". Eu sou basi-
camente erudito. Erudito no sentido que lido com essas formas
que o grosso do povo não toma conhecimento. Quando eu me
liguei à turma de vanguarda, mais ainda eu fiquei, por que aí
entrei com um interesse realmente de pesquisas profundamente

103
GILBERTO MENDES

particulares, individualistas, de invenções, coisas muito da gente.


Já é mais erudito ainda, mais elitista, mais fechado.

Uma proposta artística com essa metodologia que você segue,


de ser fechado, trancado, em sua opinião é válida socialmente?
Mais recentemente a gente vem sentindo a contradição da
coisa. Há uma contradição aí. Vamos ver qual é. Bom, a contradi-
ção é uma coisa da vida. A gente vive só contradições, mas pode
estar dentro de uma certa coerência. Eu tenho vivido muitas con-
tradições, mas sempre com uma coerência de que eu quero uma
mesma coisa. Eu sempre quis um outro tipo de sociedade. Então,
num dado momento, nem me tocava no que eu fazia. Estava es-
tudando sozinho, gostava de Debussy, Stravinsky essa gente toda,
mas, politicamente, por exemplo, eu acompanhava todo esse tipo
movimento político com interesse definido. Quando eu me eu me
ligo aos concretos, eu me ligo com aquela música de vanguarda,
porém, pode ver pelos próprios manifestos, tem muita inocên-
cia, muito equívoco. Usamos até a frase do Maiakovsky: "Não
há arte revolucionária sem forma revolucionária". Aí você vê o
tom da coisa. Se fosse outro o tom da coisa eu não participaria.
Se os poetas concretos fossem fascistas, ou neutros. Não eram
neutros. Eram até participantes por esse lado. Mas, aos poucos,
a gente dá para perceber que certo tipo de participação não é
bem participação, pode até funcionar contra... Então, naquela
época a gente achava, eu e meus companheiros, que a gente
estava fazendo uma música nova, buscando novas estruturas,
mas coerente nos nossos interesses por uma sociedade melhor.

Em virtude da uma formação filosófica, se você quer uma


transformação social você faz uma arte voltada para essa trans-
formação. Então, há uma contradição.
É o que eu te falei. Toda a vida da gente é uma contradição em
cima da outra. Há momentos em que você está absolutamente

104
ENCONTROS

consciente de não estar em contradição nenhuma, mas está! Isso


é natural! Eu tenho é que estar bem intencionado na coisa, né?
Mal pra aquele momento, por exemplo, a gente achava que não
só estava fazendo uma arte de vanguarda como também uma
arte politicamente positiva. E estava! Desde que você tá pensando
assim, tá! Só que ela tem um pequeno alcance, ou um alcance
quase nulo. Mas já é alguma coisa.
Por que num certo momento a gente fica pensando assim:
"Quem sabe no futuro vai mudar, vão entender isso aqui". Precisa
ver o alcance do que a gente faz. Por exemplo, você pode fazer
uma música, um tipo de arte como fizeram os poetas concretos, e
nós andamos fazendo. Realmente ela tinha, do ponto de vista do
público, um pequeno alcance. Mas como nosso grupo se impôs
na época e teve uma certa força de opinião, principalmente so-
bre universitários alcançou pessoas que depois iam levar aquilo
adiante, compreende? Então pegou, não em termos de massa,
mas em termos de pessoa pra pessoa, professores, alguém numa
Secretária de Cultura, qualquer coisa assim, pessoas que podiam
atuar positivamente. Sempre melhor isso do que o contrário.
Alguns anos depois você pode sentir de repente, vivendo mais,
vendo mais coisas, que aquilo não está mais dando pé, aí você
muda. É mais ou menos o que está acontecendo com algumas
pessoas hoje em dia. Mas isso, de resto, também não é novida-
de. Isso vem lendo debatido desde os anos de 1920. O Mário de
Andrade, no ensaio dele sobre música brasileira, já praticamente
coloca essa questão. Nos anos de 1940 ele escreveu um artigo
respondendo a uma pergunta que fizeram a ele, sobre quem era
o maior compositor, e ele delineou o maior compositor como
sendo um chinês que compunha músicas bem elementares,
bem simples, mas que falava dos problemas da China nos anos
de 1930, e a música dele ficou popularíssima lá. Não é o Stra-
vinsky, nada disso. Mas de vez em quando você acha que não
é bem assim.

105
GILBERTO MENDES

Você considera que um intelectual, um músico, adepto de uma


filosofia que pretende uma transformação social tenha que ter
sua produção voltada para essa transformação?
Tem que ter não é bem o caso. Pode ter, né. A música tem
que ser um fruto do que a gente é. Eu prefiro dar exemplos. Eu
posso dar exemplos das coisas que acontecem comigo. O que
eu acho é o seguinte: por exemplo, eu participei durante anos
de várias coisas de vanguarda e fiz muita música. E mesmo a
música de vanguarda que eu fiz e que continuo fazendo nunca
me aborreceu. Fiz música no campo experimental, mas muitas
delas alcançaram grandemente o público. Tiveram receptivi-
dade com o texto, por exemplo o "Beba Coca-Cola", que eu fiz
para coro, é muito popular, e o próprio texto é violentamente
contra a Coca-Cola, contra o imperialismo, contra o capital
estrangeiro, colonizador, embora não pareça, e infelizmente
ela quase funciona como publicidade, ninguém presta atenção
no texto, só ouve o "Beba Coca-Cola”. Então eu fiz uma série de
músicas que não me incomodam. Agora, acontece o seguinte:
no último festival que eu fui Áustria, apresentaram as "Músicas
politicamente engajadas", músicas dentro de um sistema mais
simples, algumas até tonais, isso dentro de um tipo de mostra de
música que pendia, sempre pendeu, pra música de vanguarda.
Eu notei que aquelas músicas escandalizaram os compositores
de vanguarda. Então eu senti uma coisa interessante: como é
relativo esse negócio de novo, de vanguarda! Como aqueles com-
positores, que já tinham criado uma estética nova, se sentiam
proprietários daquilo, melindravam e se atemorizavam com o
perigo de novas estéticas, novas linhas acabarem com o reinado
deles! Chamou muito a minha atenção isso aí. Isso mexe comigo.
Mas eu não estou achando nada, eu estou só falando que me
chamou a atenção... Eu não acho, a rigor, nada. Mesmo porque
eu já achei no passado, depois outros dados entraram em cena
e eu já achei diferente. Agora eu a achar daquele jeito, mais

106
ENCONTROS

enriquecido por outros acontecimentos. Eu não sei se daqui a 5


anos novos acontecimentos vão dar uma nova ótica ao mesmo
problema. Isso é muito complicado.

Se você sentir vontade de fazer uma música de vanguarda total-


mente erudita, desengajada e portanto sem compromisso com
a transformação social, você vai fazer?
É, eu vou fazer. Se eu tiver vontade eu faço. Eu não vou me
proibir de fazer por razões de que eu me sinta identificado
com essa transformação social. Eu prefiro que a coisa aconteça
assim, de uma vez, que eu não tenha mais vontade de fazer. Dá
pra entender? Proibição é muito complicado mesmo porque,
em essência, desde que eu diga que tudo que eu faço eu ponho
com amor a serviço de um mundo melhor, então nem que seja
abstrata, cerebral, seja tudo isso, ela não terá alcance, mas não
vai fazer mal a ninguém, pelo menos. Mas se eu sentir que de
repente fazendo isso vai engrossar uma opinião no público, um
negócio realmente reacionário, aí eu me censuro, eu não vou
fazer. Se eu sentir que a coisa não vai ter reflexo, como quem bebe
um copo de chope e não está fazendo mal a ninguém, tudo bem.
Agora, se eu sentir que vai servir aos imperialismos, aí eu paro.

Há pessoas que não gostam de música eletrônica. Nem consi-


deram isso música, dizem que é barulho, qualquer coisa menos
música. Você poderia dizer o que os compositores veem ou
sentem com esse tipo de música? O que eles querem transmitir
com isso? Esse equipamento eletroacústico é importante na
música de vanguarda?
É claro que é música, né. É uma música feita com outro
material, simplesmente. Ao invés de notas, dó-ré-mi-fá-sol, que
os instrumentos fazem, é feita com outros tipos de frequências,
alturas. Você conhece música com notas, intervalos de tom e
semitom. Em música eletrônica você divide 20, 30 vezes isso

107
GILBERTO MENDES

aí. O ouvido não percebe, mas dá efeitos de combinações de


timbres que nunca foram experimentados antes. O que acon-
teceu é que surgiu um novo material, como a invenção de um
novo instrumento. Só que, no caso, não é um instrumento, é um
gerador de sons de timbres novos, que se utiliza para uma lingua-
gem completamente nova, sem tradição, surgida nesse século.
Estamos na estaca zero de sua evolução. Evidentemente essa
música saiu de um campo de pesquisa, invenção de vanguarda,
que não vai agradar ao público de jeito nenhum. Sobretudo às
pessoas conservadoras, que acham que música é aquela coisa
de dó-ré-mi-fá-sol. Isso é natural. Agora, ela se incorpora, real-
mente, a toda essa experiência de vanguarda. O perigo dela é o
perigo político. Se já a música dentro desse campo das notas ela
pode se tornar completamente alienada, então com sons novos
assim a alienação vai ao extremo, uma música completamente
desinteressante para as massas. Mas não que o som eletrônico
em si seja. Bastaria dizer que a música popular usa isso de uma
maneira altamente comunicativa. Nada impede do próprio com-
positor erudito usar esses sons de uma maneira comunicativa.
É o que o compositor erudito dito de vanguarda curtiu muito
durante anos a sua posição realmente de elite aristocrática, de
curtir o fato de que ninguém gosta da música que eles fazem. Há
uma curtição nisso aí, da parte do compositor, de se sentir casta,
só ele e os amigos entendem aquilo, o resto é burro e não sabe.
Ficam muito satisfeitos da obra ser vaiada, que só cinco pessoas
presentes no auditório tenham mais ou menos percebido aquilo.
Eles não ficam aborrecidos, muito pelo contrário.

Qual sua opinião sobre música nacionalista? Fale a respeito da


relação entre o nacional e o universal na música.
É tão complicado, tem tantas teorias a respeito. O Mário de
Andrade dizia que "o universal se atinge através do nacional". Há
mesmo uma teoria que acha realmente que o grande universal se

108
ENCONTROS

atinge através do nacional. O grande romance russo, altamente


nacional, se tornou universal, e vai por aí afora. É um problema
muito complexo, eu nunca levei muito em consideração.

E nem tem posição a respeito disso?


Não tenho. Eu não sou nacionalista em termos de arte;
naquele sentido em que o nacionalismo implica em uma certa
coisa, assim de pátria, de grupo, mas no mau sentido da palavra,
né, numa nação no sentido capitalista. Nesse sentido eu sou in-
ternacionalista. Eu, por exemplo, não me considero em absoluto
brasileiro, eu me considero latino-americano, isso é muito mais
importante pra mim. Não tem sentido pátria brasileira, não tem
sentido nenhum. O que tem sentido para mim é essa América
Latina. Então é mais importante para mim fazer uma música que
reflita isso do que tenha ritmos do folclore brasileiro, mas pode
ter também. Você pode fazer música de vanguarda com base no
folclore, não se dizer nacionalista e no fundo até ser.

Quais são seus autores preferidos no contexto europeu ou


americano, eruditos e populares?
Eu volto a dizer que há uma contradição dentro de mim.
Eu tenho um ideal político, mas a formação do meu gosto é
profundamente burguesa. Os compositores que ainda gosto são
compositores de uma linha que vocês poderiam dizer que está
em contradição com aquilo que eu venho falando. Eu gosto do
Luciano Berio, as primeiras obras do Stockhausen, Boulez, as
primeiras obras do John Cage, no campo internacional. Eu gosto
muito da música popular brasileira, norte-americana, inglesa,
e os autores são aqueles que todo mundo gosta, o Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque. São os
melhores, né? O Djavan não sei se é um grande compositor, mas
ele compôs duas das músicas que eu mais gosto, “Açai” e “Azul”,
ambas gravadas pela Gal Costa. São as melodias mais bonitas

109
Há uma contradição dentro de
mim. Eu tenho um ideal político,
mas a formação do meu gosto
é profundamente burguesa. Os
compositores que ainda gosto
são compositores de uma linha
que vocês poderiam dizer que
está em contradição com aquilo
que eu venho falando. Eu gosto
do Luciano Berio, as primeiras
obras do Stockhausen, Boulez, as
primeiras obras do John Cage, no
campo internacional.
ENCONTROS

que eu ouvi nos últimos tempos, não sei se é tanto a melodia ou


os arranjos, os arranjos são ótimos.

O caráter de classe do autor reduz o tempo de definição dele


com relação ao próprio trabalho?
Sim. Veja, por exemplo, o Willy Corrêa de Oliveira, amigo
meu, era um compositor como eu, mesmo grupo, que se definiu
radicalmente. Só compõe para os operários no ABC. Ele tem uma
posição absolutamente definida pela própria prática política dele.

A prática operária dele, com comunidade de base facilita a


definição?
Exatamente, isso é importantíssimo. E ele era multo mais
elitista do que eu.

E a sua continua indefinida em virtude de seu caráter de classe?


Não por caráter de classe. Pela posição que eu tenho na
classe. Estou confortavelmente instalado, assistindo de camarote
ao processo social. Eu estou mais torcendo do que fazendo, e o
Willy não, ele está fazendo.

Qual sua opinião a respeito da Semana de Arte de 22?


Foi importante. Agora, dentro do meu campo, eu diria que
a contribuição da Semana de Arte Moderna foi nenhuma. No
sentido que a grande figura musical da Semana de 22 foi, na
realidade, usada por ela, ele teria existido sem a Semana: foi o
Villa Lobos. Na música, o que aconteceu na Semana de 22 foi
mais o Mário de Andrade, que não é um compositor, é um teórico,
um poeta, artista, mas no campo da música é um musicólogo. O
que foi a Semana de 22 para o Mário de Andrade? Não foi nada,
porque também o Mário de Andrade é que foi uma das pessoas
da Semana de 22. E naquela altura, ele, mais Osvald de Andrade
mais aquela turminha que estava lá fez da Semana de 22 uma

111
GILBERTO MENDES

polarização de toda aquela informação sobre arte moderna que


estava no ar. Sintetizaram, mostraram, debateram o que estava
ali. Então foi um marco, um momento de definição, síntese
da coisa, jogar projetos. Debateu toda a problemática da arte
moderna, que hoje em dia a gente discute e começa a ver que
era profundamente burguesa. Mas a gente não pode esquecer
que do ponto de vista marxista a burguesia teve seus grandes
momentos. Já foi revolucionária. Então não vamos dizer que
porque foi burguesa não presta, também não é assim. Segundo
Lênin: "A cultura operária é a assimilação e o retrabalhamento do
melhor da cultura passada” Então, inclusive muita coisa da arte
de vanguarda, com todo seu decadentismo atual, vai ser encarada
no futuro como "o bom dela", e vai ser assimilada e retrabalhada.

Como se dá, de acordo com sua auto-conceituação já definida


como burguesa, a relação com o novo na música? Como você
instrumentaliza essa relação nas suas composições?
Eu atuei no passado como músico de vanguarda, o que eu
não estou querendo agora é continuar atuando desse jeito. Mas
não sei como será. É um problema novo, a gente tá debatendo
isso aí. Mas volto a dizer que não me incomoda o que fiz. Porque
num certo sentido, pelo menos muito do que fiz foi comunicativo.
E de um tempo para cá eu entrei numa fase mais instrumental.
Nos últimos tempos eu tenho feito muitas obras instrumentais,
dentro das quais eu tenho procurado exatamente, não o con-
teúdo político, mas a comunicação no sentido de elas soarem
bonitas para o público. Isso me deixa tranquilo. Falta melhorar
do ponto de vista do conteúdo da coisa.

Teve até algumas peças tuas que provocaram reações indigna-


das no público.
Sim, teve algumas.

112
ENCONTROS

Santos Footbal Music, por exemplo.


