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Marguerite Duras

O amor
O Amor

Tradução de: Armando Silva Carvalho

Título original: L'Amour.

Autora: Marguerite Duras.

(c) Editions Gallimard, 1971.


Um homem.

Um homem de pé, olhando: a praia, o mar. O mar está

baixo, calmo, a estação indefinida. O homem está em

cima de um estrado de madeira, ao longo da praia.

Veste um fato sombrio. Tem um rosto distinto. Os

seus olhos são claros.

O homem não se mexe: olha.

O mar, a praia, há poças, superfícies isoladas de água

morta.

Entre o homem que olha e o mar, junto do mar, alguém

caminha. Um outro homem. Veste um fato sombrio.

Mas a esta distância não se lhe distingue o rosto.

Caminha, afasta-se e volta, torna a partir, a voltar,

num caminhar longo, monótono.

Algures na praia, à direita daquele que olha, um

movimento luminoso: uma poça esvaindo-se, uma

fonte, um rio, rios, ininterruptamente, alimentam ó

sorvedouro de sal.
À esquerda, uma mulher de olhos fechados. Sentada.

O homem que caminha olha, olha apenas a areia à

sua frente. Tem um andar incessante, regular,

longínquo.

O triângulo fecha-se com a mulher de olhos fechados,

sentada contra um muro que separa a praia do fim da

cidade. O homem que olha está entre esta mulher e o

homem que caminha junto ao mar.

Como o homem caminha, persistente, com igual

lentidão, o triângulo forma-se e deforma-se, sem

nunca se quebrar. Este homem tem o passo regular

dum prisioneiro.

O dia morre.

O mar, o céu ocupam o espaço. Ao longe, o mar está

já oxidado pela luz obscura. E o céu também. Três.

São três pessoas na luz obscura, na rede lenta.

O homem continua a caminhar, vai e volta, em frente

do mar, do céu. Mas o homem que olhava moveu-se.


A oscilação regular do triângulo acabou: O homem

move-se. Começa a caminhar.

Alguém caminha, perto.

O homem que olhava passa entre a mulher de olhos

fechados e o outro ao longe, que vai, que vem,

prisioneiro. Ouve-se o martelar dos passos sobre o

estrado que se estende ao longo do mar. São passos

irregulares, incertos.

O triângulo desfaz-se, reabsorve-se. Desfez-se agora:

o homem passa, vemo-lo, ouvimo-lo.

Ouvimo-lo: o passo espaça-se. O homem deve estar

agora a olhar para a mulher de olhos fechados que está

no seu caminho. Sim. Os passos param. O homem olha

a mulher.

O homem que caminha junto ao mar, e ele apenas,

continua o seu movimento inicial. Caminha

infinitamente prisioneiro. A mulher é observada.

Mantém-se com as pernas estendidas, na luz obscura,


metida contra o muro, de olhos fechados. Não sente

que a contemplam. Não sabe que está a ser observada.

Enfrenta o mar. Um rosto branco. As mãos meio

enterradas na areia, imóveis como o corpo. Força

detida, deslocada na direcção da ausência. Detida no

seu movimento de fuga. Ignorando-o, ignorando-se.

Os passos recomeçam. Irregulares, incertos,

recomeçam. Param de novo. Recomeçam.

O homem que olhava já passou. Os seus passos

ouvem-se cada vez menos. Vemo-lo, dirige-se para

um dique que está tão afastado da mulher como esta

do que caminha sobre a praia. Para lá do dique, uma

outra cidade, muito para além dele, inacessível, uma

outra cidade, azul, que começa a encher-se de pontos

luminosos. Depois outras cidades, outras ainda: a

mesma.

O homem chega ao dique. Não o ultrapassou. Pára. E,

depois, também ele se senta.

Está sentado na areia, frente ao mar. Deixa de olhar


seja o que for, a praia, o mar, o homem que caminha, a

mulher de olhos fechados.


E, por instantes, ninguém, ninguém olha e ninguém é

visto:

Nem o prisioneiro louco que continua a andar ao

longo do mar, nem a mulher de olhos fechados, nem o

homem sentado. E, por instantes, não há ninguém que

oiça, nem ninguém que escute.

Depois, um grito:

O homem que olhava fecha os olhos também sob o

impulso de uma tentativa que o transporta e ergue,

ergue-lhe então o rosto para o céu, um rosto revulso. E

grita.

Um grito. Alguém gritou na direcção do dique.

O grito foi proferido e ouviu-se no espaço inteiro,

ocupado ou vazio. O grito lacerou a luz obscura, a

lentidão. Os passos do homem que caminha continuam

a ouvir-se, não se detiveram, não afrouxaram, mas ela,

ela ergueu ligeiramente o braço num gesto de criança,

cobriu com ele os olhos e ficou assim alguns


segundos, e ele, o prisioneiro, viu este gesto e voltou a

cabeça na direcção da mulher.

O braço voltou a cair. A história.

A história começa. A história começou antes da

marcha ao longo do mar, antes do grito, do gesto, do

movimento do mar, do movimento da luz.

Mas só agora se tornou visível. E é já ali na areia que

ela nasce, no mar. O homem que olhava regressa.

Ouvem-se de novo os passos, vemo-lo que volta da

direcção do dique. Com passos lentos. O olhar

alucinado.

À medida que se aproxima do estrado de madeira, vai

subindo o ruído, gritos, os gritos de fome das

gaivotas. Voando, voando à sua volta.

Ouve-se de novo, agora, o andar do homem que

olhava.

Passa em frente da mulher. Alcança o campo da sua

presença. Pára. Observa-a.


Chamaremos a este homem o viajante − se por acaso

isso for necessário − devido à lentidão com que

caminha, à perturbação que traz no seu olhar.

Ela abre os olhos. Vê-o, olha para ele. O homem

aproxima-se. Detém-se em frente dela e interroga:

− Que faz você aqui? É quase noite.

A mulher responde então de forma clara:

− Estou a olhar.

E aponta à sua frente o mar, a praia, a cidade azul, a

branca capital atrás da praia, a totalidade. O homem

volta-se: o outro que caminha já desapareceu. Dá mais

um passo, apoia-se no muro. E fica assim, ali, ao lado

dela. A luz muda de intensidade e move-se. Fica mais

clara, muda-se, transforma-se. E o homem diz:

−A luz mudou.

A mulher vira-se um pouco para ele e fala. Tem uma

voz clara, de uma doçura tal que causa inquietação.

− Ouviu gritar.
O seu tom de voz não exige resposta. Mas o homem

responde:

− Ouvi.

A mulher volta-se na direcção do mar.

− Chegou esta manhã.

− Cheguei.

O desenho das palavras é bastante claro. A mulher

aponta à sua volta o espaço, e explica:

− Aqui é S. Thala até chegar ao rio. E cala-se, em

seguida. A luz vai-se alterando.

O homem ergue a cabeça, e olha o que ela acaba de

mostrar-lhe: vê, ao fundo de S. Thala, na direcção do

sul, o homem que caminha regressar, avançando entre

as gaivotas.

A sua caminhada é regular. Igual à alteração da luz.


Acidente.

De novo a luz: é a luz. A luz que muda e deixa de

mudar, repentinamente. Aumenta, ilumina e fica assim,

iluminante, igual. O viajante diz:

−A luz. Ela olha.

O homem que caminha alcançou o ponto do percurso

em que há pouco se detivera. E pára. Volta-se, olha

também, aguarda, volta a olhar, retoma o caminho,

avança.

Avança.

Os passos não se ouvem.

O homem chega. Pára em frente do que se apoia ao

muro, o viajante. Tem os olhos azuis, espantosamente

transparentes. A ausência do olhar é absoluta. Fala

com voz forte, aponta à sua volta tudo. E diz:

− Que aconteceu? E acrescenta:

−A luz parou.

O tom exprime uma esperança violenta. A luz fixa,


iluminante.

Olham à sua volta a luz fixa, iluminante. O viajante é

o primeiro a falar:

− Voltará a crescer.

− Acredita que sim?

− Acredito. Ela cala-se.

O homem aproxima-se do viajante, que se apoia ao

muro. O seu olhar azul é duma fixidez devoradora.

Aponta com a mão, aponta o que está para lá do muro.

− Está instalado no hotel?

− Sim. − E acrescenta: − Cheguei esta manhã.

A mulher cala-se e continua a olhar a luz que se

deteve. O homem deixa de fixar o viajante e descobre

de novo a paragem da luz.

− Não é possível, alguma coisa vai acontecer.

Silêncio: com a luz, deteve-se também o barulho do

mar. O olhar azul regressa e fixa com insistência o

viajante.
− Não é a primeira vez que vem a S. Thala.

O viajante procura uma resposta e abre a boca várias

vezes para responder.

− Quer dizer... − Mas depois cala-se.

É uma voz sem eco. A imobilidade do ar é igual à da

luz. Ele procura ainda responder.

Mas os outros não aguardam resposta.

Na impossibilidade de responder, o viajante ergue a

mão e aponta, à sua volta, o espaço. Depois do gesto,

consegue enfim avançar a resposta.

− Quer dizer... Recordo-me.... é isso... recordo-me...

Mas cala-se.

A voz de timbre luminoso eleva-se até ele, trazendo-

lhe a resposta, numa claridade deslumbrante.

− De quê?

Um impulso incontrolável, orgânico, extremamente

forte, priva-o de voz. E responde sem voz:

− De tudo, do conjunto. Ele respondeu: o movimento


da luz volta de novo, o barulho do mar recomeça, o

olhar azul do homem que caminha afasta-se.

O homem que caminha aponta à sua volta a

totalidade, o mar, a praia, a cidade azul, a branca

capital, e diz:

− Aqui, é S. Thala até ao rio.

Detém o movimento. Depois recomeça e aponta de

novo, mas mais precisamente, talvez, a totalidade, o

mar, a praia, a cidade azul, a branca, e outras mais,

outras ainda, e acrescenta:

− Depois do rio é ainda S. Thala. E vai-se embora.

A mulher ergue-se e segue-o. Num passo, primeiro,

titubeante, lento. Depois, igual ao dele. Caminha.

Caminha e segue-o.
Afastam-se os dois.

Contornam S. Thala, talvez, sem se internarem na

espessura. Anoiteceu.
Noite.

A praia, o mar estão mergulhados na noite. Um cão

passa, na direcção do dique.

Ninguém caminha pelo estrado de madeira. Mas nos

bancos, ao longo do caminho, há pessoas sentadas, os

habitantes. A descansar. Silenciosos. Isolados uns dos

outros. Calados.

O viajante passa. Caminha lentamente na direcção

levada pelo cão. Detém-se. Regressa. Dir-se-ia que

passeia. Mas toma a partir.

Já não se lhe vê o rosto.

O mar está chão. Não corre vento.

O viajante passa de novo. O cão não volta. O mar

parece estar a subir. Ouvimo-lo aproximar-se. Um

baque surdo vem da embocadura.

O céu sombrio. Ainda noite.

O viajante está sentado diante da janela aberta de um

quarto. Dentro de um feixe de luz eléctrica. Não se vê


o que está para lá da janela, desse lado do hotel.

Noite lá fora.

Não é o mar que se ouve. O quarto não dá para o lado

do mar. É um roer incessante, surdo, ilimitado. O

homem pega num papel e escreve: "S. Thala S. Thala

S. Thala."

E pára. Parece hesitar entre as palavras escritas.

E recomeça. Lenta e determinadamente, escreve: "S.

Thala, 14 de Setembro." Sublinha a primeira palavra.

E escreve ainda: "Não venha, já não vale a pena."

Afasta a carta de si e ergue-se.

Dá alguns passos pelo quarto. Estende-se na cama.

É o viajante, o homem do hotel.

Está estendido na cama, sob o mesmo feixe de luz

eléctrica, virado para a parede. Não se lhe vê o rosto.

Ao longe, o roer espesso, na matéria escura, e

atravessado pelas sirenes da polícia.

Depois, só o roer espesso na matéria escura.


Dia.

O homem caminha de novo à beira-mar. Ela está lá

outra vez, apoiada no muro.

A luz é intensa. A mulher está inerte e de lábios

cerrados. Pálida. Na praia, um certo movimento.

