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Interação Teleatendente-Teleusuário

e Custo Humano do Trabalho em


Central de Teleatendimento
Mário César Ferreira
Interaction Call Center Workers-Call
Center Users and the Human Cost of
Work in a Call Center Unit

Universidade de Brasília – UnB,


O texto aborda uma pesquisa realizada em uma central de teleatendimento do setor público.
Instituto de Psicologia, Laboratório de
Ergonomia A análise ergonômica orienta-se para a interação teleatendente-teleusuário, buscando mostrar
as características da organização do trabalho que constrangem as estratégias de media-
ção dos operadores e potencializam a ocorrência de vivências de mal-estar no trabalho. O
referencial teórico-metodológico articula os conceitos de custo humano do trabalho, vivências
de bem-estar e mal-estar e a Análise Ergonômica do Trabalho – AET. Os resultados mostram
as características da Central e principais indicadores críticos, revelando um nexo entre custo
humano do atividade e indícios de vivências de mal-estar dos operadores.

Palavras-chave: central de teleatendimento, custo humano do trabalho, interação,


teleatendente, teleusuário, ergonomia da atividade.

The text shows a research done in a public call center unit. The ergonomic analysis is
oriented toward the interaction call center worker-call center user, aiming to present the
characteristics of the work organization that constraint the strategies of mediation of the
call center workers and that may result in discomfort of well-being at work. The theoretical
and methodological approach deals with the concepts of human cost of work, well-being
and discomfort of well-being, and the Ergonomics Analysis of Work – EAW. The results
show the characteristics of the call center unit and its main critical indicators, revealing a
connection between the human cost of the activity and signals of discomfort of well-being
among the call center workers.

Keywords: call center unit, human cost of life, interaction, call center worker, call center
user, ergonomic of activity.

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 29 (110): 7-15, 2004 7


Introdução Quadro teórico de
O objetivo do artigo é mostrar, com base
referência
em pesquisa em Ergonomia da Atividade, o
Globalmente, constata-se que os estudos
surgimento de indícios de vivências de mal-
internacionais têm focado mais as variáveis
estar em teleatendentes que trabalham em
relacionadas à lógica de funcionamento das
centrais de teleatendimento como uma resul-
centrais, aos indicadores diversos de produ-
tante da inter-relação modelo de gestão e
tividade, à gestão rigorosa de desempenho
custo humano do trabalho.
dos teleatendentes, à satisfação e à fide-
Nessa perspectiva, o foco da análise ergo-
lização dos usuários (Chang & Huang,
nômica está centrado na interação teleaten-
2000; Gilmore & Moreland, 2000).
dente-teleusuário, buscando evidenciar as
Nesse sentido, os aspectos relacionados às
características da organização do trabalho condições de trabalho (no sentido amplo,
que reduzem as estratégias de mediação no transcendendo os componentes da platafor-
trabalho e potencializam a ocorrência de vi- ma de trabalho), as exigências das tarefas
vências de mal-estar no trabalho. A impor- em termos de dispêndios dos trabalhadores
tância da temática articula aspectos distintos. e, ainda, as conseqüências sobre o bem-es-
Do ponto de vista mais geral, os serviços tar de teleatendentes permanecem assuntos
de teleatendimento têm crescido no mundo marginais na literatura.
todo. No Brasil, alguns indicadores relativos Os poucos estudos realizados no Brasil têm
a 2002 são eloqüentes: há cerca de 180 mil evidenciado um cenário mais rico referente
postos de teleatendimento; o setor gera apro- às características das centrais, com ênfase
ximadamente 450 mil empregos e movimen- nos fatores relacionados às situações de tra-
ta anualmente por volta de US$ 1,2 bilhão. balho e suas conseqüências sobre os opera-
O “cardápio” de serviços é variado: pesqui- dores. A incidência de Lesões por Esforços
sa; televendas; cobranças; promoções; cons- Repetitivos – LER – entre trabalhadores de
trução de bancos de dados; fidelização de centrais de teleatendimento é examinada na
clientes etc. Do ponto de vista institucional, literatura (Marx, 2000; Lima, 2000). O ca-
em particular para as organizações públicas ráter complexo das atividades de telea-
e privadas, a avaliação científica de contex- tendimento é argumentado por MASCIA E
tos de teleatendimento pode contribuir para SZNELWAR (2000). O ambiente físico, so-
aprimorar os modelos de gestão do traba- bretudo a falta de tratamento acústico, a
lho, agregando qualidade final aos serviços iluminação deficiente, a existência de poeira,
prestados e, em conseqüência, impactando a falta de limpeza, as interfaces compu-
na satisfação de usuários e clientes, tendo tacionais pouco amigáveis e o mobiliário
como pressuposto o bem-estar das pessoas inadequado constituem ingredientes das con-
que trabalham no setor. Finalmente, do pon- dições de trabalho que repercutem na carga
to de vista científico, embora a “neurose das de trabalho, conforme estudo de avaliação
telefonistas” (Le Guillant et al., 1956) seja ergonômica em nove centrais de atendimen-
largamente conhecida há mais de meio sé- to realizado por Santos et al. (2000). Perdas
culo, os serviços de teleatendimento e suas auditivas induzidas por ruído, más condições
implicações humanas no campo da inter-re- de conservação dos equipamentos e mobiliá-
rio inadequado foram constatados também por
lação trabalho-saúde permanecem pouco
Bernadi et al. (2000).
investigados, sobretudo após a avalanche de
Os principais fatores de estresse, configu-
inovações tecnológicas que assolam o mun- rando uma sobrecarga emocional, cognitiva
do do trabalho. Deste modo, a produção de e física entre operadores de telemarketing são
estudos e pesquisas em Ergonomia da Ativi- caracterizados por Glina & Rocha (2003).
dade podem contribuir para a produção de Tais resultados parecem confirmar que a uto-
novos conhecimentos teórico-metodológicos pia flexível, propalada pelos novos modelos
e práticos nesta área. de gestão, ainda é uma realidade distante no