Não, essa aí gostaram muito. Quem não gostou dela foi uma
minoria de pessoas muito ligadas às coisas acadêmicas. Mas o
grosso de audiência gosta muito, principalmente estudantes
universitários. "Santos Footbal Music" é uma obra tipicamente
brasileira. Inclusive já me disseram isso duas vezes dela, o que
me deixou muito satisfeito. Um compositor disse que era uma
música experimental profundamente brasileira sem ter sínco-
pas ou ritmos brasileiros. Sobre "Beba Coca-Cola", que eu não
pensei de maneira nenhuma em coisa brasileira, o compositor
português Jorge Peixinho acha que é uma peça essencialmente
brasileira embora também sem ritmos brasileiros.

Qual sua expectativa com relação às eleições em Santos? Sua


opção partidária?
Vai ser no mesmo gênero da que eu fiz para governador.
Eu votei no Montoro não pelo PMDB, que não me interessa
especialmente, mas frente ao Reinaldo. Para impedir o PDS
eu vou votar naquele que eu sentir que possa vencê-lo, seja
do PMDB ou PT.

Por que sua opção para o Governo de São Paulo foi para o
PMDB?
O medo da divisão. Os peemedebistas não queriam uma
divisão muito grande, que felizmente não houve, rara marretar
o PDS. Essa foi minha opinião. Na verdade não tem nenhum
partido registrado que me agrade inteiramente. O PT quase que
poderia ser, mas o PT é minado, de certo modo, pelo trotskismo e
pelo anarquismo, enfim, uma série de coisas que me desagradam.
Mas tem o seu peso positivo.

A tendência do voto para o PMDB partiu da análise, segundo a


qual esse partido seria o que se adaptaria melhor ao momento?

113
GILBERTO MENDES

Confesso que na ocasião não pensei nisso. Eu não queria era


deixar entrar o Reinaldo. No fundo, esses partidos burgueses são
todos muito iguais. Mas sempre há diferenças entre dois bandi-
dos, um sempre é menos ruim que o outro.

Já que você objeriza o PDS, cite um nome da oposição em que


você votaria para presidente da República, caso ele se candi-
datasse?
Talvez o Lula, embora eu até não simpatize muito com o
cara por outras razões. Se bem que ele não tem condições para
ser indicado como tal. O Ulysses Guimarães também, um cara
digno, líder de uma velha luta ... não sei... eu queria gente nova.

Se você tivesse que elaborar um plano de Governo para o fu-


turo prefeito de Santos, com relação à cultura, como seria esse
projeto?
Ah, agora eu estou numa fase muito de ir à praia... Eu já fiz
parte, por três vezes, de comissão de cultura aqui em Santos. An-
tes de ter Secretaria de Cultura era urna comissão. Reuniam umas
cinco, sete pessoas, não se ganhava nada, era só para opinar, fazer
planos. Fiz parte de uma comissão estadual, também. Então, eu
verifico o seguinte: que esses planos não adiantam nada. Não
há continuidade, depois. Plano nenhum, dentro do sistema
capitalista, vai resolver problema nenhum. Pode melhorar um
pouquinho, é aquele negócio, entre planos ruins há uns menos
ruins. A própria organização burguesa de tudo não permite você
fazer um negócio legal. Tem que mudar realmente, é a estrutura
do país. Mudar radicalmente. Acabar com o capitalismo. E se
não acabar com o capitalismo nada será possível. Então, eu não
perderia mais tempo em fazer um negócio desses, fazer planos.

Fale um pouco do movimento cultural de antigamente em


Santos.

114
ENCONTROS

Era melhor porque existia uma comissão de cultura. Agora


transformaram essa comissão em secretaria. Tem um secretário
que ganha um ordenadão, com todo aquele funcionalismo tra-
balhando para ele. Antigamente tinha uma comissão de cultura,
com presidente. Ninguém ganhava nada. Era só um trabalho
honroso. Uma vez por semana a gente se reunia para planejar as
coisas. Tinha atividades de concerto, atividades de artes plásticas,
cursos de literatura, teatro e muitas coisas. Aí, evidentemente,
dependia das comissões. Haviam comissões boas e ruins, mas
pelo menos tinha comissão que fazia. Hoje em dia não tem mais
isso. Tem um teatro aí que não tem programação da prefeitura.
Acontecem coisas lá feitas por outras entidades. Vão lá, pedem
o teatro emprestado. Tem uma programação de música aí? Eles
trazem algum recitalista? Tá anunciado? Não está. Em São Paulo
está. Tem o Festival de Música Nova que leva o nome da prefei-
tura, aliás tem que levar, por que ela dá o dinheiro, mas não é
a prefeitura que programou. Somos nós. Assim também é com
outras coisas que acontecem por lá.

Você já foi convidado para trabalhar nos EUA, inclusive por


melhores condições que aqui em Santos. Você sempre voltou.
A tendência principal doe músicos é Europa – EUA ou Rio-SP.
Por que você foge dessa tendência?
Isso é um problema de raiz. Sou muito enraizado. Eu gosto
muito de viajar, mas sinto necessidade de voltar. Talvez se eu
tivesse recebido esses convites nos meus 20 anos eu gostasse,
pelo menos, de me demorar mais. Hoje em dia eu não quero
realmente, não vejo sentido em fazer uma carreira, pegar nome
na França, na Alemanha, virar um compositor norte-americano
naturalizado. É melancólico...

Voltando à questão do ensino da música no Brasil, o que con-


tribuiu para que ele ficasse na situação que está hoje em dia?

115
GILBERTO MENDES

[Míriam Mendes, irmã de Gilberto, professora de teatro na


ECA-USP antecipou a resposta] O problema é do MEC. Em função
do mau ensino que vem desses colégios ele faz com que o aluno,
na universidade, em vez de gastar seu tempo estudando teatro,
música, ou artes plásticas, tenha quase dois anos de matérias
básicas, que pegam essa área mais em geral. Então, um curso de
música, teatro ou artes plásticas na verdade se reduz a dois anos
ao invés de quatro. Porque eles têm um monte de matérias que
aprofundam os conhecimentos gerais dos alunos, pra depois
entrar naquilo que é específico. Então, isto acontece como uma
decorrência do ensino que vem do 1º e 2º graus, que é péssimo,
e chega o aluno na universidade quase sem base para coisa ne-
nhuma. E como ele vai se aprofundar em uma coisa se ele não
sabe nada do geral? O MEC copiou o modelo norte-americano e
parcelou os cursos. Isto é uma consequência do famoso acordo
MEC-USAID. Foi uma estupidez!

Você considera positiva a especialização total durante a etapa


superior no ensino da música?
Talvez o melhor modelo seja o europeu, o da França por
exemplo. O ensino de musica lá é só em um conservatório. O con-
servatório é estatal, como por exemplo o Conservatório Musical
de Paris, que é do governo. E de um modo geral lá na Europa é
assim: a pessoa estuda só em conservatório fundamentalmente
música. Em universidade a música é só musicologia. Então uma
pessoa formada em conservatório, se quer doutorar-se, fazer um
curso superior, ela vai para uma universidade.
Nós temos o modelo americano dentro da nossa univer-
sidade. Lá nos EUA funciona. Lá é país rico, que explora todo
mundo há anos. Inclusive o estudante vive em outro ambiente.
A universidade é paga. O americano trabalha exaustivamente
porque a concorrência é terrível e quando eles entram em uma
universidade que é paga, eles querem saber e apertam o profes-

116
ENCONTROS

sor. Aqui, não saberia responder o porquê, não sou sociólogo, mas
aqui meus alunos não me puxam, eles ficam quietinhos, e se eles
não me puxam eu vou na onda. Mesmo porque se você puxar, é
mal-olhado, é professor antigo, chato, que quer fazer chamada,
dar nota baixa. É um círculo vicioso. Se a aula começa às duas,
quinze para às três você tem quórum na tua aula. Se a aula é das
duas às cinco horas, às quatro ele diz que tem que ir embora
porque tem compromisso, porque trabalha. Voltando ao modelo
americano, eu me lembro de alunos que eu tinha, individuais.
Lá o horário era às 2 horas e você podia olhar no relógio que às 2
horas eles “toc, toc, toc” batiam na porta. E1es não querem perder
tempo, e se o professor relaxa um pouco dedam o professor e ele
é demitido. Então o aluno quer saber, porque saindo dali ele vai
concorrer e depois vai ser cobrado dele, e ele cobra do professor
também. Isso é uma mecânica de país desenvolvido à base da
concorrência, de país muito rico e, por ser rico, permite que se
tenham ótimos professores, ótimos instrumentistas, excelentes
músicos. Às vezes está nevando, está 20 graus negativos, o cara
levanta às cinco e meia e vai ensaiar. Seis e meia chega lá e vai
até às onze horas da noite.

Qual o papel da música em países cuja opção é nitidamente


revolucionária?
Vamos pegar, como exemplo o país básico que a Rússia.
Quando vence o partido bolchevique toda a turma que fez a
revolução russa, Lênin, Trotsky, Lunacharsky e aquela gente toda
vinha da burguesia. Só que não eram mais burgueses porque se
incorporaram ao proletariado, foram líderes. E o Lunacharsky,
quando ministro da instrução pública e da cultura, fez florescer
uma arte de vanguarda dentro da música russa, paralela à revolu-
ção você vê o teatro do Meyerhold, o cinema do Einstein, a poesia
do Maiakovsky, a pintura de Chagall. Mas isso foi mais fruto do
fato de que esses líderes da revolução ajudaram a implantar um

117
GILBERTO MENDES

novo regime, mas eles pessoalmente estavam multo incluídos na


cultura burguesa de vanguarda. Com a morte desses líderes aí
sobe um representante mais do povo, Stálin, filho de um sapatei-
ro. Essa nova classe que sobe, porque realmente a revolução foi
feita para eles, não gostava do Chagall, de nada desse negócio.
Eles queriam uma coisa mais simples para eles. Aí muda pau-
latinamente. Retomam da arte burguesa o seu momento mais
positivo, o século passado. Preferem retomar o Beethoven, Tchai-
kovsky. Essa história é explorada pelos vanguardistas e se presta
a muita confusão. Lembro o próprio lema do Maiakovsky – “Não
existe arte revolucionária sem forma revolucionária". Como se
fosse obrigatório fazer a revolução e junto à revolução captar os
abstratos, música aleatória, como se isso fosse isomórfico. Tanto
a arte de vanguarda quanto a arte burguesa do século passado
são burguesas. Não querendo xingar. A diferença é que a arte
burguesa do século passado, um Beethoven, um Berlioz, eles
refletem um momento de vigor, de força dessa arte. E a arte dita
de vanguarda já reflete uma decadência, uma degenerescência.
Não que ela seja ruim. É boa, mas tem sintomas realmente de
decadência. Então, a nova classe que surge lá, a classe operária,
prefere a outra. Retoma o filão mais positivo. Essa arte, por ser
positiva, discursiva, épica, com lirismo, se prestava muito melhor
aos propósitos de luta, de mensagens de ordem tipo – “vamos
reflorestar os campos devastados, vamos construir novas usinas".
Você faz isso muito melhor através de sinfonias de formas beetho-
vinianas do que com músicas aleatórias, não discursivas. Então
a arte da União Soviética, através do realismo socialista se torna
funcional nesse sentido. Nos anos de 1930 aparece um teórico,
Jdanov, que solta um manifesto onde faz uma análise da arte de
vanguarda exatamente nesses termos que fiz agora. Houve uma
grande discussão na época, pois havia os que defendiam a arte de
vanguarda, mas prevaleceu o ponto de vista da classe operária.
A arte de vanguarda nunca interessou à classe operária. Não é

118
ENCONTROS

dizer que os países socialistas não querem saber dela. Nem no


Ocidente querem saber. É uma arte praticamente feita para meia
dúzia de pessoas. Então, num país socialista, não tem sentido
isso aí. Se você pega um compositor como Prokovieff, que foi um
grande compositor de vanguarda nos anos de 1920, compositor
dos balés russo juntamente com Stravinsky, quando volta para
a União Soviética muda completamente.

119
GILBERTO MENDES

Conversa com Gilberto Mendes


sobre música e política

120
ENCONTROS

[sem crédito]

121
GILBERTO MENDES

Conversa com Gilberto Mendes


sobre música e política
[sem crédito]

Originalmente publicado no
jornal Voz cultura, em
17 de julho de1986.

Qual o sentido de se compor música politicamente engajada


em nosso país?
No meu caso, que sou aberto a todos os tipos de música,
quando faço uma politicamente engajada, é para satisfazer
uma necessidade que sinto de tomar uma posição de protesto
e de luta.

Você já compôs em diversos gêneros. Na década de 1960 você


foi um dos pioneiros das experiências musicais de vanguarda,
introduzindo no Brasil a problemática do aleatório, do som
microtonal, do concreto, do teatro musical, música de fonemas
com base na poesia concreta etc. O que você pode dizer agora
de suas últimas peças, como por exemplo, o Primeiro de maio,
composto especialmente para o Megafone vermelho de Ribei-

122
ENCONTROS

rão Preto, para uma manifestação de trabalhadores em praça


pública, ou frente a peça para coro “Nascemorre”, com texto de
Haroldo de Campos, cujo caráter é extremamente formalista?
Na verdade sempre tive um interesse na forma pura e no
conteúdo. Embora uma pesquisa formal, o poema “Nascemorre”
me interessou porque já uma dialética dentro dele e que de algum
modo reflete a dialética do processo social. No campo de pes-
quisa formal eu nunca me esqueci de focalizar o conteúdo. Veja
também “Beba Coca-cola” é uma crítica à multinacional desta
bebida. Veja por exemplo “Vai e vem.” (José Lino Grünewald),
outro problema dialético. Agora nestes tempos de abertura
política fui levado a compor músicas decididamente engajadas.
Mas já nas décadas de quarenta e cinquenta, época de maior
militância minha, quando era ligado aos compositores Claudio
Santoro e Eunice Katunda, que eram comunistas, eu já escrevia
músicas politicamente engajadas. Por exemplo, a canção “Pei-
xes de prata”, para voz e piano com texto da poetisa comunista
Antonieta Dias Moraes, foi apresentada na Rádio Nacional pela
Eunice Katunda e anunciada no jornal Notícias de hoje, que era
o órgão de massas do PCB. Outra canção minha desta época,
que com muito carinho me recordo, com texto de Terezinha de
Almeida, “Pedro meu amigo”, era exatamente uma homenagem
ao grande amigo e jornalista Pedro Motta Lima, este fabuloso
comunista que vinha a santos nos doutrinar.

Dê um exemplo de música engajada de sua autoria que não


tenha texto.
Há pouco tempo uma editora de Nova York me encomendou
uma obra para piano solo, e eu, no lugar de fazer uma obra de
vanguarda, que poderia fazer, fui levado a compor uma obra em
homenagem aos três padres ministros da Nicarágua, com título
“Los tres padres”, um tango. Uma posição que senti vontade
de tomar frente a uma editora norte-americana. Também uma

123
GILBERTO MENDES

maneira de chamar a atenção deles para a agressão que fazem


à Nicarágua.

O Festival de Música Nova de Santos, que você idealizou e or-


ganizou desde 1962, agora também com apresentações em São
Paulo, tem refletido sua posição política?
Não é um festival de música política. Na verdade, foi idea-
lizado para mostrar nossa música experimental lá pelos anos
1960. Porém, não deixou de refletir esta posição nossa. Fomos os
primeiros a mostrar e discutir a música de Eisler, Cardew e nesses
últimos anos trouxemos ao Brasil dois grandes representantes da
música europeia engajada, ambos com teses de doutorado em
Eisler, em universidades diferentes: Wilheim Zobl e Luca Lobardi,
respectivamente dos Partidos Comunistas aústriaco e italiano.
Temos apresentado também outros importantes compositores
desta linha como o norte-americano Frederic Rzewski e o chileno
Sergio Ortega, autor das canções de luta “O povo unido jamais
será vencido”, “Venceremos” e outras, que também pretendemos
trazê-lo pessoalmente ao Brasil. No Festival Música Nova deste
ano não deixaremos de apresentar também concertos com obras
engajadas.