O viajante aproxima-se, mas ela não lhe faz qualquer

sinal. Dirige-se para o muro e senta-se a seu lado.

O homem observa o que aparentemente ela quer

evitar: o mar, o movimento nauseante da ondulação, as

gaivotas que gritam e devoram o corpo da areia, o

sangue. Então ela diz lentamente:

− Estou à espera de um filho, sinto vontade de vomitar.

− Não olhe, olhe para mim. Ela volta-se para ele.

Ao fundo, o homem pára no meio das gaivotas.

Depois torna a partir, em direcção ao dique. Ela

pergunta:

− Estava ali há muito tempo.

− Estava.
Ela sustém-se, o olhar fixo na areia. Ele olha então

para o dique e vê o que se afasta.

− Quem é?

Ela responde com um ligeiro atraso:

− Está a vigiar-nos. − E continua: − Está a vigiar-nos.

E conduz-nos. Ele fica-se a olhá-lo longamente.

− Aquele percurso sempre igual... Os passos

regulares... Parece que... Ela num gesto: não.

− Não, é o daqui... é o passo de S. Thala. Os dois

aguardam. No mar, e sempre, a ondulação, a febre.

− Já experimentou vomitar?

− De nada serviria, tornava a começar. Os dois

aguardavam ainda. A luz começa a declinar.

As primeiras gaivotas abandonam a praia e voam

para o dique.

O caminhante não volta pelo mesmo caminho. Dirige-

se a S. Thala, desvia-se depois, torna a partir, na

direcção do dique. E desaparece.


O viajante exclama:

− Estamos sós? Ela, num gesto:

− Não.

Os dois aguardam.

As gaivotas continuam a partir, em explosões de

branco. Vão-se embora.

Precipitadamente. O viajante diz:

− Agora já pode olhar.

E ela obedece-lhe, mas com prudência, muito

lentamente: primeiro o mar, o movimento, depois a

ondulação, em clarões de luz. E o homem diz:

−A cor desaparece. A cor desaparece. Depois, é o

movimento.

Por fim, as últimas gaivotas. De novo a areia, a areia

toda. E o homem diz:

− Não há mais nada.

Ele ouve-a respirar, mexer-se, olhar, inspeccionar

longamente esse negrume que se aproxima, a areia.


Depois volta a imobilizar-se.
Mas sempre atenta, escutando, diz:

− Ouve-se um ruído.

O homem escuta. Acaba por ouvir qualquer coisa

indistinta: pensa ser a vazante, o deslizar contínuo das

águas no sorvedouro de sal. E diz:

É a água.

− Não − diz ela -, é S. Thala.

− O quê?

− S. Thala, o barulho de S. Thala.

O homem escuta então mais demoradamente.

Reconhece esse roer incessante. Pergunta.

− Estão a comer.

A mulher não tem a certeza. E diz:

− Ou a voltar para casa − acrescenta: − a dormir, ou

nada.

Ficam calados. Aguardam, calados, que o barulho de

S. Thala diminua, finalmente. O barulho parece

diminuir. A mulher volta a respirar.


Mexe-se.

Observa-o, o viajante, repara no seu fato, no rosto e

nas mãos. Toca-lhe na mão, de leve, com doçura,

chama-o depois, aponta-lhe o dique e exclama:

−O grito vinha dali.

E o homem surge, precisamente dessa direcção. Está

longe ainda.

Volta do dique, sim, o homem que caminha. Ei-lo.

Atrás dele, o mar sobe, a massa do aglomerado

contínuo começa a iluminar-se com as luzes

eléctricas. Por cima dessa massa, o fumo dos

petróleos, negro.

O homem aproxima-se, caminha ao longo do mar,

sem olhar. A mulher aponta-o ao viajante:

− Ei-lo que volta. O viajante observa:

− Volta de onde?

A mulher procura na direcção que acaba de ser

ultrapassada pelo que caminha, visível, e exclama:


− Algumas vezes consegue ir além de S. Thala, para

ficar a sabê-lo − acrescenta − basta aguardar. Ao

fundo, ele continua a avançar, alcança a praia e

obliqua na direcção deles. O viajante diz:

− Não se pode ir além de S. Thala, não se pode lá

entrar.

− Não, mas ele − ela, aguardando − às vezes perde-se.

O homem aproxima-se. E eles aguardam-no.

O homem chega. Observa-os. Senta-se, cala-se, o seu

olhar azul perscruta o espaço, fala em seguida,

informa-os com exactidão.

− Houve um engano. − E diz depois: − O grito vinha

de mais longe. Os outros dois aguardam: mas ele não

diz mais nada.

− De onde?

− De toda a parte. − Cala-se. − Eram muitos: milhões.

− Cala-se de novo. − Está tudo destruído. Vê-a.

Aponta-a.
− Tentou vomitar? O viajante diz-lhe:

− De nada serviria, tornava a começar.

− É verdade.

Ela é a primeira a levantar-se. Levanta-se. Fica de pé.

Apoiada no muro.

Há um intervalo de tempo, depois também eles se

levantam. Estão todos de pé. O viajante designa o mar

à sua frente, depois atrás, a massa espessa:


− Que faz você? Caminha junto ao mar? Junto de S.

Thala?

− Sim.

− Só isso?

− Não.

O olhar azul volta-se na direcção do mar. Regressa.

Está límpido, intensamente fixo. O viajante continua:

− No entanto esse movimento tão preciso, tão regular...

esse percurso tão bem definido...

− Não. Não... − Cala-se. − Não... Cala-se de novo estou

louco.

Olham-se, olham, aguardam. O vento chega, passa

sobre S. Thala. O olhar azul observa o céu, o mar,

todo o movimento, com igual atenção.

O primeiro a afastar-se, a sair da imobilidade, é ele, o

homem que caminha. O seu passo é certo, mal

começa a andar.

A mulher segue-o. Mas os seus passos são titubeantes,


lentos. Depois, uniformizam-se. Caminha como ele. E

segue-o, um pouco mais atrás.

Então ele pára um pouco para que ela o alcance. E ela

alcança-o.

Ele retoma a caminhada em direcção ao rio. Ela volta

a alcançá-lo. Ele continua ainda. Assim deve ser

todos os dias, cobrindo a distância, as areias de S.

Thala.

Desaparecem, depois de tornearem o rio. Mas sempre

contornando, evitando penetrar na espessura de

pedra. Três dias.

Três dias em que houve um domingo. O barulho

aumenta, S. Thala vacila, e o barulho cessa. Uma

tempestade enfurece o mar. Três noites.

De manhã há gaivotas mortas na areia da praia. Junto

ao dique, um cão. O cão jaz junto aos pilares dum

casino bombardeado. Acima, o céu muito sombrio,

acima do cão morto. A tempestade foi-se. O mar está


agitado.

O sítio do muro está agora vazio, o vento fustiga. O

mar leva consigo o cão morto, as gaivotas.

O céu acalma-se. O aglomerado contínuo emerge dos

petróleos. O mar, depois. E o sol. Sol. Tarde.

É com a tarde que ela reaparece. Pelo estrado de

madeira. Atrás dela vem o que caminha.

Ei-los que chegam. Vêm do lado do rio. Atravessando

S. Thala, cobrindo-a depois. Saem de três dias de

obscuridade. Vemo- los de novo à luz solar de S.

Thala deserta.

O viajante sai do hotel que se encontra atrás do muro,

vê-os, dirige-se para eles.

Atrás dela, o outro pára quando o viajante sai do

hotel. Mas a mulher continua a avançar. Não viu ainda

o viajante que caminha ao seu encontro. Caminha

movida pela vontade de quem parou atrás de si.

São alcançados. Ela vê o viajante, mal o reconhece.


Reconhece-o agora.

Atrás dela, o outro faz volte-face e vai-se embora.

Partiu na direcção do rio. E ela diz:

− Ah, você veio.

A tempestade vincou-lhe mais os traços.

Partem os dois, primeiro em direcção ao dique,

depois na direcção do rio, detêm-se, tornam a partir e

dirigem-se para uma luz violenta que se encontra

sobre o estrado de madeira, junto ao mar, junto às

areias, antes da espessura, do aglomerado de pedra.

Os dois olham a luz por muito tempo. Entram, em

seguida.

A mulher tem fome.

Come, vê e ouve Há que ver e ouvir, torrentes de

palavras, palavras, risos. O homem olha também, mas

de maneira diferente e volta-se de vez em quando

para a contemplar. E ela exclama:

− Sinto fome, estou à espera dum filho.


Quando fala o seu olhar aumenta, para logo se apagar

− e então repete:

− Um filho.

− Ainda?

− Sim.

− De quem? Não sabe.

− Não sei.

A mulher cheira a areia, a sal. A tempestade

escurece-lhe o olhar.

No café, o barulho aumenta. E quando se torna forte,

os olhos da mulher abrem-se de forma dolorosa. O seu

estado de distracção é contínuo. Pergunta:

− Você vem todos os dias a S. Thala.

− Venho.

−É longe. − E acrescenta: − É uma longa distância, não

concorda?

− Sim.
O homem tenta ver para lá do recinto fechado, para lá

dos vidros. O olhar dela concentra-se aqui, no recinto

fechado.

Para lá dos vidros, do estrado de madeira, da praia,

alguém passa, uma sombra caminha com passo certo

na direcção da massa negra do dique. O viajante

segue-a com o olhar durante muito tempo, até ela

desaparecer atrás da massa negra. E diz depois:

− Acaba de passar além, ia depressa, não olhava para

nada. E a mulher responde abertamente:

− Procura. − E acrescenta: − É preciso deixá-lo

procurar. Repara que ele está a seu lado − o viajante,

o homem do hotel. Levanta a mão, aflora o rosto que

contempla, a mão fica pousada enquanto olha, uma

mão morna que toca na pele, docemente, enquanto a

voz exclama sem eco nenhum.

− Porque voltou a S. Thala? Olham-se os dois.

− Por causa da viagem. − E cala-se.


Olham-se ainda, depois o rosto afasta-se e a mão

descai. Ficam assim, sem dizer palavra.

Por muito tempo. O barulho diminui.

O recinto vai ficando vazio.

Olham os dois, escutam o que se passa em frente. Por

muito tempo.

O barulho aqui diminui mais. A mulher parece

aguardar um prazo cuja ameaça vai aumentando à

medida que o barulho diminui. E diz:

− Vão-se embora.

− Quem são?

A mulher aponta por dentro dos vidros, atrás, por toda

a parte, o aglomerado de carne. Num gesto aberto,

desesperadamente terno:

− As minhas populações de S. Thala.

Aqui, o barulho cessou. O roer incessante recomeça,

ao longe. E aumenta. Transforma-se.

E passa a ser um cântico. Um cântico longínquo. As


populações de S. Thala cantam. Ela olha à sua volta,

à sua frente:

− Foram-se embora. − E escuta. − Ouve-os?

Os seus olhares partem, atravessam os vidros,

ouvem-nos cantar. Ouvem o cântico longínquo. E ela

ergue a mão:

− Está a ouvir? − Cala-se. − É esta música.

É uma marcha lenta de acentos solenes. Uma dança

lenta, de bailes defuntos, de festas sangrentas. Ela não

se mexe. Ouve o hino longínquo. E exclama:

− Preciso de dormir para não morrer. Aponta na

direcção onde dorme.

− Tenho de atravessar o rio. − E cala-se. Fica à escuta.


O homem está com medo: a mulher não se mexe,

deixou de respirar, ouve a música apenas. E pergunta:

− Quem é você?

A música continua ainda. E ela responde:

−A polícia tem um número.

A música continua ainda. Ela olha para ele:

− Porque está a chorar?

− Estou a chorar?

A porta abre-se deixando entrar a ventania. O homem

que caminha.

Ei-lo.

Entra no recinto fechado, só, a porta volta a fechar-

se.

Com ele entra o iodo, o sal, o fulgor azul dos olhos

de pleno dia, de plena noite. O homem endireita-se e

escuta também o cântico longínquo. E exclama:

− Lembra-se? A música de S. Thala.

