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ISBN: 9789722058148
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– Quando é que esta terra, quando é que todos nós, vamos perceber de
uma vez por todas que não podemos contar com Portugal para nada?
Cuspo nos gajos de Lisboa. Cuspo no Terreiro do Paço. Que um
terramoto dê cabo daquilo tudo outra vez.
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Os edifícios da povoação tinham os vidros partidos, telhas arrancadas,
portas escavacadas, vestígios de incêndio. No meio dos escombros e do
entulho avançaram os dez homens da milícia, os cento e vinte da
companhia e os cinco fazendeiros que se tinham juntado a eles em
Carmona. Serafim, ao lado do capitão e do alferes Capelo, apontou para
um ponto entre as árvores que envolviam a povoação:
– Têm a certeza de que não vos cortam o pescoço quando vão dormir?
O outro ficou a olhar para ele com olhos febris, de insónia e pesadelo.
Mas venceu a convicção que já tinha formado: todos os pretos são iguais
e nenhum é de confiança. E, para confirmar esta posição de princípio,
lançou um ruidoso escarro para o chão, que caiu perto das próprias
botas.
– Convém que tenha uma ideia daquilo com que nós nos confrontamos
aqui. Os feiticeiros têm um papel importante. Dão aos homens o
milongo da coragem.
– Disse que…
Alguns soldados deram por falta dos dois cães adoptados na estrada
para Quicangulo. Assobiaram. Ouviram-se uns latidos. Encontraram os
cães a disputar um braço humano que emergia da vala comum dos
rebeldes, que os animais tinham esgaravatado.
Foi divertido, mas soube a pouco. Acabou por ser rápido demais. Da
próxima vez poderiam variar. O comandante de companhia deu-lhes a
oportunidade de o demonstrarem. Informado por fazendeiros da região
de que uma determinada sanzala acolhia rebeldes, enviou para lá o
pelotão da vingança para fazer prisioneiros.
– Meu alferes, podem ter sido estes que mataram os nossos camaradas.
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Esta foi a cidade sobressaltada que Fraga e Viana deixaram assim que
puderam, para irem para as suas casas, no centro da região de onde
emanava o horror.
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Numa fazenda, dois empregados negros vieram ter com eles. Estavam
escondidos desde o dia do ataque, na semana anterior. Contaram o que
se passara, que não era diferente do que acontecera noutros locais.
Mostraram os cadáveres, que tinham reunido numa garagem. O tempo
quente acelerava a putrefacção e o cheiro era insuportável. Os militares
aproximaram-se com o nariz tapado por lenços embebidos em álcool.
Trinta e oito cadáveres, de empregados bailundos, incluindo crianças. A
excepção era um velho e uma velha, com flores em cima. Os
empregados explicaram que estes dois eram os brancos mais antigos da
zona e tinham sido atacados no momento em que iam pôr flores nos
santos da capela da fazenda. Os outros brancos estavam numa fazenda
vizinha onde se celebrava um casamento e foram avisados a tempo.
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O pelotão avançava pelos caminhos estreitos. Preparava-se para novas
emboscadas, sentia-se observado e seguido e tinha disso muitos sinais.
A selva era um bicho que o engolia à medida que avançava.
Ouvia-se o som dos batuques, que podia durar horas, chegavam ecos
de gritos, avisos, clamores. Sair da picada e ir procurar gente no meio
das matas densas poria em risco a missão e seria suicídio.
– O que vem a ser isto? – perguntou o alferes. – Quem pôs isto aqui?
– Hoje de manhã.
– Se retirar daí estas cabeças, ficamos mais fracos aos olhos daqueles
que nos estão a espiar. Temos de jogar com as superstições deles.
– Trazia-as comigo.
– Desde quando?
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– Na aldeia do Chiribo.
– És feiticeiro?
– Não.
– Eu acho que és. Usaste o milongo da coragem e outros feitiços para
os homens atacarem os brancos?
– Vives de quê?
– Veja como são manhosos. Disse que fugiu da aldeia dele porque o
obrigaram a juntar-se aos atacantes, caso contrário matavam-no. Ora,
isso é o que os feiticeiros fazem, e eu sei que isto que aqui está é um
feiticeiro a querer passar por vítima dos feiticeiros. Se eu não estivesse
aqui, ele ria na vossa cara. Veja o ar arrogante dele.
– Existem regras…
– Respeito o seu luto, mas não posso ser cúmplice dos seus actos. Vou
ter de participar de si. Matou um homem que eu fiz prisioneiro.
– Não, não vai, porque esta coluna vai ver-se livre de si.
– Siga.
– Quem?
– Estes já se safaram.
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Muitos colegas meus gostavam daquela carreira no quadro
administrativo, porque podiam caçar, dar grandes passeios de jipe, tomar
contacto com a Natureza e com os aspectos não europeus de África. Mas
a mim sempre me calhou melhor um trabalho de gabinete. Prefiro o pó
dos livros à poeira levantada pelas rodas de um veículo todo-o-terreno.
O que mais me interessava, nos tempos de lazer, era reunir amigos que
jogassem xadrez. Eu andava a desenvolver uma abertura inovadora, a
que chamara Abertura do Tigre, em homenagem à Baía dos Tigres, ali
próxima: as peças mais adiantadas desenhavam sobre o tabuleiro uma
linha ondulada, como as listas das dunas que, avistadas pelos pescadores
algarvios que chegaram a Angola no final do século XIX, lembravam as
malhas de um tigre e serviram de inspiração para o nome da baía. Era
uma abertura de jogo capaz de criar vantagem perante um adversário
desprevenido. Projectava escrever sobre ela um artigo que enviaria à
secção desportiva da revista Notícia, de Luanda.
Havia um cipaio que, além das palmatoadas, usava outra técnica: com
a mão esquerda segurava a cabeça do punido, para não rodar, e com a
direita assentava os mais fortes bofetões que alguma vez vi alguém dar.
Vi negros ficarem com a cara inchada. Podia pensar-se que alguns
ficariam surdos.
Podia ficar com a carrinha depois das horas de serviço e aos fins-de-
semana. Saraiva pedia-me boleia todos os dias para ir para casa. Um dia,
quando passávamos diante de uma casa particular, uma senhora
apareceu à porta e pôs-se a varrer o pátio com gestos vigorosos. O
secretário virou-se para mim:
– Já temos muita experiência nisto. O preto não deve ser tratado com
excessiva brandura, porque a brandura, na mentalidade do preto, é vista
como fraqueza e encoraja-o a ser indisciplinado. Tem de compreender
isto, Mateus.
– Certo, certo.
– Certo.
– Mateus, você vai ouvir muitas vezes que nós somos colonizadores
diferentes, melhores do que os outros. E de mim vai ouvir o mesmo,
porque é verdade. Vou contar-lhe um episódio que vivi em 1950,
quando estava em Nóqui. O rio Congo tem ali uma inflexão e, a partir de
Nóqui, serve de fronteira natural. Já ouviu falar de Simão Toco? É o
líder de um movimento religioso, de carácter messiânico e profético.
Anuncia a vinda de um novo Cristo que derrubará os poderes actuais
para fazer reinar a justiça. Como vê, é uma actividade um tanto ou
quanto suspeita. A certa altura ele foi para o Congo Belga e levou
discípulos. Os belgas decidiram expulsá-los e entregá-los às autoridades
portuguesas. Eu e o intendente do distrito levávamos um cabo de
cipaios, com a sua espingarda Kropatschek. Os belgas passaram a
fronteira numa coluna militar com vários camiões e uma escolta armada
de dezenas de homens. Descarregaram quase duzentos tocoístas.
Perguntaram-nos pela nossa escolta. O intendente, o Ramalho, apontou
para o cabo de cipaios e disse: «Esta é a nossa escolta.» Sentindo-se
observado, o cabo de cipaios empertigou-se e apertou mais a espingarda.
Vi o espanto na cara dos belgas. Os presos foram postos em formatura
diante do nosso cipaio. Os belgas perguntaram onde ficava a cadeia em
que os íamos meter. O Ramalho, com a maior naturalidade, disse que
não havia ali perto cadeias em condições e que os presos iriam para uma
aldeia até se decidir o que fazer. Os belgas ficaram atarantados com esta
resposta. De repente, os presos pediram autorização para cantar. E
imagine, Mateus, o que é que eles quiseram cantar… O hino nacional.
Pusemo-nos todos em sentido. Eu sentia-me comovido, e creio que o
Ramalho e o cabo de cipaios também. Os belgas, esses, atingiram o
cúmulo da estupefacção. Aquilo foi um exemplo de amor à pátria. O que
é que isto prova? Primeiro, que os belgas não sabem estar em África,
porque não têm a consciência tranquila. Segundo, que nós temos uma
maneira diferente de estar em África. Não estamos aqui para enchermos
os bolsos e voltarmos ricos para a Metrópole, estamos aqui para nos
fixarmos à terra e civilizarmos os indígenas. Não receamos nada porque
não fizemos nada para merecermos ser maltratados. Terceiro, e mais
importante, os nativos têm orgulho em ser portugueses. Que belo
exemplo do mundo lusíada que criámos em cinco continentes! Não
somos como outras potências coloniais, que só queriam explorar e ter
lucro e montaram em África empresas comerciais com nomes de países.
Só espero, Mateus, que ao longo da sua carreira tenha oportunidade de
viver momentos como este. Quando você me vê ali na parada, a assistir
às palmatoadas, o que é que julga que me passa pela cabeça? Às vezes
estou ali diante dos homens que esperam o castigo e lembro-me dos
duzentos tocoístas na fronteira. Coisas dessas são a prova de que
procedemos melhor do que outras potências que estiveram ou ainda
estão em África. Nesta missão, que é o nosso destino transcendental,
único no mundo, nem uma só palmatoada ou chicotada foi em vão.
Deixei o Hotel Moçâmedes, que fora até aí o meu único lar. Tinha
tudo preparado para Beatriz e Célia. Fomos habitar uma casa perto do
limite da cidade, já no areal, à vista do deserto. Beatriz detestou tudo: a
casa de banho era no quintal; havia uma capoeira e galinhas que
espalhavam penas por todo o lado; sondando paredes, detectou fissuras e
pontos de infiltração da humidade vinda do mar, que se notava mais à
noite.
– Que razões?
– Não sei, talvez te tenham visto com outra mulher.
– Que riso agudo é esse? Até parece que me estás a esconder alguma
coisa.
– Os que nos vêem agora juntos não me julgavam capaz de ter uma
mulher tão bonita.
– Estiveste aqui sozinho dois anos – disse Beatriz. – Podes até ter
iniciado uma outra família.
– Outra família? Isso deve dar muito trabalho. E despesa. Além disso,
como é que eu ia esconder isso numa cidade tão pequena?
O meu silêncio queria representar que aquilo para mim era novidade.
– Vejo que se está a civilizar cada vez mais. É isso que faz a mulher
na vida de um homem.
– Acha?
– Sem dúvida. Ouça o que lhe digo: tudo o que um homem faz, tudo,
até as guerras, até os piores crimes, é por causa das mulheres, sobretudo
para lhes agradar. Tudo, Mateus.
– Se o diz…
– Digo e faço. E você também faz, mesmo que não o saiba. Tudo, mas
realmente tudo o que os homens fazem, é para as mulheres, ou por causa
das mulheres, ou tem a ver de uma maneira ou de outra com as
mulheres. Das coisas mais simples às mais complexas. É por causa das
mulheres que tomamos banho. Acha que se só houvesse homens no
mundo, os homens tomariam banho? Claro que não. E ir à Lua, e
construir fábricas gigantescas… olhe, tudo, tudo! Tudo tem a ver com as
mulheres. É só por elas e para elas que os homens constroem o mundo.
Achei que Saraiva devia concordar com isto. Para ele, fazia sentido
que fossem agentes comunistas infiltrados, a soldo de potências
estrangeiras, a manipularem as boas gentes angolanas e a convencerem-
nas a atacar as boas gentes portuguesas.
– Vamos dar uma lição aos terroristas – tornou Rebocho, num tom
ciciado que dava mais solenidade à promessa. – Usaram em larga escala
um método que foi bem-sucedido com os belgas em pequena escala.
Mas com isto só mostraram não nos conhecer. Vamos defender os
nossos direitos. Não há ONU que nos ponha daqui para fora. Não há
imperialismo comunista que nos afugente. Vão descobrir que somos um
osso duro de roer. O mundo vai tornar a saber quem são os portugueses.
– Alguns angolanos brancos querem dar rédea solta aos negros para,
instalado o caos, se apossarem do governo da Colónia e proclamarem a
independência. A imprensa pode ajudar nesse projecto, o que é perigoso,
ou, pelo contrário, ignorá-lo, o que também é perigoso.