Por falar em Hanns Eisler, o que você acha da obra musical dele?
Independentemente de qualquer outra consideração, é um
grande compositor. Ele é o maior representante da estética do re-
alismo socialista, algo para mim valioso. Aliás, gostaria de acres-
centar que nada me irrita mais do que ver um artista do mundo
socialista voltar-se para a estética do nosso mundo burguês.

Você compôs uma peça para um concerto em homenagem a


Eisler no ano passado chamada “Vão entregar as estatais para
as multinacionais”. O texto você retirou de um artigo econômico
da Voz da unidade. Como foi isso?

124
ENCONTROS

Eu quis que o texto da minha peça fosse uma verdadeira aula


sobre o assunto. Por isso eu coloquei um texto tomando por base
um artigo econômico da Voz da unidade.

Essa nossa conversa vai ser publicada na Voz da unidade, a voz


do PCB. O que você acha disso?
Eu acho muito legal e muito natural, pois não é de hoje
minha identificação não só com a ideologia comunista, mas
especificamente com o PCB. Assim como sua imprensa e seus
jornais. Basta ver a ligação, que já falei, com Pedro Motta Lima,
o redator chefe do maior diário que o partido já teve a Tribuna
popular do Rio de Janeiro.

125
“Nós quisemos mudar tudo”
Por Regina Porto
GILBERTO MENDES

“Nós quisemos mudar tudo”


Por Regina Porto

Originalmente publicado na
Folha de S. Paulo, em
26 de junho de 1988.

Vocês (do Música Nova) se ligaram por causa do manifesto?


Não, a ligação foi anterior. E o manifesto foi consequência de
nosso relacionamento com gente de outras áreas. O movimento
musical da época era muito ruim. Então ficamos intimamente
ligados aos concretos. Eles tinham a informação que a gente
queria e que na música não tinha.

O que o manifesto pretendia negar?


Não pretendia negar. Pretendia atualizar a música brasileira
frente ao avanço tacnológico muito grande que levou a música
dos Estados Unidos e da Europa a um novo estágio. A gente es-
tava aqui às voltas com suítes nordestinas da escola de Camargo
Guarnieri.

128
ENCONTROS

O problema era o nacionalismo em si?


O negócio em música, em arte em geral, é você construir
uma linguagem. Não sou contra o nacionalismo – música com
elementos de som brasileiro – mas tem que criar uma lingua-
gem em cima disso. Era o que eu achava ruim naquela época.
Se construía uma “linguagem” estilizando o folclore. É como
pegar temas folclóricos e encasacar com roupagem de música
de orquestra sinfônica. Pegar esses elementos e construir a sua
própria linguagem é outra coisa.

Quando vocês partiram para informações em outras áreas, o


que mais influenciou você?
A mim particularmente influenciaram a pop art e o cinema
de Godard. Da mesma forma, fui mais ligado à estética de John
Cage, que propunha um outro tipo de abertura. Achei mais
americano, mais realizável aqui. É importante a gente dominar
o serialismo alemão como uma ferramenta. Mas a evolução
dessa linguagem a mim já não interessava mais. Então passamos
a descobrir uma música inventada por nós. Sem abandonar os
princípios estruturais, mas também sem seguir a rigidez que era
seguida na Europa.

Qual a grande diferença?


Uma peça de Boulez ou de Xenakis leva aqueles princípios
estruturais às últimas consequências. No nosso caso, é dexiar
entrar o imprevisto. É isso que eu acho que é mais a índole do
novo mundo. É onde entra o acaso, o aleatório, a composição por
módulos, montagens, colagens. Onde cabe a ligação absurda das
coisas, mas altamente organizada.

O manifesto combinava várias propostas.


A gente pretendia muita coisa. Acho até que a gente fez tudo,
mas precariamente. Usando as palavras do polêmico poema do

129
GILBERTO MENDES

Augusto de Campos, eu diria que nós também “quisemos mudar


tudo”. E mudamos. Fomos os primeiros artistas performáticos
do Brasil. Mas é bobagem dizer essas coisas. Os dadaístas, os
futuristas fizeram tudo muito antes de nós. Só nos restou refazer.
E o que está faltando. Sinto de novo um marasmo na música
barsileira, neste pós-moderno morno, acomodado.

Qual sua visão crítica do manifesto?


Na verdade, nós todos já renegamos esse manifesto muitas
vezes. Até um ponto que não se tem uma visão crítica. Foi um
negócio de época que nos levou a uma grande manifestação e
a uma grande criação.

De qualquer forma, você continuou.


Eu não sei por que eles pararam. Sempre me interessei pelo
novo e para mim foi uma oportunidade de me conscientizar e
que me levou a uma série de obras. É aquilo que o Shostakovi-
tch chamava de “alegria de fazer”. Criar é por em ordem. E criar
música é por em ordem sons.

Suas obras ainda encontram resistência?


Não sei dizer. O panorama de hoje mudou muito. Naquela
época as posições eram mais definidas. Hoje há uma espécie de
conformismo. Ninguém se escandaliza. O primeiro concerto que
a gente fez no Municipal, com obras aleatórias envolvendo meios
mistos, com enceradeiras, liquidificadores, foi um escândalo.
Depois fizeram tantos outros.

Você vê diferença entre criar um teatro musical mudo e compor


uma obra mais lírica e minimalista, como você vem fazendo
ultimamente?
Não. Eu nunca fui uma pessoa ligada só à música. Música é
a arte que eu faço, mas a coisa que eu mais gostaria de fazer é

130
ENCONTROS

cinema. E gosto muito de ler, de artes plásticas... Quando surgiu


um momento em que as artes começaram a se entrelaçar, eu
entrei direto.

Será por isso que a sua obra seja tão marcada pelo humor e
pela comunicação?
Não me considero humorista. Também quando componho,
não viso a comunicação. Componho para mim. Mas sinto que
minha música comunica. Isso porque eu gosto de música de
toda espécie – incluindo as populares, folclóricas, o jazz dos anos
30/40. Então ela comunica naturalmente, não porque eu queira.
Se ouço muita música popular, minha música, por mais erudita
e construtivista, vai refletir isso.

Você consegue passar essa liberdade para os seus alunos?


Na USP eu dou aula de música dodecafônica. Se eu quisesse
ser um professor rígido, só daria Schoenberg. Na primeira aula,
eu digo até que música dodecafônica, ao contrário do que todo
mundo pensa, é coisa facílima. Desfaço a lenda.

O dodecafonismo/serialismo foi o último sistema que surgiu.


É possível criar outro?
O problema da música de hoje é que cada compositor tem
um sistema. Antigamente todo mundo compunha dentro de
um mesmo sistema. Hoje, se você quiser ser original, tem que
compor pouco. Mas no fundo, a gente está compondo muito,
tanto quanto os antigos. Hoje a gente pensa muito e em um
ano faz uma música, enquanto que o compositor antigo faria
quarenta – mas todas muito parecidas.

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Som santista alcança o mundo
Por Luciana Schneider
GILBERTO MENDES

Som santista alcança o mundo


Por Luciana Schneider

Originalmente publicada em 1995

Há quanto tempo existe e qual o objetivo do Festival de Música


Nova, criado pelo senhor?
O festival começou, modestamente, em Santos no ano de
1964. A música que a gente mostra é a erudita, voltada ao novo,
à experimentação de formas novas e de novas estruturas. Para
se ter uma ideia da importância deste evento, ele está no roteiro
internacional dos Festivais de Música Contemporânea. O festival
santista é o mais antigo das Américas.

Quais são as novidades do Festival de Música Nova este ano?


De grupos estrangeiros, vem o grupo Ictus Ensemble, da
Bélgica, o United de Berlim, da Alemanha, G.E.M.S., do Canadá é
um jovem pianista de Nova York, Matthew Rubestein. Mas a maior
novidade deste ano, é a participação da Orquestra Sinfônica de

134
ENCONTROS

Santos, que tem somente um ano de vida, e é excelente. Outro


destaque é o Concerto Visual, que acontece nesta quinta-feira,
dia 15 (o festival prossegue até o dia 20), onde estarão o pianista
Sérgio Gomes Villa Franca e o artista plástico Saulo Di Tarso, além
da participação especial do maestro e músico H. J. Koellreutter.

O que o senhor acha dos recentes gêneros musicais, da nova


música popular, que tem surgido no Brasil, como axé music e
pagode?
Apesar da minha área ser erudita, eu acompanho as ten-
dências atuais. Mas eu gosto cada vez menos, porque a música
popular que eu gostava praticamente não existe mais. Em outra
época, a música era muito boa e era realmente popular. Ela
tinha origem na música folclórica, que passava de uma geração
para outra e, foi a partir dela, que nasceu a música popular da
cidade, a chamada música urbana: o samba, no Brasil; a rumba,
em Cuba; o fox-trot, nos Estados Unidos; e o tango, na Argenti-
na. Infelizmente, esse folclore está morrendo, está deixando de
existir. Então, a música popular urbana do passado também está
deixando de existir, e tende a desaparecer. O que vai ficando é o
rock, que não é música brasileira, mas norte-americana.

Qual a diferença dessa música do passado e da atual?


Antigamente, a música era muito ingênua, espontânea e
verdadeira. Hoje, a música popular urbana é manipulada pela
indústria cultural, pelas gravadoras. É uma música falsa. Eu até
diria que ela nem existe. Ela não tem a legitimidade que tinha
um samba dos anos de 1930, 1940 e 1950. Se alguém propuser
um projeto de CD com músicas de bossa nova, por exemplo,
que foi um momento muito bonito e importante da música
brasileira, simplesmente nenhuma gravadora vai aceitar. Elas
não aceitam músicas que julgam previamente que o público
não vai querer.

135
GILBERTO MENDES

O senhor acha, então, que as gravadoras manipulam o ouvinte


da maneira que quiserem?
Eu diria que o público quer sempre a música que lhe dão. Ele
não escolhe muito. O que acontece também é uma decadência
dos organizadores, produtores e diretores artísticos, além dos
meios de comunicação. Eles é que acham essas tendências atuais.
São eles que ditam a moda. Eles é que gostam dessas porcarias!
O ministro da Cultura, os secretários da Cultura, os diretores de
televisão e rádio são ignorantes de pai e mãe.

Essa manipulação sempre existiu, ou não?


No passado não era assim, porque a população tinha um
ensino básico muito bom, uma informação orientada para os
ideais do iluminismo, do humano, grande ideal do renascimen-
to. Agora, o mundo está muito materializado. Tudo é dinheiro.
Deus é dinheiro!

Quer dizer que a falha começa na educação?


Claro. Esses novos ministros, secretários e diretores são
frutos de uma educação que já vem das ditaduras. Entrou uma
geração nova, que grosso modo está violenta; é tudo por dinheiro
e acabou. Não interessa saber se é artístico. Aliás, artístico é o
que menos importa nessa arte de consumo. Logicamente, há
exceções brilhantes, que escapam a essa minha definição.

O pouco apoio dado à música erudita advém dessa educação,


ou porque ela tem pouca tradição no Brasil?
Eu acho que o Brasil tem muita tradição na canção erudita,
sendo considerada uma das melhores na parte musical. Tivemos,
por um acaso meio misterioso, Villa-Lobos. É espantoso que ele
tenha nascido no Brasil. Ele é um dos melhores compositores
do século XX. Para qualquer um que fizer uma consulta em um
livro europeu, ou falar com musicólogos europeus e americanos

136
Apesar da minha área ser
erudita, eu acompanho as
tendências atuais. Mas eu gosto
cada vez menos, porque a
música popular que eu gostava
praticamente não existe mais.
Em outra época, a música era
muito boa e era realmente
popular. Ela tinha origem na
música folclórica, que passava de
uma geração para outra e, foi a
partir dela, que nasceu a música
popular da cidade, a chamada
música urbana. Infelizmente,
esse folclore está morrendo, está
deixando de existir.
GILBERTO MENDES

que já fizeram um balanço da música deste século, Villa-Lobos


é unanimidade, sendo reconhecido como um dos mestres do
século XX. Além dele, tivemos também Camargo Guarnieri,
Francisco Mignoni, Cláudio Santoro, Guerra-Peixe. O Brasil é
muito forte na música erudita.

Então, a música erudita brasileira só é reconhecida no exterior?


Sim. Ela é muito conhecida e, principalmente, respeitada.
Para se ter uma ideia, em abril passado, os americanos fizeram
em Nova York uma amostra de dez dias, com sete concertos só
de música brasileira, desde Villa-Lobos aos nossos dias, na sala
mais famosa da cidade, o Carnegie Hall. E tem mais: sete con-
certos lotados, sendo que a entrada era paga. Se você faz isso no
Brasil, de graça, se tiver metade do teatro cheio, nós, músicos,
ficamos muito contentes. Além disso, os americanos convidaram
vinte compositores e pagaram tudo: hotel, comida e passagem,
além de um pequeno cachê. Eu fui um desses privilegiados,
representando o Brasil.

E quanto ao apoio dos governos, em todas as instâncias?


O apoio federal está cada vez mais decadente. Infelizmente,
em qualquer plano, ou meta de governo, a arte está sempre
no final. Tanto a arte como a educação, são as duas áreas que
recebem menos dinheiro. Mas grosso modo, sempre deu para
se virar. Aqui em Santos, pelo menos depois do regime militar,
melhorou muito. Temos tido um apoio muito bom para as ati-
vidades musicais. Santos é um dos maiores centros musicais
do Brasil. Uma cidade que tem compositores de muito nome.
Além de mim, tem Roberto Martins, Gil Nuno Vaz e Almeida
Prado, que também esteve em Nova York comigo. Se daqueles
vinte compositores, dois eram santistas, percebe-se que Santos
é muito forte.

138
ENCONTROS

Em relação a sua profissão, como é que surgiu esse dom de


compor?
Acho que eu nasci com ele. Eu descobri, realmente, quando
eu era bem criança, com quatro, cinco anos. Mas nunca me
dediquei à música, porque meu pai morreu quando eu tinha
cinco anos e minha mãe ficou em situação financeira difícil.
Assim, não tinha como estudar música. Um piano era muito caro
naquela época. Fui começar a estudar música, quando tinha 19
anos, a partir do básico, no Conservatório Musical de Santos,
que ficava na rua Sete de Setembro e depois mudou-se para o
Colégio do Carmo.

Durante quantos anos o senhor estudou música?


Eu estudei uns cinco anos de teoria musical. Eu não sabia o
que queria da música, se era ser o instrumentista ou um musi-
cólogo. Aí, percebi que gostava de compor, de brincar, de fazer
composição. Desde o início, as matérias relacionadas à compo-
sição me interessavam. Mas isso os conservatórios não ensinam.
E tive que estudar sozinho. Eu sou autodidata em composição.

Qual o tipo de música que o senhor aprecia nas suas horas de


lazer?
Eu aprecio, principalmente, a música erudita e a folclórica.
Músicas sinfônicas, modernas e eletrônicas também, mas acima
de tudo clássicas, como da renascença e do barroco, além é claro,
estrangeiras, como por exemplo, da Índia, Indonésia, África e
Oriente. Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque eu escuto
de vez em quando.

139
Música Nova aponta
para o próximo milênio
Por Ivani Cardoso
GILBERTO MENDES

Música Nova aponta


para o próximo milênio
Por Ivani Cardoso

Originalmente publicada
no jornal A Tribuna,
em 1997.

O que é música nova?


É a música jovem, inteligente, dinâmica, de nosso tempo
e que já aponta para o próximo milênio. Ela também pode ser
chamada de música contemporânea ou de vanguarda.

Sempre foi mais difícil despertar o público para esse estilo de


música. Como está atualmente o interesse?
Acho que posso dizer que os músicos de vanguarda são os
“pobres da música”. Acho que temos que aceitar esta realidade,
não adianta reclamar. Nós escolhemos esse campo, a música que
fazemos não está em um tempo muito ligado à música erudita
como na época de Beethoven ou Mozart. Hoje em dia, a própria
aristocracia não está mais ligada à cultura. Se perguntam a um

142
ENCONTROS

intelectual do Brasil que tipo de música gosta ele diz Caetano ou


Gil, nunca cita música erudita.

Em outros países também é assim?


Não, não é dessa forma, no Brasil é bem pior. Na Europa,
os músicos são muito valorizados, inclusive, os que vêm para o
festival têm suas despesas pagas pelos países de origem. Recente-
mente, por exemplo, o José Eduardo Martins deu um concerto em
Portugal com a presença do Presidente da República. Paderevski,
um dos maiores pianistas do século, foi ministro da Polônia.