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contexto de call center (Azevedo & Caldas, gestos, deslocamentos e emprego de
2002). força física;
O referencial teórico da pesquisa articula (b) exigências cognitivas expressam
os conceitos de custo humano do trabalho e o custo cognitivo que é imposto aos
vivências de bem-estar e mal-estar (Ferreira trabalhadores pelas características do
& Mendes, 2003). ambiente de trabalho em termos de
As condições, a organização e as relações dispêndio mental sob a forma de
sociais de trabalho são fios que tecem o aprendizagem necessária, resolução
conceito de contexto de produção de bens e de problemas e tomada de decisão; e
prestação de serviços. Eles expressam os (c) exigências afetivas expressam o
parâmetros básicos que são configuradores custo afetivo que é imposto aos tra-
das fontes do “Custo Humano do Trabalho – balhadores pelas características do
CHT”. As estratégias de mediação indivi- ambiente de trabalho em termos de
duais e coletivas dos trabalhadores assumem dispêndio emocional sob a forma de
contornos mais definidos e finalístico com reações afetivas, sentimentos e estados
base nesses parâmetros. de humor.
O conceito de CHT expressa o que deve
Evidentemente que o CHT mantém estreita
ser despendido pelos trabalhadores (indivi-
relação com a atividade dos trabalhadores,
dual e coletivamente) nas esferas física,
orientando o desenvolvimento das estratégias
cognitiva e afetiva vis-à-vis às contradições
de mediação individuais e coletivas, abran-
existentes nas organizações que obstaculizam
gendo as propriedades humanas do pensar,
(pólo negativo do custo) e desafiam (pólo
do agir e do sentir que, por sua vez, caracte-
positivo do custo) a inteligência dos traba-
rizam e traçam os perfis dos modos de ser e
lhadores (Ferreira & Mendes, 2003). Nessa
viver dos trabalhadores nos contextos de pro-
perspectiva teórica, o CHT se caracteriza por
dução de bens e prestação de serviços.
três propriedades principais:
A perspectiva da pesquisa não foi propria-
mente mensurar o custo humano do traba-
é imposto externamente aos trabalhado- lho das teleatendentes e seus indicadores, mas
res sob a forma de constrangimentos mapear de forma exploratória as exigências
(contraintes) para suas atividades; presentes no serviço de teleatendimento
é gerido por meio das estratégias de que caracterizam o dispêndio do grupo
mediação individuais e coletivas, poden- analisado.
do assumir as formas de confrontações Por último, cabe explicitar o entendimento
positivas ou negativas que, por sua vez, conceitual adotado para a dimensão “vivên-
impactam na dinâmica das vivências de cias de mal-estar no trabalho”. Trata-se de
bem-estar e mal-estar no trabalho; e uma noção que é parte integrante do enfoque
integra três modalidades interdepen- de “vivências de bem-estar e mal-estar” em
dentes de exigências: física, cognitiva e Ergonomia da Atividade (Ferreira & Mendes,
afetiva. 2003).
Nessa perspectiva conceitual, essas vivên-
As exigências que constituem a noção de cias se expressam por meio das representa-
CHT estão assim definidas (Ferreira & Men- ções mentais que os trabalhadores têm do
des, 2003): próprio estado geral (físico, psicológico e
social) em que se encontram em determina-
(a) exigências físicas expressam o cus- dos momentos e contextos. Assim, as repre-
to corporal que é imposto aos traba- sentações de bem-estar consistem em avalia-
lhadores pelas características do am- ções positivas e as representações de mal-
biente de trabalho em termos de dis- estar, por sua vez, consistem em avaliações
pêndios fisiológico e biomecânico, prin- negativas que os trabalhadores expressam
cipalmente sob a forma de posturas, sobre suas condições física, psicológica e

