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“Lidar com gente é muito complicado”:

relações socioprofissionais de trabalho e


custo humano da atividade em
Vanessa Sales Veras2 teleatendimento governamental1
Mário César Ferreira3

“Dealing with people is hard”: socio-profes-


sional relationships and cost of human
activity at a governmental call center

1
Artigo extraído da dissertação de Resumo
Mestrado de Vanessa Sales Veras
intitulada Relações socioprofissio- A pesquisa teve como objetivo geral investigar a inter-relação do custo huma-
nais de trabalho e custo humano da
no da atividade com as relações socioprofissionais de trabalho em um serviço
atividade: vivências de mal-estar e
bem-estar em serviço de teleatendi- de teleatendimento governamental. Trata-se de um diagnóstico em Ergonomia
mento governamental, apresentada da Atividade que contempla três dimensões analíticas: as relações socioprofis-
em março de 2006 na Universidade sionais de trabalho, o custo humano da atividade e as vivências de bem-estar
de Brasília. e mal-estar. Utilizou-se como abordagem metodológica a Análise Ergonômica
2
Mestra em Psicologia pelo do Trabalho (AET). A análise dos resultados identificou uma associação entre
Instituto de Psicologia, Núcleo de as relações socioprofissionais de trabalho, a organização e as condições de
Estudo em Ergonomia, Cognição trabalho. Desse modo, melhorias ou dificuldades em uma dessas dimensões
e Saúde (EcoS), Universidade de exercem conseqüências positivas ou negativas sobre as demais. Os aspectos
Brasília, Brasil. críticos do contexto de produção de serviços de teleatendimento interferem
3
Doutor em Ergonomia pela École nas relações socioprofissionais de trabalho uma vez que a organização do tra-
Pratique des Hautes Etudes (Paris, balho impõe interações marcadas pela burocracia, pelo autoritarismo, pela ri-
França); Professor-adjunto no gidez e pelo controle, enquanto que as condições de trabalho contribuem para
Departamento de Psicologia Social constantes conflitos interpessoais entre pares e entre teleatendentes e chefes
e do Trabalho do Instituto de Psi- de turma.
cologia, Núcleo de Estudo em Er-
gonomia, Cognição e Saúde (EcoS), Palavras-chaves: teleatendimento, ergonomia da atividade, custo humano do
Universidade de Brasília, Brasil. trabalho.

Abstract
This article mainly aims at investigating the inter-relationship between cost of
human activity and social-professional relations of labor at a governmental
call center. It consists of a diagnosis in Ergonomics of Activity considering three
analytical dimensions: labor socio-professional relations, cost of human activity
and well being/discomfort experiences. The methodological approach was the
Ergonomic Work Analysis – EWA. The analysis of the results pointed out an asso-
ciation between labor socio-professional relations, organization and conditions.
In this sense, improvements or difficulties in one of these dimensions trigger
positive or negative consequences on the others. The critical aspects in the con-
text of producing call center services interfere in the socio-professional relations
of labor since labor organization demands interactions marked by bureaucracy,
authoritarianism, inflexibility and control, while labor conditions contribute to
inflame constant interpersonal conflicts between both workers from the same or
from different hierarchic levels.
Keywords: call center, ergonomics of activity, cost of human activity.

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Introdução

Pessimismo, reclamações com relação sem se preocupar em fornecer um contexto


ao ambiente de trabalho, dificuldades de de trabalho adequado, corroborando a pre-
relacionamento, boatos, resistência em carização do sistema produtivo.
aceitar a liderança dos chefes de turma.
Em pesquisa realizada sobre os im-
Todas essas queixas serviram de ponto de
pactos da terceirização, constatou-se a
partida para a realização desta pesquisa
deteriorização das condições de trabalho
que teve como objetivo investigar a inter-
existentes, o medo da demissão e o choque
relação do custo humano da atividade com
cultural entre os terceirizados e os empre-
as relações socioprofissionais de trabalho
gados da empresa contratante dos serviços.
em uma central de teleatendimento gover-
Registrou-se também a degradação das re-
namental sob a perspectiva teórica e meto-
lações de trabalho no âmbito produtivo,
dológica da Ergonomia da Atividade.
principalmente em atividades que exigem
O serviço de teleatendimento menor grau de qualificação profissional
(VALENÇA & BARBOSA, 2002). Desse
Os serviços de teleatendimento têm modo, a terceirização dos serviços pode re-
sido cada vez mais utilizados tanto nas em- fletir negativamente no contexto de produ-
presas do setor privado quanto nos órgãos ção, trazendo conseqüências indesejadas.
públicos. No que tange ao setor público, a
necessidade de investimentos na área de A singularidade da pesquisa ora rela-
tecnologia da informação de modo a me- tada está na escolha da temática: relações
lhor atender ao usuário, que na ótica desse socioprofissionais de trabalho. Na literatu-
setor é denominado cidadão, configura-se ra sobre serviço de teleatendimento, pou-
como um imperativo, tendo em vista que cos estudos analisam as interações socio-
o Estado, na maioria dos países, é a maior profissionais firmadas nesse contexto de
organização produtora e abastecedora de trabalho. No entanto, as interações que os
informações, exercendo o papel de forne- sujeitos estabelecem entre si são tão impor-
cedor exclusivo dos serviços públicos. No tantes para realização da tarefa quanto o
Brasil, diversas esferas do governo têm suporte organizacional e a forma de gestão
adotado o serviço de teleatendimento como adotada. Nesse sentido, parte-se da premis-
uma forma de estabelecer um canal efetivo sa que a qualidade dessas interações está
com a sociedade, através do qual o cidadão diretamente ligada aos dois outros fatores
pode fazer reclamações, denúncias, solici- do contexto de produção de bens e servi-
tar informações ou obter serviços prestados ços: condições de trabalho e organização
pelas repartições públicas em geral. A im- do trabalho.
portância dessa forma de atendimento está Quanto às condições de trabalho,
na eficiência e na praticidade com que o Brooke (2002) destaca que o desenvolvi-
cidadão consegue ser atendido, bem como mento e o uso de novas tecnologias no call
na redução de custos para o Estado. center devem ser pautados na participação
Não obstante a vasta literatura sobre de todos os envolvidos no processo e na
teleatendimento, existe uma carência de efetiva troca de informações. Para o autor,
estudos sobre as especificidades desse não basta ter acesso à tecnologia de pon-
serviço na esfera governamental. Mesmo ta sem que as informações de base sejam
apresentando semelhanças com os demais discutidas em equipe. No que se refere à
atendimentos do tipo call center, o telea- organização do trabalho, a interação aten-
tendimento governamental possui caracte- dente/usuário é prejudicada na medida em
que, ao longo da jornada, a monotonia e
rísticas bastante distintas que merecem ser
a repetitividade (FERREIRA & SALDIVA,
investigadas. Uma delas é, no caso brasilei-
2002) inerentes à atividade tendam a fazer
ro, a terceirização desse tipo de serviço no
com que o atendente apenas escute passi-
setor público, que possibilitou a abertura
vamente e siga procedimentos padroniza-
de milhares de novos postos de trabalho,
dos sem estabelecer uma verdadeira com-
mas sem considerar as possíveis implica-
preensão da demanda do usuário (BROWN
ções dessa ampliação para o bem-estar e
& MAXWELL, 2002).
para a saúde dos operadores. O aumento
do número de empregados terceirizados in- Globalmente, nas centrais de telea-
dica uma tendência preocupante, uma vez tendimento, considera-se como vantagem
que muitas instituições optam por terceiri- competitiva o custo-benefício em termos
zar os serviços apenas para reduzir custos de preço do produto, conveniência, aces-