E como está o desenvolvimento da música erudita?


A música erudita deste século enveredou por um caminho
de pesquisa, experimentação e estruturação da linguagem, mas
com isso perdeu seu público. Ficou muito estigmatizada por isso.
Felizmente essa realidade já vem mudando lentamente nos últi-
mos 20 anos, principalmente a partir do minimalismo de Philip
Glass. O compositor polonês Grecki compôs uma sinfonia que
esteve nas paradas de sucesso dos Estados Unidos e Inglaterra,
ao lado de Madonna e Michael Jackson.

Quais os fatores que provocaram o desinteresse pela música


erudita?
O maestro Júlio Medaglia costumava dizer que o rock era a
Aids da música, porque tirava a resistência de todas as outras. Isso
foi muito longe. Certas músicas se tornaram semieruditas, como
o jazz, por exemplo. A música popular de massa no momento é
ruim. Nós tivemos a bossa nova, que foi boa, com uma batida e
harmonia perfeitas. A nossa música popular tem muitos níveis.
Também a música erudita do nosso século é muito diferenciada.
Ao mesmo tempo em que a experimentação levou à criação de
novas estruturas e novos signos, paralelamente há uma música
clássica que se mantém no esquema do passado.

143
GILBERTO MENDES

Quem é o público do Festival Música Nova?


O público jovem, universitário, é o que mais comparece. Os
alunos de escolas de música não se interessam muito, geralmente
estão mais voltados para o passado, para a música clássica. Nosso
público é gente interessada em cinematecas, que discute literatu-
ra e comunicação, é uma minoria que escapa à regra. O pessoal
do balé na cidade é mais ligado ao festival do que os músicos.

Os direitos autorais são respeitados no Brasil?


Aqui no Brasil nossos direitos não são respeitados. Eu entrei
para a Sociedade de Direitos Autorais da Bélgica e lá eles levam
muito a sério e acompanham como o meu trabalho é utilizado
em todos os cantos. No Brasil não funciona, é um absurdo.

Você mantém contato com músicos de outros países constan-


temente ou não?
Claro, recentemente um professor de Universidade da
Califórnia, Jack Fortner, escreveu pedindo que eu mandasse
músicas porque ele queria conhecer minha obra. Eu mandei e
ele disse que eu era tão louco quanto ele. Ele faz um programa
sobre música de vanguarda. Minha música é tocada no mundo
inteiro, em lugares que eu nem fico sabendo.

Qual a sua música mais famosa?


É “Beba Coca-Cola”, que tem texto de Décio Pignatari e foi
lançada pelo Ars Viva, em 1965. Ela foi crescendo, virou sucesso.
O Ars Viva começou divulgando a música em uma turnê pela
América Latina. Ela foi tocada também pelo Coral da USP, no
Lincoln Center, na Europa e na África. Eu tenho até crítica com
elogios do New York Times. Foi apresentada no Festival de Nova
York e em Viena no evento chamado “A longa noite da música”,
que começou às 18 horas e foi até às 6 da manhã. Agora vai ser
reeditada na Bélgica. Outro sucesso é “Santos football music”, de

144
ENCONTROS

1970, que é uma música para orquestra e que foi tocada no Ou-
tono de Varsóvia, com regência do maestro Eleazar de Carvalho.
A gravação do Estúdio Eldorado é WDR, de Colônia, Alemanha.

Você, como músico de vanguarda, se deu bem com o compu-


tador?
Eu não quero saber de computador. Fiquei tanto tempo es-
perando pela música eletrônica que quando ela chegou não me
interessava mais. Estou bem instalado com a música acústica.

145
Em conversa
[Sem crédito]
GILBERTO MENDES

Em conversa
[Sem crédito]

Originalmente publicada na
revista Concerto, em
junho de 1997.

Como foi a sua formação?


Comecei a estudar música com quase dezenove anos, mas só
lá pelos 26 é que tomei jeito na vida. Afinal, nasci em Santos, na
beira da praia, um convite constante à vadiagem. Estudei piano
com uma das maiores professoras da época, Antonieta Rudge.
Ela me tomou apesar de eu ser um principiante... Mas não fui
exclusivamente músico. Ganhei a vida trabalhando em banco,
primeiro no Novo Mundo, que nem existe mais, depois na Caixa
Econômica Federal.

Como era a música do jovem Gilberto Mendes?


No começo eu era influenciado pelo repertório que eu estu-
dava – Schumann, Bach, Chopin. Mas meu interesse pelo novo

148
ENCONTROS

sempre foi muito forte. Então me interessei pela vanguarda da


época, que era Bartók, Stravinsky, Debussy. No começo dos anos
cinquenta, começaram a surgir discos de música concreta nas
lojas de São Paulo. Além disso, eu gostava muito das músicas para
dança e cinema. Naquela época me liguei à Orquestra de Câmara
de São Paulo, do maestro Olivier Toni, uma fase de ouro, raiz de
todo esse movimento de música nova. Em 1959, então, fiz uma
viagem à Europa e comprei partituras e discos do Stockhausen,
do Boulez e de outros. Trouxe esse material para o Brasil e nós
– Rogério Duprat, Willy Correa e eu – literalmente o devoramos.
Aí nasceu o grupo que iniciou aqui o movimento vanguardista.
Lançamos o Manifesto Música Nova, com o apoio dos poetas
concretos, e passamos a fazer muitas obras sobre poemas deles.

Em que ano foi isso?


O Manifesto é de 1963 e o I Festival de Música Nova é de 1962.
Este ano estamos comemorando 35 anos do festival.

Como está o Festival Música Nova?


O festival é um grande sucesso de intercâmbio entre Brasil,
Europa e Estados Unidos. Ele faz parte de um circuito internacio-
nal de festivais do gênero. Este ano tenho ajuda do compositor
Eduardo Guimarães Álvares. Graças a seu empenho e a uma
recomendação da Ana Maria Kieffer, conseguimos o apoio do
Banco Itaú. É a primeira vez que uma empresa dá apoio finan-
ceiro. Também somos muito ajudados pelas instituições do ex-
terior. Há três anos fiz uma edição do festival com pouquíssimo
dinheiro e vieram três grupos belgas, um holandês, um austríaco
e um dinamarquês, todos com passagens e cachês pagos por
instituições de seus próprios países. Então a gente é regiamente
apoiado pelas instituições de fora.

As datas e locais do festival para este ano já estão definidos?

149
GILBERTO MENDES

Entre 5 e 20 de agosto, simultaneamente em Santos e em


São Paulo, como sempre. Aqui em São Paulo a maior parte dos
espetáculos deve acontecer no Instituto Cultural Itaú.

E os jornais, divulgam o festival?


Eles não dão notícia nenhuma. Antes, quando o festival era
mais modesto, davam muito mais destaque. Me lembro de uma
vez em que o Estadão deu duas páginas sobre o evento. Na 32ª
edição do festival, no entanto, foi ridículo: deram uma notinha
no roteiro, e só. Um centímetro! Acho que só o fato de realizar-
mos pela trigésima segunda vez um festival internacional já
justificaria um quarto de página, não é? De uns tempos pra cá
a imprensa só dá espaço para coisas de massa e que envolvam
muito dinheiro. Este ano vamos mostrar em primeira mão aquela
compositora russa, Galina Ustvolskaya, que está beirando os oi-
tenta anos. Então, daqui a alguns anos, a gente vai ler nos jornais
sobre ela como se fosse uma grande novidade...

E como está sua produção de composições novas?


Nem me pergunte. Isso até me provoca ansiedade e an-
gústia, de tanto que me pedem música. Ontem mesmo estive
relacionando o que tenho de produzir. Tenho que fazer uma
obra para Orquestra de Câmara Amadeus, de Moscou, para
o grupo Continuum de Nova York, para o Duo Diálogos de
percussão – que quer uma peça para as duas marimbas que
eles compraram em Nova York –, e para o Spectra Ensemble da
Bélgica. No meio disso vou continuando a ópera “Issa”, com
libreto de Décio Pignatari, cuja abertura já estreei. Além disso
tem os amigos violonistas – que me pedem insistentemente
peças para esse instrumento, e eu nunca compus para violão
–, os flautistas, oboístas – eu precisaria mesmo viver uns 200
anos ou ter o fôlego de Bach ou Telemann... Estou também
pensando em escrever um romance, uma novela, ao menos, de

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Sinto que sou no mínimo dois
compositores: tenho uma índole
tonal de origem clássica muito
forte e tenho também uma
índole de pesquisa. Acho que foi
o jornalista J.J. de Moraes que
escreveu uma matéria sobre mim
e disse uma coisa que eu gostei:
que eu transito entre a vanguarda
e a tradição. Até me chamou de
pacificador da vanguarda.
GILBERTO MENDES

ficção. Sempre quis também ser um escritor ou um cineasta.


Meus filhos cineastas me compensam.

Como é o processo de criação? A inspiração muitas vezes é


literária, não?
Apenas para os títulos. Desenvolvi várias maneiras de fazer
música. Fiz música para coral e canções para canto e piano. Aí
vem à cabeça uma melodia bonita e eu trabalho em cima, dentro
da minha linguagem. Mas tem as obras mais elaboradas, alta-
mente estruturadas, calculadas, trabalhadas. É uma coisa que
não dá para explicar em três palavras. Esse negócio de pura ins-
piração é conversa. Sinto que sou no mínimo dois compositores:
tenho uma índole tonal de origem clássica muito forte e tenho
também uma índole de pesquisa. Acho que foi o jornalista J.J. de
Moraes que escreveu uma matéria sobre mim e disse uma coisa
que eu gostei: que eu transito entre a vanguarda e a tradição. Até
me chamou de pacificador da vanguarda.

Algumas de suas músicas soam melancólicas...


Já ouvi isso de outras pessoas. No entanto, ao mesmo tempo
em que dizem isso, falam também do meu bom humor. E olha
que eu não sei nem contar uma anedota! O Décio Pignatari
ultimamente vem dizendo que eu sou um dos poucos felizes
que ele conhece. Na verdade eu amo a felicidade. Então veja só
quanta contradição. Como é que um homem bem-humorado e
feliz pode fazer música melancólica?

E como anda a publicação e divulgação de suas composições?


Tive a sorte de encontrar um editor belga, Alain Van Ker-
ckhoven, que se diz entusiasmado pela minha música e já está
editando onze peças. Sua mulher, a pianista Mireille Gleizes,
já gravou meus três contos de Cortázar e está preparando meu
estudo magno. O Spectra Ensemble, grupo belga dirigido por

152
ENCONTROS

Filip Rathé, gravou um CD com minhas principais obras ins-


trumentais.

O senhor é um dos indicados para o novo Prêmio Multicultural


Estadão...
Veja que surpresa. Mas não tem como ganhar esse prêmio,
porque a música de vanguarda está muito por baixo. Imagine,
eles vão consultar duas mil pessoas no Brasil todo que deverão
votar em três dos dez indicados. E eles não me conhecem, não
sabem quem eu sou. Portanto, não tenho a menor chance. Se você
perguntar a um intelectual brasileiro qual é o escritor ou cineasta
mais importante, ele responderá Joyce, Kafka, Goddard. Mas se
perguntar sobre um músico, ele dirá Gilberto Gil ou Caetano
Veloso. Para a intelectualidade brasileira eles são considerados
compositores eruditos da vanguarda. Para ser sincero, fiquei
espantando ao saber que fui indicado para o Prêmio de Cultura
do Estadão. Bem, só o fato de ser indicado já é uma grande coisa.

153
Gilberto, o erudito
Por Marco Santana
GILBERTO MENDES

Gilberto, o erudito
Por Marco Santana

Originalmente publicada
no Jornal da Orla, em
13 de dezembro de 1998.

Quando surgiu sua paixão pela música erudita?


Aos cinco anos de idade, nasci para a música erudita. Eu
ouvi primeiro música erudita, clássica, antes de ouvir música
popular. Meu pai morreu quando eu tinha cinco anos, minha mãe
frequentava muito a casa de uma amiga dela, onde só se ouvia
este tipo de música... Chopin, Mozart, Brahms, Lizt... Eu gostava
muito. Depois começou o cinema sonoro, minha mãe era uma
cinemeira e eu ia com ela. Me chamava a atenção a música, que
naquela época era música erudita. Os compositores que compu-
nham música para cinema eram músicos com formação erudita.

E a música erudita hoje, o senhor acredita que ela está conde-


nada a ser cada vez menos ouvida?

156
ENCONTROS

Não tem por que ela se popularizar, o povo tem a sua música,
que é a música popular. Se o povo se educa, se eruditiza, ele passa
a gostar da outra. A existência da música popular é resultado da
divisão de classes sociais. Os pobres fazem suas músicas, os ricos
fazem outra, que tem mais base científica. Mas isso é a história
da música, assunto para um curso.

Como é seu dia a dia?


Meu dia a dia é o de uma pessoa que não tem compromisso
com nada. Sou professor aposentado do Departamento de Mú-
sica da USP, mas posso dar aula na pós-graduação. Mas aí eu ia
ter que montar um curso, voltar a ir a São Paulo toda semana e
lhe confesso que estou com preguiça. A Unesp e a PUC estão
me convidando para dar cursos, mas não estou interessado no
momento. Mas participo de palestras, conferências, bancas de
doutoramentos. Basicamente, eu componho e me ocupo com a
organização do Festival de Música Nova. Eu quero compor e ver
minha música tocar.

O que o senhor ouve? Vai a sebos procurar raridades, ouve rádio?


Nem tenho rádio. Fui educado pelo rádio. Quando era
criança, as estações de rádio tinham muitos programas de
música erudita, hoje não têm mais. Eu pegava muito aquelas
estações culturais argentinas, nas ondas longas. Não compro
muitos discos, já comprei mais, é porque tenho bastante. Gosto
de absolutamente todo tipo de música clássica, desde a mais
moderna, que é a que eu faço, até as da primeira metade do
século, Stravinski, Ravel, todos os românticos, barrocos, todos
da Renascença, da Idade Média. Também das culturas exóticas.
Recentemente mesmo vi um documentário excelente sobre a
dança e a música do Camboja, tenho paixão pela a música étnica
da Indonésia, Índia, África, China, Japão.

157
GILBERTO MENDES

O senhor gosta de alguma coisa da Música Popular Brasileira?


Gosto, eu te falei que não fui fã da música brasileira na minha
infância, eu sempre gostei da complexidade. As dissonâncias, os
bemóis, os sustenidos. E a música brasileira era pobre nisso, mas
gostava de algumas coisas, de alguns compositores.

Por exemplo?
Algumas marchinhas de Carnaval, eu vi dois filmes na época
que gostei multo Alô, alô, Brasil e Alô, alô, Carnaval com Carmen
Miranda. Alguma coisa de Noel Rosa e Lamartine Babo, Orlando
Silva, a maneira de ele cantar e o repertório, foi uma espécie de
João Gilberto da época. Também gostava da bossa nova, porque
era parecida com a música americana. Em 1958 ouvi “Chega de
saudade” no rádio e gostei muito, acabei comprando o disco do
João Gilberto, em 78 rotações. Depois veio o tropicalismo, mas
o pseudovanguardismo deles não me interessa. O melhor do
tropicalismo é quando o Caetano é mais bossa nova. O Chico
Buarque, apesar de ter feito críticas à bossa nova, foi o real her-
deiro da bossa nova.

E a música brasileira hoje?


A música brasileira hoje está às voltas com o massacre do
rock. O rock de hoje é bem definido pelo maestro Júlio Meda-
glia: o rock é o Aids da música, mina os outros tipos de música
e substitui por lixo. Por um grupo como o Sepultura, que tem
fama internacional, você vê. É música para cretino, débil mental.

O que o senhor acha do pagode?


Isso não é coisa para tomar conhecimento. Até aceito que
exista, para ir dançar lá no Cachaça Brasil. Quando vem estran-
geiro para o festival eles querem ver estas coisas, aí eu mando
alguém levá-los lá. Mas é música de consumo, sem a menor
expressão cultural de relevância. Caetano Veloso é um ótimo

158
ENCONTROS

compositor, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque e


aquele com cabelo de mulher, mulato, cheio de cachos...