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Achei-me cheio de sorte por não ter sido colocado num posto do
Norte. Poderíamos, eu, Beatriz, as duas crianças entretanto já nascidas e
a terceira em gestação, estar agora entre os mortos.
– Mucaba está alcandorada nos picos da serra, entre cafezais, ali onde
o esforço constrói a prosperidade, onde brancos e pretos fazem do café
um dos símbolos de Angola. A povoação consiste em poucas casas
brancas tendo ao fundo a igreja, como um pastor seguido pelas suas
ovelhas. O acesso é difícil. Às cinco e meia da tarde do dia 29 de Abril,
começa o ataque. Milhares de homens ávidos de sangue e de carnagem
empunham catanas e cercam Mucaba. Trinta e sete defensores da
povoação refugiam-se na igreja, baluarte da fé cujas paredes e portas
podem resistir mais tempo do que as casas de habitação, estas feitas
apenas a pensar no são convívio entre raças. Dois mil assassinos,
eufóricos com os crimes que vêm praticando em fazendas isoladas,
aonde o socorro chega tarde, permitindo-lhes confiar na impunidade,
cercam os trinta e sete bravos. Entre cânticos guerreiros, guinchos
inumanos e urros, ouvem-se vozes de comando que dizem: «Não tenham
medo, as balas dos brancos não matam, as balas dos brancos são
água…» Trinta e sete bravos, com poucas munições, atiram da igreja e
fazem tombar aqueles que, dando saltos, gritos e gargalhadas selvagens,
querem beber o seu sangue. O chão esconde-se debaixo de cadáveres,
mas dele parecem brotar mais e mais atacantes, a quem a morte dos seus
irmãos de crime e de orgia não inibe de continuar a saltar, a gritar e a
gargalhar, antegozando o massacre dos trinta e sete bravos. Cada minuto
que passa aproxima os trinta e sete e os quase dois mil do confronto
físico, adiado apenas pelas últimas balas e pela espessura das paredes da
igreja. Às oito da noite a mensagem do chefe de posto, partindo do
reduto prestes a cair, chega à sala de operações da Força Aérea, em
Luanda.
Regressava o narrador:
O narrador:
O chefe de posto:
O chefe de posto:
O narrador:
Era a Célia, então com seis anos, que espreitava pela porta do
escritório. A rotina doméstica estava intacta. O que se passara longe dali
só me chegava nas ondas electromagnéticas de uma antena da rádio.
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Os funcionários da Administração e alguns polícias e agentes da PIDE
foram ao porto de Moçâmedes esperar um navio que trazia de Luanda
cinquenta e cinco nacionalistas presos. Era de noite. Holofotes emitiam
uma luz doentia sobre o cais. Eu carregava a pistola-metralhadora que
me fora atribuída e que não saberia usar. Os cipaios estavam perfilados.
Mais atrás, as carrinhas prontas para levarem os presos para a cadeia da
Polícia. Perto de Moçâmedes, fora criada a colónia penal de São Nicolau
para fixar indivíduos implicados em actividades subversivas. Os que
escapavam à tortura da PIDE e ao isolamento das celas cultivavam as
terras.
Todos olhámos, para ver quem ia aparecer no topo das escadas. Vimos
descer um africano magro, com aspecto inofensivo e uma pequena
trouxa às costas. Era um activista político. Temiam-no porque era
instruído. O chefe da escolta devia ter feito aquele espalhafato para
exibir o seu próprio zelo.
Havia por ali agentes da PIDE que tinham ido a Lisboa aprender
técnicas de interrogatório e tortura. Rebocho, que a isso não era
obrigado, oferecia-se para assistir e participar. Numa das suas típicas
fanfarronadas, dizia aos agentes da Polícia sobre determinado
prisioneiro:
– Eu faço-o falar!
Ele olhou para mim com sobressalto. Percebi, tarde demais, que a
minha propensão para os provérbios me tinha traído. Tentei compensar:
– Mas você é que sabe o que faz mais sentido para si.
– Não, não, tem razão. Aquilo do abraço, do amor… E veja este.
Escrevi-o ontem, para tentar esquecer certas coisas… Mas deparei-me
com um problema: preciso de uma palavra que rime com «lâmpada».
Li o poema e sugeri:
– Não admira que você não tenha aguentado aquilo – disse eu.
Calou-se, a olhar para mim. Eu não sabia o que dizer; para aquilo já
não havia rimas fáceis. Mas ocorreu-me:
– Lâmpada, lâmpada…
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Ninguém respondeu.
– Vocês envergonham aqueles homens lá de cima que pegaram em
armas para defenderem fazendas e vilas contra hordas inteiras.
– É um bom funcionário, mas não tem mão nos pretos. Pense noutro.
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Uma vez que eu não era solicitado para operações mais musculadas, o
administrador escolhia-me para o acompanhar nas suas rondas a todos
os postos do concelho. Gouveia era um homem com uma inteligência
prática. Gostava de explicações simples que levava até às últimas
consequências. Evitava as visões globais e complexas, as alternativas
incertas. Era frequente dizer: «Lá está…», para associar a novidade à
explicação que já adoptara, que já trazia pensada e arrumada dentro da
sua cabeça, não sendo coerente a associação que estabelecia.
«Deus deve ter planos especiais para nós», pensei. «Se calhar desistiu
dos judeus e agora escolheu os portugueses.»
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– Fiscalizas o comerciante?
– Disse-lhe que não vou tolerar aldrabices. O tipo tem maus hábitos do
passado. De resto, meu caro, estou aqui tão isolado que podia fazer o
mesmo que o chefe de posto de Dirico.
– Às vezes penso que a música clássica foi composta para ser tocada
na selva. Abafa todos os sons do mato. Quando ali da sanzala chega o
barulho dos batuques e dos tantãs, abafo-o com Beethoven ou
Tchaikovsky.
Uíge, 1961-1964
A tropa tinha ordens para derreter tudo, o que significava fazer chegar
o fogo e as explosões de granadas a todos os recantos onde os rebeldes
se escondessem. Varriam-se serras eriçadas de mata selvagem e
protegidas por escarpas e penhascos. Foram dadas instruções para se
cortarem cabeças e as expor à beira dos caminhos: jogava-se com a
crença de que o corpo decapitado não podia ressuscitar. Houve uma
ordem para se eliminar «todas as formas de vida acima do Negage». O
terrorismo combatia-se com terrorismo. Longe das vilas e cidades onde
se fazia a prosperidade da Colónia, o inimigo mantinha-se escondido nas
matas do Norte, de onde recuava para bases de apoio nos países
vizinhos.
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Uma das patrulhas do pelotão foi um dia alvejada por tiros vindos de
um morro. O terreno era escarpado e coberto de capim com quase três
metros de altura. O sargento-ajudante sugeriu a Capelo que fizessem
uma queimada para encurralar os guerrilheiros. Perante um capim tão
denso desde o cimo do morro até à picada quase afogada, Capelo achou
que se poderia formar uma frente de fogo incontrolável que os faria cair
na própria armadilha. Não dominava as técnicas de contra-queimada ao
ponto de se sentir seguro de que poria a salvo as viaturas carregadas de
combustível e munições.
Se não chovia, o calor era tanto que suavam e vinham moscas colar-
se-lhes à pele e beber o suor. Para poderem comer, cobriam a cabeça
com um mosquiteiro.
– Se calhar sim, se calhar não… Para mim eles são todos iguais,
tenente.
– Você tem uma participação contra ele que vai mandar, não tem? –
perguntou o capitão. – Junte-lhe mais esta coisa da grávida e mostre-me.
– E até lá, ele vai continuar por aí como se nada fosse? Não é detido?
Enforcar e estripar uma negra grávida não era muito grave para o
capitão. A guerra vivia de contradições. Capelo recordou-se de uma vez
em que arrasaram uma aldeia inteira, porque se dizia que escondia
guerrilheiros, tendo sido mortas mulheres e crianças, e, no regresso,
ajudaram uma africana que morava nessa aldeia a dar à luz e todos
festejaram o parto bem-sucedido.
– O pessoal diz que ele passou para o outro lado – contou o soldado.
Outro caso muito falado foi o do sniper que matava oficiais. A sua
lenda era conhecida de todos os combatentes, embora distorcida por
boatos. Dizia-se que era mestiço e fora o melhor atirador do Exército
português. Como prémio, recebera das mãos do próprio Salazar uma
espingarda perfeita, de mira certeira, infalível. Movido por ideais
nacionalistas, desertara da tropa e juntara-se aos guerrilheiros do MPLA,
passando a matar portugueses, sempre graduados. Andava bem
acompanhado, com guias que conheciam o terreno melhor do que
ninguém. Deixava bilhetinhos pelo caminho: quem lesse, ou aquele a
quem um soldado passasse o bilhete, devia ser o graduado, mesmo que
não tivesse divisas ou galões à vista, e esse era abatido. Ironia suprema:
o ditador ofereceu a melhor arma ao melhor atirador e este passou-se
para o lado inimigo. Dizia-se que a tropa espiava os pais, para ver se o
filho comunicava com eles.
Comandar homens obrigava Capelo a lidar com pessoas que lhe eram
tão estranhas como o inimigo. Dois ou três anos mais novos do que ele,
eram, na sua maioria, filhos de camponeses que haviam trocado a
enxada pela G3. Alguns tinham-se voluntariado para aliviar as famílias e
comer algo mais do que uma sardinha no pão ou papas de milho. Era
surpreendente como, em pouco tempo, se transformavam em
guerrilheiros resistentes e astuciosos. Tinham nos bolsos imagens de
Nossa Senhora. De Lisboa só conheciam o cais de embarque; Luanda
era a maior cidade que já tinham visto. Parecia-lhes que Luanda é que
era a Metrópole e a terra deles a colónia.
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Assim que chegavam, a todos os soldados eram mostradas as
fotografias dos massacres de 1961. Diziam-lhes que os guerrilheiros
eram terroristas sanguinários. Industriados numa raiva bíblica contra os
guerrilheiros, ficavam surpreendidos quando viam soldados negros no
seu pelotão. «Eu vim para aqui lutar contra os pretos e põem-me ao lado
de pretos?» Um, que tinha sido ferido, quando acordou no hospital
estranhou ver negros a serem tratados na mesma enfermaria. Outro,
quando estava a ser evacuado de helicóptero, teve um choque ao ver que
o homem que segurava o balão do soro ligado às suas veias era um
negro e preferiu voltar a desmaiar para não o ver.
Quem tem uma arma nas mãos e está perturbado com o que já lhe
aconteceu ou viu acontecer, quer ser um vencedor para não morrer.
Capelo viu soldados escanzelados e nervosos, pesando quarenta quilos, a
ameaçar negros possantes que lhes poderiam desatarraxar a cabeça do
tronco.
Para alguns, aquilo era como entrar num galinheiro e cortar as cabeças
às galinhas. Capelo conheceu um soldado que desenvolveu uma técnica
própria para matar bebés: enfiava-lhes dois dedos na boca, com a polpa
dos dedos a tocar o palato, levantava-os no ar e fazia-os embater com
força numa parede ou numa árvore. Viram-no fazer isso a um bebé que
tentava chupar a mama da mãe, morta.
«Esta guerra não é uma guerra, é uma doença», pensou Capelo. «Não
sou um combatente, sou um doente terminal.»
Capelo regressou ao seu quarto na casa dos pais. Visitou a irmã, mas
já não tinham grande coisa para dizer um ao outro. Caía em silêncios
soturnos. Olhava entorpecido para a capital do Império. «É isto que
estamos a defender? O direito destes carros eléctricos a circularem nas
ruas? O direito destas pessoas a comerem nas pastelarias, a consumirem
o açúcar de Angola?»
– O jipe em que eu seguia foi pelos ares por causa de uma mina.
Sobrevivemos eu e um furriel. Os outros cinco morreram, ficaram
desmembrados. O furriel fugiu. Transportei sozinho os bocados.
Nalguns casos só houve a cabeça para meter no caixão. Nunca tinha
visto mortos. Um deles era o meu melhor amigo. Sofri ao todo oito
emboscadas e por duas vezes tive de transportar pedaços de corpos. Às
tantas já não queria saber, era-me indiferente a morte, incluindo a minha.
Se já não tivesse carregado aquela quantidade de carne na primeira vez,
se calhar a reacção ao ver os onze mortos desmembrados da segunda
seria desmaiar, mas agora era canja. Depois fui ferido com estilhaços de
granada nos ligamentos do joelho. Era de noite, não me puderam
evacuar. Só no dia seguinte regressámos ao quartel e daí fui para
Luanda. No hospital, dava-me cabo dos nervos o barulho dos
helicópteros a trazerem mais feridos. Fui a uma junta médica e o médico
que presidia disse-me que tinha um filho a combater na minha zona e
que todos os que pudessem combater eram necessários. Acho que só
voltei para o combate porque ele tinha lá um filho e não facilitava a vida
a ninguém.