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so, tecnologia e comercialização (BROWN passo para a compreensão do serviço de
& MAXWELL, 2002). Nessa perspectiva, as teleatendimento como um todo e as intera-
relações socioprofissionais são colocadas ções dos diversos fatores envolvidos nesse
em segundo plano, pois se privilegia uma contexto.
gestão focada na quantidade de atendimen-
Conceitos norteadores da pesquisa
tos em detrimento do bem-estar de quem
trabalha. Entretanto, essa visão reducionis- Para compreender as interações esta-
ta negligencia o papel das relações socio- belecidas no serviço de teleatendimento,
profissionais no trabalho, visto que essas o quadro teórico de referência contempla
interações podem ser provedoras tanto de primordialmente a noção de Relações So-
vivências de mal-estar quanto de vivências cioprofissionais de Trabalho (RST). Tal
de bem-estar para os trabalhadores, assim conceito faz parte da noção teórica de
como podem ser promotoras de saúde re- Contexto de Produção de Bens e Serviços
duzindo sintomas de adoecimento. (CPBS), que é definido como:
Quadro teórico de referência da pesquisa lócus material, organizacional e social
onde se opera a atividade de trabalho e as
É precisamente no contexto de central estratégias individual e coletiva de media-
de teleatendimento do setor público fede- ção que são utilizadas pelos trabalhadores
ral que se insere a presente pesquisa, cujo na interação com a realidade de trabalho
enfoque teórico-metodológico se situa no (FERREIRA & MENDES, 2003, p. 43).
campo da Ergonomia da Atividade. Essa Nesta pesquisa, aplica-se a noção teóri-
disciplina é definida como uma aborda- ca de CPBS à situação de teleatendimento
gem científica de natureza antropocêntrica estudada que doravante será chamada de
fundamentada em conhecimentos interdis- Contexto de Produção de Serviços de Tele-
ciplinares das ciências humanas. Ela tem atendimento (CPST).
como objetivo compatibilizar os produtos
e as tecnologias às características dos usu- O CPBS é estruturado por três dimen-
ários, assim como humanizar o contexto sões interdependentes: organização do tra-
sociotécnico de trabalho, adaptando-o balho, condições de trabalho e relações so-
tanto aos objetivos do indivíduo e/ou gru- cioprofissionais de trabalho. Tais conceitos
po quanto às exigências das tarefas (FER- orientaram a coleta de dados e a interpreta-
REIRA, 2003). A Ergonomia da Atividade ção dos resultados obtidos nesta pesquisa.
busca compreender os indicadores críticos Eles são definidos da seguinte forma, con-
presentes no contexto de produção para forme Ferreira e Mendes (2003, p. 46):
transformá-los com base em uma solução Organização do Trabalho (OT): elemen-
de compromisso que atenda às necessida- tos prescritos, formais e/ou informais, que
des e aos objetivos de trabalhadores, gesto- expressam as concepções e as práticas de
res e usuários. gestão de pessoas e do trabalho;
Para a Ergonomia da Atividade, a situa- Condições de Trabalho (CT): elementos
ção de atendimento é a “porta de entrada” estruturais que expressam as condições
para a investigação das origens da falta ou ambientais e de apoio institucional para a
da perda de qualidade do serviço prestado realização do trabalho;
(FERREIRA, 2000). Os indicadores críticos
do contexto de atendimento ao público Relações Socioprofissionais de Trabalho
(perda de material, tempo de espera, re- (RST): elementos interacionais que expres-
clamações dos usuários e dos atendentes) sam as relações profissionais de trabalho.
são apenas a dimensão mais perceptível de São integrantes dessa dimensão: (a) as inte-
uma problemática cuja gênese pode estar rações hierárquicas; (b) as interações cole-
nas condições, na organização e nas rela- tivas entre membros da equipe de trabalho
ções socioprofissionais de trabalho. Trata- e membros de outros grupos; e (c) as intera-
se, portanto, de um enfoque pertinente ao ções externas com usuários, consumidores,
estudo do objeto de pesquisa, na medida em fornecedores.
que a Ergonomia busca contemplar os múl-
Essas dimensões podem ter importân-
tiplos aspectos envolvidos nas situações de
cia diferenciada no contexto de produção e
trabalho, na perspectiva de construir um
indicam a complexidade do lócus organiza-
cenário explicativo para a compreensão
cional, sendo configuradoras das fontes do
científica da problemática em foco.
“Custo Humano do Trabalho” (FERREIRA
A identificação dos problemas presen- & MENDES, 2003), isto é, custo despendi-
tes no lócus organizacional é o primeiro do pelos trabalhadores nas esferas física,