Mantém-se rígido. Escuta. Um riso puro varre-lhe o


rosto. Escuta profundamente, com uma gravidade

insensata, a música longínqua.

A mulher aponta-lhe o viajante e diz:

− Está a chorar.

Os olhos azuis enchem-se também de lágrimas. O

riso continua fixo. E ele explica:

− A música de S. Thala faz chorar. A música termina.

Tenta ouvi-la ainda. Mas desiste.

Volta a ouvir-se o roer, o silêncio.

E a mulher exclama, apontando o viajante:

− Ele tinha medo.

− De quê?

− De não tornar a vê-lo.

−É verdade que...

O olhar azul parou. Revê. Revê o perigo, a perdição.

−É verdade que me perdi, além, ultrapassei a

distância...

−E acrescenta: − a hora.
Indica com um gesto a direcção solitária por detrás da

massa negra do dique. A mão está a tremer.

− Não sabia como voltar.

Deixa de apontar. Esquece, vê-a apenas a ela,

esquece. E diz ao viajante:

− Ela explicou-lhe que precisa de dormir? E dirige-se

ao viajante:

−É preciso atravessar o rio, é depois da estação, entre

os dois braços de água.

− O quê?

−A prisão de S. Thala, o seu governo. Levantam-se e

saem.
Noite.

Na luz eléctrica o viajante escreve. O viajante afasta

de si a carta.

À sua frente, a estrada vazia. Atrás da estrada,

vivendas apagadas, jardins. Atrás dos jardins, a

espessura, impenetrável, de S. Thala, hirta.

O homem volta à carta. Escreve. "S. Thala, 14 de

Dezembro."

"Não venha, não venha mais, diga às crianças

qualquer coisa."

"Se não for capaz de lhes explicar, deixe-as imaginar

o que quiserem." Pousa a caneta, mas recomeça logo:

"Não lamente nada, nada, abafe a dor, não

compreenda, diga para si que estará depois mais

próximo da" − A mão ergue-se, mas baixa em seguida

e escreve: "da inteligência."

O viajante afasta a carta de si. Sai do quarto.

O quarto continua aceso, sem ninguém lá dentro.


Noite. S. Thala deserta.

O homem caminha. É o viajante, o homem do hotel.

Atravessa o rio e passa em frente da estação.

O mar sobe entre as margens da vaza. O céu agita-se,

muito baixo, sombrio, negro em certas zonas. A

estação está fechada. O homem vira-se. É ali. Onde o

rio se divide. É ali, entre os dois braços do rio.

É um grande edifício de pedra, de formas simples. A

escadaria dá para um campo rodeado pelos braços do

rio. Ela está ali. Dorme no último degrau da escada,

encostada à parede na mesma posição que tinha na

praia.

Ele está também. De pé, na ponta extrema, frente às

embocaduras, à entrada do mar. Fala.

O viajante avança para dentro da ilha. A tempestade

deixou sinais: há ramos quebrados. O viajante passa

em frente da mulher e repara que dorme

profundamente. Tem a respiração regular, livre.

Continua em direcção à extremidade da ilha que está a


uns vinte metros da mulher que dorme. Mas não chega

ao fim.

Senta-se num banco, a meia distância entre a mulher

que dorme e o homem que fala no extremo da ilha.

Das margens exteriores do rio, de toda a parte,

avançam barcos em direcção ao mar. Vêem-se a

passar a embocadura, numa longa fila.

De repente, um gemido.

De repente, entre o ruído dos motores e o ruído do

mar, ergue-se um gemido de criança. Um gemido que

parece vir do sítio onde a mulher dorme.

A voz mantém-se ainda, essa voz sem nexo, circula

em toda a ilha, junta-se ao choro, entre o ruído dos

motores e o fragor do mar.

E depois cala-se.

Talvez tenha ouvido o gemido.

O homem deixa o extremo da ilha. Aproxima-se. Vê

o outro, o viajante, e pára junto do banco.


− Ah, sempre veio.

Continua a andar e dirige-se à escadaria. Inclina-se

para a mulher, escuta, endireita-se de novo, sempre

apressado. Torna a passar junto do banco, detém-se e

observa:

− Dorme descansada. O gemido continua.

− Este gemido, é ela?


− É... − está impaciente, mas dorme. − O homem cala-

se. − É apenas cólera, não é nada.

− Contra quem?

O homem mostra à sua volta o movimento geral.

− Deus. − E continua: − Contra Deus em geral, não tem

importância.

Afasta-se apressado e alcança novamente o extremo

da ilha. O barulho aumenta. O gemido também. E

também o turbilhão das embocaduras.

O viajante vai ao seu encontro no extremo da ilha.

Distingue-o nitidamente na claridade do mar: está a

olhar como no primeiro dia.

Os ruídos dos motores multiplicam-se, multiplica-se o

movimento dos barcos, a voragem do mar continua. O

homem fala, diz:

− Que confusão. − E acrescenta: − É preciso esperar

ainda uma hora para que o movimento cesse e o mar se

acalme. − E acrescenta: − E entretanto o tempo passa.


Aponta a embocadura impetuosa.

− Repare, repare. Aqui. Repare.

Aponta o rio invadido, as fendas de água, a confusão

das forças de água, a subida brutal do sal na direcção

do sono. O gemido apela. O gemido grita. O viajante

diz:

− Custa-me voltar para o hotel, custa-me afastar-me

dela... O outro responde, frente à confusão:

− Compreendo... − E aponta à sua frente. −

Compreendo... nem eu posso também... repare... E

mostra a totalidade à sua volta.

O gemido continua.

O que olha o mar parece não ouvir.

O viajante abandona a ponta da ilha, e vem para junto

da mulher que dorme. Senta-se ao pé do seu corpo

abandonado, comtempla-a. Tem os lábios

entreabertos. O queixume de animal que sonha torna-

se mais doce. A cabeça perfeitamente adormecida. O


homem debruça-se para ela, pousa a cabeça no seu

peito, escuta o gemido de criança e o bater do

coração, o gemido de criança, o ódio do coração.

O homem ergue-se. Luta contra a vertigem.

Caminha, pára, volta a caminhar. Atravessa de novo o

espaço da ilha, dirige-se outra vez para o que observa

o movimento das águas.

O mar continua a subir. O rio está cheio. As margens

submersas. O mar cada vez mais perto do terreno da

ilha. O homem faz sinal ao viajante para que este se

aproxime e veja. Exclama e aponta:

− Repare, repare ali em baixo.

Uma bruma surge, ténue, das embocaduras. Dança

diante dos olhos, desfaz-se em seguida, rasgada pelo

mar, mas logo uma outra surge, dançando novamente.

E o homem diz:

− Veja − sorri.

E a queixa colérica da criança continua. Distingue-se


cada vez menos o movimento das águas. O sorvedouro

de sal vai perdendo força. O viajante designa a

escadaria. Indaga:

− Fale-me um pouco da história.

Sem se voltar, olhando em frente, o homem

responde:

− Segundo penso, a ilha foi a primeira a destacar-se

de além − e aponta o mar. − S. Thala chegou depois,

com o pó. − Acrescenta: − Sabe, o tempo...

O silêncio começa com o espaçamento da partida dos

barcos. E o homem diz:

−O silêncio começa com o espaçamento dos tempos. O

queixume começa a rarear.

− Repare.

Um vale de águas começa a definir-se entre as

margens da vaza. Nas embocaduras nota-se a

mudança: o mar orla-se de branco, o sal separa-se,

não penetra mais. As colinas de água estão completas.


O ódio, a queixa cessou completamente.

Um último fluxo de palavras sai dele. Os seus olhos

brilham e fecham-se frente à paz das águas.


− Objecto do desejo absoluto − diz -, sono da noite, a

esta hora, geralmente, onde quer que esteja, aberta a

todos os ventos. − O homem pára, recomeça depois: −

Objecto de desejo, ela é de quem a deseje, para o

arrastar e levar consigo, objecto do desejo absoluto.

Abrem-se-lhe os olhos. Volta-se em seguida para o

outro homem, o viajante, depois para a mulher que

dorme, por fim o seu olhar atravessa S. Thala e nele

se perde.

Os dois rodeiam o corpo adormecido.

Aproximam-se e contemplam-no. O céu torna-se

perfeitamente claro.

Sentaram-se ambos junto do corpo adormecido. Os

lábios fecharam-se de novo. A respiração,

pacientemente, abre caminho na respiração do

conjunto.

O homem olha para ela como há pouco olhava para o

mar, com uma paixão insensata. O viajante pergunta:


− Quando começou a história?

O homem volta-se para ele, fixa-o com o olhar

ausente, submerso de repente pela certeza:

− Com a luz, com a explosão da luz, segundo creio.

Continua a fixá-lo, reconhece-o, na transparência do

seu olhar tudo se afoga, tudo se igualiza, e diz:

− Você veio a S. Thala para ela, veio a S. Thala para

isto. Aponta-a. A mulher olha para os dois: de olhos

abertos, dorme. O viajante abandona a ilha. O homem

acompanha-o.

Caminham.

Caminham, ao longo da estação. E ele mostra ao

viajante a espessura, a massa de S. Thala.

− Os filhos dela estão lá dentro, esse ardil, feitos por

ela, dados por ela. − E acrescenta: − A cidade está

cheia deles, a terra. O homem pára, aponta ao longe,

do lado do mar, o dique. E continua:

−É um país de areias. O viajante repete:


− De areias.

− De vento.

O homem volta-se para o viajante. Olham um para o

outro:

− Ainda se lembra...? no dia do grito... lembra-se?

− Pouco. Muito pouco.

O homem aponta novamente ao viajante o

aglomerado contínuo:

− Ela viveu por toda a parte, aqui, algures. Num

hospital, num hotel, nos campos, nos jardins, nas

estradas − hesita -, num casino municipal, sabia?

Agora vive ali.

Aponta a ilha. E o viajante pergunta:

− Uma prisão sem grades.

− Exacto.

−O crime existe no interior das grades? O homem

responde, distraidamente:

−O crime et ccetera.
Voltam a caminhar. O viajante pronuncia certas

palavras:

− Um internamento voluntário, sem grades.

O homem não o ouve e olha para o mar. Vê um

clarão no céu, na fundura do espaço, e exclama:

− Lua, repare, a lua dos loucos.

Caminham de novo, lentamente. O viajante pergunta:

− Ter-se-á esquecido?

− De maneira nenhuma.

− Perdido?

− Queimado. Mas anda por aí, disseminado. Aponta,

com desprendimento, a matéria negra, o aglomerado

contínuo. Detém-se. Olha de novo o mar,

profundamente, depois dirige-se para a ilha, para junto

dela.
Noite.

O viajante passa ao longo do mar.

Passa pelo hotel atrás do muro, e ultrapassa-o.

Caminha pela estrada, dirige-se a uma casa que se

encontra numa elevação. Pára em frente da casa. A

rodear a casa, a massa, a vertigem de S. Thala.

A casa é um rectângulo cinzento de persianas brancas,

a dominar a praia, a massa do dique, a cidade

envenenada. O jardim em pousio e a erva crescida,

suplantando os muros.

O portão entreaberto é um convite que causa receio.

O viajante retoma a caminhada.

Caminha novamente pela estrada e desce em direcção

à praia. Mas não vai para o dique, avança para o

muro.

O viajante entra no hall do hotel que fica por trás do

muro. A luz é fraca. No hall estão duas filas de

poltronas viradas para o mar. Uma porta aberta dá


para um terraço. Plantas negras agitam-se no vento

que entra pela porta. Espelhos paralelos ocupam as

paredes. Reflectem os pilares que estão no meio do

hall, as suas sombras maciças multiplicadas, as

plantas verdes, as paredes brancas, os pilares, as

paredes, as paredes e depois o homem, o viajante, que

acaba de passar.
Dia.

A mulher está no terraço do hotel quando o viajante

sai. Traz o mesmo vestido que trazia de noite.

Aguarda, olhando fixamente a fachada branca. Rígida,

aquém dos muros, contemplando o hotel.

Ouve os passos do homem, avista-o e vai ao seu

encontro.

− Aqui estou.

− Ia ter consigo. − E acrescenta: − Sabia que eu viria?

A mulher não compreende.

− Onde?