– Uma vez – retomou Cordeiro, num tom frio, sem olhar para Capelo
– prendemos uns camponeses que traziam fardos de milho à cabeça.
Fugiam quando nos viam, mas prendemos uns quantos porque se dizia
que alimentavam os terroristas. Agarrei uma velha e obriguei-a a andar
quase cem quilómetros até ao nosso quartel. Ela estava doente, tinha
feridas nos pés. De vez em quando um de nós dava-lhe um pontapé e
gritava-lhe: «Anda, puta velha!» O pontapé era dado com a sola da bota,
uma patada, que fazia a velha cair. Gritávamos: «Levanta-te! Vais andar
até rebentar!» Também fiz e disse essas coisas, mais do que os outros,
para afirmar a minha posse do troféu. Fiquei todo contente quando a
entreguei ao comandante. A velha morreu no dia seguinte. Deram-me
uma medalha. Quem me deu a medalha foi ainda mais estúpido do que
eu.
Nova pausa. Capelo achou que se dissesse alguma coisa seria tão
estúpido como aqueles que tinham dado a medalha a Cordeiro. Este
parecia agora distante, demasiado distante para ser alcançado por
palavras. A voz de Cordeiro voltou, fria, desligada do próprio corpo de
onde brotava:
Capelo bateu à porta dos pais do soldado Setúbal. Não sabia bem o
que ia dizer, mas confiava nas fórmulas convencionais para estas
ocasiões. O pai abriu a porta. Capelo identificou-se como tenente da
companhia do soldado Setúbal.
O homem abriu a boca para falar, mas não saía nenhum som. Disse
por fim:
– Não. É pessoal.
Em Luanda, tentas aproveitar os dois dias que tens pela frente antes de
voltares ao Uíge. Assistes a um jogo do Benfica, em digressão pelo
Ultramar, contra o São Paulo de Luanda. A equipa do Benfica tem mais
negros do que o São Paulo. No intervalo, conversas com pessoas que
acham que a guerra está a ser mal conduzida. Os militares deviam já ter
exterminado os terroristas. A população branca, que festejou a chegada
dos primeiros contingentes a Luanda, agora pensa que a tropa perpetua a
guerra de propósito, para ganhar mais dinheiro. Respondes que se há
alguém que tem interesse em que a guerra seja rápida são os militares,
que arriscam a vida todos os dias. Contrapõem-te: os militares só sabem
levar uma vida de ócio e prazeres em Luanda, frequentam as prostitutas
do Bairro Operário, os bares americanos com alternadeiras, o Treme-
Treme do Largo do Baleizão, o arranha-céus cheio de apartamentos
alugados por prostitutas, dizendo-se que treme de alto a baixo quando
elas estão em função ao mesmo tempo. Respondes que Luanda é a base
de retaguarda, por isso os militares que são vistos nas esplanadas ou nos
entretenimentos não são os mesmos, estão sempre a rodar. Os colonos
vivem de generalizações apressadas: os pretos e os militares são todos
iguais. Estão convictos das suas razões e encaram todos os que não são
colonos como meros figurantes de um drama que sustenta e ameaça o
seu modo de vida. Mas o intervalo chega ao fim, o jogo recomeça e a
polémica tem de ser suspensa.
A guerra tem um ritmo brando, para sustentar uma contra-guerrilha
em três frentes, já que se abriram mais duas, em Moçambique e na
Guiné. O governo diz que retirar-se seria insultar as mães dos que
tombaram em defesa da pátria. Assim, a melhor maneira de honrar os
mortos é continuar a guerra. Não se divulga que o inimigo, que começou
com armas artesanais, já dispõe de mísseis terra-ar e abate aviões.
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Vês militares que chegam a estar bêbados uma semana inteira. Em vez
de água há quem leve vinho no cantil.
– Tenente, é servido?
Este que assim fala tinha ido caçar uma galinha-do-mato e pensou em
comê-la sozinho. Já sabia como prepará-la, ia regalar-se com a iguaria.
Mas lembrou-se: «Não posso comer isto sozinho. Fica mal. Vou
convidar Fulano. Mas também tenho de convidar Sicrano. E Beltrano.
Só estes três, e mais ninguém.» Convidou os três, e agora aqui estão os
quatro, que não conseguem dar conta da galinha-do-mato porque têm os
estômagos mirrados. A cada um que passa oferecem um bocado. Vai
sobrar, receia aquele que caçou a peça julgando que a comeria sozinho.
Escrúpulos de consciência tinham-no obrigado a ser altruísta. Partilhou a
iguaria, e no fim sobra, e é uma pena.
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– O medo não é uma coisa que se compra numa loja – afirma. – Nasce
dentro de nós. Seca a boca. Eu faço um jogo com o medo: evito-o e
procuro-o, desminando sempre mais minas. Diminuo e aumento o medo.
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– Vou espicaçá-los.
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Estás numa edificação mais central. Corres desarmado para fora e vês
à tua volta incêndios e explosões. Soldados gritam e correm. Continuam
a cair projécteis. Na confusão, é impossível organizar uma reacção e
muitos já fogem para o mato. Diante de ti, um soldado foi atravessado
por uma granada. Um outro corre para a tenda para ir buscar a arma e
volta dentro da vala que circunda o acampamento, com água pelo peito.
Assim que levanta um pouco mais a cabeça, um tiro acerta-lhe na testa.
Afunda-se na água. Julgas ter visto a bala a entrar-lhe na cabeça, como
em velocidade retardada.
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– Todos pensámos que ia morrer. Não sei como é que tinha tanto
sangue para deixar lá: primeiro no capim, depois na avioneta. Eu punha
as mãos em cima das suas feridas, para o estancar, mas saíam grandes
golfadas sempre que respirava.
– Quando me tirarem este fato branco, vou dar conta deles todos.
E ri, um riso que não sacode a roupa de gesso, como se fosse um som
a pilhas saído de uma caixa de música ou de um boneco de feira.
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Gabela, 1964-1974
Capelo levou para o quarto uma caixa de madeira que continha trotil,
mas sem detonadores e, portanto, sem qualquer capacidade explosiva.
Colocou a caixa junto da sua cama, com o lado onde estava escrito
«Trotil» virado para Carvalho. Sabia que o alferes tinha medo de tudo o
que se relacionasse com explosivos. Negociaram: Capelo retiraria do
quarto a caixa do trotil se Carvalho desmontasse a metralhadora. Assim
fizeram.
Quando sóbrio, Carvalho falava pouco e era taciturno. Quando bebia,
fazia alusões aos seus tempos como Ranger. Toda a gente sabia que ele
nunca tinha estado nas tropas especiais. Só ele parecia não saber e agia
como se fosse verdade:
O seu tom não era jocoso, nem angustiado. Parecia perplexo. Capelo
achou que agora tinha de ser mais enfático:
– Estamos vivos!
– É – respondeu Mateus.
– Costumam jogar?
Uma voz alta e zangada, junto à porta, anunciou mais alguém. Entrou
um indivíduo baixo e corpulento, barafustando com duas raparigas
gémeas, gordas, que o seguiam diligentemente. Era Inácio, a quem
davam a alcunha de Inácio-Cê-de-Cedilha porque escrevera Ináçio na
tabuleta da sua loja, e as suas filhas, de uns vinte anos, que eram débeis
mentais e a quem os gabelenses chamavam as Macacas, devido às suas
deformidades físicas. Ajudavam o pai na loja, mas não havia vez em que
não se enganassem nos trocos ou misturassem as coisas, o que suscitava
a ira renovada do pai. Inácio dissera uma vez a Mateus: «Os caralhos
dos genes da família da minha mulher é que são a causa de elas terem
nascido assim, chochas da cabeça.»
– Lolita…
– Vamos ver que frutos colhe daquilo que semeou – disse Mourão,
indicando os filhos. – E desculpe-me a linguagem de fazendeiro.
– Não olhem para mim, olhem para as peças, caralho – dizia ele, em
vão. – O bispo, como é que se move o bispo?
As gémeas, instadas pelo pai, tentavam adivinhar qual das peças era o
bispo. Uma delas esboçou o gesto de tocar num dos peões.
3
No domingo, segundo dia do torneio, num sistema de todos contra
todos, formou-se o par de adversários Inácio-Xavier. O comerciante, que
até aí perdera três jogos e empatara um com o desmotivado Alexandre,
via chegada a oportunidade de ganhar: era impossível perder com um
miúdo de dez anos. Xavier, que desde o dia anterior assistira às efusões
daquele homem, estava aterrorizado. Olhava para ele, fazia apelos
mudos para que o pai o olhasse ou lhe desse uma palavra de incentivo,
mas Mourão estava absorto na sua partida. Xavier tentou o apoio moral
do irmão, mas Alexandre empenhava-se em ignorá-lo.
Xavier, aliviado por poder esquecer por um minuto a figura que tinha
diante de si, a emanar fúria competitiva e a amedrontá-lo, pegou na
garrafa e bebeu. Inácio, vendo o seu oponente a ser assistido, virou-se
para Mariana, de dedo em riste, e disse em tom desabrido:
– Ouça lá… Eu não tenho aqui a minha mãezinha para me dar água.
– Há três dias que ando a dizer a mim mesmo que é um sítio cheio de
atractivos.
O tenente Capelo estava encantado com a beleza dos vales, das roças
de café e dos palmares que, de manhã, os raios do sol libertavam da
cortina viscosa do cacimbo.
Capelo aprendeu tudo o que tinha a aprender com Mourão. Não lhe foi
escondido que Mourão estava ultrapassado. A sete quilómetros da
Gabela havia a C.A.D.A., a Companhia Agrícola de Angola, a maior do
país no sector do café e cuja sede era a vila da Boa Entrada, um
complexo imenso de que só se poderia ter uma imagem de conjunto
sobrevoando-o de avioneta. Mourão apresentou Capelo ao director da
C.A.D.A. Aqui havia acesso a métodos científicos e mais avançados do
cultivo do café.
Receava ficar como Carvalho, que havia muito parecia prestes a ceder
a impulsos autodestrutivos. Carvalho encontrara algum equilíbrio ao
casar-se com Elisa, mas a filha mais nova de Mourão pensava que o
casamento seria o meio para escapar de uma vida que detestava e ir para
Luanda. Contudo, Carvalho retinha-a na Gabela: com a ajuda de Mourão
e de Capelo, tornara-se caçador profissional. Passava temporadas cada
vez mais longas no mato e quando regressava a casa discutia com Elisa
ou afundava-se em uísque.
– O governo deve-me uma medalha por contribuir com sete filhos para
o povoamento de Angola – disse Mateus.
– Eram falsos.
– E o juiz?
Os novos governantes diziam que era preciso pôr fim à mais longa
guerra de África e entregar a terra aos africanos. Desconfiavam dos
brancos ultramarinos. Estes respondiam que se ia cometer o crime do
entreguismo, que geraria um vácuo.
– Eles não vão largar as armas até terem a garantia de que as suas
pretensões são ouvidas – disse Capelo. – E eu, que os combati, vejo-me
obrigado a pensar que isso faz todo o sentido.
– Temos de ter muito cuidado com isso! – avisou Inácio, olhando com
avidez para Capelo, para o contrariar. – Muito cuidado com o cessar-
fogo.
– Diz bem – tornou Capelo –, ele fala disso há muitos anos. Teria
resultado no passado, mas não resultará agora, depois de treze anos de
guerra. Quem se armou para a guerra, para se libertar do nosso domínio,
não se vai desarmar para entendimentos políticos que mantenham tudo
na mesma. Na perspectiva dos emancipalistas, eles ganharam a guerra. E
a consequência de ganhar a guerra é ter independência total, não um
Portugal pluricontinental.
– Bom – disse Mateus –, talvez não seja boa ideia falar nessas coisas,
porque vão dizer que são símbolos do colonialismo e da opressão.
– Não.