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cognitiva, afetiva diante das contradições - Como se caracterizam as relações so-
existentes no contexto de produção. As cioprofissionais de trabalho no serviço de
exigências que integram a noção de custo teleatendimento?
humano do trabalho são impostas pelas
- Como se configura o custo humano
características do ambiente de trabalho e da atividade de teleatendente?
estão assim definidas:
- Quais elementos do contexto de pro-
Exigências físicas: expressam o custo dução são configuradores de vivências de
corporal em termos de dispêndio fisioló- mal-estar e bem-estar?
gico e biomecânico sob a forma de postu-
ras, gestos, deslocamentos e emprego de Em síntese, o referencial teórico ado-
força física; tado neste estudo permite a hipótese de
que quanto mais críticas forem as relações
Exigências cognitivas: expressam o cus- socioprofissionais de trabalho no telea-
to cognitivo em termos de dispêndio in- tendimento, maior será o custo humano
telectual sob a forma de aprendizagem do trabalho despendido para lidar com os
necessária, de resolução de problemas e aspectos conflituosos das interações esta-
de tomada de decisão; e belecidas e, conseqüentemente, maiores
serão os riscos de predominância de vi-
Exigências afetivas: expressam o custo
vências de mal-estar dos trabalhadores.
afetivo em termos de dispêndio emocio-
nal sob a forma de reações afetivas, de Abordagem metodológica
sentimentos e de estado de humor.
O método utilizado neste estudo foi a
Para lidar com as contradições exis- Análise Ergonômica do Trabalho (GUÉ-
tentes no contexto de produção, os traba- RIN et al., 2001). A escolha dessa aborda-
lhadores utilizam Estratégias de Media- gem como ferramenta de investigação do
ção Individual e Coletiva (EMIC) com a objeto de estudo decorre de suas caracte-
finalidade de transformar as adversidades rísticas procedimentais. Esse modelo me-
e, ao mesmo tempo, assegurar as integri- todológico caracteriza-se por uma flexibi-
dades física, psicológica e social, buscan- lidade procedimental que permite ajustar
do, conseqüentemente, a prevalência de os métodos e as condições de aplicação ao
vivências de bem-estar sobre as de mal- contexto e à demanda ou situação-proble-
estar. ma apresentada. Neste sentido, ao utilizar
tal metodologia, buscou-se uma melhor
Nessa perspectiva conceitual, as vivên- compreensão das relações socioprofissio-
cias de bem-estar e mal-estar se expressam nais de trabalho estabelecidas na central
por meio das representações mentais que de teleatendimento, fazendo os ajustes
os trabalhadores fazem do próprio estado necessários para adaptar o instrumental
geral (físico, psicológico e social) em de- metodológico ao contexto de estudo.
terminados momentos e contextos. Essas
Contexto de produção de serviços de te-
vivências possuem caráter dinâmico re-
leatendimento: o campo de estudo
sultante do confronto entre as exigências
físico-cognitivo-afetivas do ambiente de Trata-se de uma central de teleatendi-
trabalho com as estratégias de mediação mento governamental de número 0800,
individual e coletiva dos trabalhadores. cuja missão institucional é prover esclare-
Metaforicamente, as representações de cimentos sobre as ações educacionais do
bem-estar e mal-estar se caracterizam por Governo Federal, permitindo que os cida-
uma dinâmica similar a de um pêndulo dãos possam se comunicar gratuitamente
que tende a oscilar no eixo do processo com o serviço público para: efetuar con-
saúde-doença, cujo movimento depende sultas; fazer denúncias e/ou reclamações;
da eficiência e da eficácia das estratégias oferecer sugestões; solicitar materiais.
de mediação. Além do atendimento telefônico, o servi-
ço também disponibiliza ao usuário ou-
A pesquisa objetivou investigar a in- tras vias de comunicação, como endereço
ter-relação do custo humano com as re- eletrônico, caixa postal e fax. Na ocasião
lações socioprofissionais de trabalho em da pesquisa, eram atendidas pelos opera-
um serviço de teleatendimento governa- dores cerca de 73 mil ligações mensais. A
mental. As seguintes questões conduzi- central contava com um efetivo de 60 tele-
ram a investigação da temática: atendentes e 6 chefes de turma cuja função

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era buscar informações para o atendimen- lizaram-se alguns recursos metodológicos
to, além de supervisionar, monitorar e ava- empregados na Análise Ergonômica do
liar o desempenho dos teleatendentes.
Trabalho. O Quadro 1 apresenta uma breve
Instrumentos e procedimentos descrição dos instrumentos e procedimen-
Para se atingir o objetivo de pesquisa tos realizados, bem como os objetivos que
e responder às questões norteadoras, uti- orientaram a coleta de dados.

Quadro 1 Instrumentos e procedimentos para investigação das dimensões analíticas: CHT, RST e vivências de bem-
estar e mal-estar*

Instrumentos Objetivos Procedimentos


Caracterizar o contexto de produção de Levantamento e identificação de fontes documen-
Análise documental
serviços de teleatendimento tais

Aplicação coletiva de questionário realizada nos


Escalas ECORT e ECHT** Mapear os principais indicadores críticos do dois turnos com duração média de 15 minutos.
n= 52 contexto de trabalho Análise dos dados utilizando os softwares SPSS e
Excel

Caracterizar as representações dos teleaten- Elaboração de questões com base nos resultados
Entrevistas semi-estruturadas dentes sobre as relações socioprofissionais das escalas e realização de 20 entrevistas.
n= 20 de trabalho, custo humano da atividade e As entrevistas foram tratadas por meio do software
vivências de mal-estar e bem-estar Alceste (REINERT, 1990)

Observação livre e sistemática Sistematizar os indicadores da relação teleaten- Definição das categorias observáveis.
da atividade dente-usuário que caracterizam o CHT e as Elaboração da planilha de observação.
Total: 30 horas estratégias de mediação envolvidas Planejamento da observação.