−À ilha. Sabia?

Aproxima-se dele e apoia a cabeça no seu ombro,

num gesto de confusão, de medo. Parece sentir frio. E

exclama:

− Conheço este lugar.

Ergue a cabeça, olha o hotel, olha-o a ele e

acrescenta:
−E a si também.

Ele nada diz. O burburinho aumenta de repente. A

mulher olha de novo o hotel.

− Voltei à ilha, na noite passada.

− Ah.

−E encontrei-a na praia.

De fronte erguida, a mulher olha a fachada branca do

edifício de formas simples, erigido em frente do mar.

A custo, o homem arrasta-a consigo.

Arrastando-a, contornam o hotel. A praia.

Ao longe, há pessoas e cavalos a passo. O céu está

ligeiro e o tempo aberto. Dirigem-se para o mar,

sobre a areia nua.

A mulher continua a sentir frio, o hotel persegue-a,

volta-se outra vez para trás. Ele impede-a de olhar,

leva-a consigo. E ela diz:

− Perguntei-lhe a ele onde você morava, ele pediu-me

para o descrever, eu fi-lo. − Cala-se. − Então ele


disse-me como podia encontrá-lo − interroga-o com o

olhar -, e não me enganei.

− Não, não se enganou.

A mulher continua a tremer. E, uma vez mais, olha

para trás para o hotel. O homem vira também a

cabeça e aponta:

− Nunca o tinha visto?

− Não. − E acrescenta: − Nunca vou por ali, por

aquele lado de S. Thala. O homem continua a arrastá-

la. A mulher caminha. Vê o mar e diz:

− Às vezes está calmo aqui. Aparentemente começa a

esquecer o hotel.

− Não se ouve nada.

Ela aponta o mar, o mar da manhã, violento, verde,

fresco, avança, sorri e exclama:

− O mar.

Pára de novo. O homem continua a caminhar. Ela

volta a olhar para trás.


− Vamos, venha comigo.

− Tenho de voltar.

A mulher apenas sabe seguir o outro, o homem de S.

Thala. Tem receio de seguir o viajante. Este senta-se

e chama-a.

− Venha para junto de mim. Descansaremos além. A

mulher aproxima-se e senta-se junto dele. Calada.

Depois procura com o olhar o outro homem.

Mas é o viajante o primeiro a vê-lo.

− Repare, ele não está longe.

Ao longe, para lá do dique, surge ele, com efeito, na

infatigável direcção do mar.


A mulher descobre-o. O seu rosto ganha nova cor.

Parece acalmar-se. A lembrança do hotel desaparece.

Olha-o agora a ele, ao viajante. E já não treme. Ele

estendeu-se na areia e ela continua a olhá-lo. Parece

aperceber-se da fadiga da viagem. Leva a mão aos

olhos despertos. E diz:

− Vim para o ver, nessa viagem. Ele volta a chamá-la.

− Venha para junto de mim.

A mulher desliza até ele. Inclina-se e descansa o

rosto no seu peito.

− Oiço o seu coração.

− Estou a morrer.

A mulher ergue levemente o rosto. O homem não

olha para ela, e continua:

− Estou a morrer.

O homem soltou uma espécie de grito. A frase

permanece exterior. Mas o grito fá-la levantar-se e

afastar-se ligeiramente dele, receosa e atónita. Uma


pausa. Diz:

− Não.

Falou com doçura. E nessa doçura perde-se a

brutalidade do grito, a turva ameaça desvanece-se. E

ela recomeça:

− Vim para o ver, para essa viagem que pretende fazer.

Cala-se. O homem não replica. A frase fica em

aberto, e ela desconhece-lhe o fim. Acabará mais

tarde, pressente-o, mas não se precipita, aguarda.

No outro extremo da praia, ao longo do dique, a

caminhada já recomeçou. Percurso regular. Para lá e

para cá. O homem pode ser visto em todo o seu

percurso. A mulher aponta-o e profere lentamente:

− Enquanto o procurava a si esta manhã, ele foi-me

propondo vários nomes. − Cala-se. − Escolhi o de S.

Thala. Permanece imóvel, atenta ao desenrolar das

suas próprias palavras.

− É daí que nos conhecemos. − E acrescenta: − Há


muito que me encontro aqui, e você deve sabê-lo. −

Depois continua: − Você já devia saber alguma coisa

do que aconteceu.

A areia corre, incessante. O andar do louco marca o

tempo da fala.

− Por isso você veio − E prossegue: − Veio a S. Thala

por minha causa.

Observa-o de alto a baixo, faz um sinal de negação,

faz que "não" com a cabeça, nega o acidente do

pensamento que acaba de produzir-se, que acaba de a

atravessar. Diz para si própria: não. Depois afirma

com convicção: − Você veio aqui para se matar.

Aguarda. Ele não responde. Parece dormir. Ela toca-

lhe e continua:

− Se aquilo não acontecesse você não me teria visto. E

em tom de apelo:

− Compreende agora?

Ele faz que sim com a cabeça. A mulher cala-se Ele


pergunta:

−E ninguém a viu nunca? Ela responde prontamente:

− Toda a gente me vê. − Cala-se. − Mas você viu

alguma coisa mais. E aponta o outro, o que caminha,

ao longe:

− Ele.

Imobilizou-se face ao mar. Mas o homem fala:

− Eu tinha-vos esquecido.

− Sim, é verdade − e continua a decifrar o espaço − veio

a S. Thala para se matar, e depois viu que ainda cá

estávamos.

− É verdade.

−E então recordou-se.

− Recordei-me de... − detém-se.

− Não encontro a palavra para dizer isso. Calam-se.

Uma sombra passa diante do Sol. O vento chega, volta

a partir. O movimento do mar vai mudar de sentido.

Essa mudança prepara-se.


Ao longe, a caminhada continua em frente do mar.
A mulher levanta-se, volta-se para o dique, onde a

caminhada se processa.

− Vou ter com ele, voltarei aqui.

Ele não a retém. Ela está de pé, junto dele, mas

continua a fixar o que caminha, ao longe.

− Preciso de lhe perguntar uma coisa. − E repete: −

Voltarei. Mas continua à espera. Tem qualquer coisa

ainda para lhe dizer.

− Por causa da viagem. − Faz uma pausa. − Não

compreendo como sei que devemos fazê-la. Aponta o

outro, ao longe:

− Ele vai dizer-me.

A mulher afasta-se. O homem chama-a e pergunta:

− S. Thala, é o meu nome.

− Sim. − E ela explica-lhe, aponta: − Tudo, aqui, tudo é

S. Thala.

A mulher afasta-se. O homem não volta a chamá-la.

Ela caminha pela beira do mar. Ele fica-se a vê-la a


afastar-se. Ela caminha mais depressa que o habitual.

Num passo regular, também ela, inesperadamente.

Chegou junto dele. Caminham lado a lado. E, em vez

de voltar para trás, ele continua em frente, e ela a seu

lado.

O movimento do mar inverteu-se. E o rio prepara-se

para deslizar no abismo de sal. Eis as gaivotas, em

explosões de branco. Vêm em busca da areia nua. Os

seus gritos de fome precedem os que caminham.

Deixaram de se ver. Reaparecem muito tempo depois.

Ele, volta do lado do mar. Ela, pelo estrado de

madeira: sem olhar para nada, evitando os clarões dos

bandos de gaivotas e a espessura que não acaba mais.

Dirigem-se para o rio.

O viajante não voltará esta noite à ilha.

Princípio de tarde. Caminham os dois. Ele, ao longo

do mar. Ela, pelo estrado de madeira. O viajante

encontra-se sobre o estrado de madeira. Ela não o vê.


Ela não vê nada.

Dirigem-se para o dique. E desaparecem por detrás

do dique.

Talvez estejam a preparar o nascimento da criança,

ao longe, por detrás do dique do grito de S. Thala.

Regressam ao fim da tarde. As gaivotas gritam. A

mulher caminha levemente curvada, quase

pesadamente: é isso, deve estar próximo o nascimento

da criança..

Ninguém os chama.

O viajante espera noutra parte, espera por eles no hall

do hotel. Espera-os a uma outra hora. De noite. De

noite, e no hall do hotel.

O hall já mudou de aspecto. Os espelhos estão

embaciados. As poltronas estão em frente dos

espelhos, em fila, ao longo das paredes brancas. As

plantas negras encontram-se ainda na mesma posição,

estremecendo com o vento que vem da porta aberta.


Movimentos lentos de ondulação perniciosa, de

espíritos mortos.

O homem chega com a noite negra. Mas ela não veio,

ele está sozinho. Entra no hall no seu passo rápido e

descobre o viajante sentado numa poltrona encostada

à parede. E diz:

− Passava por aqui... E acrescenta:

− Nunca venho por este caminho. Depois detém-se e

olha. Descobre subitamente o hall. O hall à sua volta.

Observa-o.

Os seus olhos brilham. A escuridão é quase total. Mas

ele olha como se fosse dia. Longamente. Começa a

mover-se.

Dirige-se ao terraço, vem para dentro e continua a

olhar, fixamente. Volta de novo. Torna a passar em

frente do viajante, que está na penumbra, mas sem o

ver, obcecado pelo hall.

Depois subitamente estaca no meio da pista, aponta o


espaço, descreve o espaço entre as poltronas

alinhadas e os pilares,
pergunta:

− Foi aqui − faz uma pausa − ali? Falou com voz

incerta. Aguarda.

De pé, no meio da pista de baile, aguarda ainda.

Depois, de novo, aponta o espaço, descreve o espaço

entre as poltronas alinhadas, repete o gesto, aguarda,

e não diz nada. Caminha, percorre o espaço, volta a

percorrê-lo e depois pára.

Recomeça a andar. Pára outra vez. Estaca. Alguém

canta, baixinho.

Alguém canta. O homem canta.

É a música das festas mortas de S. Thala, os pesados

acentos da marcha de S. Thala.

E o homem avança. A rigidez habitual desaparece, de

súbito. Ei-lo que avança, que canta e dança ao mesmo

tempo, avança pela pista, dançando, cantando.

O corpo eleva-se, recorda-se, dança, levado pela

música, devorador, ardendo, louco e feliz, dançando,


ardendo, ferida de fogo atravessando a noite de S.

Thala.

Um instante apenas. E o homem pára.

Parou. Ficou imóvel. Já não canta. Procura à sua volta

o facto exterior que interrompeu a dança, o canto,

procura o que se passa, tomado pela vertigem que

apenas ele sentiu.

Ouve um rumor qualquer vindo do fundo do hall. E ele

pergunta:

− Quem está aí?

Ouve a sua própria voz. A fixidez do olhar não se

altera. Suporta as próprias palavras como há instantes

suportou o próprio movimento.

Mas volta a dizer, a repetir:

− Quem está aí?

Parece sentir medo e volta-se para trás, expectante.

O viajante ergue-se, caminha lentamente vindo do

fundo do hall.
Ele olha este outro homem, o viajante. Que dá uns

passos mais até chegar à luz da pista. Observa-o. O

homem olha para ele.

A imobilidade explode, a boca abre-se. Mas o som

não sai. O homem faz um novo esforço, não consegue,

cai numa poltrona, estende a mão para o viajante, olha

para ele como da primeira vez e murmura:

− Você, era você... − detém-se. − Você voltou. E chora.

Domingo. Em S. Thala o barulho não aumenta. Há

vento. E depois chove. O viajante caminha por S.

Thala, à chuva.

Não os encontra.

Mais uma noite. Um dia.

O viajante não consegue encontrá-los em nenhum

lugar: no espaço, no tempo, de S. Thala. Uma noite

escura.

Ela passa em frente do hotel.

O viajante encontra-se no terraço, vê passar a mulher


pelo estrado de madeira, a sua sombra que se recorta

no mar.

A mulher caminha lentamente, continuamente, na

direcção do dique. Não se volta para o hotel. Caminha

directamente para dentro da noite.

A criança, sim, a criança, o nascimento.

Ele, o outro, segue-a, esta noite. Sem dar por ele, a

mulher caminha. O homem segue-a. Como um animal

determinado, ela avança.

E desaparece, por detrás da massa negra do dique,

para se perder nas areias, no vento ilimitado.