– Você chegou aqui antes de mim, foi a primeira pessoa que conheci,
quando eu julgava estar em trânsito para a Metrópole, mas afinal sou eu
que conheço a lenda do nosso herói fundador. Há umas semanas vi uma
cruz de pedra, quase arruinada, no ponto mais alto da serra. Contaram-
me a história do Ernesto da Silva Melo. Era um açoriano que no final do
século XIX emigrou para aqui. Abasteceu-se em Novo Redondo e
avançou para o interior. Estabeleceu-se no lugar chamado Capir. Foi o
primeiro europeu a ver estas serras, estes vales. Os nativos eram
guerreiros insubmissos. No início do século XX, a tropa da fortaleza de
Benguela Velha, que mais tarde seria Porto Amboim, veio ocupar esta
zona, e o Ernesto Melo, que tinha aprendido os caminhos com os
nativos, recomendou o local para construir um fortim, o monte Capir, o
pico mais elevado. A tropa foi assentar arraiais no lugar de N’Guebela,
que veio a ser Gabela. Veio a revolta do Amboim, em 1914, e o Ernesto
Melo caiu prisioneiro do soba da região, o malvado Cassússua, dono de
muitas terras e de muitos escravos. Durante anos julgaram-no morto.
Sobreviveu como servo do soba: carregava-lhe a liteira, trepava às
palmeiras para recolher cachos de dendém para a refeição do seu senhor.
A partir deste ponto, a lenda ganha asas. O Ernesto Melo é amarrado
para ser morto e cozinhado, talvez temperado com o próprio dendém
que foi obrigado a colher. Todo o povo da libata do Cassússua estava
reunido para assistir à festa da sua morte e, quem sabe, lançar mão a
algum bocado dele. No entanto, quando ele se estabelecera na terra do
Capir, tornara-se amigo de um outro soba, que lhe ofereceu para esposa
uma das suas filhas. Esta foi avisada do perigo que impendia sobre o
noivo. Trouxe algumas ancoretas de aguardente, deu-as aos rebeldes
comandados pelo soba mau e conseguiu que eles se embriagassem até à
apatia. Cortou as cordas que manietavam o bom do Ernesto e fugiram
para Benguela Velha. Mas ele voltou à montanha para recuperar o
património. O soba que o quis matar foi subjugado pelas autoridades de
Novo Redondo. O Amboim foi pacificado, a região atraiu cada vez mais
europeus e africanos para as culturas do café, da palmeira e das madeiras
preciosas. O Ernesto, claro, prosperou, fornecia o litoral, dava-se bem
com os nativos, tinha uma inumerável descendência mestiça. Em 1917,
sobreviveu, gravemente ferido, à revolta de Seles e Amboim, quando
duzentos colonos foram massacrados. E ainda voltou ao Amboim,
depois de reprimida a revolta, para ser outra vez um proprietário
importante, com grandes plantações de café, casas, armazéns. Morreu
em 1933. A cruz que eu vi assinala a cova onde foi enterrado, na
montanha que ele foi o primeiro branco a pisar.
– Foi assim que a cidade começou. E acho que vamos ver o fim.
A sanzala era um território proibido por Beatriz: tudo o que era usado
ou feito pelos negros era impróprio para as crianças brancas. Ao ver as
negras transportarem os bebés às costas, entalados em dobras de lenços,
Sílvia passou a fazer o mesmo com os irmãos mais pequenos em casa.
Quando disse que era assim que as negras faziam, a mãe, como se de
súbito compreendesse o que até aí lhe escapara, proibiu-a de o fazer.
Não queria que imitassem os costumes africanos. Sílvia e Ana tinham
sido castigadas quando Beatriz as surpreendera, no quintal, a comer com
duas lavadeiras um peixe acompanhado de um caldo de farinha de
mandioca. Comer comida africana, na companhia das lavadeiras, era
indesculpável.
Mais tarde, perguntou ao pai porque é que tinha tratado bem o homem
e ele, que apreciava os provérbios, respondeu:
– Faz o bem sem olhar a quem. Além disso, devemos ajudar toda a
gente. Nunca sabemos quando voltamos a encontrar as pessoas e são
elas que nos ajudam.
10
– O teu pai tem de ter muito cuidadinho agora. Virão atrás dos que
pertenceram ao quadro administrativo, porque, basicamente, o que eles
faziam era mandar bater nos pretos.
– Não se pode agora fingir que nada aconteceu – disse ela. – Quem foi
responsável tem de ser chamado.
– Isto ainda mal começou – afirmou Alexandre. – Isto vai levar uma
grande volta.
– Foste torturado em S. Nicolau? – perguntou Célia, sem saber que o
seu próprio pai, a pedido de Capelo, conseguira que Alexandre
permanecesse numa secretaria da prisão.
– Não pensei que pudesse ainda estar num sítio destes, a ouvir música,
a ver gente bonita a dançar. E tu? – Olhou Célia nos olhos. – Também
vais para a Universidade?
– Aulas de quê?
– Inglês e Francês.
– Claro.
Célia sentiu uma presença estranha perto deles: era Xavier que, a
alguns metros de distância, os observava.
– Ouve lá – disse Célia –, não achas que o teu irmão anda estranho?
Não fala com ninguém. No último ano do liceu afastou-se de toda a
gente.
– O Xavier? Não ligues, ele sempre foi esquisito. Nem sequer queria
vir hoje. Eu é que o arrastei. Sabia que ia encontrar gente bonita. –
Alexandre demorou o olhar em Célia, para mostrar que se estava a
referir a ela.
– Alguém? Quem?
– Eu, contar? Não conto nada àquela gente. Sou a ovelha negra da
família. Mas não estou aqui para falar do meu irmão. Anda cá. Fala-me
de ti.
11
Sílvia via como o padre Emanuel falava com o padre Joaquim num
tom ríspido e como este reagia amuado e sorumbático. Agora andava
preocupado com doenças, mais do que o habitual. O sentimentalismo, a
nostalgia, as carências emocionais, tudo isso devia alimentar-lhe a
hipocondria. No meio das tarefas do jornal, diante de uma Sílvia aflita,
queixava-se de palpitações, tonturas ou falta de ar. Auscultava o próprio
corpo, numa atenção que amplificava os sinais e prenunciava uma
catástrofe que nunca vinha. Bebia um copo de água com açúcar e tudo
passava. O padre Emanuel nunca tivera paciência para as doenças reais
ou imaginárias do padre Joaquim. Era seco, directo, prático, enquanto o
padre Joaquim era folgazão, angustiado e hesitante.
Sílvia contou aos pais. Mateus e a Beatriz não lhe deram a saber o que
pensavam: a professora Teresa era a mulher de Barbosa, velho amigo da
família, e o escândalo já vinha de longe. Não se dizia que Barbosa
mantinha um casamento de fachada com Teresa e tinha uma relação com
Rebeca, a irmã desta?
– Misérables! Taisez-vous!
12
As gémeas seguiam-no para todo o lado. Uma delas tinha uma fixação
obsessiva pelo padre. A outra preparara o noivado com um rapaz de
quem se dizia que era também débil mental, que aparecera na Gabela;
contou a toda a gente os preparativos, depois ele fugiu e desapareceu
para sempre.
– Ele não tinha nada que ir para Benguela – disse o senhor Monteiro,
com a cara vermelha, ameaçando uma explosão. – Ele não tinha nada
que virar as costas ao liceu, a si, o seu mentor. Que falta de ponderação,
de siso, de senso…
– Ele não tinha nada que ir para Benguela – repetiu o marido, como se
o problema fosse essa cidade.
– Não. E receio que os senhores também não consigam. Ele está muito
ligado à professora Teresa.
– Ele não tinha que ir para Benguela – disse o senhor Monteiro pela
terceira vez e que, no esforço de segurar o cachimbo entre os dentes,
pareceu grunhir. – E a posição dele na Igreja?
Houve um silêncio, que mostrava que tinham feito tudo por aquele
filho e que se ele era tão original a culpa não era deles.
– E logo agora, que isto vai tudo levar uma volta – disse o senhor
Monteiro. – Será que o 25 de Abril influenciou as atitudes do meu filho?
Anda tudo doido.
– Pois estive, e com muito gosto. O almirante ordenou aos civis que
entregassem as armas. Há uma barreira, que eles chamam de segurança,
entre a cidade e os subúrbios. Revistam os carros para confiscar armas.
Já me mandaram parar três vezes a caminho do aeroporto. Depois, o
almirante quis desarmar a Polícia, que já manda menos do que os
guerrilheiros. Sabe o que aconteceu? Um grupo de camionistas e
comerciantes entrou no Palácio do Governo e encurralou o almirante
num gabinete. O Palácio é agora guardado por fuzileiros. Estão nos
corredores e nos telhados.
– Ora, ele não tinha nada que ir para Benguela – disse o senhor
Monteiro, julgando que ela se referia ao filho.
13
– Porquê?
– Ia buscar uísque.
Carvalho não reagiu. Dantes, esse costumava ser o seu modo de anuir.
Capelo resolveu não insistir. O amigo sabia que ele não evitara o
assunto, competia a Carvalho silenciá-lo ou não.
– Sim, eu sou feliz com a Mariana. Parece-me óbvio que as coisas não
correram tão bem convosco.
– No mato.
– E fazem o quê?
– Nunca mais jogaste xadrez comigo e com o Mateus – disse, para ver
como ele reagia a este tópico.
Capelo deu por si a dizer uma coisa que parecia sugerida pelas
emoções latentes que intuíra em Carvalho nos minutos precedentes:
14
– Tu não estás capaz de saber o que é importante para ti. E para mim
era importante que tu tivesses conservado o anel.
Célia estava a namorar com Alexandre, mas Beatriz, que não sabia
disto, receava que a filha aprofundasse os laços com o músico do
Quinteto e fugisse com ele no fim da festa, na primeira madrugada do
novo ano. Célia adivinhou as intenções da mãe e pensou em descansá-la
dando-lhe a saber que já tinha um namorado, mas decidiu fazer a
revelação na própria festa.
Mateus e Beatriz verificaram que havia ali poucas pessoas das suas
relações. O administrador estava presente, com a mulher. O doutor
Humberto também, para confirmar a sua fama de bom dançarino. Havia
dezenas de mesas no salão. Beatriz disse mal de tudo o que viu: as
toalhas das mesas, a disposição dos talheres, os enfeites pendurados do
tecto. Mateus vinha disposto a fruir o momento da melhor maneira.
– Há-de chegar a nossa vez… – disse Beatriz, que não queria divertir-
se.
Uns meses antes, estes dois casos nem sequer seriam casos, porque se
resolveriam a contento dos europeus. Agora, a única coisa que impediria
a execução da justiça seria uma escalada de violência, uma guerra civil,
que obrigasse à debandada geral. Os que agora eram levados a tribunal
podiam esperar que a pena que lhes ia caber não chegaria a ser
cumprida, e os que eram ressarcidos pelos crimes de que tinham sido
vítimas podiam pensar nunca vir a receber o que lhes fora atribuído. O
que se decide hoje, que validade terá amanhã? Estariam ainda ali todos
no dia seguinte, o juiz, o criminoso, o subdelegado do procurador da
República, o escrivão do tribunal, o chefe da cadeia?
– Algumas terras que ele tem deviam ser minhas. Sabe como é que o
Mourão roubou as terras do meu avô? Enterrou-o no chão, só com a
cabeça e o braço de fora, para ele assinar um documento.
– Vocês não me fazem mal – respondeu Beatriz –, mas outros que não
estão nesta sala podem fazer-me o mal que entenderem.
O interpelado reagiu:
O que não contou a ninguém, nem mesmo a Célia, foi o seu plano de
desalojar Capelo das fazendas de café. Se ele, Alexandre, era favorecido
pelas voltas da fortuna, Capelo, que fizera a trajectória oposta, de militar
colonial a fazendeiro opulento, tinha de cair. Alexandre recusara
integrar-se na estrutura de trabalho proposta por Capelo, fora humilhado,
mas tinha cada vez mais poder para derrubar o cunhado e se apoderar
das propriedades do pai. Alguns militantes do MPLA já estavam a
apropriar-se de empresas em nome do povo angolano e Alexandre
queria fazer o mesmo.
Para apalpar terreno, foi visitar o pai outra vez. Levou os homens
armados que o seguiam para todo o lado e que apresentava como seus
guarda-costas. Estes ficaram à porta e ele entrou.
– As nacionalizações…
– Sim, faltou isso mesmo. Agora não vou ter de depender de vocês.
Isto vai tudo parar-me às mãos e hei-de ver-vos presos, como me viram
a mim. – Virou-se para Capelo e acrescentou: – Hei-de ver-vos a
rastejar.
– Então, isto vai ser nacionalizado ou vai ser teu? – perguntou Capelo,
de chofre.
– Tu não sabes o que é que eu fiz na guerra. Não sabes como é que me
comportei. Se tornas a aludir a isso, vou dar-te boas razões para te
arrependeres de teres cá vindo.
Alexandre decidiu que não ia aludir à guerra. Para não parecer que
tinha medo do cunhado, gritou:
– Eu sou mais oportunista do que vocês são? Do que o meu pai foi?
