Você está na página 1de 1

Kintsugi [CUIDADO, FRÁGIL]

Cada milésimo era importante enquanto o objeto partia em direção ao


chão, sem que se pudesse fazer nada. Ainda assim, a atenção esticava cada
centímetro, como se o peso da angústia fosse capaz de desacelerar o tempo.
Caiu. O chão duro encarregou-se do trabalho, fez exatamente o que lhe cabia.
O barulho do estilhaço real não foi maior que o barulho do estilhaço imaginado.
Partiu-se em mil pedaços, grandes, pequenos, farelos, tudo… enfim, a vida não
liga para o que vai e para o que fica, somos nós que possuímos tais demasiado
humanas preocupações.
A temporalidade é uma questão muito séria, Khronos é o rei dos reis, em seus ombros se coloca a
importante tarefa de carregar aquilo que amamos. O que vai e o que fica nos mostra a única permanência: a
impermanência. Mas principalmente, a fragilidade. Aquilo que amamos não é à prova de balas, tampouco à
prova do tempo, metralhando sessenta segundos por minuto. Um sopro à mais do implacável deus e tudo
desaba, do dia para noite, como um raio que corta o céu em dois; ou sorrateiramente, como uma estação cede
espaço para outra.
Das coisas que se quebram nós também fazemos parte. Aí então parece que dói mais, onde fomos
parar? Onde estamos? Onde estão nossas partes perdidas? Quando foi que deixamos de ser? O filósofo
Espinosa (Senhor da Ética) diz que a morte sempre vem de fora… O marrano1 da razão está correto, é a mais
pura verdade. Mas não podemos nos deitar em posição fetal, abraçar a dor e caluniar o mundo. A dor é perigosa
quando se mantém no primeiro plano. Quando ela nos conduz, abre-se um buraco negro de ressentimento no
peito que atrai tudo para o seu centro e de onde nada sai.
Um coração quebrado é como um osso quebrado. Um sonho despedaçado é como um espelho que dá
sete anos de azar. Nos sentamos na beira da cama, desesperados, procurando uma melhora súbita, implorando
para nosso espírito reagir. Nada, é inútil, impossível. Ele não é capaz, não possui tal espaço de liberdade
transcendente para agir para além das possibilidades que se lhe apresentam. O tempo leva, a dor constrange. A
linha segue em uma só direção, alongando-se até perder-se de vista.
Mas se a morte vem de fora, como disse o sábio holandês, então a cura vem dos encontros, dizemos
nós, inadequadamente. Simples como um band-aid que pousa sobre um pequeno corte no braço da criança e a
faz imediatamente parar de chorar. O esparadrapo e o algodão sussurram: “calma, vai ficar tudo bem, nem tudo
está perdido”. Eis a nossa única certeza: embora cada desencontro seja vivenciado como uma pequena morte,
há vida nos encontros.
Kintsugi é a arte dos encontros. É a sabedoria daquilo que é frágil e que precisa de cuidado (e o que não
precisa?). Do japonês, a palavra significa simplesmente: emenda com ouro. Técnica criada no século XV para
reparar pequenas cerâmicas e vasos com ouro ou prata. Exatamente, potes, xícaras e outros utensílios
domésticos eram colados com resina misturada com as brilhantes substâncias, criando assim uma estética
delicada e nova para utensílios que de outra maneira seriam simplesmente descartados.
Kintsugi significa que o imperfeito pode ser melhor que o perfeito, que o posterior pode superar o anterior,
mesmo que pareça perdido. Colar nos mostra que a diferença é melhor que objetos feitos em série, que há
espaço para o inadequado. Através de mãos cuidadosas, que tomam o cuidado da reparação do que, por sua
fragilidade, não resistiu, a arte do Kintsugi une por dentro o que foi desunido por fora. Quem disse que aquilo
que quebra está perdido? Não somos afinal, todos nós, máquinas que podem quebrar? Não somos todos nós,
em maior ou menor medida, remendos, bricolagens? A vida é a arte de colar, com aquilo que encontramos de
mais valioso, tudo que amamos. Kintsugi: unir com valor. No meio dos pedaços partidos colocamos brilho, para
que eles permaneçam juntos.
O chão é duro, a louça, delicada: mau encontro. Kintsugi é a arte dos bons encontros, que potencializam,
retomam o valor de uso e dão um valor artístico, utilitarismo estético. Quem diria? As mãos são cuidadosas, a
resina é viscosa: unimos aquilo que Khronos quis levar de nós. Juntamos o que a liquidez moderna insiste em
desfazer. Enfrentamos o tempo, passamos uma rasteira e quem quebra a cara é ele! Tornamos a vida mais real
que o modelo, e preferível, por sua singularidade.
O ouro é usado para valorizar a imperfeição, transvalorá-la. É na falha que está o valor. Aquilo que
ninguém gostaria é trabalhado de modo a tornar-se distinto, uma peça única, permeada de cuidado, amor,
continuidade. Queremos que as coisas durem. Há algo de errado nisso? Kintsugi conta a história dos objetos
que, por viverem, sofreram as intempéries do tempo e do descuido. Esta mesma história continua com mãos que
prezam por aquilo que amam. A fissura dolorida é recoberta com ouro; o sofrimento, com riqueza; o
padecimento, com magnificência; a agonia, com transvaloração. Tudo se renova, o mesmo objeto adquire uma
nova grandeza. Notem, aqui tirou-se do acaso mais do que ele nos reservava. Eis a beleza do Kintsugi! As mãos
sorriem, a peça de cerâmica também. A vida se alegra com os encontros, nós também.

1
judeu ou mouro que, embora professando abertamente o cristianismo para evitar perseguições, continuava ocultamente fiel à sua
primitiva religião. Neste caso, é uma referência ao próprio Espinosa.

Você também pode gostar