E ele perde-se também, desaparece também.

Nada depois. Nada a não a ser a espessura sem nome,

adormecida.

No seu rosto não se nota o mais pequeno sinal de

fadiga ou dor. Mas emagreceu e ostenta no olhar uma

força quase sorridente.

Repara então que o viajante se afasta. Dia seguinte,

ensoalhado.

O viajante caminha à volta de S. Thala, ao sol.

Afasta-se sem lá entrar. Caminha por uma estrada,

orlada de casas fechadas: ilhas no oceano de pedra.

Procura em S. Thala, para lá de S. Thala.

O sol sempre.

O viajante passa em frente de uma casa habitada e que

tem um terraço no jardim. Da estrada pode ver-se

algo indefinido. Vêm vozes do interior da casa.

Uma mulher ri − um riso ligeiro, breve. Luz forte.


O viajante volta para trás. E afasta-se.

É fim de tarde, junto do rio, na ilha. A mulher está só,

sentada junto à margem, olhando à sua frente, olhando

para S. Thala. O viajante senta-se junto dela. Ela

repara nele:

− Ah, você veio.

Mas continua absorvida com aquilo que vê. O

homem interroga:

− Perguntou-lhe acerca da viagem? Ela parece recordar-

se:

− Disse-me que sempre falei dessa viagem, enquanto eu

estava aqui em S. Thala.

O sol põe-se. A mulher, de tão absorvida com aquilo

que vê, está prestes a adormecer. Deve aguardar o

outro para que este a conduza ao sono.

O viajante volta a passar em frente da casa habitada.

Parou. Da rua pode ver-se o terraço, e parte do

jardim. O homem bate à porta. A porta abre-se


automaticamente. O interior está luminoso, e tem

mobílias brancas. Uma voz de mulher:

− Quem está aí?

O homem não responde, não consegue responder. À

sua frente, uma porta envidraçada abre-se para o

terraço. A voz vem da parte do terraço que ele não

pode ver, escondida pela porta envidraçada. O

homem espera.

E ela surge, em contraluz, na porta envidraçada. Traz

um vestido de verão. Tem os cabelos negros,

despenteados. Tem dificuldade em vê-lo na penumbra

da entrada.

− Quem é que procura?

O homem dá um passo e não diz nada. A mulher

continua a vê-lo mal.

−O que é que pretende?

O homem dá mais um passo na sua direcção. Ela vê-o

aproximar-se, sorri, surpreendida, sem deixar


transparecer qualquer receio.

O homem dá ainda um passo e depois pára. Alcança a

luz do terraço. Ela vê-o finalmente.

E o seu olhar afasta-se de súbito. O rosto fecha-se, os

olhos cerram-se, uma dor irresistível parece

atravessar-lhe o corpo. Dirige-se ao terraço, o homem

segue-a. Ela tem um gesto maquinal, aponta uma

poltrona e diz:

− Sente-se, por favor.

Estão de pé, imóveis. Ela murmura:

− Você voltou. Não se olham.

Ele fica de pé junto dela, ela não se senta: vai-se

apoiar à mesa do terraço. Puxa de um cigarro. A mão

treme-lhe. Senta-se.

Está na luz de um guarda-sol azul.


O homem começa a observar: a beleza daquele lugar,

sempre presente.

À sua direita, uma mesa baixa sobre a qual está um

livro aberto. À frente da mulher, uma pequena

alameda que acaba num portão branco. O jardim

estende-se em relva verde até ao portão fechado.

− Ela nunca conseguiu curar-se?

− Não.

A mulher deixa cair a cabeça nas costas da poltrona,

virada para o jardim, oculta, e diz:

− Às vezes julgo ainda ouvi-la... a chamar por mini.

Faz um esforço, de dentes cerrados, para não chorar.

Não chora por si própria.

O homem continua a olhá-la com extrema atenção.

Mas ela não se apercebe.

− Sabia que ela não estava morta. Caso contrário,

seria prevenida... Hesita um pouco e pergunta depois

num tom mais baixo:


−E acabou aonde?

− Na prisão de S. Thala.

− Ah...

A mulher expulsa as imagens e reclina-se de novo

nas costas da poltrona.

Debaixo do vestido distingue-se-lhe o corpo. Um

corpo ainda em vida. Está sem meias e descalça nas

pedras do terraço.

O visitante continua a observá-la com a mesma

atenção anormal. Ela continua a não reparar. Murmura

qualquer coisa e depois pergunta:

− Ela ainda fala de mim?

− Não.

Puxa de outro cigarro. Continua a tremer. Tem os

olhos sombrios, pintados de negro, abismos sem

fundo onde se perde o sentido. Fita sem ver um certo

ponto do jardim.

− Creio que nada se pode fazer por ela.


− Sim. Nada.

A mulher continua a não se aperceber da atenção

insondável de que é objecto. E pergunta:

− Porque voltou a S. Thala? Silêncio. Espanto da

mulher.

Ela volta-se para ele. E vê, então vê o olhar. Ele tenta

responder. Começa a responder:

− Não tenho a certeza de ter querido voltar... − detém-

se. Dá mostras de se ter enganado e procura responder

de novo.

− Não... enganei-me... não... − Acrescenta: − Quis

realmente voltar.

− Para quê?

− Para me matar. − Acrescenta: − Procurava um lugar

adequado. E encontrei-o.

A mulher soergue-se ligeiramente da poltrona. No

espaço de um segundo o seu olhar fixa o jardim e revê

a totalidade do passado − depois o olhar regressa e


ela diz:

−É isso... É isso, precisamente... Onde quer que ela vá

tudo se desfaz.

O viajante não corrige o erro que acaba de ser

cometido sobre a cronologia da morte.

−A morte é então inútil?

− Sim.

Ela olha agora para ele. Olham um para o outro. E o

homem diz:

− Não estou certo de a ter reconhecido.

A mudança chegou com a brutalidade da passagem

do dia para a noite:

− Qual é a diferença?

Com um gesto, ele dá a entender que não sabe. Ela

começa a sorrir. Sorri. Insensivelmente, o seu rosto

altera-se. Sorri.

− Não é capaz de descobrir?

O sorriso congelou em pleno rosto. Sob esta máscara,


o rosto está irreconhecível. Ela continua a sorrir. Não

se percebe já quem é. E ela diz:

− Olhe para mim.


Levanta-se. Coloca-se à frente dele, direita, rígida.

Ele tem na sua frente o corpo inteiro, o rosto, o

sorriso.

− Não consegue ainda?

− Não.

Ela volta a sentar-se.

− Olhe outra vez.

Estende o rosto para a frente: sim, é à volta do rosto.

Ele diz:

− Os seus cabelos.

−É verdade. − O sorriso acentua-se.

− Pintados.

− Sim. De preto. − E acrescenta, acentuando ainda mais

o sorriso: − Tenho os cabelos pintados de preto. −

Acrescenta ainda:

− Mais nada?

O terror passa, jardim, terraço, subitamente

transformados em lugares de terror. O viajante


levanta-se, apoia-se na mesa e deixa de a olhar. Mas

ela continua a olhá-lo, a esperar a resposta, a sorrir, a

sorrir sempre:

− Então? Não descobre? − E aponta à sua volta, a

casa, o jardim, o espaço fechado dos muros, as

grades, as proibições. − Não descobre mais nada?

E ele, num gesto: não, não descobre mais nada. Então

ela diz:

−A morta de S. Thala. Repete, diz:

− Eu sou a morta de S. Thala. Aguarda um pouco e

acaba a frase:

− Consegui escapar.

Aguarda um pouco mais e acaba de novo a frase:

−A única de todos vós. − E acrescenta: − a única, a

morta de S. Thala.

Volta-se depois para o jardim, para a sua casa. E não

profere mais nenhuma frase. O sorriso mantém-se e

sob os lábios os sinais desfizeram-se.


O homem vai-se embora. Ela não o detém. E fica. Só.

O homem percorre a alameda, abre o portão e sai.

Cá fora, o espaço. Percurso de gaivotas.

É dia. Mas um fumo negro cobriu S. Thala. O viajante

olha pela janela do quarto.

Eis os ruídos das sirenes. Em direcção ao rio.

O viajante olha para o relógio, depois novamente o

fumo negro que vai cobrindo o sol. As sirenes calam-

se.

Ouvem-se passos, fora.

Uma mulher atravessa a entrada, dirige-se ao

vestíbulo. Vem acompanhada de duas crianças.

Vestidas de luto. O viajante afasta-se da janela,

aguarda, escuta, aguarda.

As sirenes recomeçam a percorrer a cidade, loucas.

Do lado do rio, o fumo continua a subir por cima de

S. Thala

Nesse dia, em S. Thala, faz um grande calor imóvel.


A sombra das árvores está pregada ao solo de S.

Thala. O vento abandonou-a. S. Thala está coberta por

um sol fixo num céu vazio.

O viajante aproxima-se da mesa, pega na carta, põe-

lhe um sobrescrito e deixa-a sobre a mesa. Depois,

sai do quarto. O corredor: ao fundo, o homem que

caminha. Está iluminado pela luz das janelas da

escada. Aguarda.

Olham um para o outro. A boca ri, os olhos azuis

brilham no seu rosto queimado. Aponta na direcção

das sirenes e anuncia:

− O fogo.

Os seus olhos são duma transparência líquida. E

acrescenta:

− A prisão. − Em seguida: − Ficou extinto quando me

vim embora... − Detém-se, informa ainda: − Arde com

muita frequência. As sirenes vibram. O viajante diz:

− Continua a arder.
− Sim. Mas é mais longe. − Faz uma pausa. − Há

sempre fogo em qualquer parte. As sirenes calam-se.

O viajante pergunta:

− Passava por aqui?

− Ando à procura dela. − E explica: − Às vezes vai

além dos limites de S. Thala, mas é suficiente sabê-lo.

Olha à sua volta, e acrescenta:

−A menos que esteja aqui...

− Não está.

O outro afasta-se, recorda-se de qualquer coisa, volta

para trás:

− Chamam por si na entrada. Eu disse que

esperassem. E vai-se embora.

O viajante fica onde está, aguarda.

O tempo passa. Por fim, alguém se aproxima.

Alguém sobe as escadas. É ela. A mulher que

atravessou o pátio. Quando chega ao cimo das

escadas, descobre-o. As sirenes calaram-se. A mulher


olha para o viajante e diz:

− Um homem que não conheço disse-me que estava

aqui.

Aproxima-se dele. O homem não olha para ela. E, já

junto dele, diz-lhe num tom tímido, assustado:

− Podemos ir para o seu quarto.

O homem olha para os vidros do corredor. E ela diz:

− Você está diferente.

Toca-lhe no ombro, e volta a repetir:

− Podemos ir falar para o seu quarto?

O homem responde, numa voz lenta, doce,

subitamente alquebrada:

− Escrevi-lhe. A carta ainda está ali.

A mulher volta a pôr a carta em cima da mesa. Está de

pé. O homem olha pela janela a cidade imóvel, o

fumo por cima da ilha.

As sirenes passam. A mulher diz, numa voz baixa,

branca:
− Não compreendo...

Ele olha para ela: um olhar ausente. Ela recua.

Treme:

− Você deixou de...

Ele tenta responder-lhe, mas não consegue. E ela

continua:

− Pergunto a mim própria se... mesmo a princípio...

você nunca me... − detém-se. Ele responde:

− Realmente, nunca.

As sirenes lançadas em fúria, ensurdecedoras,

atravessam S. Thala. A mulher deixa de falar e,

receosa, grita:

− Mas que se passa?

−É o fogo.

E ela, gritando, com as sirenes:

− Onde?

− Longe.

Ele ouve as sirenes. Ela repara na atenção que ele


presta ao ouvi-las passar. Essa distracção desencadeia

a cólera. E ela grita ainda:

− Há outra coisa, tenho a certeza disso. Há outra

coisa, sim, além do fogo. As sirenes afastam-se,

afastam-se mais, tornam-se distantes.

O homem olha à sua frente, a rua vazia, o céu

sempiterno. A cólera cede. Subitamente, ele suplica:


− Por favor fale. O homem diz:

− Gostava de ver as crianças.