Djavan?
É, Djavan, ele tem umas três ou quatro canções muito bo-
nitas. Mas quando esta gente morrer, acabou! Acabou a música
brasileira, são os últimos melodistas brasileiros.

Mas há músicos que são considerados os representantes da


nova MPB, como Chico César, Lenine e Zeca Baleiro. O senhor
conhece o trabalho deles?
Eventualmente eu posso pegar na TV, ver que é uma grossa
porcaria e mudar de canal. O momento não é propício à boa
música. Toda boa música tem uma base intelectual. A boa arte
sempre tem um lastro de pensamento. Os Beatles representaram
um grande avanço, porque eles partiram de uma música do mais
baixo nível, o rock. O rock era música de caminhoneiro, para
povão. Os Beatles conseguiram uma coisa interessante, porque
misturaram o folclore inglês, da Escócia e da Irlanda. E eles ti-
nham um cérebro por trás, o empresário deles era um homem
altamente culto. Ele tinha contato com isso e passava para os
Baetles. Eles tinham contato com o mundo da alta cultura. Hoje
o mundo não está propício para isso. É o mundo da vulgaridade,
do consumo barato, da avacalhação, mundo de Beto Mansur,
dessas rádios que estão aí. E elas ainda se dizem segmentadas:
“essa parte do lixo é minha, este pedaço é meu”. Ainda dividem
e catalogam o lixo. Mas eu não quero que você dê um realce a
isso na sua matéria porque não sou um especialista em música
popular brasileira, não é minha área.

Mas como ouvinte, qual sua opinião sobre a música do Terra


Samba, por exemplo?
Nem sei o que é isso.

159
GILBERTO MENDES

E o É o Tchan?
Hein?! Tchan?

O que a Carla Perez integrou.


É uma avacalhação, uma baixaria, não tem qualidade ne-
nhuma, a música popular não tem como se salvar. Outro dia vi
no canal alemão da TV a cabo um programa com a Emsemble
Moderne, que já esteve aqui no Festival. Estava lá na Deustch
Veller, aqui ninguém sabe quem é, muito menos o Beto Mansur
e essa turma que está aí no poder. Não sabem do que se trata
nem se preocupam em saber. Eles gostam de Chitãozinho e
Xororó, que não é música caipira. É uma música inventada pela
indústria cultural, com um pouco do estilo do Roberto Carlos,
aquela frescurada toda. A gravadoras estão interessadas em lixo
que venda. O Caetano pegou uma época boa, se fosse hoje, ele
não conseguiria gravar. Hoje só há espaço para a música banal,
elementar, o cara aprende três posições no violão e já toca em
uma banda.

Vai ter Festival de Música Nova em 1999?


Não sei, este ano teve uma crise grave na Prefeitura e agora é
que estão me pagando. O Itaú Cultural bancou uma parte, mas
havia o combinado da parte da Prefeitura. Eu recebi a primeira
parte do pagamento no último dia 20. No próximo dia 20 vou
receber o resto.

De quanto é esta dívida?


Uma mixaria R$ 25 mil. E ainda dividiram em duas vezes.
Dinheiro que eles pagaram para a Banda Mel, uma banda
vagabunda. O cachê menor dos shows da praia era R$ 23 mil,
Chitãozinho e Xororó custou R$ 100 mil. Um festival e ainda
demoraram para pagar, não me davam satisfação, eu tinha que
ficar em cima deles. Adiantei alguma coisa do meu bolso, hotel,

160
ENCONTROS

restaurante, deixei pendurado o cachê dos músicos. Afinal, eles


nasceram para sofrer. Os músicos eruditos, não os populares.
O secretário Gondim, a bem da verdade, se esforçou para dar
tudo certo. Ele chegou a adiantar R$ 5 mil. Ele tirou da verba
que ia para o teatro, aí paguei uma parte das dívidas. O Festival
de Música Nova de 1999, para ser em Santos, tem que ser em
bases totalmente diferentes. A gente sempre fez no trabalho da
confiança, não há contrato, nestes 35 anos nunca tive problema
com governo nenhum. Agora, se não tiver um contrato, uma
garantia sólida, não faço em Santos. Não quero arriscar mais,
não estou na idade.

161
Gilberto Mendes,
a nota erudita
Por André Rosemberg
GILBERTO MENDES

Gilberto Mendes,
a nota erudita
Por André Rosemberg

Originalmente publicada
na revista Página Central, n. 14,
em fevereiro de 1999.

O senhor ultrapassou os 50 anos de carreira. Como o senhor


analisa sua trajetória musical?
A arte é uma questão de acúmulos de conhecimento e de
técnica. A linguagem varia em função dos anos. Escutam-se os
compositores, aprendem-se novas técnicas. As primeiras obras
que eu fiz, que ninguém tocava e eram guardadas na gaveta,
seguiam o modelo tonal dissonante, de inspiração de Debussy,
Prokofieff, Stravinsky. Toda a pessoa que atinge a minha idade
passa por três grandes momentos: o início, o meio e o momento
em que me encontro atualmente, com a vida e a obra consolida-
das. Sempre fui um autodidata e era influenciado pelo material
que eu estudava. Os modernos ainda eram Stravinsky, Schoen-
berg, Bartok. Depois, passei por um breve momento em que
privilegiei a música brasileira, rompendo o espírito cosmopolita
que sempre marcou minha obra. Nos anos cinquenta, aproximei-

164
ENCONTROS

-me do Partido Comunista, pois eu recebia críticas alegando que


minha música era universalista e não se aproximava da realidade
nacional. Acabei por acatá-la e me enfronhei no folclore brasi-
leiro para adicionar elementos locais a minha produção. Depois,
formei um grupo de vanguarda em São Paulo, ligado aos poetas
concretos. A intenção do grupo era desenvolver um conceito
conhecido como “música nova”. Fomos os pioneiros em todos
os lances de vanguarda, na linha de Pierre Boulez, John Cage.
Fizemos música aleatória, happenings, música eletrônica, teatro
musical, música serial e integral. E sempre procurando fazer
música que não fosse igual à música europeia e à americana,
mas composta com caráter peculiar nosso.

Brasileiro?
Brasileiro no sentido de ser diferente do que se produzia fora.
Música pesquisada, trabalhada, mas que não imitasse a produção
externa. Brasileira nesse sentido. O movimento evoluiu para o
lançamento de nosso manifesto de “música nova”, a criação, em
1962, do Festival de Música Nova de Santos, o mais antigo de
toda a América. Santos, estranhamente, produziu dois dos cinco
compositores brasileiros que têm maior trânsito internacional:
eu e o Almeida Prado.

Como está o Festival?


Talvez eu nem faça o festival em Santos. Está muito difícil. O
poder público local não apoia a cultura. Ano passado, demoraram
quatro meses para pagar a verba do festival. Fiquei devendo para
músicos. Foi horrível. Se este ano não fizerem como eu quero,
realizo o festival apenas em São Paulo e o prefeito levará em sua
história a honra de ser conhecido como o responsável por ter
acabado com o festival.

Qual é sua formação?

165
GILBERTO MENDES

Comecei a estudar música aos 19 anos. Quando criança brin-


cava de ser músico, imitando maestro. Mas não tinha dinheiro,
meu pai havia morrido e decidi estudar direito. Pensava em ser
advogado, juntar dinheiro e comprar um trombone. Ser um trom-
bonista amador: também pensei em ser um escritor, desses que
cultivam amor à música, como Thomas Mann, Érico Veríssimo.
Fui convidado por um cunhado, o Miroel Silveira, professor da
ECA-USP de Teatro, a voltar para Santos tratar da minha asma e
entrar no conservatório. Na realidade, o único estudo acadêmico
que tenho. Lá, estudei harmonia com o maestro italiano Savino
de Benedictis, professor do Mário de Andrade. O conservatório
de Santos era muito bom, de propriedade de Antonieta Rudge
que, junto com a Guiomar Novaes e a Madalena Tagliaferro
foram as três mais brilhantes pianistas que o Brasil já teve.
Mas eu tinha que trabalhar. Fui bancário, funcionário público e
larguei o conservatório. Mas, imagine, em cima de um exercício
de harmonia daquela época, ampliado e melhor desenvolvido;
eu compus uma das minhas últimas peças corais para acom-
panhar o poema “O anjo esquerdo da história”, do Haroldo de
Campos. O curioso é que a música é fruto de um mero estudo
antigo de harmonia.

Quais os compositores em que você se espelhava?


É uma lista vasta. Praticamente todos os compositores da
história da música ocidental e oriental. Eu gosto de tudo quanto
é música... Boa, né? Todos os estilos. A Revista da USP me pediu
um artigo sobre o seguinte tema: “Cânone na música”. Eu fiz meu
cânone, incluindo também a cultura oriental e música popular
americana: fox trotes, jazz. Quando vou a Nova York trago mais
desses discos do que música erudita.

Então o senhor não nutre nenhuma birra contra a música


popular?

166
ENCONTROS

Existe uma rixa atual com MPB, porque ela vem tomando
muito espaço. Mas é uma luta entre categorias, luta de classes.
Hoje em dia, o compositor erudito não tem vez. Se alguém vai
fazer um filme, convida-se o Caetano Veloso ou o Chico Buarque
para compor a trilha sonora. Antigamente pediam para nós. Nos
filmes da Vera Cruz dos anos de 1950, os compositores são Claudio
Santoro, Guerra Peixe, Camargo Guarnieri, Francisco Mignoni. Há
uma luta de espaços. O músico popular entra em áreas que eram
só nossa e abocanham o quinhão maior. Quando o Tetro Municipal
de São Paulo completou 75 anos me encomendaram um concerto
para piano e orquestra. É uma obra em que o compositor leva dois,
três anos para realizá-la. Eu fiz em pouco mais de três meses. Um
trabalho imenso. Hoje em dia eu não sei como fiz aquilo. Para a
mesma ocasião convidaram o Egberto Gismonti. Ele ganhou cinco
vezes mais do que eu para fazer uma música que ele deve ter levado
três dias para compor, porque ele fez por computador. E eu ainda
paguei os copistas do meu bolso. É sempre assim, pagam muito
menos para os músicos eruditos. Para fazer o Festival de Música
Nova do ano passado, pagaram-me 25 mil reais com quatro meses
de atraso. Em um festival de música popular na praia, a banda que
ganhou menos, levou 23 mil reais. Chitãozinho e Xororó, a paixão
do prefeito atual de Santos (Beto Mansur, do PPB) recebeu cem
mil reais. Eu não tenho nada contra a música popular, mas ela está
acabando. Já foi muito boa, mas está em processo de extinção.
Nunca a música popular foi tão ruim, tão feia como agora. E esse
é um fenômeno mundial. Atualmente, um violonista aprende três
posições e forma uma banda. O que importa é aquilo ser reprodu-
zido em um volume extravagante. A melodia também não existe
mais, recita-se a letra. Para quem ouviu Led Zeppelin e Beatles...
Hoje, há uma precariedade sensacional. Um grupo como Sepul-
tura ter fama internacional é absurdo: o rock brasileiro está em
um nível inqualificável. O rock, atualmente, tornou-se, inclusive,
a bandeira dos neonazistas.

167
GILBERTO MENDES

E em que pé está a música erudita?


A música erudita é eterna, pois ela vive em um outro nível de
existência. O compositor compõe para ele mesmo. Se ele nunca
for tocado, ele continuará compondo. O popular é diferente: está
na faixa da comunicação de massa. Se ele não tiver público, ele
está acabado. A música erudita está em crise porque o mundo
está em crise. Uma crise, digamos, existencial. Vivemos em um
momento com muita informação. O compositor do passado
vivia a música do seu tempo. Hoje em dia com os discos, com as
partituras e as pesquisas musicológicas, as pessoas têm acesso a
informações até da Grécia Antiga e das outras culturas orientais.
Cria-se uma dificuldade para definir a linguagem. É o chamado
período pós-modernista: uma espécie de vale-tudo. Ainda com
a sobrevivência do que se chamou música nova, a retomada da
Escola de Viena de Schoemberg, levada às últimas consequên-
cias. Uma música pensada, estrutural, cerebral.

Fazendo, às vezes, papel de advogado do Diabo: essa música


moderna não é muito complicada de ser assimilada? Fazendo
uma comparação com os clássicos, Beethoven, Mozart, mesmo
Stravinsky. Apesar de serem eruditos eles são mais “fáceis” de se-
rem escutados. A qual público se destina a música erudita atual?
Há coisas paradoxais: se por um lado a música de hoje é
muito mais difícil e tem contra si a mídia, às vezes, quando não
há outra alternativa popular, a própria mídia promove grandes
nomes que têm resposta popular. Por exemplo, há dois anos,
Pierre Boulez esteve no Teatro Cultura Artística de São Paulo.
Foi um sucesso. O teatro transbordou de gente. A maioria odiou
o concerto. Mas foi lá. Era status. É necessário ter muita edu-
cação em música contemporânea para gostar do Boulez, mas
o teatro lotou. Foi a oportunidade dos grã-finos vestirem suas
roupas de luxo e broches de pérola. Se eu tivesse trazido o Pierre
Boulez, teria sido assistido por um número pequeno de pessoas,

168
ENCONTROS

o mesmo público do Festival. Mas é inegável que a música é


difícil. Esse é um problema que data do romantismo, período
no qual a música se torna individualista e pessoal. Quanto mais
individualista a música, mais difícil ela se torna. A música nos
períodos anteriores funcionava como um código comum de
comunicação. Ninguém queria ser estrela. Frequentemente, o
compositor utilizava a música de outro músico, sem pedir licen-
ça. Havia desinteresse em ser dono de alguma coisa. A música
da segunda metade do nosso século foi longe demais e pagou
o preço. Perdeu totalmente seu público. Embora, atualmente, a
música que está sendo produzida resgata os períodos antigos
e misturam-se outras culturas. A minha música, por exemplo,
sempre foi acessível. “Beba Coca Cola”, uma das minhas peças
mais famosas, é executada nos cinco continentes. Sempre refletiu
algo reconhecível para o público. Ela é experimental, mas tem
uma ponte de ligação. Entre os anos de 1950 e 1970 houve uma
predominância da música estrutural que realmente afastava o
público. Hoje não existe mais hegemonia.

O que caracteriza a música experimental?


A pesquisa e uma organização nova do material sonoro, sob
todos os aspectos. Novas formas melódicas e sintaxes melódicas.
O compositor, além de experimentar aspectos novos de compo-
sição, procura criar um sistema que seja próprio dele. Ele não
compõe nem mais sobre um sistema comum, como foi o sistema
tonal dos clássicos. Por isso torna-se muito difícil para o público
leigo. É interessante... Para iniciados. É extremamente matemá-
tico. O Boulez tem uma música chamada “Estruturas” que ele
não compôs nenhuma nota dela. É extremamente matemática.
A partir de cálculos meticulosos, ele criou uma canção. Ele não
ouviu nenhuma daquelas notas. Foi tudo calculado. Há a música
concreta que faz montagem de ruídos. Por exemplo, o barulho de
uma colher raspando em uma tampa de panela. Depois, grava-se

169
GILBERTO MENDES

em velocidades diferentes. Ou em uma oitava acima (rápido) ou


em uma oitava abaixo (lento). A música concreta é uma colagem
de sons não musicais.

Dá para se viver como compositor?


De jeito nenhum. Eu fui professor de música, funcionário
público, bancário. Depois fui dar aula na ECA-USP.

Paga-se bem?
No Brasil é muito raro ser pago pela peça. Depende do tama-
nho dela. De quem encomenda. Na Europa paga-se mais. Mas
é muito instável.

O que o senhor está compondo atualmente?


Tenho muito trabalho, sabe? Encomenda de conjuntos e
instrumentistas brasileiros e internacionais. Agora, estou com-
pondo uma ópera, com libreto de Dante Pignatari, sobre um
poeta japonês, chamado Issa. Estou reunindo as 31 canções
que compus, em mais de 40 anos de trabalho. Além disso, estou
escrevendo um romance.