– Ser mulato não tem sido uma desvantagem para ti. Apoiaste-te na
tua metade branca para cavalgares a onda colonialista, agora apoias-te
na tua metade negra para cavalgares a onda independentista. É assim,
não é?
– Os tempos são favoráveis para cobardes como tu. Não queres saber
das nacionalizações, dos saneamentos, da justiça para todos. O que tu
queres é ajustar contas pessoais. Se o MPLA ganhar, não tenho dúvidas
de que vais ser um figurão neste país. Nas revoluções há sempre umas
criaturinhas como tu que ascendem aos mais altos cargos. Agora
desanda daqui.
– Cuidado com a sua menina. Eu não lhe vou fazer mal, mas um dos
meus colegas pode dar-lhe um tiro.
Nos intervalos do seu namoro com Célia, Alexandre tentava dar aos
camaradas do partido a impressão de poder reivindicar muitas coisas e
fazer muito barulho, agora que o ruído e a retórica política se
confundiam. A sua meta era um dia entrar na fazenda do próprio pai, à
cabeça de uma coluna de guerrilheiros, e expulsar de lá Capelo. No
entanto, ainda não estava ao seu alcance mobilizar guerrilheiros. Só o
deixavam fazer propaganda política, quando o que Alexandre queria era
ter poder para meter medo e fazer o que quisesse. A sua ascensão estava
a ser mais lenta do que previra, por causa do comandante Inabalável,
apontado pelo MPLA como herói da luta de libertação, que liderava a
secção militar do partido. O passado de lutador antifascista e de vítima
do colonialismo, que Alexandre forjara para si próprio, não despertara o
mínimo interesse por parte do comandante. Diante deste, e tendo de
enfrentar a sua expressão impenetrável, que enervava um bocado porque
ninguém sabia o que é que ele estava a pensar, Alexandre sentia-se
desmascarado. O comandante parecia já o ter avaliado e não contar com
ele para grandes voos. Enquanto não conquistasse a sua estima pessoal,
não conseguiria fazer nada do que ambicionava.
– Como?
– Já lhes falei de ti. Podes ser delegada política. Não queres estar
comigo e com o movimento que mais fez pela libertação do nosso povo?
– A tua mãe já não gosta de mim, imagina quando souber que te levei
para a FNLA.
Célia riu-se:
– Olha – disse Sílvia, em voz baixa, o que não era necessário mas
reforçava o ambiente de segredo que buscava –, já demos o primeiro
beijo.
Célia arrumava a cama, mas olhou para ela. Tinha de ser paciente com
a irmã, dedicar-lhe alguns minutos, apesar de tudo.
– Onde é que está o meu bâton carmim? Andas a mexer nas coisas.
E agora que o seu interesse por Roberto Carlos esmorecera, eis que
ascendia o interesse de Sílvia, desejosa de a imitar. Sílvia que ficasse
com a música romântica e com tudo o que ela representava. Célia tinha
conquistado outras coisas, entre as quais se destacavam a política e a sua
recente filiação na FNLA.
– É diferente.
– Posso perder, mas vou para o meio da rua e ofereço o peito às balas.
– Estás, quer queiras quer não. Agora vai chamar os teus irmãos para a
mesa. São horas de almoço.
Beatriz tinha uma capacidade, que não podia ser combatida, de pôr
fim às conversas ou de mudar o assunto no sentido que desejasse.
Mais tarde, Célia pensou que quando a mãe lhe dissera para ir chamar
os irmãos poderia ter entendido que os irmãos, agora, eram os da FNLA
(era por irmãos que se tratavam os seus membros) e a grande massa
anónima das sanzalas, para quem ia ser construída uma sociedade nova.
A mãe ia ver que ela iria agir e fazer coisas decisivas.
Uma vez, quando a viu vestida com panos africanos, Beatriz disse:
– Onde está a guerra? Nós queremos a guerra, Mamã Célia. Isto assim
não é nada. Manda-nos para a guerra, Mamã.
– Mas o filho não tem nada a ver com o que o pai fez. E o pai já
morreu.
O duelo verbal entre Célia e a mãe não esmorecia. Para Beatriz, nada
podia ser mais contrário aos desígnios que tinha para a filha do que vê-la
namorar com Alexandre e filiar-se na FNLA. Receava que Célia
esquecesse a família e o seu próprio futuro para seguir Alexandre. Era
preciso afastá-la da Gabela e pôr em prática um projecto antigo: mandá-
la para a Inglaterra aperfeiçoar o inglês. Célia, antecipando a jogada da
mãe, empenhava-se ainda mais nas funções de delegada política para
mostrar que esse projecto já não era possível. Na sua fantasia, acreditava
que, sendo oriunda de uma situação de privilégio no regime colonial,
fazia bem em aliar-se ao lutador antifascista mulato para acabarem de
sepultar a sociedade colonial. Tinha de contrariar a mãe, tentar a
libertação e a autonomia que, se não chegassem, confirmariam o triunfo
dela. Tudo menos ter de ouvir de Beatriz aquela frase tão sua: «Eu não
te disse? Bem te avisei.»
Um amigo de Célia, do MPLA, confidenciou-lhe que este preparava
um grande ataque à cidade. Contava-lhe isto, mesmo estando em
partidos rivais, para ela avisar os pais e mais ninguém. Célia contou aos
pais e a outras pessoas. Depois, não vendo alterações no dia-a-dia, não
pensou mais no assunto.
Assim que Célia entrou no quartel para onde a levaram, uma das
primeiras pessoas que viu foi o amigo que a avisara do ataque do
MPLA. Estava com uma cara pouco amistosa, como se a censurasse pela
inconfidência que ela cometera. Célia percebeu que não deveria falar do
que ele lhe contara.
Ele fitava-a em silêncio. Por mais que tentasse parecer segura, Célia
estava convencida de que ele lhe lia os pensamentos. Mas tinha de levar
o seu papel até ao fim. Ali não era ela, era uma delegada de um partido
político rival.
– Não nos vês aqui, há vários meses, integrados na vida desta cidade?
– perguntou o comandante Inabalável.
– Por consideração pela tua juventude, e por consideração pelo teu pai,
vou dar este assunto por encerrado – concluiu ele. – Podes ir.
– Não aconteceu nada de mal – disse Célia, tão calma que deixou o
namorado confuso.
– Não posso? Vais ver. Ainda não me conheces bem, Célia. Não sabes
do que eu sou capaz.
Célia conhecia Alexandre o suficiente para perceber que ele não faria
o que estava a dizer. E já conhecia alguns factos da vida que lhe davam
a saber que era preciso fingir que acreditava na sua coragem para
preservar o narcisismo do homem que tinha ao seu lado.
10
– Pode ser que agora tenha mais sorte na FNLA – considerou Mateus.
– Não me parece. Ele não consegue ser decente entre gente decente,
nem bandido entre bandidos. É incompetente nas duas áreas. A Mariana
ainda tem a esperança de o ver regenerado, mas eu acho que conheço o
Alexandre melhor do que ela.
11
– Porquê?
Xavier olhou para a irmã, com intensidade, mas não dizia nada.
Mariana teve de insistir. Por fim, olhando para Capelo, Xavier dirigiu-se
à irmã:
– Eu sei, simplesmente.
– Não interessa como, é uma coisa que se sabe. Eu sei… sei dentro de
mim que é assim. Ouvi a voz do almirante dizer: «Ele tem de ser
eliminado, têm de o eliminar!»
– Como é que ouviste a voz dele, se ele está tão longe daqui?
Xavier virou as palmas das mãos para cima, para que Capelo visse o
que já tinha sido mostrado a Mariana: em cada palma havia uma ferida
recente, não cicatrizada.
– Ele disse-me que fez aquilo com um prego – disse Mariana. – Foi
porquê, Xavier?
Xavier dava mostras de não entender nada das palavras que Capelo e
Mariana trocavam.
– Xavier – disse Capelo, que não queria ouvir mais –, percebes que o
que dizes é… irreal?
12
Isto dava que pensar. Não era Mourão o seu próprio pai? E não era
também o pai de Alexandre, o filho trazido da sanzala? Poderia ter-se
dado uma inversão e ser ele próprio, Xavier, oriundo de algum outro
lugar? Na escola, fora um bom aluno e tinha gosto por estudar e
conhecer mais coisas, mas os pais, com a sua severidade, colocavam-lhe
enigmas insolúveis.
Havia já quase um ano que, isolado no seu quarto, Xavier lia e relia o
Evangelho de São João. Elaborava ideias que associavam política e
religiões profético-salvíficas africanas. Nos últimos tempos, falava-se
mais dos tocoístas, seguidores de Simão Toco, o profeta de um Cristo
negro que viria para libertar Angola e que fora preso e vigiado pelas
autoridades coloniais. Fiéis de cultos messiânicos visitavam as sanzalas
e diziam que Jesus Cristo fora morto pelos portugueses, mas que agora
ia renascer negro para não ser reconhecido. Xavier, articulando
informações que apanhava na rádio e em jornais, achou que essas
profecias teriam alguma coisa a ver com ele.
Veio a saber pela voz do próprio Deus, um dia depois de ter revelado
tudo à irmã e ao cunhado. Trancado na casa de banho, único lugar onde
conseguia escapar à vigilância da família, viu uma luz a um canto e
ouviu uma voz que se lhe apresentou como a do Pai do Céu:
– Já uma vez desceste à Terra, meu filho, e deste uma luz nova à
humanidade. Em todas as Páscoas se repete a tua Paixão, a tua
Crucificação e a tua Ressurreição. Mas de vez em quando é preciso fazer
algo mais. O meu filho tem de descer à terra em carne e osso. A
humanidade tem de reviver tudo, não apenas em festas e cerimónias
marcadas no calendário. Foste o escolhido desta vez, Xavier.
– Transformar-te-ás.
– É pelos negros que deves começar – respondeu Deus. – Eles vão ser
os donos desta terra e são muito numerosos. Noventa e dois por cento da
população é negra.
– E Portugal?
Sentia-se feliz porque a sua voz era o veículo de Deus. Mas o pouco
interesse que chegara a despertar na audiência esmorecera. Cresceram as
risadas e os insultos. Havia quem tivesse pena dele. O orador, que até aí
se mantivera na expectativa, fez menção de se afastar, o que retirou a
Xavier o último ponto de apoio. A assembleia começou a dispersar e os
guerrilheiros reaproximaram-se de Xavier.
– Corre! Corre daqui para fora. É melhor para ti. E se voltares mato-te.
13
Xavier fora conduzido por Capelo até ao hospital e aceitara tudo o que
lhe tinham dito: que iria descansar, recuperar o sono. Mas não dormia
tanto quanto esperavam dele. Receava que andassem a hipnotizá-lo para
lhe arrancarem as ideias políticas. Talvez a segunda injecção que lhe
haviam dado não fosse para a terapia do sono, mas o soro da verdade.
Tudo vinha repetido duas vezes, embora eles quisessem fazer-lhe crer
que a frase dita pelo jornalista vinha primeiro e o eco dentro da sua
cabeça vinha a seguir, quando na verdade se passava o contrário: Xavier
pensava primeiro, o jornalista limitava-se a repetir o que ele pensara.
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16
Alexandre fugiu para Nova Lisboa. Célia julgou que também estaria
em perigo, mas os outros delegados políticos e o comandante militar
garantiram-lhe que não. Antes de fugir, Alexandre pediu-lhe que se
mantivesse na FNLA para lhe ir dando conta das intenções que tivessem
contra ele.
No entanto, não teve muito tempo para trabalhar o seu novo plano. As
coisas continuaram a correr-lhe mal. Chegou a casa excitado, como se
viesse a correr, e sobressaltou Célia:
– Faz a tua vida normal. Eu estarei aqui em casa. Não posso fazer
ondas. Tenho de passar despercebido.
– Houve algum problema com a UNITA?
– Sabes que isso é capaz de ser uma boa ideia? Ainda vou ser alguém,
nalgum gabinete político. O Movimento das Forças Armadas, talvez…
Eles vão gostar de ter lá alguém que foi torturado no Campo de S.
Nicolau.
17
Após um minuto de silêncio, que lhe pareceu infinito, Célia ouviu com
alívio:
– Muito bem. Vens connosco. Não tem de ficar ninguém aqui no teu
lugar. Com boa vontade cabe sempre mais um no carro. Não tens de
pedir autorização aos papás?
18
Luanda, de que Célia só sabia o que lhe tinham contado, era maior do
que imaginara, com avenidas bem traçadas, edifícios altos, bairros
arborizados com vivendas e jardins. Atravessaram a cidade para irem
para o aeroporto, onde se juntariam a outros delegados. Faltavam
algumas horas para o voo. O Boca de Sapo, conduzido por Tobias,
integrou-se no tráfego e cruzou-se com patrulhas da tropa portuguesa.