* Observação: Após a coleta de dados, confrontaram-se os achados com a percepção dos atendentes e gestores envolvidos, fazendo, dessa forma, a vali-
dação dos resultados.
** ECORT: Escala de Avaliação das Condições, Organização e Relações Socioprofissionais de Trabalho; ECHT: Escala de Avaliação do Custo Humano do
Trabalho.

Os dados foram tratados de forma Texte (Reinert, 1990) – para a análise das
quantitativa e qualitativa, sendo utili- entrevistas.
zados os programas SPSS e Excel para
a análise das escalas ECORT (Escala de Perfil dos participantes
Avaliação das Condições, Organização e Na segunda fase da pesquisa (aplicação
Relações Socioprofissionais de Trabalho) do questionário), participaram do estudo
e ECHT (Escala de Avaliação do Custo 52 teleatendentes divididos em dois tur-
Humano do Trabalho) juntamente com nos de trabalho (das 8h às 14h e das 14h
o software Alceste – Analyse Lexicale par às 20h). A Tabela 1 descreve os perfis dos
Contexte d’un Ensemble de Segments de participantes em cada etapa.

Tabela 1 Perfil dos teleatendentes em cada fase da pesquisa

Gênero Idade (em anos) Escolaridade


19 - 24 34,6% Ensino Médio 63%
Escalas ECORT e ECHT Masculino 25%
25 - 34 51,9% Superior Incompleto 27%
n=52 Feminino 75%
35 - 43 13,5% Superior Completo 10%
19 - 24 30% Ensino Médio 55%
Entrevistas
Masculino 30%
semi-estruturadas 25 - 34 45% Superior Incompleto 35%
Feminino 70%
n=20
35 - 43 25% Superior Completo 10%
19 - 24 33,3% Ensino Médio 50%
Observação
Masculino 33%
sistemática 25 - 34 58,3% Superior Incompleto 50%
Feminino 67%
n=12
35 - 43 8,3% Superior Completo -

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O perfil encontrado apresenta seme- uma vez que a maioria dos trabalhadores
lhanças com o dados da literatura (BELT, de teleatendimento é formada por mulhe-
2002; BELT, RICHARDSON & WEBSTER, res jovens e com escolaridade de Ensino
2002; VIANA, ROCHA & GIMENES, 2004), Médio ou Superior Incompleto.

Resultados e discussão

Os resultados serão apresentados de Como os teleatendentes avaliam as rela-


forma concomitante com a discussão. ções socioprofissionais de trabalho

Espera-se que, dessa maneira, o leitor Para se obter uma visão global do con-
texto de trabalho e de seus indicadores crí-
possa acompanhar o fio condutor da pes-
ticos, aplicou-se a escala ECORT. A Tabela
quisa, posto que as questões norteadoras 2 apresenta os resultados referentes às di-
do estudo são estruturadoras da apresen- mensões que compõem o contexto de pro-
tação dos principais resultados. dução de serviços de teleatendimento.

Tabela 2 Dimensões do contexto de produção de serviços de teleatendimento

Variável Média Coeficiente de variação


Organização do trabalho 3,5 18%
Condições de trabalho 3 24%
Relações socioprofissionais de trabalho 3 24%
Legenda: Inadequada: 1 – 2,4
Moderada: 2,5 – 3,5
Adequada: 3,6 – 5

Não obstante os resultados das médias na padronização e na fragmentação das ta-


indicarem que os teleatendentes percebem refas do que no bem-estar do trabalhador.
como “moderados” os fatores do contexto
Já na análise das entrevistas, identifi-
de produção de serviço de teleatendimento caram-se interações conflituosas entre os
e, portanto, não avaliam, a priori, esse con- teleatendentes, confirmando a demanda
texto nem de forma negativa ou positiva, inicial feita pelo coordenador do serviço.
não se pode considerar esses resultados por Nesse sentido, percebe-se a existência de
si só sem antes analisar os itens componen- um conflito entre turnos, sendo que, no
tes de cada dimensão analítica. Antes disso, discurso dos atendentes, foi possível reco-
a tabela nos mostra que, mesmo as médias nhecer algumas questões que podem expli-
indicando uma percepção “moderada” dos car a origem de tais conflitos.
fatores, existe uma diferença quanto à ho-
Formas diferentes de tratamento por
mogeneidade das respostas, o que significa parte das chefias para atendentes sele-
uma maior dispersão ou variabilidade nas cionados e para atendentes indicados
respostas referentes aos fatores “condições (apadrinhados):
de trabalho” e “relações socioprofissionais
...isso é estranho. A maioria das pessoas
de trabalho” do que no fator “organização
que trabalham aqui são indicações de che-
do trabalho”. Logo, pode-se inferir que os fias lá de cima. Então eu vejo que quem
teleatendentes possuem uma percepção é indicado faz o seu horário de trabalho.
menos consensual no que tange às relações É lógico que existem as advertências e é
socioprofissionais e às condições de traba- tudo anotado, mas ele tem autonomia de
lho. levantar e falar hoje eu não vou sentar
aqui porque está me fazendo mal o ar-con-
No que se refere ao fator “relações socio- dicionado.
profissionais de trabalho”, as respostas aos Generalização da punição: “se um errou,
itens da escala ECORT confirmam a reali- todos pagam”:
dade encontrada em outras centrais (BELT,
Agora se te pegarem acessando a Internet,
2002; VIANA, ROCHA & GIMENES, 2004)
você é demitido. Isso porque pegaram o
em que o atendente tem pouca ou nenhuma pessoal da manhã acessando a Internet.
possibilidade de ascensão profissional e está Então, há esse conflito e com isso o pes-
inserido num modelo de gestão focado mais soal da tarde fala que isso aconteceu por