Um romance?
Quando eu completei 70 anos e fui aposentado compulso-
riamente da USP, para seguir lecionando para a pós-graduação,
tinha que me doutorar. Eu não estava interessado, então disse que
só faria se fosse uma tese sobre mim mesmo. O pessoal aceitou e
então escrevi uma tese sobre meu trabalho, mas em um formato
que lembrava um script cinematográfico. Essa tese virou livro e
saiu publicada pela Edusp. A partir dessa primeira experiência,
por causa de elogios sobre meu trabalho, comecei a escrever um
livro ambientado em Santos, durante a Segunda Guerra, sobre o
compositor que eu não fui, ou seja, um personagem que se dedica
à música desde criança, de família rica e tempo para se dedicar

170
ENCONTROS

integralmente à música. A história traz também um episódio real


de espionagem que eu vou romantizar. É interessante. Mas não
sei se vou seguir com ele. Tenho um amigo muito sincero e vou
mostrar-lhe as trinta primeiras páginas já escritas. Se ele disser
“vá em frente”, continuo. Se não, sigo a compor apenas música.

171
GILBERTO MENDES

Um grão de poesia
nas dunas da MPB

172
ENCONTROS

Por Irineu Franco Perpetuo

173
GILBERTO MENDES

Um grão de poesia
nas dunas da MPB
Por Irineu Franco Perpetuo

Originalmente publicada
na revista Concerto,
em agosto 2002.

Que cara tem a sua música de hoje?


Curiosamente, estou vendo agora, na televisão, um filme de
1930, do Ernst Lubitsch, chamado Monte Carlo. Eu vi esse filme
pela primeira vez quando tinha uns nove anos de idade. Ele foi
um grande formador da minha personalidade, porque já naquela
idade eu sentia aquele anseio de Europa. Eu gostava muito da
música do filme – era uma música popular, mas muito croma-
tizada, muito rica harmônica e melodicamente – e não gostava
de música brasileira. Ia ouvir Francisco Alves, Aracy de Almeida
e achava chato, muito quadrado, muito tonal... Eu diria que,
hoje em dia, eu continuo assim, de certo modo. Minha música
é cosmopolita, é internacionalista, mas não excluindo o Brasil.
Eu tive uma fase de muita experiência dos anos de 1960, com a
poesia concreta, e peças como “Beba Coca-Cola”, “Nascemorre”

174
ENCONTROS

etc. Mas, hoje em dia, estou fazendo música instrumental. Gosto


de fazer música acústica e acabei ficando mais nessa área, sem
enveredar na música eletrônica.

Como o senhor se sente ao ver que a grande imprensa, ao falar de


música eletrônica, trata os DJs e Stockhausen da mesma forma?
Eu acho que é feita uma confusão de terminologia. Música
eletrônica é um verbete de qualquer dicionário de música con-
temporânea: nasceu lá em Colônia, com o grupo do Stockhausen,
com origem mais remota no grupo francês, que era liderado pelo
Pierre Schaeffer... Agora, a mídia de hoje usa como algo surgido
da “technomusic”, e aquilo não é música eletrônica! É um rock
com sons eletrônicos. A música eletrônica é toda uma estética, é
outra coisa. A confusão é fruto dessa espécie de luta entre duas
categorias, falando em termos de luta de classes: a música po-
pular e a música erudita. A música erudita vai ficando cada vez
mais por baixo, desprestigiada, e a popular entrando no lugar, e
sendo até aceita pela intelectualidade como a música “erudita” do
momento. Se você perguntar para qualquer intelectual brasileiro
quais são os músicos de que ele gosta, ele vai falar de Caetano
Veloso e Chico Buarque, que são os “eruditos” para ele.

Como se colocar diante dessa luta?


Eu não tenho queixa da mídia, apenas vejo essa situação.
Frente a esse fenômeno da massa, e da mídia que manipula essa
massa, evidentemente é a música popular que vai predominar.
Isso é uma fatalidade.

Há saída para a música erudita?


Isso é uma coisa histórica. Como vamos prever a história?
Você pega a União Soviética: em um dado momento, com todos
os defeitos que possa ter tido, ela conseguiu fazer da alta cultura
a cultura de massa. Houve um momento, na União Soviética, em

175
Existe essa espécie de luta entre
duas categorias, falando em termos
de luta de classes: a música popular
e a música erudita. A música
erudita vai ficando cada vez mais
por baixo, desprestigiada, e a
popular entrando no lugar, e sendo
até aceita pela intelectualidade
como a música “erudita” do
momento. Se você perguntar para
qualquer intelectual brasileiro
quais são os músicos de que ele
gosta, ele vai falar de Caetano
Veloso e Chico Buarque, que são os
“eruditos” para ele.
ENCONTROS

que o povo, em larga escala, em massa, ia ver balé, concertos,


peças de teatro de Tchekhov, lia abundantemente... Agora, de
um capitalismo liberal selvagem em que vivemos, e que é bada-
lado até pela mocidade de hoje, não dá para esperar isso. Esse
capitalismo só visa o lucro, e algo que só visa o lucro não pode se
interessar por música erudita. A alta cultura não dá dinheiro. Eu
acredito que, com essa hegemonia da massa, e o domínio da mí-
dia sobre ela, a música erudita vai ficar um negócio como era na
Idade Média, quando os monges organizavam o canto gregoriano
e aquilo ficava para eles mesmos, para fins de culto e curtição
especulativa... Uma coisa de grupo, música de compositor para
compositor. Não estou preocupado, porque a mim me satisfaz
compor meramente como exercício especulativo – compor para
mim, compor para você, compor para meus amigos.

Qual a tendência estética hegemônica hoje na música latino-


-americana?
Uma boa parte dos compositores ainda seguem aquela
linha que é uma consequência da Escola de Darmstadt, que
partia de um estruturalismo muito cerebral, e fez uma música
extremamente difícil para o público. As novas linhas, não tanto
na América Latina como na Europa e EUA, são de música mais
aplicada ao cinema e aos balés; a música é erudita, no nível de
alta cultura, mas mais atraente para o público. É o Nyman fazen-
do música para cinema, o Philip Glass... Eles fazem uma música
que tem os ingredientes da música moderna, mas é novamente
atraente, acessível. Essa linha acho que é a salvação para mim.

Seu nome é normalmente associado, no Brasil, à difusão da


Escola de Darmstadt. Agora o senhor acha que a saída está na
“nova simplicidade”?
Por um lado, minha base técnica é essa, a música estrutu-
ralmente bem fundamentada, a ideia de série. Eu acho que, em

177
GILBERTO MENDES

um dado momento, o Boulez, o Stockhausen, o Nono e o Berio


fizeram uma música magnífica. Mas a continuação disso levou a
música a um beco meio sem saída, de enorme perda de público.
A música é boa, a técnica é boa, mas foi aplicada de uma maneira
– para o meu gosto, pelo menos – não expressiva, não atraente,
que não atrai o público.

O senhor virou neoclássico?


Eu me sinto, na verdade, três compositores. Eu tenho um
aspecto de sempre ter gostado do novo, do moderno, de uma
música de vanguarda; tenho também um lado, que eu não cha-
mo de neoclássico, mas de clássico-romântico; e também tenho
um lado muito popular. Eu poderia ter sido tranquilamente
um compositor popular, se eu tivesse querido. Muita gente não
entende minha fase atual, achando que eu virei neoclássico,
mas não é nada disso: eu diria que é uma música semântica. Eu
manipulo significados musicais. Então, eu identifico um signo
musical grego, algo da costa oeste americana, algo de uma praia
de Trieste, e procuro dar unidade a significados muito distan-
ciados no tempo e no espaço. O que exemplifica bem isso é a
minha música “Ulysses em Copacabana surfando com James
Joyce e Dorothy Lamour”. É um trabalho grande de experiência,
de pesquisa musical.

Que fisionomia vai ter o Festival Música Nova de 2002?


A fisionomia de homenagem aos meus 80 anos, ao que pare-
ce. Eu não tenho nada a ver com isso, a orquestra e a Secretaria de
Cultura de Santos é que quiseram fazer essa homenagem. Eu não
estava querendo fazer isso, porque, como sou eu que organizo o
Música Nova, seria o mesmo que eu me homenagear. Mas, daí,
houve uma insistência da Secretaria em fazer essa homenagem
dentro do festival. A marca, então, vai acabar sendo os meus 80
anos, que até me assustam um pouco.

178
ENCONTROS

A grife dos 80 anos pesa para o senhor?


Pesa um pouco. A gente fica um pouco assustado de ter
tanta idade. Por dentro, eu me sinto muito moço. Mas eu tenho
80 anos, uma idade muito frágil – qualquer doencinha e a gente
embarca. Felizmente, fora a asma, a saúde está boa. Mas logo
passa. Quando fiz 60 anos, fiquei assustado também. Acho que
quando fizer 81, 82 anos, a coisa normaliza. Quando fizer 90, o
susto vai ser bem maior...

A USP vai abrigar o seu acervo neste ano?


José Eduardo Martins esteve aqui em casa. Vão botar dentro
da USP, dentro do Departamento de Música, todos os meus
manuscritos, todo o meu acervo, como já tem lá o do Henrique
Oswald. Vão inaugurar uma sala com o meu nome. É agora para
o segundo semestre.

179
A música
sempre nova de Gilberto
[sem crédito]
GILBERTO MENDES

A música sempre nova


de Gilberto
[sem crédito]

Originalmente publicada
na Revista E, n.72,
em maio de 2003.

O melhor ponto para começarmos talvez seja do atual mo-


mento. O senhor está basicamente compondo agora? Alguma
música nova?
Somente uma. É que no ano passado eu passei por uma crise
com o governo de Santos – profundamente anticultural, diga-se
de passagem. Em protesto contra a retirada de dois concertos
fundamentais para o Festival de Música Nova, eu disse a eles que,
se eles cancelassem esses concertos, eu cancelaria o festival. E
foi o que aconteceu. Eu não queria fazer um festivalzinho vaga-
bundo. Mas houve um reboliço muito grande na cidade, houve
manifestações do pessoal de teatro na Câmara de Vereadores,
caras pintadas e essas coisas – os atores são sempre espalhafa-
tosos. Eu fiquei até surpreso. Prova de que, ao menos por esse
lado, eu sou muito estimado. Veio uma carta de solidariedade
até de Nova York.

182
ENCONTROS

É que o Festival de Música Nova se tornou tradicional.


Ia fazer 40 anos. Eu recebo correspondência do mundo todo
por causa do festival, recebo ofertas muito atraentes. Aliás, os
opositores do festival – na verdade, apenas um: o governo – me
acusavam de não ser um bom produtor. Mas desde quando eu
sou produtor? Eu sou um compositor. O festival é um negócio que
eu faço por amor, pela divulgação da música, é uma coisa que
foi acontecendo ao longo dos anos. Se eu fosse produtor eu iria
querer ganhar dinheiro com o negócio, se eu fosse empresário
viveria disso. Quando, na verdade, eu ponho dinheiro do meu
bolso todos os anos.

Como surgiu a ideia de fazer este festival?


Ele nasceu em 1962. Foi naquela época que a gente lançou
o Manifesto de música nova na revista Invenção, dos poetas
concretos. Éramos eu, Willy Corrêa de Oliveira, Rogério Duprat,
Damiano Cozzella e com grande apoio do pessoal da poesia con-
creta: Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari.
Na verdade, o festival é até anterior ao manifesto, que data de
1963. A ideia original era basicamente mostrar a nossa música.
A gente estava tomando uma posição do que era a música brasi-
leira, com manifestos, debates e um grande apoio da imprensa,
que naquela época gostava dessas coisas. Aos poucos, o festival
foi crescendo com a presença daqueles que nos acompanhavam.

Olhando para esse festival hoje, 41 anos depois, que tipo de


avaliação o senhor faz dele?
Aquilo foi fruto de um momento, não daquele momento, mas
de uma era, digamos assim. Houve um tempo em que se gostava
muito de polêmica, de tomadas de posição. Hoje em dia ninguém
mais toma posição de nada. Você pode fazer o que quiser que
ninguém discute, está cada um na sua. Mas naquele tempo era
diferente. Eu me lembro de que dez anos antes um grupo do Rio

183
GILBERTO MENDES

de Janeiro, com o Koellreuter, lançou o Manifesto Música Viva. A


gente estava nessa época, queria uma renovação da música brasi-
leira, a qual considerávamos muito atrasada em relação ao que se
fazia no mundo. A linguagem musical tinha tomado outros cami-
nhos, tinha se desenvolvido muito, novos materiais para compor
música eletrônica, música concreta, a ideia da música aleatória,
do teatro musical, enfim, uma série de coisas das quais o Brasil
estava por fora com aquela sua proposta nacionalista que vinha
ainda do tempo de Mário de Andrade, um grande doutrinador.
Tudo bem, aquilo foi válido, mas para o tempo dele. Só que os
tempos eram outros e nós queríamos uma renovação. Foi por isso
que nós lançamos uma proposta nova através de um manifesto.
Porém, aquilo foi a bandeira de um começo de um tipo de luta.
Afinal, decorridos 40 anos, nós nos perguntamos se aquilo valeu.
Eu acho que sim, sobretudo pelo incentivo que nós mesmos nos
demos, pela luta de fazer uma música diferente e tudo o mais. Só
que tudo caduca, tudo tem o seu tempo e o manifesto também.
Logo, ele não tem, hoje, importância nenhuma. O que vale é o que
aquilo nos impulsionou a fazer como música.

E sobre a produção desse grupo ao qual você pertencia? Nós


consegui-mos ter uma música brasileira de qualidade?
Sem a menor dúvida. O Brasil esteve muito atrelado à música
francesa e russa no tempo de Villa-Lobos e do próprio Camargo
Guarnieri. O grupo do Koellreutter trouxe para o Brasil técnicas
alemãs de composição, uma nova visão da música que o Brasil
não conhecia.

O senhor se refere ao dodecafonismo?


Ele principalmente. Embora ninguém do nosso grupo tivesse
contato com Koellreutter – não éramos seus alunos e nem está-
vamos propriamente retomando a sua bandeira – o que havia
em comum era a ideia de renovação, a gente partiu de uma linha

184
ENCONTROS

alemã de música, que predominou, no mundo todo, durante uns


30 anos. Nós todos trouxemos essa inovação para a música bra-
sileira, sem dúvida nenhuma. Houve muita polêmica na época,
muita discussão, mas foi justamente disso que foram surgindo
novos adeptos, novas gerações de músicos que foram direta ou
indiretamente influenciados por esse início que demos de uma
renovação. Começaram a surgir compositores no Rio, na Bahia e
em outros lugares fazendo a mesma coisa. Ou seja, sem dúvida,
nós demos o chute inicial.

Ao contrário de Rogério Duprat, que teve uma ligação com a mú-


sica popular brasileira, o senhor nunca se encantou por ela, não?
Não por um lado. Aliás, em recentes entrevistas eu venho
dizendo que me sinto três ou mais compositores – o que não
significa que eu tenha três ou mais estilos – mas, enfim, minha
música, às vezes, beira o popular. Quando faço canções, a minha
música é quase popular. Mas, também, não é. Nesse ponto eu
diria que eu sou bem como Villa-Lobos, a natureza brasileira,
latino-americana, de abertura, muitos caminhos. O Villa-Lobos
também parece explicitamente popular, mas se você olha bem
não é. Assim é comigo. Eu diria que tenho essa aproximação
com a música popular mesmo porque eu gosto muito, embora
a minha música de formação na área popular seja a norte-
-americana, infelizmente. Eu fui formado pelo rádio – como no
filme de Woody Allen – que eu ouvia e me deliciava. Tem até um
livro que eu escrevi, que foi minha tese de doutorado na USP,
chamado Uma odisseia musical. Em uma boa parte desse livro
eu trato desse assunto, da minha ligação com o popular.

Sobre a época em que foi lançado o manifesto, você falou uma


coisa interessante sobre o nacionalismo vindo do Mário de
Andrade. Como era essa questão da abertura para o mundo
quando o país estava voltado para si próprio?