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social relativas ao contexto de produção no ticular, dos efeitos que este parece produzir
qual estão inseridos. nestes trabalhadores.
As características principais das vivências
de bem-estar e mal-estar são: Abordagem
metodológica
(a) o conteúdo das representações se refe-
re às conseqüências individuais e cole-
O enfoque metodológico foi a Análise
tivas do CHT;
Ergonômica do Trabalho – AET (Guérin et
(b) elas têm um caráter dinâmico que re-
al., 2001). Os traços característicos do
sulta do confronto entre as exigências
enfoque sustentam-se no paradigma de que
físico-cognitivo-afetivas inerentes ao
a natureza do objeto de investigação (inter-
ambiente de trabalho e as estratégias relação indivíduo-trabalho) subordina o mé-
de mediação individuais e coletivas dos todo, seu instrumental e seus procedimentos.
trabalhadores; O uso desse enfoque é orientado por cinco
(c) as representações de bem-estar e mal- pressupostos:
estar se caracterizam por uma dinâmi- tem como ponto de partida a análise de
ca, metaforicamente, à maneira de um uma situação-problema;
pêndulo que tende a oscilar no eixo do apóia-se na participação efetiva dos
processo saúde-doença. O movimento envolvidos direta ou indiretamente com
pendular depende da eficiência e da a pesquisa;
eficácia das estratégias de mediação. livre acesso a todas informações atinen-
tes à situação-problema;
O “efeito pêndulo” mantém, portanto, es- valoriza a variabilidade intra e interin-
treita relação com as atividades dos traba- dividual do sujeitos, bem como do con-
lhadores nos sentidos de: texto sociotécnico; e
análise da atividade dos trabalhadores
quanto mais eficientes e eficazes forem em situações reais de trabalho.
as estratégias de mediação individuais e
coletivas dos trabalhadores, menor será A AET não se coloca, portanto, como um
o CHT, o que cria as condições para o “receituário” predefinido, uma vez que cada
predomínio de vivências de bem-estar contexto de trabalho é singular e a complexi-
individual e coletivo; dade das situações transforma o diagnóstico
quanto menos eficientes e eficazes forem científico em um verdadeiro quebra-cabeça,
as estratégias de mediação individuais e conforme metáfora apresentada na figura 1
coletivas dos trabalhadores, maior será (Ferreira, 2003).
o CHT, o que cria as condições para o
predomínio de vivências de mal-estar in-
dividual e coletivo.

No caso desta pesquisa, o uso dessa


conceituação se orienta para a identificação
e a caracterização das representações men-
tais que os teleatendentes têm do próprio es-
tado geral (físico, psicológico e social) em
que se encontram como decorrência do con-
texto de produção de serviços no qual eles
estão “imersos”. O acesso a essas represen-
tações se dará por meio da análise das Figura 1 Metáfora do quebra-cabeça ca-
verbalizações das teleatendentes acerca do racterizando os pressupostos da análise
próprio trabalho (Lacoste, 1995) e, em par- ergonômica do trabalho.