Fecha os olhos e dá um passo em frente. A mulher

pensa que ele se vai embora e retém-no.

− Não parta sem eu saber... Ele diz:

− Gostava de ver as crianças. E fica à espera.

Mas ela não responde. Olha para ele, por muito

tempo, depois aproxima-se, hesita, aproxima-se mais:

− Isso dura há quanto tempo?

Numa voz uniforme, sem timbre, o homem diz:

− Desde sempre.

Ela solta uma exclamação, um riso forçado, breve. O

homem olha para ela: um rosto gelado no riso

silencioso, um olhar que implora:

− Diverte-se à minha custa?

− Não.

A sinceridade da resposta atemoriza-a. Fá-la recuar.


E é quando ela recua que o viajante se apercebe do

erro que acaba de cometer. Aproxima-se dela, esboça

um gesto de desculpa e diz:

− Tente compreender-me... − Cala-se e depois continua:

−O que eu queria dizer... é que só soube há dias... A

mulher fica à espera: mas ele não diz mais nada. E é

ela que fala:

− Você causa-me dó... Ele não responde.

Os gritos voltam a ouvir-se, mas já sem força. A

cólera quebrou-se.

− Preciso de uma explicação... tenho direito a isso,

creio... Ele não ouviu.

− Acusa-me de quê?

− De nada... eu...

Está diante dela. E ela observa o esforço que ele faz

para tentar falar, a sua incapacidade. Pega-lhe na

mão, ele não reage. Finalmente, ele consegue dizer:

− Trata-se de um acontecimento ignorado... −


Acrescenta:

− ...de ordem geral.

Ela larga-lhe a mão e diz, num tom sibilante:

− Está a fazer de propósito?

− Não.

A mulher aguarda: mas ele não diz mais nada, nada.

Esqueceu a sua presença e olha para a rua. E ela

então, de súbito, sente a inutilidade de qualquer

tentativa.

− Mas... está a falar a sério? E num tom dilacerado:

− Você quer dizer que...

− Sim.

Hesita uma última vez:

−E querem-no assim tanto?

− Sim.

A mulher aguarda. Mas ele nada diz. Ela aguarda

ainda, o tempo passa: nada. Então a mulher esboça um

movimento. Caminha.
Caminha de um lado para o outro, no quarto. Ouvem-

se soluços abafados e, uma vez, baixinho:

− E eu, pobre de mim, que não suspeitava de nada...

Mas, subitamente, pára.

Imobiliza-se.

Parou junto da mesa de cabeceira. Na mão tem um

frasco de vidro cheio de comprimidos brancos ainda

por abrir. Olha para o frasco, lê o rótulo.

As sirenes passam em tumulto pela rua em frente do

hotel, continuam a dirigir-se para o lado do rio.


Ela pousa o frasco. Olha para o homem, à sua frente,

devagar. Passa a mão pelo rosto para expulsar a visão

que teve.

O homem olha para ela. Esboça um gesto de desculpa,

mas não consegue dizer absolutamente nada. A mulher

pergunta no mesmo tom dilacerado:

− Que quer isto dizer?

E ele num gesto: nada, absolutamente nada. A mulher

aproxima-se dele sem ruído, toca-lhe no rosto e

exclama:

− Conheço-o bem. Nunca fará tal coisa. De novo, as

sirenes do lado do rio. Depois o silêncio. Então ela

diz num tom já calmo:

− As crianças ficaram na entrada. De novo as sirenes,

do lado do rio. As crianças.

Erguem-se ao vê-lo chegar. Brancas, nos seus fatos de

luto, sem se moverem, olham apenas para ele. Lado a

lado, a um metro de distância, conscientes do drama,


ignorantes das suas razões.

O homem pára e olha para elas.

Ora para uma, ora para outra, alternadamente. Depois

separas-as e volta a reuni-las. Não se aproxima delas.

Entre ele e as crianças há um rectângulo de sol,

cortado pela abertura do terraço. Ninguém franqueia

esse rectângulo. Nenhum receio existe nos olhos das

crianças. O desejo de saber, apenas. O desejo.

A mãe está noutro sítio da entrada e elas podem vê-

la. Olham para esse homem que se cala.

E esperam.

O homem diz:

− Não voltarei mais.

A notícia é recebida em silêncio.

O olhar das crianças continuou na mesma. O desejo

de saber manteve-se.

− Nunca mais?

A voz é neutra, maquinal:


− Nunca mais.

A voz adulta foi tão calma como a da criança.

A mulher atravessa o rectângulo de luz que separa o

homem das crianças, em busca de ar. Corre para o

terraço e vai de encontro à porta. E assim fica, parada,

escondendo nas mãos o rosto.

As crianças não reparam nela. Vêem apenas o

homem, só ele.

− Porquê?

A voz é clara, sempre calma, sem qualquer entoação.

− Já não quero mais filhos.

O desejo mantém-se, igual, ilimitado. A boca

entreaberta sobre o desejo ilimitado de saber.

Nenhum sinal de dor. Outra voz de criança:

− Porquê?

− Não quero mais nada.

A mulher move-se, franqueia a porta, vinda do

terraço. Soltou um grito surdo, sufocado.


A tensão dos rostos permaneceu igual. O desejo:

igual. As sirenes vibram por toda a cidade. A mulher

corre, grita:

− Mas o que se passa? É aqui? Nem o homem nem as

crianças lhe respondem. As sirenes diminuem

bruscamente. E depois calam-se. Sempre com a

mesma voz lúcida, uma das crianças vai encadeando

factos que, na aparência, não têm relação.

− A polícia chegou quando o pai estava lá em cima.

A outra criança ergue o braço e aponta na direcção do

rio, sem desviar do homem o olhar:

−É um incêndio. Era por causa do incêndio.

Um grito isolado: a mãe. Grita que é preciso partir.

− Vamo-nos embora!

As crianças falam calmamente por entre a estridência

das sirenes e os gritos da mulher:


− Procuravam alguém que estava contigo.

− Uma mulher que escapou. Estavam com medo. A

mulher grita:

− Vamo-nos embora daqui. Não posso mais. Os filhos

não a ouvem.

− Vamos, vamos, saiamos daqui.

Empurra-os com força. O mais pequeno cai. Ela

levanta-o, põe-no de pé e empurra-o. Agarra na

miúda, empurra-a também. Não consegue juntá-los,

mas continua a empurrá-los à sua frente e grita, grita

ao mesmo tempo que as sirenes:

− Venham. Ou querem que chame alguém?

Eles não se mexem, continuam a olhar para o

homem, pregados ao chão. A mulher, assustada,

grita.

− Tenho medo, vamo-nos embora!

O desejo mantém-se insaciável como no primeiro

momento. Continuam à espera. Mas esse desejo ficará


sem resposta. A mulher empurra-os pelas costas.

Obriga-os a andar, com todas as suas forças, na

direcção da entrada.

A porta.

E alcança a porta.

A porta, ainda. A porta que bate. Depois a caminhada

pelo pátio do hotel.

Da porta do terraço: a areia, o mar. Passa muito

tempo. Depois, o viajante sai.

A mulher está ainda encostada ao muro, ao sol. Tem

os olhos quase fechados e as lágrimas correm-lhe pela

cara. Não se apercebe da presença do viajante.

E só o vê quando ele se senta junto dela. O homem

não fala. E ela diz:

− Ah, você voltou.

Através das pálpebras semicerradas vê o mar ao

longe. A cidade, ao fundo, está invisível, atolada nas

suas excreções. Não se vêem aves. As lágrimas


correm-lhe dos olhos. E diz:

− Veio uma mulher com duas crianças.

Ele faz sinal que sim. Ela vê-o através das lágrimas.

Dir-se-ia que sente frio, sob o calor imóvel. Não olha

para nada, a areia.

− Foram-se embora.

− Foram.

Ao longe, por cima do mar, surgem zonas de sombra.

O céu encobre-se. Depois começa a chover nas zonas

negras. Ela chora.

− Você também já não tem nada agora. Ele não

responde. Ela chora.

Regulares, sem quebra, as lágrimas correm-lhe dos

olhos. Por sobre o mar formou-se um grande

quadrilátero de luz. Eles não o vêem.

O homem olha para a areia à volta dele: a mão dela

sobre a areia está suja de negro. Ele diz:

− As suas mãos estão negras.


Ela levanta as mãos, olha-as também e torna a baixá-

las.

−É do incêndio.

− Andava, à sua procura.

Ele toma um punhado de areia. Toca a areia.

Por sobre o mar formou-se um grande quadrilátero de

luz branca. Ela estende a mão.

− Repare, além, a luz.

Ele não a ouve. E pergunta:

− Porque é que chora?

− Por tudo.

Ele repara que a areia, debaixo dos seus olhos,

começou a brilhar. Ergue a cabeça e descobre a luz

por cima do mar. Volta a baixar os olhos sobre a

areia.

−É por causa do incêndio que chora?

− Não, é por tudo.


O homem não se mexe, não olha, não vê. Por sobre o

mar, o grande quadrilátero de luz está completo. A

mulher aponta-o:

− Há luz, além.

Mas ele mantém o olhar fixo na areia. Ela aponta, por

cima da luz, o céu aberto. E ele repete:

−A polícia procura-a. Ao longe as sirenes.

− Sim.

− Vão matá-la.

− Não posso morrer.

− É verdade.

Depois ele aponta a praia. Depois um certo sítio da

praia, sob a luz, junto dos pilares do casino

bombardeado:

− Naquele mesmo sítio estava há dias um cão morto.

Volta-se para ele: − O mar levou-o, durante a

tempestade. Deixa de apontar, alheia-se de tudo,

penetrada pela recordação do cão defunto.


E assim permanece até que a luz se extingue e

desaparece. E o homem diz:

− Eu vi o cão morto.

− Também pensei que o tivesse visto.

O quadrilátero de luz pluvial desapareceu. Outras

tempestades rebentam.

Por toda a parte, por cima do mar, surgem cortinas de

chuva ensoalhada. O homem olha as cortinas de

chuva.

A chuva. Hoje não conseguirá alcançar S. Thala.

Apenas o seu cheiro: o do fogo, do vento. A mulher

deixa de chorar. E diz, repete:

− Podemos partir agora. − E acrescenta: − Você

também já não tem nada agora. E ele:

− Podemos. − E acrescenta: − Mais nada.

Ela já não está encostada ao muro. Partiu na direcção

do rio. E fez-se noite.

Há gente a caminhar pelo estrado. Lentamente. Falam


em voz baixa dos gritos que agora se ouvem por S.

Thala, dos múltiplos incêndios.

O viajante levanta-se. Caminha.

Caminha lenta e pesadamente.

Afasta-se. Contorna. Afasta-se da praia. Passa depois

pela estação fechada. Pelo rio. E depois do rio, vira-

se para o mar. O mar está alto. Os barcos deixaram S.

Thala. Babilónia abandonada, ao longe.

Na ilha há sinais de incêndio, há madeira ardida,

pedras enegrecidas.

Estão ali os dois, no último degrau da escada de

pedra, no local onde ela habitualmente se encontra. E

dormem abraçados. Profundamente. Ele senta-se ao

lado deles. E adormece também.

Desperta com a luz do dia, só. Os outros partiram já,

para os seus labores, para o bloqueio de areias de S.

Thala, objecto dos seus itinerários.

Tarde. Uma luz de ouro.


A mulher espera no estrado de madeira, em frente do

hotel, virada para S. Thala. Ele vem ao seu encontro.

E ela diz:

− Vim vê-lo por causa da viagem.

Olha para lá do hotel e dos jardins, o aglomerado

contínuo do espaço, e espessura do tempo. E

acrescenta:

−A viagem de S. Thala.

Ele mal lhe distingue o rosto, tenso, voltado para a

espessura.

− Nunca mais lá voltei desde a juventude.

A frase fica suspensa, por instantes, ela depois acaba:


− Já me esqueci.

Deixa de olhar para S. Thala. Sorri para ele. E ele

pergunta:

−E que disse ele?

− Disse que a viagem era necessária. − E acrescenta:

Mas não disse proquê. Sobe do mar uma brisa fresca.