185
GILBERTO MENDES

É preciso que se compreenda que esse nacionalismo foi um


movimento de vanguarda em sua época. Ele surge no século XIX,
em pleno romantismo, como uma bandeira de modernidade
em países como a Rússia e a Polônia, que não tinham a mesma
tradição da Alemanha e da França e viram no nacionalismo
uma maneira de ter uma presença na música. E isso se projeta
no século XX, nas primeiras décadas. Se pegar o Stravinsky, por
exemplo, você vê que, como o Villa-Lobos, ele tem um resíduo
forte de nacionalismo em sua música. Chopin fez música com
base no nacional. Ou seja, esse nacionalismo das primeiras déca-
das no Brasil, com o próprio Mário de Andrade, era uma bandeira
modernista. Só que tudo muda, se transforma, até que deixa de
ser. E aqui no Brasil foi muito forte, coincidiu ainda com aquelas
discussões entre um partido político e o manifesto de Zhdanov,
um teórico soviético que foi muito discutido nos anos de 1950.
E o Camargo Guarnieri foi fundo nisso, escreveu aquela carta
aberta contra o dodecafonismo, contra o Koellreutter.

E como era a reação da época ao manifesto?


A música brasileira era muito marcada pelos nacionalistas.
Nós é que éramos contra. Sem falar que o próprio Partidão, por
causa dessa discussão do Zadanov, deu força a ele, e compositores
que começaram a fazer dodecafonismo, como Santoro, por exem-
plo, largaram para seguir o partido. Isso deu muita força para o
nacionalismo em um momento em que, no mundo, ninguém
estava ligando mais para isso, só o Brasil. Logo, nós tomamos essa
bandeira, para dizer que nós podíamos continuar na esquerda,
mas não precisávamos, por isso, ficar fazendo música inspirada
no folclore. Há outras coisas a fazer. O próprio nacionalismo de
Villa-Lobos é apenas um aspecto da música dele.

Poder-se-ia dizer, então, que o Partidão atrasou o desenvolvi-


mento da música brasileira?

186
É preciso que se compreenda
que esse nacionalismo foi um
movimento de vanguarda em sua
época. Ele surge no século XIX,
em pleno romantismo, como uma
bandeira de modernidade em
países como a Rússia e a Polônia,
que não tinham a mesma tradição
da Alemanha e da França e viram no
nacionalismo uma maneira de ter
uma presença na música. E isso se
projeta no século XX, nas primeiras
décadas. Se pegar o Stravinsky, por
exemplo, você vê que, como o Villa-
Lobos, ele tem um resíduo forte de
nacionalismo em sua música.
GILBERTO MENDES

Nesse aspecto eu acho que sim, houve uma refreada. Já tinha


começado uma certa atualização com a geração do Cláudio San-
toro, Guerra Peixe, da Eunice Catunda. Isso era uma renovação
que foi truncada pelo Partidão. Eram todos comunistas, e nós
também. Eu me lembro de que fazia música para as gavetas,
mas que eram músicas cosmopolitas – burguesas, como dizia o
Partidão. Até que deixei de fazê-las. Fiz muita música naciona-
lista nessa época.

E o senhor gostava dessa música nacionalista?


Eu tenho até um certo cuidado para contar isso. Alguns com-
positores, como o Rogério e outros, podem até ter jogado fora.
Eu, que sempre tive posições, mas nunca fui radical, não joguei.
Eram porcarias, mas eu tinha feito, não adianta jogar fora. Então
guardei como recordação. Com o tempo eu passei a ser professor
na USP etc., e os colegas meus, sobretudo o pianista José Eduardo
Martins, começaram a pesquisar minha vida. Nós conversávamos
muito e José Eduardo quis ver essas músicas antigas. Eu acabei
mostrando para ele e não é que ele tocou todas?

E como te soaram?
Pós-modernas. Curiosamente, essa produção minha dessa
época está agradando muito como algo com um certo ar de
pós-modernismo, que parece ter voltado. Um interesse por coi-
sas étnicas que ela tem. Mês de março, foi editada na Bélgica a
minha “Sonatinha mozartiana”, uma paródia que fiz de Mozart
com ritmos brasileiros. Há um pianista norte-americano que
a toca nos EUA, no Caribe, já gravou e tudo o mais. E veja você
que eu as compus em 1953. Dia desses recebi um telefonema de
uma professora da Universidade do Texas que tinha ouvido esse
pianista e tinha ficado muito intrigada com a peça. Ela queria
saber como obter a partitura. Eu acabei mandando uma cópia
do manuscrito para ela. E há outras. Tem um ponteio – essa já de

188
ENCONTROS

uma fase bem nacionalista mesmo – que eu fiz para a orquestra.


Na época eu não era conhecido e não tinha nem para quem
mostrar, participei de um concurso, mas não ganhei. Ela ficou
guardada. Recentemente, um maestro aqui de Santos quis ver
essa peça e tocou. E não é que ela soou bem? Eu, que sempre
pensei em algum dia fazer uma revisão dela, acabei descobrindo
que não há nada a rever.

189
“Fui um autodidata”
Por Gustavo Klein
GILBERTO MENDES

“Fui um autodidata”
Por Gustavo Klein

Originalmente publicada
na At revista,
em 14 de janeiro de 2007.

O Festival Música Nova completa 45 anos de existência. Que


avaliação o senhor faz?
O mais importante foi o intercâmbio da música clássica bra-
sileira contemporânea com o que é produzido no mundo todo.
Mas eu brinco que o festival foi sempre uma praga da qual eu
queria me livrar, pelo trabalho que dava. Era algo que requeria
um produtor cultural, o que agora tem. Fico feliz que, eu tendo
desistido dele, uma grande instituição o tenha herdado, o Centro
Universitário Maria Antônia, que agora tem o suporte da USP.
Foi o ideal. E aqui em Santos, a sociedade Aplauso, na figura de
alguém da importância do Luiz Gustavo Petri (que, aliás, é filho
de uma cantora que participou muito do Música Nova). O Festival
continuou sem mim, agora sou uma figura para enfeitá-lo e dar
palpites. Só que a música pela qual nós batalhávamos não existe

192
ENCONTROS

mais. O mundo se transformou, seguiu em frente. Minha própria


música foi em frente, se renovou.

O gosto pela música clássica foi influência dos pais?


Meu pai era médico e minha mãe professora. Ambos amavam
música, mas eu fiquei órfão de pai muito novo, aos cinco anos,
e minha mãe se mudou para São Paulo. Ela, para se distrair, ia
muito ao Alto da Lapa, que naquela época era só mato, ver uma
amiga cuja enteada estudava piano. Eu, como era pequeno,
ia sempre junto. Íamos lá ouvir música e foi ali que comecei a
abrir meus ouvidos para clássico como Beethoven, Schubert,
Brahms, Chopin...

As referências musicais mais populares, dessa época, eram na


maioria norte-americanas?
Tanto no rádio quanto no cinema, o mundo era bem mais
dividido naquela ocasião, mais cosmopolita. Da Alemanha, por
exemplo, vinha muita coisa interessante. E de tudo: foxtrots, tan-
gos, tudo. Era uma música popular, mas refinadíssima. A ponto de
hoje, cineastas como Werner Fassbinder ou Win Wenders usarem
essas canções, nas versões originais, em seus filmes, à seme-
lhança de Woody Allen. E da Alemanha ainda vinha o charme da
era dos cabarés, do expressionismo. O cinema alemão também
competia com o norte-americano, especialmente nos musicais.

Foi a Era do rádio.


Sou da Era do rádio, aquele clima bem mostrado no filme
do Woody Allen. Me criei, musicalmente, ali. Não era usual na-
quela época ter muitos discos, porque eram caros, e o rádio era
realmente cultural, coisa que não é mais. Pegávamos em ondas
longas rádios estatais de Buenos Aires e de Montevidéu, que
transmitiam música clássica o dia inteiro. Foi minha educação
musical. Paralelamente, sempre gostei muito de música popular

193
GILBERTO MENDES

norte-americana. Paciência, meu ouvido é colonizado. Diria


que, graças a Deus, pela melhor música popular do mundo,
que é a dos Estados Unidos. É, afinal, a única que atingiu o
nível da erudita. O pianista da orquestra de Tommy Dorsey,
por exemplo, estudava com o Shöemberg. Isso se reflete na
música que faço até hoje, minha formação harmônica deriva
muito das big bands.

E quando começou a estudar música?


Não estudei quando pequeno, porque minha mãe ficou pobre
com a morte do meu pai. Teve que trabalhar muito. Não podia
estudar, mas brincava muito. Me lembro de fingir ser regente de
orquestra, de ouvir as músicas no rádio ou nos filmes e tentar
cantarolá-las depois. As que não me lembrava da segunda parte,
por exemplo, eu inventava. Já era o lado compositor aparecendo.
Mas não estudei música. Fiz o ginásio, fui até colega da Cacilda
Becker no Colégio José Bonifácio. Chegamos a dançar juntos em
alguns bailes dos estudantes da Sociedade Humanitária.

Então a música veio apenas na faculdade?


Que nada. Quando terminei o colégio, fui estudar direito
em São Paulo. O Miroel Silveira, meu cunhado e uma figura de
destaque na cultura santista, era filho do Valdomiro Silveira, que
hoje é até nome de rua aqui em Santos e era advogado. A família
achava que, talvez, depois de me formar, eu poderia trabalhar
no escritório de advocacia deles. Fiz dois anos da faculdade, até
que o próprio Miroel, que também fazia música além de ser ad-
vogado, me perguntou porque eu estava me torturando fazendo
direito, se não enxergava que, na verdade, era músico. Que ficar
em São Paulo era ruim para mim em vários aspectos, até porque
sofro de asma e lá o clima não é bom para a minha saúde.

Foi aí que passou a se dedicar a música...

194
ENCONTROS

Atendi seu apelo. Tudo o que conquistei devo a ele, naquele


momento, tanto pelo lado profissional quanto pela minha boa
saúde, já que me apresentou, também, a natação e a ginástica.
Vim para Santos morar com ele e minha irmã e comecei a estudar
no Conservatório Musical de Santos. Tinha 19 anos.

A ideia já era se tornar compositor?


Eu queria estudar trombone, admirava o Tommy Dorsey, que
tinha uma das três melhores big bands do mundo, em minha
opinião, ao lado das de Benny Goodman e Duke Ellington.

Seu estudo musical foi prejudicado, também, pelo fato de a


Europa estar indisponível naquele momento, por conta da
Segunda Guerra Mundial. Foi muito ruim?
O mundo parou. Não se fazia nada, não se tinha qualquer
informação, a não ser das batalhas. Foi um estudo lento, pouco
estimulado. Em outros tempos havia bolsas para aprender na
Europa etc. Mas aquilo era, obviamente, impossível. Ir para a
Europa, naquele cenário, só na FEB (Força Expedicionária Bra-
sileira). Aliás, quase fui. Dois de meus amigos foram, inclusive
um que era filho do então prefeito de São Vicente, Bittencourt,
que foi lutar na Itália.

A família também deve ter sido uma oposição ferrenha ao se-


nhor largar os estudos e se dedicar à sua paixão...
Claro que minha mãe não gostou, mas ela também era apai-
xonada por música e, por isso, não ligou tanto. Meu irmão mais
velho, que era professor na USP, sim, fechou a cara quando, todo
feliz, fui lhe mostrar minhas partituras. Ele queria que eu me tor-
nasse um acadêmico, como ele. Coisa que, ironicamente, acabei
sendo, anos mais tarde. Mas o progresso nos estudos musicais
foi lento, também, por outras razões. Confesso que, na mesma
época, caí em uma vadiagem muito grande.

195
GILBERTO MENDES

Por quê?
Ah, eu morava na ponta da praia, que era um Havaí. Ima-
gine Santos sem nenhum prédio alto. Era um paraíso. Eu tinha
duas canoas em casa, e na rua não faltavam vagabundos para
me ajudar a levá-las para o mar. Aquele mar era meu. As praias,
a Ilha das Palmas, o mar, o mato. Andávamos por tudo aquilo.
E, nos fins de semana, o negócio era dançar. Festas, bailinhos,
namoro... O Roberto Mário Santini era meu colega de dança no
antigo Clube XV. Minha mãe, claro, se preocupava, queria que
eu entrasse para o Banco do Brasil.

E no que resultou essa pressão?


Arrumei um emprego, claro. Fui até secretário do conserva-
tório onde estudava. Depois trabalhei no Banco Financial Novo
Mundo, dos Domingues, aqueles espanhóis que introduziram o
jogo do bicho no Brasil. Era um trabalho mais folgado, seis horas
divididas em dois períodos. Era o emprego que eu queria, mas
minha mãe não estava satisfeita. Acabei fazendo o concurso da
Caixa Econômica Federal. Entrei e foi lá que trabalhei a vida toda
e de onde sou, hoje, aposentado. Fui para a Universidade de São
Paulo apenas depois de me aposentar.

Como gerenciou a carreira no banco com a musical?


Sempre estudando e trabalhando conforme dava. Comecei a
compor, mais para mim mesmo. O curso no conservatório ficou
incompleto, porque muitas matérias eram dadas no horário em
que eu estava no banco. Estudei, assim, muito, por conta própria.
Fui um autodidata, à exceção da teoria musical e da harmonia.
Não sofri influência de ninguém, nem de Camargo Guarnieri.
Depois, comecei a dar aulas de música, no próprio conservató-
rio onde estudei e também no colégio Stella Maris. Formei seis
turmas lá. Inclusive a Mara, esposa do médico Edson Amâncio.

196
ENCONTROS

O Festival Música Nova nasceu quando?


Nasceu praticamente para mostrar a música de um grupo que
era formado por mim, pelo Rogério Duprat e pelo Willy Corrêa de
Oliveira. Lançamos um Manifesto, Música Nova, em 1963, com
o fim de batalhar por aquela música, por revolucionar o cenário
musical brasileiro. O Festival começou de forma despretensiosa,
um ano antes, sem nem mesmo o nome. O advogado Afonso
Vitale, que na época era presidente da Comissão de Cultura (não
havia secretarias), bolou comigo um evento de música contem-
porânea, que duraria uma semana, e deu origem ao Música
Nova. No ano seguinte, o presidente da comissão era o Narciso de
Andrade, que quis organizar uma segunda edição. E assim a coisa
caminhou: ele cresceu, desmesuradamente, e começou a ser
conhecido internacionalmente. Não era intenção de ninguém,
como já disse várias vezes, ser empresário ou produtor cultural.
Em uma discussão recente, disseram que sou um mau produtor.
Discordo. O fato é que não sou produtor. Sempre quis acabar
com o festival e nunca consegui. Quando finalmente encerrei,
outros resolveram assumir. O que foi ótimo. Agora, fico só com
a parte de direção artística. Assim é que deveria ter sido sempre.

A música brasileira ainda sofria influência da Semana de 22?


Não acho. A Semana de Arte Moderna havia acontecido
havia 40 anos. Sua influência, para a música, era praticamente
nula. Houve um concerto da Guiomar Novaes, no Municipal,
mas quase nada.

Mas Villa-Lobos participou da Semana e, além disso, temas


ligados ao nacionalismo predominaram a partir de então.
Villa-Lobos não precisava da Semana de 22. Naquela época,
o nacionalismo na música teve seu aspecto de vanguarda nas
duas primeiras décadas posteriores, no máximo. O próprio Igor
Stravinski, em suas obras, refletia muito o folclore russo. Bartók

197
GILBERTO MENDES

também refletia o folclore daquela região da Hungria, Bulgária e


Romênia, Chopin idem. Mas nenhum deles se tornou importante
por causa disso, não era isso que os marcava. O mesmo com
Villa-Lobos. Ele seria tão bom e teria a mesma importância se
fosse norueguês, francês ou do Azerbaijão. A música dele e sua
invenção de linguagem é que eram boas e é isso que realmente
importa.