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Todos os participantes da pesquisa (N=40) mente. Destas, cerca de 20% são atendidas
são do gênero feminino e trabalham em dois diretamente pelas teleatendentes e o restante,
turnos, das 8h às 13h30m e das 13h30m às automaticamente pela Unidade de Resposta
19h. Trata-se de uma população de mulhe- Audível – URA; (b) cerca de 99% das cha-
res trabalhadoras jovens, com idade varian- madas são respondidas em tempo real; (c)
do de 20 a 30 anos, havendo predomínio de as consultas que requerem pesquisa são
solteiras, com escolaridade distribuída, prin- respondidas por cartas, enviadas aos
cipalmente entre o Ensino Médio (antigo 2º teleusuários; (d) o tempo médio de duração
grau completo) e curso superior incompleto. das chamadas é de três minutos; (e) cerca de
A maioria possui mais de quatro anos de ex- quinze teleusuários esperam pelo atendimento
periência de trabalho em teleatendimento e ouvindo propaganda institucional (jingles)
há um predomínio das que possuem de um a dos programas do órgão público; (f) o tem-
dois anos de trabalho na central onde se rea- po de espera na telefila é estimado em cinco
lizou a pesquisa. O grupo é portador de um minutos; e (g) todas as ligações são regis-
tempo de vivência no trabalho em teleaten- tradas via digitação. As chamadas feitas de ce-
dimento que serve de base para a análise da lulares são bloqueadas. Isso reduziu em cerca
temática da pesquisa. de 30% o custo financeiro da central, mas tam-
Os instrumentos e os procedimentos foram bém restringiu na mesma proporção uma op-
os habituais na démarche metodológica em ção de acesso aos serviços pelos usuários.
Ergonomia da Atividade: análise documen- A gestão dos serviços da central se depara
tal, entrevista semi-estruturada, observações também com um problema já conhecido no
livres e sistemáticas das situações e atividades contexto de teleatendimento com as caracte-
de trabalho. rísticas desta central (exemplo: informações
com certo grau de complexidade de conteú-
do, diversidade socioeconômica de usuári-
Principais resultados e os): a contradição entre quantidade de cha-
discussão madas versus qualidade do teleatendimento.
Nesse sentido, o tempo de duração do tele-
atendimento não é um parâmetro de quali-
Pode-se depreender que a central foi con-
dade absolutamente confiável na avaliação
cebida como sendo um canal de ligação di-
dos serviços.
reta entre os cidadãos e o órgão público. Os
A análise documental do “Manual de
idealizadores a projetaram como um instru-
Teleatendimento” evidenciou o perfil espe-
mento de comunicação social por meio do rado do desempenho da teleatendente:
qual os cidadãos-usuários pudessem entrar saber escutar, demonstrar segurança na
em contato verbal com o órgão, sem ônus resposta, evitar certos termos e expressões,
financeiro suplementar, para: argumentar com clareza, não conversar com
os colegas, não se alimentar no posto de tra-
efetuar consultas sobre questões diver- balho, mantê-lo organizado e não se ausen-
sas; tar do mesmo. Tais aspectos dão visibilidade
solicitar materiais e informações; aos parâmetros que orientam a conduta das
fazer denúncias; teleatendentes nas situações de atendimento
fazer reclamações; e sob a ótica dos gestores do trabalho.
dar sugestões. No que tange às condições de trabalho,
identificou-se diversos indicadores críticos re-
A análise documental possibilitou situar a lativos a:
importância da central como ferramenta es-
tratégica de atendimento ao público do ór- equipamentos arquitetônicos deteriora-
gão, exercendo um importante papel de comu- dos;
nicação social com a comunidade de usuários. níveis inadequados de ruído e ilumina-
A evolução crescente das ligações se deve, ção; e
sobretudo, aos seguintes aspectos: (a) a cen- mobiliário deficiente dos postos de tra-
tral atende cerca de 20 mil ligações diaria- balho.