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causa do pessoal da manhã. Há esse con- qual, muitas vezes, os problemas são
flito mesmo entre os turnos. tratados de forma camuflada, gerando
Diferentes desempenhos dos atendentes o boato e a desconfiança no ambiente
por turno: de trabalho (BOM SUCESSO, 2002). O
trecho abaixo exemplifica essa caracte-
As notas do turno da tarde são melhores. rística:
Mas como eu trabalho há muito tempo
aqui, quando eu venho trabalhar à tarde, Às vezes acontece algo novo, e as
eu sou muito bem recebida... pessoas não dão informação(...) têm
alguma informação e elas não passam
Para Abrahão (2000), os trabalhadores e ficam enrolando e enrolando. Aí al-
do setor de serviço, apesar de toda a tecno- guém deixa escapar, porque é amigo
logia de informação a que têm acesso, de- de não sei quem, e essa pessoa já fala
vem lidar com forte pressão temporal para para outra que também fala para ou-
a realização da tarefa, bem como com os tra. Então, sempre tem alguém que
prazos indevidos. Conseqüentemente, no aumenta um pouco. Se eles fossem
bem taxativos quando surgisse uma
caso do teleatendimento, cria-se um am-
conversinha, impedissem isso e já es-
biente em que as pessoas só se comunicam clarecesse a notícia. Mas não, deixam
para resolver conflitos, seja entre atenden- chegar nesse ponto de rádio-corredor
te e cidadão, atendente e chefe de turma ou para depois dá a notícia.
atendente e atendente. Dessa forma, segun-
do Assunção (2003), a divisão do trabalho, A organização do trabalho é pau-
presente nesse tipo de atendimento, contri- tada essencialmente na punição e no
bui para promover formas de competição controle, impedindo o fluxo eficaz de
entres as pessoas. Neste sentido, infere-se informações essenciais para a execu-
que a forma como o trabalho está organi- ção da atividade. A falta de informa-
zado apresenta-se diretamente associada ções durante o atendimento ao cidadão
à qualidade das interações socioprofissio- faz com que o atendente tenha pouca
nais vivenciadas. margem de manobra para lidar, de um
lado, com a ameaça de punição por
Principais características da organização parte dos chefes de turma e, de ou-
do trabalho tro, com a cobrança do cidadão. Todos
Quanto à organização do trabalho, o esses aspectos da organização do tra-
aspecto mais crítico se refere à pressão balho contribuem para as constantes
temporal para realização da atividade. queixas dos operadores relacionadas à
Essa característica está bastante presente falta de autonomia e ao monitoramen-
no serviço de teleatendimento e afeta o to excessivo.
desempenho do teleatendente (FERREIRA, Principais características das condi-
2005; FREIRE, 2002; ABRAHÃO, 2000; LE ções de trabalho
GUILLANT et al., 1956).
Com relação às condições de traba-
Considerando que existe cobrança, lho, o principal indicador crítico diz
controle e pressão temporal para realizar o respeito ao desconforto térmico pro-
atendimento, pode-se inferir como são es- vocado pelo ar-condicionado. Depen-
tabelecidas as interações chefia-atendente dendo do lugar em que está sentado, o
dentro desse contexto. Para compreender atendente recebe fortes jatos de venti-
tais interações, é necessário contextualizar lação, tendo que se agasalhar, ou então
outros aspectos da organização do trabalho sente calor, pois com a ventilação dire-
nesse serviço de teleatendimento. cionada a apenas alguns postos de tra-
As jornadas de trabalho estão dividi- balho, o ar não circula em toda a sala
das em dois turnos de seis horas, cujos in- de atendimento. Mesmo fazendo rodí-
tervalos para lanche e idas ao toalete são zio periódico dos postos de trabalho,
determinados pelos chefes de turma. Essa esse é um problema difícil de conciliar
decisão é feita com pouca ou nenhuma par- entre os atendentes:
ticipação dos atendentes. Salvo situações ...um fala que está quente e a chefe
emergenciais, como problemas de saúde, o de turma baixa a temperatura, ai tem
atendente só pode se ausentar do posto de outro que fala que está frio. O ar-con-
trabalho nos horários pré-estabelecidos. dicionado é um problema.

Nesse contexto, a análise das entrevis- No que se refere aos aspectos físi-
tas revelou um cenário interno caracteriza- co-ambientais, a sala de atendimento
do pela falta de clareza de informações e no possui 75m2, comportando 30 postos

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de teleatendimento e 3 mesas para os che- Custo humano da atividade no serviço de
fes de turma. O espaço físico é pequeno se teleatendimento
comparado a outras centrais governamen-
tais. Nesse contexto, o nível de ruído tem Com base nos resultados ECHT, os itens
como valor médio 59,60 decibéis. Esse ín- mais representativos foram:
dice não ultrapassa o limite de 65 decibéis - Ter controle das emoções (83,3% dos
estabelecido pela Associação Brasileira de respondentes)
Normas Técnicas (ABNT) por meio da nor-
ma NBR 10152, que rege sobre os níveis de - Ter que lidar com ordens contraditó-
ruído e conforto acústico. Entretanto, para rias (64,8% dos respondentes)
os atendentes, o nível de ruído é descon-
- Ser obrigado a lidar com imprevistos
fortável devido ao espaço destinado para
a sala de atendimento ser insuficiente, fa- (63% dos respondentes)
zendo com que os postos de trabalho este- A análise das entrevistas semi-estrutu-
jam muito próximos uns dos outros. Além radas, via Alceste, ofereceu uma qualifica-
disso, o ambiente não possui tratamento ção das interações socioprofissionais, bem
acústico adequado. como para os demais aspectos críticos pre-
Conforme Ferreira (2004), as condições sentes no contexto de trabalho (Figura 1).
de trabalho inadequadas deterioram a qua-
O custo humano do trabalho resul-
lidade do ambiente de trabalho aumentan-
ta das condições e exigências inerentes à
do o custo humano e colocando em risco
o bem-estar dos trabalhadores. No caso do atividade de teleatendimento. Ele exige
serviço de teleatendimento estudado, as- do atendente constante uso de estratégias
pectos críticos das condições de trabalho de mediação para dar conta das contradi-
(ambiente físico, equipamentos e gestão da ções presentes no contexto de produção. A
informação) contribuem para o desgaste seguir, apresentam-se os aspectos do con-
nas relações socioprofissionais estabeleci- texto de teleatendimento que demandam
das na central. custo nas esferas física, cognitiva e afetiva.