Como é, para alguém que começou a estudar música tão tarde,


no meio da guerra, se tornar referência em sua área?
Eu queria apenas ser compositor, fazer música e estar entre
os músicos. O resto foi consequência. Sempre fui, também, uma
pessoa que gostou de estar em grupo. Talvez isso venha de minha
origem comunista, esse sentimento de solidariedade, de ajuda
mútua etc. Então, o movimento que criamos – eu, o Willy e o
Rogério – ficou forte. Éramos até mais famosos na época do que
hoje. A imprensa sempre dava grande destaque ao que fazíamos,
ao mesmo tempo em que a crítica malhava. Me liguei também
a muita gente da literatura, como Haroldo de Campos e Décio
Pignatari, que estavam na crista da onda com a poesia concreta,
e fiz uma peça que ficou célebre, “Santos Football Music”, que
já foi tocada três vezes na Europa, Tudo, para mim, aconteceu
tardiamente. A vantagem é que, como estou vivendo bastante,
estou conseguindo curtir. Devo muito também ao maestro
Eleazar de Carvalho, que pegou minha música e a tocou com
a antiga Osesp no Festival de Outono de Varsóvia, um dos mais
importantes do mundo.

Falando da Osesp, como o senhor vê o atual estágio da orquestra?


Aquilo é primeiro mundo. A gente entra lá e vê aquelas salas
de trabalho climatizadas, equipes de primeira linha trabalhando
em pesquisa de música, restauração de obras antigas... É uma
coisa primorosa.

198
ENCONTROS

Mas não incomoda essa messianização do maestro John Nes-


chling, essa sensação de que tudo o que tem sido feito desapa-
recerá quando ele não for mais o diretor da orquestra?
Isso é grave. Há sempre esse medo. E, pior, é bem provável
que aconteça, que a orquestra baixe de nível quando o Nes-
chling não estiver mais lá. Além do bom músico que ele é, tem
uma personalidade forte, charme e bom trânsito, que ajudam
muito para conquistar as coisas. Antes do Neschling, a Osesp
era uma orquestra burocrática, com funcionários públicos, com
todo esse ranço. Ele imprimiu um dinamismo fora do comum,
fez novos concursos. Tirou os acomodados, trouxe músicos do
exterior e formou uma orquestra primorosa. E segue a linha do
Eleazar, encomendando músicas de compositores brasileiros
contemporâneos. Pagam bem pelas encomendas e ainda editam
o material e o colocam à venda. Assim, qualquer orquestra do
mundo que queira tocar minhas músicas pode ter acesso pela
Osesp. Eu mesmo já ganhei um dinheiro de uma orquestra de
Portugal que quis tocar uma música minha. É uma pessoa muito
culta, o que não é tão comum.

O senhor falou de sua origem comunista. Chegou a militar no


partidão em alguma fase da vida?
Em uma frente cultural, sim. Nos anos de 1950, no que cha-
mávamos de Clube de Arte, que era uma organização de massa,
como o partido chamava na época. Uma proposta de trabalhar
culturalmente as pessoas. A origem do bom teatro amador de
Santos está ali. Mas nunca atuei politicamente. Depois houve
uma decadência danada. Acho que demos tanto trabalho para
o partido que ele desistiu de nós.

O cinema é sua segunda grande paixão?


Não é a segunda. É tanto quanto a música. Em alguns
momentos, até mais. Sempre gostei muito de cinema, quando

199
GILBERTO MENDES

criança engolia toda a ficha técnica. Achava interessante saber


quem fotografou, quem fez a direção de arte, os figurinos. Revi
um dia desses no DVD um clássico, Grande Hotel, com Greta
Garbo, Lionel Barrymore, Joan Crawford. É um dos filmes
marcantes da minha vida, que definiu alguns traços da minha
personalidade, inclusive.

O senhor acompanha também o cinema contemporâneo, não?


Sem parar. Tenho o costume de assistir a, pelo menos, dois
filmes por dia, nos canais a cabo. Há obras primas sendo pro-
duzidas até hoje, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. O
cinema americano, quando se dispõe a falar sério, é excepcional,
principalmente as versões independentes de lá. E o cinemão
deles diverte. Vejo tanto filmes de arte quanto os comerciais.
Quero ver o novo 007, gostei bastante de A identidade Bourne
também. O próprio Spielberg faz as montanhas-russas diverti-
das e filmes espetaculares como A lista de Schindler, um filmão.
Curto, ainda, diretores mais antigos, como os italianos Antonioni,
Vitorio de Sicca e Federico Fellini. Me ligo muito, também, na
música de cinema, que é sempre muito boa. Gente como Alfred
Newman, autor das trilhas mais bonitas do cinema americano,
como O morro dos ventos uivantes. Outro compositor marcante
é Hugo Friedhofer, de Os melhores anos de nossas vidas, filme
que já vi umas 20 vezes e que, se passar novamente, certamente
vou assistir.

O que o senhor, como fã de cinema, acha da polêmica envolven-


do o Cine Arte e a Concha Acústica? Representantes de outras
manifestações artísticas estão se mobilizando para impedir que
a Concha seja transformada em cinema.
Sou suspeito para falar, porque gosto muito de cinema e
prefiro isso. Mas não deixo de dar razão aos outro que querem
que aquele seja um espaço para todas as artes. Acho, entretanto,

200
ENCONTROS

que o lugar é inadequado. Uma concha acústica deve ser colo-


cada em um parque, em um lugar retirado. Nunca ao lado do
maior trânsito da cidade. Tudo o que fazem lá é com microfone.
Então, não é concha acústica, é palco. Deviam fazer outra coisa
lá. Talvez o Cine Arte, mesmo. Um lugar mais arrumadinho,
limpo, sem baratas. Talvez até ature as baratas, se o som estiver
melhor do que é hoje.

Com essa paixão pela sétima arte, nunca pensou em compor


trilha para cinema?
Em março próximo estreia o primeiro filme que traz uma tri-
lha sonora assinada por mim. A direção é do meu filho Odorico e a
obra é baseada no livro O dono do mar, escrito pelo ex-presidente
José Sarney, que até escreve bem. Meus amigos comunistas me
patrulharam tanto quanto agora. Mas é um filme que fala sobre o
mar, coisa que amo, e aceitei fazer. Tem no elenco Regiane Alves,
Jackson Costa, Daniela Escobar, Pepita Rodrigues, entre outros.

Sobre o que fala o filme?


Conta histórias sobre pescadores do Maranhão. Lá você os
encontra sempre fazendo duas coisas: ou pescando ou namo-
rando. E o filme fala exatamente sobre isso: pesca e namoro.

O ano de 2006 foi marcante para o senhor, com a estreia de sua


cinebiografia, produzida pelo seu filho, e o lançamento de suas
canções em CD. Quais são as perspectivas para 2007?
O ano passado foi legal. Teve três acontecimentos marcan-
tes. Consegui, finalmente, lançar minhas canções em CD. São
composições do início da minha carreira e que pensei até em
jogar fora quando entrei para um movimento de vanguarda.
Mas pensei bem e vi que, se eu achava vergonhoso aquilo tudo,
não seria jogando fora que a coisa melhoraria... Não esconderia
de mim mesmo. Todo compositor faz suas porcarias iniciais. Só

201
GILBERTO MENDES

que essas porcarias estão sendo cantadas em São Petersburgo,


em Paris... E agora foram gravadas pelo Fernando Portari e pela
Rosana Lamosa, os dois maiores nomes do canto lírico no Brasil.
O CD vem acompanhado de uma biografia minha, escrita pela
acadêmica santista Heloísa Valente, que é ótima, e um outro livro
com todas as partituras.

Houve ainda o filme, sua biografia...


Houve o filme A odisseia de Gilberto Mendes, de meu outro
filho, Carlos, que foi muito bem recebido em São Paulo. O outro
projeto foi a sinfonia que compus para a Osesp, que se chama
“Alegres trópicos”. “Um baile na Mata Atlântica”. Foi um negócio
bem-sucedido. Me encomendaram a música e me deram um ano
para fazer. Me deram toda a estrutura de trabalho, colocaram um
carro à disposição para me levar a São Paulo e trazer de volta a
Santos. Isso porque minha mulher não pôde ir e eu só durmo
se for ao lado dela. E, como sempre, a execução da Osesp foi de
primeiro mundo, tudo foi lindíssimo, impecável.

Por conta do trabalho, o senhor viaja muito, mas nunca deixou


de morar em Santos. O que lhe fez ficar aqui?
Gosto muito de viajar, mas gosto mais ainda de voltar para
casa, em Santos. Não sou daqueles que se dizem injustiçados em
sua própria terra. Há os que me malham, claro, mas recebi em
Santos todas as homenagens que poderia. Inclusive o título de F.
Além disso, o clima aqui me é favorável. E, claro, amo esta cidade.

Enquanto o senhor posava para a foto que ilustra esta entrevista,


observei que sua biblioteca é bastante ampla e diversificada...
Contém até obras de Newton. O senhor lê também sobre ciências?
Não, aqueles livros são os da minha esposa Eliane, que é
artista plástica e se interessa também por esses livros de ciên-
cias e todas aquelas coisas que vêm da Índia. Mas leio muito, de

202
ENCONTROS

Dostoievski ao médico santista Edson Amâncio, passando por


Kafka, Thomas Mann e Eça de Queiróz.

Alguma influência deste misticismo da esposa nas suas crenças?


Algo passou, sim. Não tanto da linha dela, que é meio mística,
eu acho, mas os ensinamentos salutares passaram, sim. Eu até
me sinto um pouco místico, mas sou tão agnóstico! Esse mundo,
a vida, tudo é tão absurdo que prefiro deixar isso quieto.

Já passou por alguma crise entre esse aspecto místico e o lado


agnóstico?
Não, porque tenho um misticismo dentro de mim. Mas sou
de uma geração em que o legal era ser ateu. Mas, não sei por-
que, tive crises religiosas. Quando comecei a estudar música,
por exemplo, tive uma crise. Estava em um cinema no Macuco,
para ver um filme que havia perdido nos cinemas do Gonzaga,
o primeiro filme da Ginger Rogers como atriz dramática, depois
de largar os musicais com Fred Astaire. A história não tinha nada
a ver com a temática, mas no meio da sessão, de repente, tive
a aguda sensação da finitude da vida, de que um dia ia morrer.
Comecei a suar frio, me senti muito mal. E, a partir daí, fiquei
um ano meio mal. Não queria me divertir, só ficava angustiado,
pensando nisso, no absurdo da vida, me questionando etc. Li
autores que falavam disso, como Pascal. Aí fui superando. Um
namorico com uma moça do bairro me tirou disso de vez.

Algumas pessoas dizem conseguir enxergar Deus por meio da


música. O senhor tem esse sentimento?
Não, de forma alguma. Música vale pela gostosura do som.
Curiosamente, ela adquire um significado pelo uso dela. E esse
significado é fortíssimo depois, o que é muito engraçado.

203
GILBERTO MENDES

Cronologia do autor

1922 musical “Cidade, Cité” baseado em um poema


Em 13 de outubro de 1922 nasce em Santos, o de Augusto de Campos.
compositor Gilberto Ambrósio Garcia Mendes. 1965
1938 Em junho, Gilberto Mendes e todos os
Depois de cursar dois anos, Gilberto Mendes colaboradores do Manifesto Música Nova,
abandona a graduação em direito na Univer- apresentam sua obras no Festival de Música
sidade do Largo São Francisco, em São Paulo. Contemporânea ocorrido no Teatro Municipal
1940 da cidade de São Paulo.
Gilberto Mendes inicia seus estudos musicais 1967
no Conservatório Musical de Santos, local Lança Moteto em ré menor, mais conhecido
onde estudou teoria e harmonia com Savino por “Beba Coca-Cola”, para vozes corais com
de Benedictis e piano com Antonieta Rudge. base no poema de Décio Pignatari.
1954 1968
Começa a estudar composição com Olivier Compõe a obra “Son et Lumière”.
Toni e Cláudio Santoro. 1969
1960 Gilberto Mendes compõe “Santos Football
Viaja para a Alemanha, onde estuda com- Music”.
posição e frequenta os cursos de verão de 1970
Darmstadt. Gilberto Mendes tem aulas com A sua obra Blirium A-9 é selecionada para
Pierre Boulez e Karlheiz Stockhausen. divulgação nas rádios europeias, pela Tribuna
1962 Internacional de Compositores das Nações
Funda o Festival Música Nova de Santos. Unidas para a educação, ciência e a cultura.
Torna-se membro da Comissão Municipal de 1971
Cultura da Prefeitura de Santos. Gilberto Mendes realiza a obra “Asthmatour” .
1963 1978
Gilberto Mendes é um dos signatários do Gilberto Mendes apresenta a sua composição
Manifesto Música Nova, publicado pela revista “Ópera aberta”, em homenagem a Umberto Eco
de arte de vanguarda Invenção, juntamente e sua “Obra aberta”, na estreia do XIII Festival
com Willy Corrêa de Oliveira, Rogério Duprat, Música Nova, pelo halterofilista Oscar de Souza,
Damiano Cozzella, Régis Duprat, Sandido e peça mezzo-soprano Anna Maria Kieffer.
Hohagen, Júlio Medaglia e Alexandre Pascoal. 1979
Compõe “Nascemorre” para vozes. Como University Artist, Gilberto Mendes
1964 dá aulas na The University of Wisconsin,
Gilberto Mendes compõe seu primeiro teatro Milwaukee.

204
ENCONTROS

1980 1994
Atua como professor do departamento de Gilberto Mendes realiza a composição “Uma
música da Escola de Comunicações e Artes da foz, uma fala” sobre o poema concreto de
Universidade de São Paulo (ECA-USP). Augusto de Campos.
Cria a obra “Saudades do Parque Balneário 1995
Hotel” para piano e saxofone alto e “Qualquer Compõe “Tvgrama”.
Música” para pequena orquestra. 1997
1981 É indicado ao prêmio de Cultura do Estadão.
Gilberto Mendes realiza a composição de 1999
“Concerto para Piano e Orquestra”. Recebe o prêmio Carlos Gomes, do Governo
1983 do estado de São Paulo.
Toma posse da cátedra de Tinker Visiting Pro- 2001
fessor, da University of Texas at Austin, respei- Torna-se membro honorário da Academia
tável distinção universitária norte-americana. Brasileira de Música.
1984 2003
Gilberto Mendes compõe “Mamãe eu quero Recebe o prêmio Sergio Mota hors concours
votar”, música que denota os momentos 2003
político-sociais do Brasil, fazendo menção ao Recebe o título de cidadão emérito da cidade
movimento Diretas Já. de Santos, concedido pela Câmara Municipal
1988 de Vereadores.
Gilberto Mendes compõe “Ulisses em Copa- 2004
cabana surfando com James Joyce e Dorothy Gilberto Mendes recebe a insígnia e diploma
Lamour” para orquestra, entre outras peças de admissão na Ordem do Mérito Cultural,
musicais. na categoria de comendador, do Ministério
1990 da Cultura, das mãos do presidente da Repú-
Cria a obra “Pente de Istanbul” para marim- blica, Luiz Inácio Lula da Silva, e do Ministro
ba, vibrafone e percussões, e dedica ao Duo da Cultura, Gilberto Gil.
Diálogos. 2006
1992 Gilberto Mendes compõe “Alegres trópicos –
Aposenta-se compulsoriamente do Depar- Um baile na Mata Atlântica”.
tamento de Música da Universidade de São
Paulo.
1993
Realiza a obra “Finismundo”.
205
Coleção Encontros:
a arte da entrevista

A Coleção Encontros visa resgatar a entrevista como meio


privilegiado de comunicação: valendo-se de uma linguagem
informal e abordando questões imediatas, torna-se um espaço
estratégico para a atuação de intelectuais e artistas na criação
de um mundo múltiplo, solidário e sustentável.

Em cada volume da Coleção Encontros trazemos um olhar


abrangente sobre o entrevistado, com uma seleção criteriosa
de depoimentos de diversos momentos e contextos de sua
trajetória.

Na elaboração do presente volume,


Coordenação editorial
Amélia Cohn e Sergio Cohn

Projeto gráfico
Elisa Cardoso

Capa

Equipe Azougue

Foto do autor

Revisão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

2% da tiragem desse livro será doada para o Iepé – Instituto de Formação e Pesquisa em Educação
Indígena. O Iepé é uma entidade sem fins lucrativos criada para prestar assessoria direta a demandas
de formação e capacitação apresentadas pelas comunidades indígenas do Amapá e do Norte do Pará,
visando o fortalecimento de suas formas de gestão comunitária e coletiva. Mais informações na página
www.institutoiepe.org.br.

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Rua Jardim Botânico, 674 sala 605
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GILBERTO MENDES

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