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No conjunto, tais fatores se afastam daqui- por um lado esse resultado parece
lo que estabelece a legislação vigente, bem reduzir o custo cognitivo do trabalho
como o que recomenda os manuais de Ergo- (redução do tratamento de informações,
nomia (Iida, 1990; Grandjean, 1998). Tra- por exemplo), por outro ele fornece in-
ta-se de aspectos que deterioram a qualidade dícios sobre a repetitividade do traba-
do ambiente de trabalho e colocam em risco lho e, em conseqüência, o aumento do
o bem-estar dos trabalhadores. custo afetivo em função do sentimento
Um período de observação livre (1h) negativo de monotonia (Grandjean,
possibilitou a realização de um primeiro re- 1998).
conhecimento das situações reais de telea- que, embora numericamente pouco sig-
tendimento, por meio da escuta autorizada nificativo, observa-se a ocorrência de
de ligações, sobretudo dos aspectos de ligações do tipo trote, denúncia e re-
interação teleatendentes-teleusuários. Nessa clamação que exigem das teleatendentes
ocasião, realizou-se a adaptação de uma estratégias singulares de mediação, cujo
planilha de observação sistemática construída fracasso pode impactar negativamente
e validada em outro estudo semelhante (Freire, no custo humano do trabalho, sobretu-
2002) e revalidada pelos teleatendentes que do na esfera afetiva (por exemplo, a
participaram desta pesquisa. conduta pouco cortês de um reclamante);
Além de levantar os dados relativos às con- quanto ao tipos de assuntos mais solici-
dutas verbais dos teleusuários, buscou-se tam- tados, os resultados mostram a diversi-
bém quantificar outras informações comple- dade de demanda dos teleusuários, per-
mentares que pudessem fornecer pistas sobre mitindo-se supor que tal diversidade de
o custo humano do trabalho em teleaten- informações requer o desenvolvimento
dimento. Assim, foram coletados dados de competências específicas no campo
concernentes: (a) aos tipos de ligações (exem- do diagnóstico, do tratamento e da
plos: denúncias, trotes, reclamações); e (b) à tomada de decisão para responder
eficientemente às demandas dos teleu-
ocorrência de eventos críticos (exemplos:
suários em contexto de forte pressão
queda de ligação, abandono, site fora do ar).
temporal e de desempenho vigiado;
Planejou-se a observação sistemática com
os eventos críticos ocorridos durante o
base nos seguintes critérios: (a) dois turnos
período de observação nas situações de
da jornada de trabalho; (b) três dias interca-
teleatendimento, embora quantitati-
lados de uma mesma semana (segunda, quar-
vamente pouco expressivo, evidenciam
ta e sexta-feira); (c) duração de uma hora,
alguns elementos da complexidade do
nos períodos das 10h às 11h e das 15h às
trabalho que impõe a construção de
16h, para cobrir os dois turnos; (d) escuta
estratégias de mediação específicas para
aleatória dos postos de trabalhos, programa-
reduzir as conseqüências negativas nas
da automaticamente pelo Distribuidor Auto-
dimensões afetiva e cognitiva do custo
mático de Chamadas (DAC). A definição de humano do trabalho. Por exemplo, ex-
tais critérios buscou contemplar elementos plicar para um teleusuário com baixa
básicos de variabilidade (exemplo: turnos) escolaridade (ansioso por uma respos-
para aumentar o grau de confiabilidade dos ta) que o site (fonte da informação) está
dados coletados. fora do ar requer um savoir-faire efi-
Os resultados relativos aos tipos de ligação caz. Este resultado encontra eco na li-
e aos assuntos mais solicitados pelos teleu- teratura, pois, em inúmeras situações
suários mostram: em que os teleatendentes não dispõem
de informações (totais ou parciais), o
quanto ao tipo de ligação, se se sobressem risco de que elas resultem em erros au-
“pedidos de informação (sem script)”, menta e, em conseqüência, há perda
ou sseja, se a maioria absoluta dos de qualidade dos serviços (Mascia &
teleusuários solicitou informações que Sznelwar, 2000).
permitiram às teleatendentes responde-
rem sem ajuda de script (textos prepa- Em relação às condutas verbais dos teleu-
rados para respostas padronizadas). Se suários nas situações de teleatendimento,