0,49

0,59

Interações socioprofissionais Atendimento ao cidadão e


Organização do trabalho: Ambiente físico
conflituosas entre teleaten- custo cognitivo na busca de
punição e controle e equipamentos
dentes informações
Ar-condicionado
Produção Cidadão
Manhã Frio
Estava Informação
Pessoa Iluminação
Fofoca Sabe
Relacionamento Computador
Iria Pergunta
Tarde Forte
Banheiro Programa
Colega Calor
Falaram Liga
Faz Casaco
Voltou Resposta
Trabalhar Sinusite
Atestado Ler
Trabalho Luz
Embora Responde
Melhor Mudou
Passado
Ambiente

30,06% 10,96% 10,59% 48,39%


Figura 1 Classes temáticas estruturadoras das verbalizações dos teleatendentes

Custo físico e o teclado são fixas, não possuindo nenhu-


ma possibilidade de ajuste. Além disso, não
O custo físico está relacionado, princi-
palmente, com as condições de trabalho. existe suporte para o monitor. Essas carac-
A atividade exige que o atendente passe terísticas vão de encontro aos parâmetros
grande parte da jornada sentado utilizando estabelecidos pela Norma Regulamentado-
um posto de trabalho pouco adequado. As ra nº 17 do Ministério do Trabalho sobre
mesas de trabalho onde estão localizados a Ergonomia (BRASIL, 1978), em que as me-
CPU (Central Processing Unity), o monitor sas devem possuir ajustes que permitam

142 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 31 (114): 135-148, 2006
a movimentação e o posicionamento dos Custo cognitivo
seguimentos corporais. Adicionalmente,
A interação com o cidadão é o aspec-
no posto de trabalho informatizado, deve
to que acarreta maior custo cognitivo no
existir suporte de monitor possibilitando
serviço de teleatendimento. A diversidade
o ajuste da tela à iluminação do ambiente,
de público que liga para a central aliada à
assim como o suporte do teclado deve ser variedade da demanda exige do atendente
independente e ter mobilidade. concentração e prontidão constantes du-
Tais aspectos das condições de traba- rante o atendimento.
lho contribuem para o aparecimento de O perfil do cidadão determina a forma
conseqüências do custo físico que afetam como a informação será transmitida. Por
a saúde dos atendentes (VIANA, ROCHA, atender a um público bem diversificado,
& GIMENES, 2004). Um exemplo diz res- o atendente deve estar apto a transmitir a
peito à iluminação do ambiente, pois, de- mesma informação a pessoas com níveis
pendendo da localização do posto de aten- de escolaridade diferenciados. O fato da
dimento, há maior ou menor incidência de equipe de teleatendimento não utilizar
luz. Alguns atendentes reclamam de dor de scripts pré-elaborados para transmitir a
cabeça e problemas de visão ocasionados informação permite uma certa flexibilida-
pela iluminação e pelo reflexo na tela do de para atender às diferentes demandas
monitor. A existência de postos de trabalho do cidadão. Dessa forma, ao atender uma
posicionados de frente para janelas serve ligação, o operador passa a adaptar a sua
como barreira de entrada para a ilumina- linguagem à linguagem do cidadão, muitas
ção natural. Esse fator, combinado com a vezes usando palavras de fácil compreen-
luminosidade artificial intensa, causa re- são e explicando o significado de palavras
flexos na tela do monitor. que o cidadão desconhece.
A ventilação do ambiente é outra fonte Outro aspecto que agrega complexidade
de reclamações. Existem postos de trabalho ao serviço é a dificuldade para obter infor-
nos quais o jato de ar vindo do ar-condi- mações essenciais para a execução da ativi-
cionado incide diretamente no atendente. dade. Em algumas ocasiões, no lançamento
Nesses casos, queixas de dor e rigidez nas de programas institucionais, a informação
articulações foram relatadas, assim como primeiramente é apresentada na mídia e só
problemas respiratórios e alérgicos. em seguida os atendentes são informados,
muitas vezes pelo próprio cidadão que liga.
O ruído provocado pela conversação Neste caso, ocorre uma inversão de papéis,
contínua também é um elemento perturba- já que se transfere para o cidadão a função
dor da atividade. A concentração de aten- de informar sobre os programas institucio-
dentes num espaço físico limitado faz com nais promovidos pelo Estado, sendo que
que seja necessário aumentar o tom de voz o atendente deveria ser o “porta-voz” da
para conseguir interagir com o cidadão. O informação solicitada pelo cidadão e não
uso constante de headset (fone de ouvido) o receptor. Assim, o atendente deve lidar
e os níveis de ruído no limite do tolerável com o imprevisto e buscar a informação
para a atividade acarretam perda gradativa requisitada por meio de diversas fontes,
de audição. Na central já existem casos de utilizando estratégias de mediação, como
afastamento do trabalho devido à perda da mostra o resultado das observações siste-
capacidade auditiva. máticas (Tabela 3).