Perto do aeroporto, foram barrados por militares. O espaço aéreo fora
encerrado. Pela primeira vez, Célia viu o comissário Tobias sem saber o
que dizer. Havia «confusão», esta palavra que agora servia para designar
todos os momentos de conflito, perseguição, ameaça. Disputado pelos
movimentos de independência, o aeroporto fora encerrado devido à
proximidade de forças beligerantes que já tinham trocado tiros de
artilharia pesada e ameaçavam a segurança dos aviões que descolassem
ou aterrassem.
Todos lhe obedeceram, menos Célia, que ia ao seu lado. Achando que
o comissário não deveria ser o único a correr riscos, não se baixou.
Tobias fez o carro galgar a calçada e parar entre duas colunas, diante da
delegação. Saíram todos a rastejar, com balas a passar por cima. Célia
esboçou o movimento de os imitar, mas, sem acreditar que pudesse ser
atingida, voltou atrás. Sem se agachar nem rastejar, fechou as duas
portas do carro deixadas abertas do seu lado, contornou o carro, foi
fechar as duas outras portas, sem pressas, e por fim, de cabeça erguida,
entrou na delegação.
– Nós somos do MPLA. Agora a sanzala inteira vai saber que temos
aqui uma pessoa da FNLA. Gente do MPLA pode vir aqui à sua procura
e nós levamos por tabela.
– Pode ficar, mas arranje outra solução melhor para si e para nós…
Por cada dia naquela habitação, Célia sentia crescer o incómodo dos
seus anfitriões. Percebia o embaraço em que os colocava. Contaram-lhe
histórias de vinganças e de raptos, em que cada partido acusava os
outros de terem iniciado o conflito. Ao terceiro dia, o casal chamou uma
patrulha da tropa portuguesa e Célia foi evacuada da sanzala dentro de
um tanque militar.
19
Quem presidia à mesa era uma senhora vestida como se tivesse parado
no tempo há quarenta anos. Pela voz trémula, embora educada, e pelas
mãos muito enrugadas, Célia percebeu que tinha uma idade avançada.
Mas era ela quem, cheia de iniciativa, sustentava a conversa. Os outros
dois eram um sujeito que devia ser seu marido, com o cabelo grisalho e
um bigode preto bem aparado, e um homem muito mais novo. Pela
conversa, Célia percebeu que a senhora era a mãe daquele que parecia
seu marido. O outro, a quem tratavam por professor, era um amigo da
família. Mãe e filho estavam em trânsito para Portugal. Viviam perto de
uma vila do interior, nos Dembos, onde um dos movimentos de
independência lhes ocupara a fazenda de café e acusara o homem do
bigode, que para além de fazendeiro era chefe da Polícia reformado, de
ter explorado os trabalhadores negros. Ameaçados de morte todos os
dias, achando que a situação em Angola só iria piorar, tinham decidido
ir para Lisboa. Já tinham os seus pertences encaixotados e à espera de
embarque no porto de Luanda.
– Uma das minhas filhas, que foi para lá há muitos anos. Claro que
não pode acolher-nos por muito tempo. A tralha que levamos enchia um
casarão, não vai caber num apartamento como o dela. Só troféus de
caça… Este menino era caçador nas horas vagas.
Fitava Célia como se esperasse uma resposta, mas Célia apenas sorriu.
– Passei muito com os altos e baixos que a vida me tem dado, nos
longos anos que já levo e durante a minha vida militar, em que houve a
Grande Guerra de 14-18, que chamou a fome, a peste e a seca. A minha
mãe teve de deixar a fazenda da Huíla por causa da seca e vir para Sá da
Bandeira, onde estávamos nessa altura. Havia carência de tudo, açúcar,
leite… só a mim não faltou porque aos militares nada faltava. Porque
tem uma velha como eu de se ir embora da sua terra? Uma só vez fui à
Metrópole, há mais de setenta anos, porque o meu marido quis ir visitar
os pais e mostrar-lhes os netos. A caminho de Moçâmedes, para
apanharmos o navio, atravessámos um rio às costas de pretos. O meu
capitão disparou tiros para a água, para afugentar os crocodilos.
Passámos o rio, um a um, primeiro eu, depois cada um dos meus três
filhos já nascidos, finalmente o pai. Tu, por seres o mais velho, foste o
primeiro.
Aqui ela virou-se para o filho, que, tendo acendido o cachimbo, puxou
com mais força o fumo, fingindo não se interessar.
– Passei por tantas coisas e agora pregam-me esta partida que é ter de
fazer as malas aos noventa e cinco anos para ir para a tal Metrópole.
Agora está tudo virado do avesso e aparecem estas hordas negras. De
onde vêm? Para onde vão? O que querem? E nunca se viram tantos de
uma só vez. Bandos e bandos deles… Os pretos gostam muito de andar
em bandos.
Esta era uma afirmação que Célia esperaria ouvir da sua própria mãe,
por isso não resistiu a perguntar:
– Sim, é uma característica deles. E olhe que eu não sou racista. Tenho
uma neta mulata, de uma preta que este meu filho arranjou quando
andou na tropa. Era uma dessas mulheres de que os homens precisam
quando estão nas guerras.
– Mas este foi um militar muito diferente do pai. Não tinha a garra, a
fibra do pai. Saiu do Exército para ser chefe da Polícia.
20
– Digo e repito que não estou sozinho. Represento uma nação das
mais antigas da Europa e que inaugurou a Idade Moderna no mundo ao
enviar navios para todos os mares. Represento milhares de homens vivos
e mortos que levaram o nome de Portugal a todos os continentes e o
nome de Cristo a todas as raças. O homem do leme está sozinho, mas é
ele quem conduz a nau onde os outros seguem.
Célia, que de vez em quando olhava para as folhas que ele lhe dera,
reparou que o texto da primeira página estava assinado «Homem do
Leme».
– E, se este não quer saber dos 400 anos – juntou o chefe da Polícia –,
o próximo ainda menos. Vai-se falar do ano zero de Angola, não dos
400 anos de Luanda.
– Pois eu tenciono ficar aqui por mais algum tempo, pelo menos até ao
ano que vem. O ano do quarto centenário da cidade. Podemos salvar isto
das garras dos comunistas. A FNLA é a única força capaz de os derrotar.
Quase tudo era neste tom. Na última página Célia viu a imagem de um
velho soldado, com longas barbas brancas e armadura medieval, numa
mão uma espada e na outra a bandeira da Ordem de Cristo, com ar altivo
e firme apesar de estar a ser apedrejado, sendo que cada pedra tinha uma
palavra escrita: terrorismo, ONU, Estados Unidos, União Soviética, 25
de Abril. Por baixo, a legenda: Resiste a tudo. Simbolizava, claro,
Portugal. Mas o que mais fez sorrir Célia foi outra caricatura: o mapa da
Europa a ser rasgado por um urso, de um lado, e por um gorila, do outro.
Em baixo a legenda: O urso moscovita e o gorila africano despedaçam
a Europa.
21
No dia seguinte, o comissário Tobias, sempre dinâmico, atribuiu a
Célia um guarda-costas. Veio ao hotel para lho apresentar. Era um
indivíduo com péssimo aspecto, a cara desfigurada por cicatrizes, os
braços cheios de marcas e tatuagens. Tinha um ar aterrador e usava um
cinto cheio de punhais. Era conhecido por Veneno do Diabo. Contaram a
Célia que ele fora guerrilheiro na UPA-FNLA. O pai, que lhe dizia que
podia ter sido colocado nalgum posto administrativo isolado do Norte
quando ela tinha seis anos, e terem sido vítimas do grande massacre, que
diria agora do seu guarda-costas? Disseram-lhe que Veneno do Diabo
era um assassino profissional; as marcas nos braços, alinhadas, eram
cicatrizes de golpes auto-infligidos, uma por cada pessoa que já matara.
Célia tinha medo dele. Achava-o muito feio e não gostava daqueles
olhos, vermelhos de fumar liamba, que a fitavam de modo turvo. As
facas enervavam-na; se ele usasse pistolas assustaria menos. Desta vez,
achou que o comissário Tobias exagerara no zelo.
Surgiu uma polémica: uns diziam que se devia cantar nas línguas
nativas, outros diziam que cantar na língua do colonizador seria um sinal
de liberdade, já que essa língua tinha representado até há pouco tempo a
repressão. A polémica ficou resolvida quando decidiram cantar uma
canção em português, mas contra os portugueses.
Um dos músicos perguntou a Célia qual era a posição política dos seus
pais e observou que a atitude dos brancos mudara muito. A violência
entre os movimentos de independência vinha crescendo, mas quase
desaparecera a violência por parte dos brancos, que agora não sabiam o
que fazer ou aderiam a um dos movimentos para obter protecção contra
os outros dois. O músico contou que durante os ataques aos musseques e
aos transeuntes negros, no ano anterior, ele estava no autocarro que fora
alvejado. Saltara para o exterior e quando se pusera em pé, apalpando-se
para saber se tinha algum ferimento, um branco aproximou-se e
perguntou-lhe: «Estás bem, rapaz?» Sensibilizado com a abordagem,
mal recuperado do perigo por que passara, balbuciou: «Acho que
sim…», e nesse momento o indivíduo deu-lhe um murro que o fez cair
ao chão.
Depois de descobrir estes serões musicais, Célia só os interrompeu por
uma ocasião para ir a um bar com o comissário Tobias. O guarda-costas
de Célia embebedou-se e a certa altura aproximou-se dela e disse:
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Xavier não podia esperar mais. Era seu dever intervir naquele
momento decisivo. Deus não lhe tinha explicado tudo, mas ele sabia
como interpretar as suas palavras. Estava destinado a ser o Cristo negro,
embora tivesse nascido branco, e competia-lhe repetir o drama antigo e
recorrente para ensinar os homens através do seu sacrifício. Já
encontrara o seu Pôncio Pilatos na pessoa do alto-comissário, tinha
agora de encontrar o seu Barrabás para comparecem os dois diante de
Pilatos, o qual, da varanda do Palácio do Governo, perguntaria às
massas quem deveria ser o sacrificado. A partir daí, o guião já estava
escrito. Tinha as ordens de Deus para cumprir. Iria salvar os portugueses
e os angolanos.
– Ah, já percebi…
– Barrabás.
– És da reacção?
– O quê?
24
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Capelo entrou na cidade, que tinha agora um aspecto sujo. Viu pessoas
a entaipar lojas e casas, para as defender dos assaltos. Passou por carros
abandonados, a serem depredados por delinquentes e oportunistas;
alguns já estavam reduzidos a carcaças que não eram recolhidas por já
não haver um serviço de reboque.
– Está tudo numa roda-viva… Acabei de falar com pessoas que estão
há quatro dias à espera nas filas de camiões, para embarcarem os
caixotes nos cargueiros. É que há greves constantes de estivadores, sabe.
Pode ser mais rápido se as pessoas pagarem gorjetas chorudas.
– Há comissões de inspecção?
26
Os filhos mais novos de Mateus e Beatriz notavam a inquietação dos
adultos. Miguel, com sete anos, instruiu Olavo, que reagia com ironia às
suas propostas para compensar o facto de ser um ano e meio mais novo,
e Luís, de quatro anos. Iam para o parque infantil arruinado, perto de
casa. As madeiras e os plásticos tinham desaparecido e restavam
estruturas de pedra onde se podia adivinhar as bases de um carrossel ou
de um baloiço. Estas formas eram propícias aos jogos de guerra:
transformavam-se em castelos, muralhas, trincheiras, resistiam a ataques
de um inimigo que, se não eram os índios, eram os negros.
– Fujam! Corram!
Olavo, não tendo uma arma tão sofisticada, era obrigado a contentar-
se com uma espingarda que não fazia barulho nem tinha luzes. Um dia
sugeriu:
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– Não vai ser a FNLA. Se precisar de nós para ter o poder, defende-
nos. Se vir que podemos dar força aos adversários, elimina-nos.
Sandro fez ouvir a buzina do carro, o que relembrou a Célia que não
viera pedir a opinião da mãe mas apresentar-lhe um facto consumado e
despedir-se.
29
Mateus percebeu tudo. Sabia do que Inácio era capaz, sabia também
que Viviana falava o mínimo e só quando lhe perguntavam alguma
coisa.
Mateus julgou que ele lhe ia dar uma explicação sobre os vidros
partidos, desculpar-se de alguma maneira. Já dentro do carro de Inácio,
que este conduzia devagar, percebeu que o comerciante pensava em tudo
menos nisso.
– Passou-se que ela é uma tipa que não cede facilmente. Mas você já
deve ter percebido isso há muito tempo, não?