Uma brisa doce a cheirar a algas e a chuva.

− Antigamente era um país de areia. Ele diz:

− De vento. Ela repete:

− De vento, sim.

A mulher está de pé no estrado de madeira. Deixou de

olhar. Não olha para nada. Está de pé, hirta, e enfrenta

o tempo. O homem diz:

− Os rios, os campos por detrás do mar, eram grandes?

Ela sorri:

− Sim. − E acrescenta: − íamos de comboio nas férias

de Verão. Repete:

− No Verão.
Calam-se ambos. Ela olha para ele. E ele diz:

− Iremos quando quiser.

A mulher afasta-se pelo estrado de madeira. A brisa

continua, fresca, a cobrir a praia. A luz vai baixando

sob um céu sem nuvens.

Três dias depois. A mesma luz de ouro.

Três dias em que nada acontece a não ser o roer

incessante que aumenta com a luz e com a luz

diminui.

Sol fixo sobre S. Thala. Vento. Luz de ouro fixa,

batida pelo vento. Odor mesclado de iodo e sal, odor

ácido e desenterrado das águas.

O mar bate forte, sob o céu limpo, as areias agitam-

se, correm, gritam, as gaivotas lutam contra o vento,

demoradas no voo. O local do muro está vazio, mas

iluminado.

Depois o vento acalma-se, as areias sossegam

novamente. O mar torna-se chão e o aglomerado


contínuo estende ao sol a putrefacção geral. E de

novo, no céu, as naus lentas da chuva, numa aventura

errante.

Três dias mais. E ela regressa.

Volta, ligeira, pelo estrado de madeira, para se juntar

ao viajante que está à sua espera. Para o acompanhar

na última viagem através de S. Thala. Através da

espessura.

S. Thala.

Caminham. Caminham os dois através de S. Thala.

Ela, direita, enfrentando o tempo, entre os muros do

tempo. O viajante diz:

− Dezoito anos. − E acrescenta: − Era a sua idade.

Ela ergue o olhar, observa a paisagem presente,

petrificada. E diz:

− Não me lembro já.

A estrada é plana, fácil de fazer, maquinal. De vez

em quando a mulher pronuncia a palavra, invoca:


− S. Thala, minha S. Thala. Depois olha para o sol:

− Não reconheço nada.

S. Thala, moradias, parques, desfilam lentamente à

sua passagem. A estrada muda de sentido. Ela hesita e

pára.

Em frente deles ergue-se a casa cinzenta, o rectângulo

cinzento com persianas brancas, perdido entre a

vertigem de S. Thala. O jardim rodeia-a, a relva,

ainda verde, louca, cresce pelas grades e vai além dos

muros. A mulher olha e diz:

− Não valia a pena ter voltado. Continua a andar.

Volta à poeira, ao chão das estradas de S. Thala e diz,

enquanto anda:

− Os sítios são diferentes. Avançam.

Os jardins mais pequenos, vivendas que se tocam,

paredes. Caminham. O viajante começa a olhar para o

chão, as cinzas brancas, e diz:


− Tudo se retirou com as questões pessoais. E ela,

detendo-se:

− Quando?

− Quando você adoeceu pela primeira vez. − E

acrescenta: − Depois de um baile. Ela não responde

logo, sorri:

− Creio que sim.

Caminham. Ela recomeça a olhar para o chão. Traz

um fato branco e vem penteada. Foi ele que a

arranjou, esta manhã, na ilha, lavou e penteou. Ela traz

também um saco de rapariga, igualmente branco, o

saco branco de viagem de S. Thala. Pega nele e abre-

o para tirar um espelho. Pára para se ver e volta a

partir. Estende o espelho ao homem para que ele o

veja.

− Ele deu-me isto antes de partir.

Abre de novo o saco. Coloca dentro o espelho. O

homem olha: o saco está vazio, contém apenas o


espelho. A mulher fecha-o e diz:

− Um baile.

− Sim. − Hesita e depois acrescenta: − Nessa altura

você julgava amar. Ela volta-se e sorri-lhe:

− Sim. Depois... − regressa ao tempo puro, à

contemplação do chão − depois casei-me com um

músico, tive dois filhos. − Detém-se e prossegue: −

Também os levaram.

Volta-se para ele e explica-lhe:

− Foi depois de ter adoecido pela segunda vez.

− Disseram-lhe?

− Lembrava-me das crianças. − E acrescenta: − E dele

também.

O homem pára. Ela pára também. Ele tem dificuldade

em falar, mas ela não se apercebe.

− Onde está ele agora?

E, na mesma corrente informativa, ela responde:

− Morreu.
O vento do mar põe-se a soprar sobre S. Thala. E o

homem não se mexe, fica parado, ao vento. Ela

coloca-se a seu lado. Nada viu da vertigem. Agrada-

lhe estar ao vento.

E diz:

−O vento de S. Thala, é o mesmo. Ele olha para ela.

Parado em frente dela, olha para ela. Ela deve sentir

algo de violento nesse olhar. Procura o destino dessa

violência, surpreende-se, e pergunta:

− Que aconteceu?

− Estou a olhar para si. Ela diz, pergunta:

−A viagem já não é possível?

− Não. Estamos em S. Thala, encerrados. − E

acrescenta:

−E estou a olhar para si.

E ela, dócil, aproxima-se dele.

Ele aperta-a contra si. Ela deixa-se abraçar. Larga-a

depois e ela não reage. Caminham, recomeçam a


caminhar. Os parques desapareceram, os jardins. A

rua sobe. O mar afasta-se, as areias. A mulher volta-se

para observar. O homem diz:

− "Os choupos ficavam para trás do comboio. Ele

olhava para ela." A mulher ri, e caminha. O homem

continua:

− "Planícies, campos, finas muralhas de árvores

amarelas."

"Ele olhava para ela." A mulher ri ainda. E avança.

Os dois avançam.

Produz-se uma mudança. A estrada alarga-se. Uma

praça. O vento do mar, pouco a pouco, deixa de

soprar. A mulher observa de novo.

Param os dois. A mudança é, subitamente, mais

intensa. Já não há vento. O sol cresce.


O calor liberta-se das pedras, em eflúvios. Um pouco

estranha, a mulher sorri à sua pátria branca e

exclama:

− É isto o Verão de S. Thala? Recomeçam a

caminhada. Atravessam a praça vazia. Ela caminha

agora devagar, a fadiga começa. O calor aumenta.

Também o sol, lento, resplandece. Atravessaram a

praça. E, mal a abandonam, ei-los, ei-los, de súbito,

vindos da cidade, dos buracos, da pedra, indiferentes

uns aos outros, numa actividade geral, eles, os

moradores de S. Thala. Seguem-nos.

Ela olha com a mesma atenção os habitantes de S.

Thala, as suas moradias, ele que está perto dela, e o

mar que está ao longe, aqui − sobre o frontão dum

edifício por onde acabam de passar -, unida à

expressão "GOVERNO DE", a palavra S. Thala, e ao

fundo, longe, as brancas explosões das gaivotas e as

areias, nítidas.
Volta a suportar o mesmo calor, essa soalheira

inexplicável.

Continuam a segui-los. Ela caminha cada vez mais

devagar. Ultrapassam-nos por fim, deixando-os para

trás. Ela detém-se:

É uma avenida muito grande, direita. De súbito, uma

vez atravessada a actividade geral, a praça, vêem-se,

ambos, nessa grande avenida, direita. Ela continua

parada.

Põe-se a olhar com desconfiança, subitamente altiva,

a extensa avenida.

O sol queima. Fere-lhe a vista. E ela olha como se

fosse obrigada a fazê-lo. Recomeça a andar.

E volta a não olhar para nada. Põem-se a caminho.

A direcção é extensa, direita. E não se vê o fim.

Ela caminha com os olhos meio fechados, para evitar

o sofrimento que lhe provoca a luz. Não fala.

Caminha. Por toda a parte, as paredes brancas, o


desenrolar de S. Thala. A rua sem árvores.

E foi só ele, o viajante, quem o descobriu: ao fundo da

avenida, vestido de negro, rápido, a caminhar à frente

deles. Seguem- no, sem o saber, desde a partida das

areias de S. Thala.

As paredes, brancas, vibram e multiplicam-se de cada

lado da rua.

A mulher deve sentir calor; com a mão enxuga o

rosto, afrouxa, volta a avançar. Os dois caminham

muito lentamente.

As paredes aumentam, multiplicam-se, cruzam-se,

perseguem-se, voltam a cruzar-se, vibram nas

têmporas, fazem sangrar os olhos. E nem sombra de

sombra.

À frente deles, caminhando sempre, a silhueta negra

na brancura das paredes, ao fundo da avenida. Ela não

o viu ainda.

Avança. Pára.
É ela que pára. Com os olhos no chão, subitamente,

sabe: a distância que existe entre o coração de S.

Thala e o mar ficou quilometrada nas pernas de

criança: levanta os olhos, diz:

− Repare, construíram isto.

É um edifício de forma indefinível, enorme de

aparência, da brancura da cal. Tem numerosas

aberturas, mas fechadas: as persianas foram pregadas

às paredes.

− Dantes era uma praça. Continua parada. Repete:

− Era uma praça, dantes. E construíram isto.

Volta-se e vê o outro, parado também; à espera: e diz,

subitamente:

− Preciso de dormir.

Começa a andar. O viajante retém-na e diz:

− Eu também me recordo.

Olham os dois: o edifício na sua rigidez, inalterável,

enorme. Os pregos penetraram fundo. E o viajante


diz:

− Era uma praça. Uma superfície plana, uma praça

rodeada de muros, nos muros havia uma porta. Olham

um para o outro. Descobrem-se um ao outro.

-Sim, talvez − respondeu ela num murmúrio.

Em movimentos rápidos, os olhos fecham-se e abrem-

se; o olhar regressa à superfície. A mulher aguarda,

deixou de olhar para o homem, olha para o chão. O

homem fica e ela continua.


Começa de repente a andar depressa. O mar. A

mulher vê o mar.

Ei-lo de novo, ultrapassado o edifício.

Ali, bem próximo. O coração de S. Thala desemboca

no mar. A avenida acaba: à frente deles já ninguém

caminha.

Um estrado de madeira. Que eles atravessam. E eis a

praia sem muros, o mar, as areias, as águas do mar. À

esquerda, estende-se a mole enorme do coração de S.

Thala. A principal fachada sobrepõe-se à praia. Ela

cai sobre a areia, estende-se e permanece imóvel.

Areias de S. Thala.

Ele está sentado junto dela. Enxuga o suor da testa,

lentamente. O gesto obriga-o a fechar os olhos. Ela

larga o saco que ainda trazia e diz:

− Oiço o barulho.

Ele continua a enxugar a testa.

− Durma.
− Está bem.

A mulher volta o rosto de encontro às areias, escuta,

e diz:

− Hoje, o barulho vem daqui.

Aponta o interior da praia, da areia. Ele diz:

− Sim, eu também oiço.

− Ah...

Ela pergunta, baixo:

− Estão mortos?

− Não.

− Então?

− Descansam. − E acrescenta: − Ou não fazem nada. Ela

murmura:

− Ah, sim... é verdade...

Ele estende-se junto dela. Apoia-se à mão livre e

observa-a. Nunca a tinha visto de tão perto. Nunca a

tinha visto numa luz tão intensa. Ela continua a ouvir o

barulho. Fecha os olhos, procura fechá-los e as suas


pálpebras fremem com o esforço.

− Diga-me para dormir. E ele diz-lhe:

− Durma.

− Está bem − e o tom é da esperança. Ele passa a

mão pela areia. E diz-lhe:

− Estamos de novo na praia. Durma.

− Está bem.

Ele deixa de enxugar a testa, põe a mão sobre os

olhos dela para os abrigar do sol.

− Durma.

Ela já não responde. Ele aguarda.

Mas ela não se mexe. Ele retira a mão. Os olhos estão

fechados. As pálpebras estremecem levemente com a

luz mais, forte. Mas os olhos não se abrem.

A mulher dorme.

O homem pega na areia e deita-a sobre o corpo dela.

Ela respira, a areia move-se e escorrega-lhe do corpo.