Tabela 3 Estratégias de mediação dos teleatendentes na busca de informações*

Modalidade de busca Freqüência


Pesquisa na internet 73
Liga para o chefe de turma 27
Pesquisa no sistema interno 25
Consulta anotações 11
Pergunta para o colega 4
Total 140

*Total de chamadas válidas: 309

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 31 (114): 135-148, 2006 143
Identificou-se a dificuldade de acesso parte de um cenário crítico das relações
às informações sobre lançamentos e pro- socioprofissionais de trabalho na central
gramas institucionais como principal fator de teleatendimento. Nesse aspecto, o cus-
que obstaculiza o fluxo de comunicação to afetivo é decorrente da falta de com-
entre atendente-cidadão. Conforme exem- panheirismo, da dificuldade de interação
plifica o relato abaixo: entre os colegas, da proteção ou apadrinha-
E, às vezes, você perde quinze minutos mento por parte dos superiores e também
com o cidadão. A informação vem de char- pela obscuridade com que as informações
rete. Eu acho que nós não temos suporte são tratadas. Uma atendente resumiu tudo
da secretaria, os chefes de turma sofrem isso em uma frase: “É preciso humanizar
demais com isso. Aí sou eu e mais não sei a central”.
quantos na central ligando para os chefes
de turma que têm que ligar para um setor O custo afetivo pode ser expresso sob a
lá em cima. O setor lá de cima talvez te- forma de reações afetivas, de sentimentos e
nha poucos funcionários e a resposta não de estado de humor que são resultantes da
vem, e o cidadão está ligando. No final da dinâmica de trabalho imposta pela institui-
jornada, o atendimento é péssimo, e isso ção. Dessa maneira, o atendente se trans-
fica focado no atendente.
forma em uma espécie de “equilibrista”
Toda essa dinâmica de busca de infor- afetivo, tendo que gerir simultaneamente
mações contribui para a perda da quali- as exigências da instituição e as expecta-
dade do serviço (MASCIA & SZNELWAR, tivas dos cidadãos. O elevado custo afetivo
2000), pois, enquanto o teleatendente está pode ser caracterizado por alguns “sinto-
buscando a informação, o usuário está es- mas”, tais como: irritabilidade, mal-humor,
perando do outro lado da linha, o que au- dificuldade de relacionamento, estresse
menta o tempo médio de atendimento. emocional e depressão.
Custo afetivo Aos componentes afetivos somam-se
ainda o intenso trabalho mental, o contro-
A dimensão afetiva do custo humano é
le e a pressão por parte da chefia (DEERY,
caracterizada neste serviço de teleatendi-
IVERSON & WALSH, 2002). A forma como
mento pelo dispêndio emocional exigido
o trabalho está organizado traz como con-
nas interações socioprofissionais inerentes
seqüência, além do sofrimento psíquico, o
à atividade. A atividade exige que o aten-
isolamento e a competição entre os traba-
dente tenha pleno controle das emoções
lhadores de uma mesma equipe (ASSUN-
durante todo atendimento. Isso significa
atender um cidadão agressivo e ouvir tudo ÇÃO, 2003).
sem perder a postura de atendente gentil Tendo sido apresentados os aspectos
e cordial. Essa realidade contribui para o críticos do contexto de produção de servi-
desgaste emocional dos atendentes, uma ços de teleatendimento que interferem nas
vez que o atendimento como um todo sofre relações socioprofissionais de trabalho e
o efeito da ligação de um usuário indelica- tendo destacado o custo humano envolvi-
do. A fala de um dos entrevistados exem- do para lidar com as contradições presen-
plifica essa situação: tes nesse contexto, resta apontar quais os
Tem gente que te trata bem e tem gente elementos do contexto de produção que
que te trata mal e você tem que escutar propiciam uma avaliação positiva ou ne-
todos. O pior relacionamento é com o gativa dos atendentes com relação ao seu
cidadão, ele te trata mal e você não tem estado físico, psicológico e social. Em sín-
como argumentar isso e descontar de vol- tese, significa identificar quais os fatores
ta nele.
presentes nas dimensões OT, CT e RST que
Outro fator de desgaste diz respeito podem ser fomentadores de vivências de
à expectativa que o cidadão deposita no bem-estar ou de mal-estar.
atendente. Ao utilizar o serviço, o usuá- Vivências de bem-estar e mal-estar no tra-
rio vê o teleatendente como alguém que balho
irá solucionar o seu problema. Neste caso,
o atendente percebe que, na sua função, As avaliações dos atendentes sobre o
deve suprir essas expectativas gerando um seu estado físico, psicológico e social asso-
sentimento de impotência e de inutilidade ciadas ao contexto de teleatendimento são
quando não consegue atender de forma sa- reveladoras tanto de vivências de mal-estar
tisfatória a demanda do usuário. quanto de vivências de bem-estar.
Ademais, as relações conflituosas en- Os resultados mostram os fatores que
tre turnos, as disputas e os boatos fazem influenciam as vivências de mal-estar e

144 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 31 (114): 135-148, 2006
Quadro 2 Fatores que influenciam as vivências de mal-estar no contexto de produção de serviços
de teleatendimento

Organização do trabalho Condições de trabalho Relações socioprofissionais de trabalho


Imposição de regras
Ventilação Conflitos entre turnos de trabalho
Controle excessivo
Iluminação Fofoca
Trabalho repetitivo
Mobiliário Dificuldades na interação entre atendente-chefia
Impossibilidade de progressão funcional
Posto de trabalho Desgaste emocional na interação atendente-
Pouca participação nas decisões
Fluxo de informações ineficaz usuário
Pouca autonomia sobre o processo de
trabalho

Quadro 3 Fatores que influenciam as vivências de bem-estar no contexto de produção de serviços


de teleatendimento

Organização do trabalho Condições de trabalho Relações socioprofissionais de trabalho