– A que horas é que ela costuma sair do arquivo? Isso ela não me
disse.
– Mateus, veja quem está aqui a falar consigo. Sou eu, o Inácio.
Outro militar fez menção de avançar, mas o primeiro fez-lhe sinal para
não intervir e continuou:
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– Isso queria eu. Com estes reaccionários o debate tem de ser assim. O
senhor vai para Portugal?
Poucos dias depois, Beatriz ouviu uma cantilena vinda da rua que
começou por lhe soar como um canto religioso ou um murmúrio
colectivo durante uma missa. Era de noite. Foi à varanda e viu dezenas
de negros, homens e mulheres, em procissão, a passar na rua. Alguns
empunhavam tochas e lanternas. Diziam:
– Para onde?
– Para outra casa. Está tudo em caixotes. A minha mãe disse que
podemos ter de fugir.
Perdida em sonhos, Ana não deu conta do tempo e foi apanhada pelo
crepúsculo rápido. A mãe não ia gostar que ela ainda estivesse na rua.
Apressou-se. Quando chegou à rua em declive que ia do rio até à casa,
ouviu a mãe a chamá-la. O seu nome, repetido para chegar longe, vinha
lá do alto, parecia que a mãe estava a voar nos ares. Caíram sobre Ana
aquele chamamento, o escuro e todos os perigos de que ouvira falar nos
últimos dias, e sentiu o coração a bater muito depressa. Correu, chegou a
meio do declive, olhou para cima e viu a mãe no cimo; Ana podia ver
sem ser vista, porque onde estava as sombras eram densas. Nunca a mãe
tivera de gritar tanto o seu nome, e nunca daquela maneira. Sentiu-se
tentada a pôr fim à aflição da mãe e à sua própria, gritando: «Estou
aqui!» Mas não queria que a mãe descobrisse que estava a vir do lado do
rio. Ficou um instante parada, a olhar para cima, porque a mãe enchia o
céu.
– O quê?
32
Beatriz não tinha um minuto de descanso. Tudo podia acontecer,
reinava a impunidade, estavam à mercê dos guerrilheiros. Os filhos
sentiam que a mãe estava um pouco diferente. Se até aí a tinham achado
infalível, agora aparentava estar vulnerável. Não estavam preparados
para assistir a esta mudança. Queriam de volta a mãe dominadora e
segura de si. Os mais novos estavam a convalescer de uma hepatite e
reparavam na crispação com que tratava deles.
Havia mais coisas que contribuíam para o seu estado, como ter de ir
para perto da mãe e das irmãs mais velhas, em Portugal, que iriam
censurar os seus anos no Ultramar e culpá-la por este regresso em
posição desvantajosa. Para a mãe e as irmãs, tudo na vida se resumia a
um apurar de culpas. Até já tinha sonhos com isso. Uma fotografia que
lhe fora parar às mãos, quando encaixotava as coisas na outra casa, e que
mostrava a mãe e as quatro irmãs, trinta anos antes, desencadeara sonhos
em que se via criança, dentro da fotografia. As cinco sorriam, mas
quantas coisas inconciliáveis residiam dentro daquelas cabeças. Casara-
se cedo para fugir ao meio sufocante em que crescera e agora teria de
regressar a isso?
– É por causa de pessoas como a senhora que nós temos de sair daqui
com uma mão à frente e outra atrás e largar o fruto de tantos anos de
trabalho!
33
Ana, muito excitada, veio dizer à mãe que estava ali a Julieta.
Algumas semanas antes, Julieta deixara de ser criada. Com a ajuda de
Beatriz, concluíra o ciclo preparatório e ia ser monitora na sanzala, para
alfabetizar adultos e crianças. Ia também casar-se, pela segunda vez.
Vinha despedir-se de Beatriz; trazia debaixo do braço a filha de um ano,
tal como, tantas vezes, transportara os filhos mais pequenos dos patrões.
«Ela olha para mim como se não soubesse o que dizer ou esperar»,
pensou Beatriz. «Nada de lágrimas. Tenho de ser prática.»
– Sim. Tu é que tens cuidado dele, é a ti que ele segue mais. É teu,
agora.
– Vou.
– Porquê?
– Lá não tenho uma casa. Vou para casa de familiares. Não há espaço.
– Isto tudo vai mudar, Sebastião. A vida vai ser diferente. Vais-te
adaptar, como os outros.
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Uma rua comercial tinha os vidros das janelas e das montras partidos e
as paredes cheias de buracos de balas. Havia famílias barricadas em casa
há mais de vinte e quatro horas porque na rua a contenda não esmorecia.
– Você quer dar armas a civis que não sabem combater para se
defenderem de guerrilheiros – disse Beatriz, sentindo o coração bater
mais forte mas esforçando-se para que isso não se notasse na voz. –
Você quer barricar a população inteira aqui, sem que ninguém possa
sair, e aí é que vamos ser presa fácil e alvo a abater. O que você está a
propor vai causar a morte de muita gente na Gabela.
– Você não quer proteger a cidade – disse Beatriz, para todos ouvirem.
– Quer proteger o seu stand de automóveis. Eu quero proteger os meus
filhos. Quem seguir este homem só vai conseguir atiçar os guerrilheiros
contra nós.
Semanas antes, Capelo tinha ido aos escritórios de Novo Redondo dar
instruções aos seus funcionários. Novo Redondo era cobiçado pelos
movimentos por ter um porto de mar e uma ligação ferroviária com o
interior. A cidade estava calma. Capelo tratara do que tinha a tratar e
voltara para a Gabela. No dia seguinte, a guerra civil chegara a Novo
Redondo. Agora era na Gabela.
O que Capelo não esperava era que fosse ali mesmo, na fazenda
principal, que acontecesse o primeiro assalto. Ouviu uma agitação perto
do terreiro central. Uma multidão ruidosa fervilhava junto dos tractores.
Capelo disse a Mariana para se meter em casa e foi ao encontro dos
intrusos.
A frota de tractores era nova e cara. Alguns não tinham ainda sido
usados. Capelo dirigiu-se a um homem que fazia rolar um pneu:
Uma mulher que ouvira esta troca de palavras, e que vinha sendo
empurrada por outras pessoas, agitou diante de Capelo uma tira de um
pneu e gritou:
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Beatriz tapou todos os filhos com cobertores. Não tinha nenhum para
si. Quando tentava dormir, ouviu o dono da casa entrar no quarto, pé
ante pé, para vir tapá-la com um cobertor. Ainda havia gestos de
sensibilidade no meio da aflição e do tumulto geral.
38
O camião das águas fez a manobra e passou pelo carro de Mateus com
muito ruído, como se protestasse. Todos os carros da coluna fizeram o
mesmo. No espaço apertado que tinha à sua disposição, diminuído ainda
mais pelas pessoas que surgiam do escuro a correr de um lado para o
outro, Mateus deixou uma roda traseira mergulhar na vala que
acompanhava a estrada, para recolha da água das chuvas. Tornou-se
inútil carregar no acelerador. A roda pendia no vazio e o carro estava
bloqueado. Todos os outros veículos desapareceram em segundos,
levando as luzes dos muitos faróis que iluminavam a estrada.
Mateus já tinha subido o vidro do seu lado, mas um velho fez sinais
para que o baixasse de novo. Enfiou a cabeça dentro do carro e exalou
um bafo a vinho.
– Ele conhece-me.
– Pede-lhes para empurrarem o carro. Eles são muitos. Mas não saias
daqui.
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– Isto não está bem… – dizia o coveiro, que virava a cara para não
ver.
Iria para Portugal, de que não tinha recordações, para a aldeia do pai,
que ele descrevia como um presépio de pedra de onde os homens
emigravam para a América, o Brasil, a África. Lá enterraria os seus
ossos.
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Mariana achava que era melhor assim. A família, excepto aquela que
criara com Capelo, estava destruída: a mãe e a irmã, mortas; o pai,
dementado; Xavier, louco; Alexandre, foragido. Só restava ela, e era ela
quem receberia em cheio o golpe. Haveria um sentido naquilo tudo,
naquela sucessão de mortes, doenças, ameaças e, finalmente, o
abandono das fazendas iniciadas pelo seu bisavô materno? Como
poderiam estas coisas acontecer sem que houvesse um sentido maior,
que escapava à sua compreensão mas que tinha de existir? Talvez Deus
tivesse alguma coisa a ver com isto. Deus ou as forças históricas; a
Bíblia ou Marx. Não se falava da libertação dos povos, do fim de um
ciclo? O pai transmitira-lhe a aversão ao comunismo. A mãe anexara
uma capela à casa e, desde a sua morte, Mariana mantinha-a impecável,
já que a capela fazia parte da antiga ordem da vida numa fazenda
grande. E afinal, de que fugiam eles? Tentava convencer-se de que o
perigo seria passageiro, que se encontraria uma solução, que todos
seriam chamados em breve para regressarem.
43
Apareceu à sua frente uma velha com uma enxada na mão e uma
criança morta nos braços. Depois de se cruzarem, a velha virou-se para
ele:
Já ela estava fora da sua vista quando Xavier decidiu tentar uma
segunda vez. Procurou a velha e a criança, mas perdera-as no labirinto
das cubatas que lhe pareciam todas iguais. A sanzala estava quase
deserta e, no silêncio reinante, ouviu um som que parecia o de alguém
que estivesse a cavar e orientou-se por ele. Encontrou a velha, que abria
uma cova. A criança jazia ao seu lado, sobre a terra fofa. Xavier
ajoelhou-se diante do cadáver. A velha parou de cavar e pôs-se a olhar,
calada. Parecia disposta a fazer um último e cansado esforço para
acreditar no impossível.
Xavier olhou com atenção para a criança. O fio de sangue seco que lhe
saía da boca atraía as moscas. Repetiu mentalmente o nome da criança e,
com isso, já ela parecia estar a voltar à vida.
A velha não olhava para a criança morta, mas para Xavier. Se Xavier
tivesse olhado para ela, poderia ter lido no seu rosto que falira a crença a
que se entregara, e que sentia não apenas pena pela criança e por si
própria, mas também por este Cristo tão incompetente.
44
Eram quatro Unimog, quatro Berliet e três jipes, estafados por anos de
contraguerrilha. Carregados de soldados, entraram pela estrada da
Quibala e percorreram as principais artérias da cidade. Os militares
perguntaram aos transeuntes onde estava o administrador e foi-lhes dito
que se dirigissem para o largo junto ao jardim municipal, onde se faziam
as reuniões populares. O administrador iria ao seu encontro.
– Tá! Tá-tá-tá-tá!
45
O capitão da escolta dialogou com o comandante Inabalável, no posto
avançado do MPLA perto da cidade. O seu principal argumento eram os
dois Fiat G-91 que apareceram a fazer voos rasantes e ruidosos sobre as
copas das árvores. Os sitiantes, que não podiam enfrentar meios aéreos,
aceitaram que se fizesse a evacuação em vinte e quatro horas.
Beatriz não encontrou nada melhor para dizer senão que tinham de ir.
Olhou para a multidão, durante alguns minutos, na esperança de ver a
Julieta. Afinal, não se tinham despedido formalmente.
46
Uma parte da cidade branca estava metida nos caixotes deixados nas
casas. Outra eram as próprias pessoas que fugiam, os seus carros e
bagagens. A última era tudo o que não podia ser encaixotado, enfiado
num carro ou num avião: as casas, os prédios, os muros, os postes de
iluminação pública, os bancos dos jardins, as pedras da calçada e o
asfalto das estradas que, cobrindo a terra, era o próprio símbolo da
cidade branca, onde pés sempre calçados não tocavam o pó ou a lama. A
cidade fragmentava-se em três grandes parcelas, mas estas iam
fragmentar-se mais, quando os carros fossem largados junto dos portos e
aeroportos e as bagagens se perdessem ou fossem confiscadas, ou à
medida que os refugiados, confluindo na sua maioria para Lisboa, se
dispersassem nas regiões e cidades familiares ou por obra de colocações
provisórias. O trabalho de fragmentação era infinito.
As massas negras das sanzalas, segundo uma lei natural que impele a
ir habitar um nicho ecológico vazio, afluiriam. O que não viesse a ser
habitado e usado, ruiria, tornar-se-ia entulho, cobrir-se-ia de pó, de
humidade e de plantas rasteiras. Esboroar-se-ia, ficaria corroído,
infiltrado de água, corromper-se-ia. Mesmo as casas abandonadas por
pessoas que tinham deixado a mesa posta com os pratos e os talheres do
costume, ou que, como Beatriz, se preocupavam em verificar a torneira
do gás e as luzes apagadas, conheceriam esse destino.
47
– São de família – disse Viviana, numa voz que tentou que fosse
neutra.