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alguns aspectos merecem ser assinalados: que podem funcionar, principalmente, como
observou-se um nítido predomínio de constrangedores das atividades das teleaten-
teleusuários cuja conduta se caracteriza dentes. A natureza do trabalho de teleatendi-
por ser cortês (agradece no final da li- mento pôde ser melhor visualizada eviden-
gação, utiliza “por favor”, diz obrigado ciando fortes exigências cognitivas e afetivas
ao final da ligação e trata o teleatendente para executar satisfatoriamente a prescrição
com respeito), ou seja, do ponto de vista do trabalho.
quantitativo, parecem indicar pouco Os dados das entrevistas com teleatendentes
esforço operatório para cumprir as (N=40) foram submetidos ao tratamento do
tarefas. Todavia, o caráter repetitivo, já aplicativo Alceste (Reinert, 1990). O trata-
assinalado, parece inexorável; mento do corpus identificou quatro classes
os resultados mostram aspectos que temáticas estruturadoras das verbalizações
podem estar na origem de indícios de das teleatendentes (Figura 2). Tais verbali-
mal-estar que resultam das exigências zações expressam as representações
(cognitivas e afetivas) em lidar com teleu- operativas (Weill-Fassina et al., 1993; Teiger,
suários cuja conduta verbal se caracte- 1993) que fazem parte do contexto de pro-
riza por ser “desconhecedor do servi- dução da central de teleatendimento em ter-
ço”, “não saber o que quer” (apresenta mos de linguagem sobre o trabalho e suas
discurso desordenado, não se lembra das conseqüências (Lacoste, 1995). Trata-se de
informações, não sabe o nome das coi- uma espécie de vision du monde no sentido
sas, não encontra palavras) e ser “pro- atribuído por Max Reinert. Neste caso, uma
lixo” (prolonga a conversa, não é obje- visão do mundo do trabalho e de seus efeitos
tivo e fornece informações irrelevantes). sobre as próprias teleatendentes.
A sensação de fadiga, esgotamento ou,
Em síntese, os resultados obtidos possibilita- como afirmam as atendentes, de estresse pa-
ram um aprofundamento maior na realidade rece predominar nas representações que elas
do serviço de teleatendimento na central com explicitam em relação ao estado geral em fun-
base em dados característicos das situações ção de contextos de trabalho que vivenciam.

Figura 2 Classes Temáticas e Vocabulário Estruturador das


Verbalizações das Teleatendentes.

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Nesse sentido, o traço negativo que ca- ções sociais de trabalho configura um cená-
racteriza as avaliações que as teleatendentes rio explicativo dos limites impostos às
fazem sobre seus estados físico, psicológico teleatendentes para mediar eficientemente a
e social relativos ao contexto de serviço de complexidade que marca a interação com os
teleatendimento no qual estão inseridas é teleusuários e, ao mesmo tempo, a garantia
revelador de vivências de mal-estar. dos objetivos prescritos e a preservação da
Todavia, esses indícios de vivências de mal- saúde. É nesse cenário em que as vivências
estar das teleatendentes parecem manter cla- de mal-estar das teleatendentes assumem
ras as relações com os resultados obtidos ao inteligibilidade, situação em que o trabalho
longo da pesquisa. Desse modo, os dados se afasta de seu caráter ontológico de cons-
do perfil da central apontaram elementos de
trução da identidade e de fonte de prazer. A
crescimento dos serviços sem a necessária
análise dos resultados lança luz para se com-
correspondência em termos de suporte orga-
nizacional. preender os altos índices de rotatividade nes-
Diversos indicadores críticos foram evi- te setor, cuja abordagem de gestão tem nos
denciados pela vistoria ergonômica, dese- trabalhadores a variável de ajuste.
nhando um cenário nada favorável ao A discussão dos resultados possibilita iden-
predomínio de vivências de bem-estar no tificar que a tensão entre o “velho” e o “novo”
trabalho. Por fim, ao falarem do próprio é um dos traços mais marcantes nos contex-
trabalho, as teleatendentes agregaram um tos de trabalho das centrais de teleaten-
elenco de informações que configurou as dimento. Ao mesmo tempo em que o teleaten-
principais fontes do pólo negativo do custo dimento é um setor que envolve a mais avan-
humano do trabalho, em particular a estrei- çada tecnologia da informação e das teleco-
ta relação entre o conteúdo do trabalho municações, é também um dos ambientes
(significativa exigência cognitiva) e a condu-
onde o estilo de gestão do trabalho pode se
ta verbal dos teleusuários (significativa
dar da maneira mais arcaica e burocráti-
exigência afetiva), bem como o estilo de ges-
tão e as condições de trabalho, combinando ca, remetendo aos modelos industriais e
uma “mistura explosiva”. tayloristas de administração do século pas-
sado. Nesse sentido, o texto “A neurose das
Conclusão telefonistas”, que nasceu dos estudos de Le
Guillant et al. (1956), permanece, sob o ân-
Os resultados mostram que a combinação gulo da organização do trabalho, bastante
de dimensões, condições, organização e rela- atual.

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