Ele volta a fazer o mesmo. A areia escorrega


novamente. Uma vez mais ainda, depois o homem

pára.

− Amor.

Os olhos abrem-se, olham sem ver, sem nada

reconhecer, voltam a fechar-se e regressam à

escuridão.
Ele já não está ali. Ela está só, estendida na areia, ao

sol, apodrecendo, cão morto da ideia, a mão ainda

enterrada, junto do saco branco.

A entrada do edifício está vazia. Ouvem-se rumores.

E, mais longe, ao fundo do corredor, a música das

festas sangrentas, a do hino de S. Thala, distante,

muito distante. Penumbra.

Após a entrada, longo corredor.

O viajante avança pelo corredor. Do fundo desse

corredor surge um homem, fardado.

− Procura alguma coisa?

Estão frente a frente. O viajante observa-o.

− Posso ajudá-lo?

Estão ambos na penumbra. O viajante observa-o com

uma atenção extrema, anormal. E diz, por fim:

− Há muito tempo que está aqui?

− Há dezassete anos. Porquê?

O viajante analisa-lhe o rosto: uns olhos claros já


cansados, os cabelos grisalhos em volta das têmporas.

O homem observado impacienta-se.

− Procura alguém?

E num tom mais seco:

− Que deseja?

− Estou a olhar.

O viajante não se mexe: mantém o olhar pregado no

rosto do outro. Este dá mostras de aborrecimento. O

viajante pergunta:

− Quanto tempo disse?

− Dezassete anos.

O viajante olha para o fundo do corredor, e a

pergunta surge de forma brutal:

−A sala de baile é por ali?

− Existiam várias. A qual se refere?

O viajante aponta uma porta ao fundo do corredor:

− Àquela.
O homem diz:

− Os bailes acabaram.

E, ao reparar na violência do olhar do outro, diz:

− Mas posso mostrar-lha se quiser.

− Obrigado.

− Siga-me.

O homem precede o viajante, abre uma porta, entra,

deixa-a aberta. O viajante entra.

− Aqui tem... − E acrescenta: − Isto faz-lhe lembrar

velhos tempos, compreendo.

Os mesmos espelhos, mas embaciados. As mesmas

poltronas encostadas aos espelhos, ao longo das

paredes brancas. As mesmas peanhas de plantas

verdes, agora sem nada.

O viajante avança para o meio da pista. Pára, olha à

sua volta: um estrado, um piano fechado, tapetes

enrolados ao longo das paredes. À volta da pista, as

mesas nuas.
E ouve:

− Era ali que se dançava.

Volta-se. O homem sorri na penumbra, aponta a pista

e pergunta:

− Quer que acenda as luzes?

− Não.

A luz, o sol é filtrado através das espessas cortinas.


O viajante dirige-se para a porta fechada. Ergue uma

cortina: através das persianas pregadas, um terraço, a

praia, a mulher que dorme.

O viajante tenta abrir a porta. A porta resiste. Tenta

novamente.

− Não vê que está fechada à chave?

O homem gritou, aproxima-se do viajante.

− Não insista. Não vê que está fechada à chave?

O viajante larga o puxador, mas não sai donde está.

− Não tenho comigo as chaves − e o tom volta a baixar -

, não é permitido abrir.

O viajante ergue uma vez mais a cortina: o terraço, a

praia, a mulher. O viajante volta-se para o homem e

pergunta:

− Reconhece-a?

O homem aproxima-se e olha.

−A mulher que dorme? − E aponta: − Aquela?

− Sim.
O homem observa com falsa atenção.

− A esta distância − faz uma pausa −, peço desculpa

− em tom firme: − não a reconheço. O viajante deixa

cair a cortina. O homem diz:

− Lamento.

O viajante aproxima-se e suplica:

− Por favor, reconheça-a!

O homem aguarda, pergunta:

− Porquê?

O viajante não responde. O homem pergunta:

− Como se chama ela? O viajante responde:

− Não sei mais nada. O homem diz um nome.

O viajante escuta com a maior atenção. O homem

pergunta:

−É este o nome?

O viajante não responde. Suplica novamente:

− Repita, por favor!

− O quê?
− O nome que acabou de dizer. − Detém-se. − Peco-

lhe. O homem afasta-se um pouco e repete, clara e

completamente, o nome que acaba de inventar.

O viajante dirige-se à porta, estende os braços como

se quisesse atravessá-la, desiste depois e esconde a

cabeça nos seus próprios braços. Soluça.

O homem observa-o, deixa passar um certo tempo, e

aproxima-se dele. Fala num tom calmo:

− Faria melhor se saísse, se fosse ter com ela.

O viajante recompõe-se e deixa cair os braços,

vencido. O homem aguarda ainda um momento e, em

seguida, pega no braço do viajante, conduzindo-o à

porta. Diz:

− Tem de se ir embora, o serviço está à minha espera.

Saem os dois. O homem fecha a porta à chave. Ouve-

se de novo a música, ao fundo do corredor. O homem

acompanha o viajante até à entrada e deixa-o. O

viajante atravessa a entrada, e sai.


A mulher continua estendida, ao sol.

Tem os olhos abertos. Vê o viajante aproximar-se. A

sua voz é doce como o seu olhar.

− Ah, você voltou.

Ao fundo, à beira da água, o outro a caminhar, de

novo. Em todo o espaço visível ele é a única figura

viva. O viajante diz:


− Andei a passear enquanto você dormia. Ela fixa-o:

− Ah, julguei que se tivesse ido embora.

Aponta o que caminha ao fundo, na praia vazia, ao

sol infernal.

− Teria ido com ele... Ou com a polícia.

O viajante senta-se junto da mulher. Ela chama-o,

subitamente, toca-lhe no braço, quer que ele a olhe.

− Onde estava você? Por onde andou a passear?

− Você dormia. Quis deixá-la dormir.

− Não.

O outro, ao fundo, vai e vem, no seu passo regular,

numa espera indecifrável, nas areias desertas. O

viajante observa-o, observa-o apenas a ele.

− Você esteve a chorar. Esteve a perguntar.

O olhar atravessa-o, penetrante, sem tréguas. Ele, o

viajante, continua a observar a caminhada tranquila,

ao longe.

− Procurei o sítio entre as paredes.


Ela leva tempo a responder, a falar outra vez.

−E encontrou-o? − a voz baixa.

− Encontrei. Pode-se ver também a porta pela qual

saímos. − E acrescenta: − separados. Calam-se.

Ficam, durante certo tempo, a observar o que se passa

ao longe, junto ao mar.

O movimento da marcha altera-se: em lugar de voltar

para trás o homem continua a andar. A mulher

reparou. E fica a vê-lo a afastar-se. O viajante diz:

− Está a vigiar. A vigiar-nos.

− Não. − E acrescenta ela: − Nada.

O outro cortou na direcção da cidade e desapareceu

por trás dum edifício. O viajante pergunta,

distraidamente:

−O quê? Que está ele a fazer? A mulher volta-se para

ele:

−O que é que eu disse?

− Ele vigia o mar? Vigia-nos, conduz-nos?


− Não.

O calor diminui, o sol.

A mulher sente-se melhor. Senta-se. Há correntes de

ar que chegam que voltam a partir. Por detrás do

aglomerado contínuo recomeçou o roer. O viajante

pergunta ainda:

− Ele vigia o movimento das marés, os movimentos da

luz.

− Não.

−O movimento das águas. O vento. A areia. O sono?

− Não. − A mulher hesita. − Nada. O viajante cala-se.

A mulher volta-se para ele e diz:

− Você não diz mais nada. Recorda-se:

−É verdade. − Cala-se e a sua voz volta a ser terna:

Você não é nada.

O céu escurece. O mar baixo vai-se tornando cada vez

mais pesado, uma vaza negra. Ei-las, ao longe,

carniceiras, as gaivotas. A mulher olha em frente,


numa direcção invisível.

− É noite?

− Julgo que sim.

E ela, de repente, diz, na certeza, na doçura:

− Deixei de conhecer esta cidade, S. Thala, nunca mais

lá voltei.

As palavras ecoam, apagam-se. Eles observam a

praia. A noite, chega O outro não regressa. O viajante

pergunta:
− Não tornou a partir. Voltará?

− Sim − diz ela, e acrescenta − às vezes vai além do

próprio pensamento, mas acaba sempre por voltar.

Voltará esta noite. O mar cobre-se de vento.

A noite chegou quando ele reapareceu.

Não se dirige a eles, sobe na direcção de S. Thala e

desta vez para se perder entre a espessura. A mulher

diz, a mulher repete:

− Voltará esta noite. − E acrescenta: − Esta noite irá

incendiar o coração de S. Thala. A praia. À noite.

O viajante está deitado na areia. A mulher está

deitada a seu lado. Calados. Aguardando.

O silêncio de S. Thala, esta noite, é sonoro, grita,

estala, e eles escutam-no, seguindo-lhe as modulações

mais secretas. A mulher diz:

− Ali ao lado, alguém está a falar. Vozes na areia, perto.

Ele diz:

− Amantes.
Ouvem as queixas amorosas, os gemidos atrozes do

prazer. Ela diz:

− Já não vejo mais nada.

Ao longe, o primeiro fumo negro. Ele diz:

− Eu ainda consigo ver.

O primeiro fumo negro ergue-se no céu claro de S.

Thala. A mulher tem um gesto largo duma

desesperada ternura, e diz, murmurando:

− S. Thala, minha S. Thala.

Volta-se para o viajante e esconde o rosto.

Ele reclina a cabeça dela sobre o seu próprio braço

contra o coração. E assim permanece.

As primeiras sirenes atravessam S. Thala. Ela não as

ouve.

O fogo cresce, alarga-se.

Através do fumo emergem as primeiras chamas. O

céu fica rubro. Todas as sirenes de S. Thala

percorrem agora o espaço, desenfreadas.


A mulher ergue-se. Vê o viajante, ouve as sirenes, vê

o céu vermelho, não sabe onde se encontra. O

viajante diz:

− Estava muito calor no quarto. Viemos até á praia. A

mulher recorda-se e, fechando os olhos, diz:

− Sim, é verdade...

E volta a refugiar-se no braço dele, contra o coração.

Alguém sai da espessura do fogo e atravessa a praia.

Atrás dele, S. Thala arde.

Regressa. Volta. Ei-lo.

Senta-se a alguns metros deles, olhando o céu, o mar.

Por toda S. Thala, desgarradas, as sirenes do terror.

Ele continua a olhar o céu, o mar.

E depois a mulher, dormindo nos braços do viajante.

Ouve-se:

− Está a dormir.

O viajante debruça-se sobre o rosto adormecido, e

diz:
− Está a abrir os olhos. Ouve-se:

− Então o dia nasce.


A superfície do mar torna-se rosada. Por cima, o céu

vai perdendo a cor. Ouve-se:

−O dia abre-lhe os olhos. Sabia?

− Não.

O viajante observa: e na verdade, os olhos vão-se

abrindo, pouco a pouco, as pálpebras separam-se, e

num movimento indiscernível, de tal modo é lento, o

corpo, inteiro, obedece aos olhos, volta-se e vai-se

colocar na direcção da luz nascente.

Assim permanece, frente à luz. O viajante pergunta:

− Ela está a ver? Ouve-se:

− Não, ela não vê nada.

Na noite de S. Thala, as sirenes giram. O mar

aumenta e perde a cor, como aconteceu com o céu.

Ouve-se:

− Vai ficar assim até que surja a luz.

Calam-se. A luz aumenta de forma indiscernível, de

tal modo o movimento é lento. Como a separação


entre areias e águas. A luz vem subindo, abrindo e

desvendando o espaço que cresceu.

O incêndio, por seu lado, como o céu e o mar, perde

também a cor. O viajante pergunta:

− Que irá acontecer quando a luz surgir? Ouve-se:

− Ficará como cega. Depois recomeçará a ver-me. A

distinguir a areia da água, depois, o mar da luz, depois

o seu corpo do meu. Separará depois o frio da luz para

mo dar em seguida. E só então ela ouvirá esse ruído,

sabe? De Deus?... esse ardil...?

Calam-se. E observam a progressão da aurora

exterior.

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