Jornada de trabalho de meio período Computadores novos Relacionamento com os colegas de trabalho
Adquirir experiência profissional Obter a informação necessária para prestar Reconhecimento por parte da chefia
um bom atendimento Receber elogios do cidadão

bem-estar nas três dimensões: (a) organiza- to do trabalho do atendente, como também
ção do trabalho; (b) condições de trabalho ser fonte de desgaste emocional (HOLMAN,
e; (c) relações socioprofissionais de traba- 2002; GLINA & ROCHA, 2003).
lho (Quadros 2 e 3).
As representações de bem-estar e de
Ao comparar os dois quadros, percebe- mal-estar oscilam no eixo saúde-doença e
se o papel contraditório e mediador que as estão vinculadas à eficiência e à eficácia
relações socioprofissionais exercem na di- das estratégias de mediação. Nesse sentido,
nâmica do trabalho, uma vez que os rela- os relatos dos entrevistados revelam a exis-
cionamentos entre pares e com o cidadão tência de problemas de saúde como aler-
assumem função determinante tanto para gias, sinusite, dores nas costas, problemas
as vivências de bem-estar quanto para as vi- de visão, dores de cabeça, dores muscula-
vências de mal-estar. Esse resultado encon- res e sensação de fadiga ao final da jorna-
tra respaldo na literatura, pois, no serviço de da de trabalho. Dessa forma, tais aspectos
teleatendimento, o usuário pode funcionar negativos caracterizam as avaliações que
como fonte de bem-estar e reconhecimen- os teleatendentes fazem de seus estados fí-
Contexto de produção de serviços de teleatendimento

Organização do trabalho Relações Socioprofissionais de Trabalho Condições de Trabalho

Serviço
Atendimento ao Cidadão

Físico

- Reformula ou antecipa a Custo Humano do Trabalho Cognitivo


demanda
- Pergunta para os chefes Afetivo
de turma
Atividade
- Pergunta para o colega Estratégias de mediação
Não eficazes Eficazes

Mal-estar Bem-estar

Figura 2 Síntese das dimensões analíticas de pesquisa Professora pesquisadora da Escola Nacional de
Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 31 (114): 135-148, 2006 145
sico, psicológico e social, sendo indicado-
res de vivências de mal-estar e de possível mente nas esferas afetiva e cognitiva, os
falência das estratégias de mediação. atendentes utilizam estratégias de mediação
que, quando eficazes, conduzem a uma ava-
Inter-relação das três dimensões: RST, CHT liação positiva do seu estado físico, psicoló-
e vivências de mal-estar e de bem-estar gico e social dentro do contexto de trabalho
Na tentativa de conseguir lidar com as e, por conseqüência, proporcionam vivên-
adversidades impostas pelo trabalho, os cias de bem-estar, caso contrário, podem-se
atendentes desenvolvem mecanismos do configurar vivências de mal-estar.
“modo de ser e de agir” buscando respon- Considerando os diversos indicadores
der, da melhor maneira possível, ao desem-
críticos presentes no contexto de trabalho,
penho esperado pela instituição.
os resultados apontam para uma predomi-
O esquema anterior (Figura 2) destaca o nância de vivências de mal-estar, signifi-
componente, objeto desta pesquisa, relações cando que as estratégias de mediação dos
socioprofissionais de trabalho e sua inter- atendentes nem sempre conseguem ser efi-
relação com o custo humano da atividade. cazes para conseguir atender as exigências
Para lidar com o custo humano, principal- da atividade.

Conclusão

As relações socioprofissionais de traba- no derivado das relações socioprofissionais


lho na central de teleatendimento exercem conflituosas:
um papel fundamental tanto para vivências
- Permitir maior participação dos aten-
de bem-estar quanto para vivências de mal-
dentes na tomada de decisões e maior flexi-
estar no trabalho, sendo também configu- bilidade no processo de trabalho;
radoras do custo humano no trabalho. No
contexto estudado, as relações socioprofis- - Promover um espaço de discussão em
sionais contribuem para a predominância que seja incentivado o aprendizado por meio
da troca de experiências entre atendentes;
de vivências de mal-estar tendo em vista os
principais resultados encontrados: - Redesenhar os estilos de gestão dos
chefes de turma com base nas necessidades
- Interações hierárquicas caracterizadas e expectativas dos atendentes, ampliando as
pela burocracia, pelo autoritarismo, pela ri- funções cooperativas;
gidez e pelo controle, configurando pouca
- Agilizar o processo de obtenção de in-
ou nenhuma participação dos atendentes no
formações essenciais para o serviço, aperfei-
processo de trabalho;
çoando a comunicação entre setores e deter-
- Interações entre pares, apresentando minando responsáveis pela transmissão de
vários pontos de conflito decorrentes da for- informações para a central;
ma de gestão: diferenças entre contratados - Realizar projetos específicos de mobi-
e indicados (apadrinhados), avaliação de liário, iluminação e ventilação, obedecendo
desempenho imparcial e falta de clareza no aos critérios estabelecidos pelas normas téc-
repasse das informações, gerando boatos e nicas NR17 e ABNT.
desentendimentos;
Com a implementação dessas reco-
- Interações com o cidadão pautadas por
mendações em etapa posterior (no pós-
elevados custos cognitivos e afetivos, pois
diagnóstico), pretende-se minimizar e/ou
os atendentes têm que lidar com a diversi-
eliminar os indicadores críticos constata-
dade de público, com a dificuldade em ob-
dos neste estudo a fim de construir rela-
ter informações e ainda devem ter controle
ções socioprofissionais de trabalho mais
das emoções.
gratificantes e, dessa forma, estabelecer
Nesse sentido, destacam-se algumas uma solução de compromisso que atenda
recomendações com a finalidade de mini- satisfatoriamente a demanda de usuários,
mizar os efeitos negativos do custo huma- gestores e atendentes.

146 Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 31 (114): 135-148, 2006
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