– Mas tens outras coisas – disse ele, tocando-lhe com as pontas dos
dedos na face. – O que é que me dás em troca?
Malange, 1975
Célia ficou sozinha, a olhar para a pista, à espera de ver o táxi aéreo
regressar a tempo de a vir buscar. Mas os minutos passavam e nada
acontecia.
– Venha daí! – gritou um funcionário do aeroporto. – Temos de ir
embora.
O homem quase puxou Célia pelo braço, porque ela não queria mexer-
se do lugar. A avioneta que traria Sandro podia aparecer a qualquer
momento e ela queria estar ali para a ver, ir ao seu encontro, embarcar.
A avioneta virou sobre a asa direita, descreveu uma curva para fora
dos círculos repetitivos que até aí empreendera e, com a dianteira já
apontada para Nordeste, afastou-se, foi diminuindo de tamanho, o ruído
dos seus motores apagou-se na distância.
Célia ficou a vê-la desaparecer. Não havia nada que desejasse mais do
que estar lá dentro, para ir ter com Alexandre. Sentiu vontade de chorar.
O oficial fez uma expressão de comiseração e encolheu os ombros,
como se dissesse: «É a vida.» Depois, como um polícia sinaleiro
deslocado naquele ambiente, indicou com a mão a direcção que Célia
deveria tomar.
Com a mala a bater-lhe nas pernas, ela afastou-se uns metros. Viu um
carro à sua frente. O condutor acabara de ligar a ignição. Perguntou-lhe:
– Vou. Entre.
2
Célia permaneceu nas escadas do hotel, apinhadas de gente, durante
cinco dias.
Ao terceiro dia, Célia sentiu que alguém lhe tocava no braço. Era a
rapariga do casalinho, que vinha propor-lhe uma troca. Deixou o único
livro que trouxera e levou os dois de Célia. Esta troca de livros
desencadeou uma amizade entre os três jovens, no meio do marasmo
enjoado de todos os outros refugiados daquele lanço de escadas. Ora um,
ora outro, subiam até ao degrau de Célia para conversar. Só ao fim de
um dia de intensa conversação é que Célia percebeu que eram irmãos.
Sentiu-se chocada com a intimidade que observara neles.
4
Como noutros pontos atingidos pela guerra civil, organizaram-se
caravanas de carros, com escolta militar, para levar a população para
Nova Lisboa, cujo aeroporto estava a escoar milhares de refugiados para
Portugal.
– O que houve?
Quando voltava para o carro, Célia ouviu dois disparos. Tomé dera o
tiro de misericórdia a dois dos guerrilheiros, que não estavam bem
mortos. Rute e Rogério ficaram a olhar para o tio, sérios mas não
assustados. Tomé enfiou o revólver no bolso das calças e, enquanto os
três jovens se sentavam de novo dentro do carro, foi à bagageira, tirou
uma garrafa de água e limpou os salpicos de sangue dos sapatos.
Esperou que estas palavras agissem sobre Célia, que não respondeu.
– Não – disse Célia. – Mas será que poderia ser diferente? Os brancos
fizeram massacres e violações desde que aqui chegaram.
– Vê se entendes isto… – Agora ele tratava-a por tu. – Esta terra não é
dos negros. Fomos nós que construímos aqui um país. As casas são
nossas. As empresas são nossas. Os portos, os aeroportos, as estradas, os
comboios, as estações de rádio, os jornais, é tudo nosso. Os negros é que
carregaram a pedra para construir, mas não saberão usar essas estruturas,
que não podem ser entregues a quem nunca beneficiou delas e para
quem elas não foram construídas. A terra é de quem sabe trabalhá-la, é
de quem constrói uma vida humana digna em cima dela. Os pretos eram
tão donos desta terra como as manadas de antílopes ou os enxames de
formigas. Viviam aqui, pisavam esta terra, como um elefante, uma cabra
ou um rinoceronte, mas não eram os donos da terra. Os donos da terra
são os que têm consciência do que estão a fazer, não se limitam a viver
em manada ou em enxame, segundo os instintos da natureza. E esses
somos nós. Os pretos eram pouco mais do que animais de carga, e
permitimos que evoluíssem à categoria de pessoas. Deviam estar-nos
gratos. E sabes que mais, Célia? A maioria até está. Somos nós que lhes
damos de comer. Angola é o país mais moderno do continente logo a
seguir à África do Sul, que iniciou esse processo há mais tempo. Mas os
comunistas impingem-lhes ideias estranhas, para correrem connosco
daqui e virem eles explorar as riquezas de Angola. – Acrescentou,
assumindo ironicamente que Célia estava preocupada: – Mas não te
preocupes, Célia. Isto não vai resultar. O MPLA recusa eleições e recebe
armas da Rússia para fazer a guerra contra a FNLA e a UNITA. Mesmo
assim, vai ser derrotado, a não ser que Lisboa e Moscovo continuem a
dar-lhe apoio. O Acordo de Alvor foi uma farsa para Portugal fazer crer
ao mundo que age com isenção, quando na verdade trabalha para a
supremacia do MPLA. Não é uma vergonha que a antiga potência
colonizadora tome o partido de uma das forças, em vez de promover
eleições livres? Eleições que o MPLA jamais poderia ganhar, porque é
formado apenas por alguns angolanos intelectualizados, fanáticos da
cartilha marxista, e não pelas massas populares. Os comunistas não
conhecem o preto e vão-se dar mal com ele. Nós conhecemos a
mentalidade do preto, eles não. O preto não muda.
– Na casa do Oliveira.
– Estão em fuga?
– Como?
– Até à morte dos outros, sim, com certeza – disse Tomé. – Entre
morrer a lutar contra esta gentalha ou exilar-me na África do Sul, sou
capaz de preferir exilar-me na África do Sul. Mas isso sou eu, que não
tenho vocação para mártir. Bom, bom, era que os pretos se matassem
todos uns aos outros até não restar um só. Depois reocupávamos isto
tudo. Mas como isso é sonhar muito alto, temos muito trabalho pela
frente. Derrotar o comunismo, pôr os pretos na ordem, recuperar os
brancos cobardolas ou oportunistas que não se juntaram a nós. – Após
um instante de silêncio, perguntou: – E a Célia, tem uma posição
política? Está filiada nalgum partido? Não te preocupes. Aceitarei tudo o
que disseres.
– Hum… menos mal. Sabes que vos vamos meter na linha, quando
derrotarmos o MPLA. E tens namorado?
– Mas há uma coisa sobre ele que se calhar não vai gostar.
– Ele é mulato.
Disse isto ao mesmo tempo que espiava a reacção dele. Mas Tomé,
percebendo a sua intenção, fez um sorriso sardónico e disse:
Célia, hesitante, fez o gesto de receber o que ele lhe estendia e recebeu
no colo uma mão-cheia de notas, de alto valor, que pareciam novas.
Passou pela cabeça de Célia que poderia cair sob o feitiço dele e,
nesse exacto instante, ele disse:
– Se quiseres, claro – disse Rute, para alívio de Célia, grata por não a
obrigarem a juntar-se-lhes.
– Nunca.
– Ah, Célia… Não há tempo, não haverá tempo para lhe explicar tudo,
para a elucidar, para lhe mostrar a luz! A sua ingenuidade comove-me.
A única independência viável para Angola é uma independência liderada
por brancos, como na Rodésia. Olha para as independências negras e vê
o triste resultado que tiveram. Nos países independentes há quinze anos
não se constrói uma estrada, uma fábrica, não se expande um porto. Os
europeus sacam tabaco, ferro ou cobre. Os negros lá não vivem melhor.
Célia ouviu a sua risada abafada pelo bater da porta. Era como se risse
da sua própria loucura.
8
1
Quando entrámos em Nova Lisboa, de madrugada, com todos os
filhos a dormir, não foi difícil descobrir para onde deveríamos ir.
Estavam sempre a chegar refugiados de várias zonas do Centro e do Sul.
Bastava seguir o maior fluxo do tráfego automóvel ou perguntar a
patrulhas da tropa que subiam e desciam as ruas principais. As pessoas
estavam a ser acolhidas nos barracões da Feira Internacional.
Assim que saímos do carro, fomos encaminhados para uma mesa onde
a comissão de recepção aos refugiados distribuía a cada pessoa um ovo
cozido e uma manta. Eu podia ver que a chegada a uma outra cidade, de
madrugada, fugindo da guerra, com a preocupação de guiar seis filhos
menores, predispunha a Beatriz para a luta. Dois acontecimentos
confrontaram-na com a realidade. O primeiro foi quando a comissão de
recepção forneceu comprimidos contra o paludismo para as crianças.
Beatriz rejeitou a oferta, porque os nossos filhos já estavam a fazer um
tratamento preventivo. O segundo acontecimento foi quando uma das
senhoras pegou numa manta barata e a pôs sobre os ombros de Ana.
Beatriz não suportou ver Ana com aquela manta sobre os ombros e
tirou-lha. Conheço-a: não queria aceitar o estado de necessidade e
dependência. Já não era dona do seu destino, decisora consciente e
autónoma do que lhe acontecia. Agora éramos refugiados e tratados
como tal.
– Mateus, sabe o que isto tem de bom? Nunca mais me vai chamar
para fazer aquelas malditas autópsias. Bendita descolonização!
Beatriz vigiava os filhos mais novos e dava alguma liberdade aos mais
velhos. Sílvia, João e Ana exploraram o espaço do colégio. Havia um
nunca acabar de escadas, pátios, portas, arcadas. Esta exploração punha
as freiras nervosas. Sílvia descobriu que elas escondiam comida numa
despensa e contou à mãe. Beatriz, a quem as freiras tinham dito que não
tinham reservas alimentares, deixou de lhes dar parte das compras que
fazia no mercado.
Os guerrilheiros perguntavam-me:
A maioria dos brancos considerava que aquela guerra não era sua, mas
os militantes da UNITA ainda os tentavam aliciar a fazerem-se membros
do partido. Ao mesmo tempo, lia-se em muitos muros e paredes, em
letras escritas a carvão: «Brancos de merda, vão-se embora.»
Podia ter-se um mau encontro ou muita sorte. Uma noite, não vendo
um guerrilheiro que me fez sinal para parar, quase o atropelei a alta
velocidade. Pelo espelho retrovisor, vi uma silhueta a fazer um gesto na
direcção do carro que se afastava e a agitar no ar uma metralhadora.
– É uma criança.
Numa terra sem lei, onde o movimento dominante podia matar quem
lhe apetecesse, muitos brancos tornaram-se mais papistas do que o Papa.
Em 1961, em reacção aos massacres no Norte, os particulares e as
empresas tinham-se armado contra os guerrilheiros. Agora, em resultado
de novas alianças, as mesmas empresas davam armas aos guerrilheiros
para que estes as protegessem. A UNITA e a FNLA queriam eleições
livres. O MPLA queria o Poder Popular e recusava uma burguesia negra
no lugar da branca. A UNITA atraía os brancos mais indiferenciados,
não os mais progressistas, que preferiam o MPLA. A alta burguesia e os
meios empresariais escolhiam a FNLA. Havia mercenários portugueses
nos três movimentos de independência, depois de terem combatido
contra os três ao mesmo tempo. Chama-se a isso versatilidade.
– Até há dois dias atrás, a última vez que soube dele, estava em
Luanda à espera de um avião – disse Barbosa. – Eu posso fazer no Brasil
o que fazia aqui, mas ele não pode levar na mala milhares de hectares de
terra.
– Não dizemos nós o mesmo dos africanos? – disse eu. – Que eles são
todos iguais? Nós também somos todos iguais: colonialistas, fascistas,
racistas. Actos individuais de decência não compensam tudo o que
aconteceu de mau.
– Você não tem um cartaz nas costas a dizer que é um tipo porreiro –
observei. – Então é um colonialista tão racista como os outros.
7
Barbosa contou-nos o que lhe sucedera antes de nos encontrar. Já
estava em Nova Lisboa antes da chegada dos primeiros refugiados.
Tinha um apartamento e ramos da sua indústria na cidade. Teresa, ao
fugir da Gabela com o padre Joaquim, facilitara-lhe as coisas. Barbosa
enviou Rebeca, a cunhada, para o Rio de Janeiro, onde instalaria os seus
negócios. Tratava das últimas diligências e já tinha bilhete de avião para
o Brasil quando fora preso pela UNITA.
Sem que nada o fizesse prever, Barbosa foi solto. Conduziram-no até à
rua. Ficou perplexo e parado no mesmo lugar. Não lhe deram qualquer
explicação. O portão da moradia fechou-se. Estava sozinho na rua. Era
de noite. A liberdade súbita era tão difícil de entender como o facto de
ter sido preso. O seu mundo, durante oito dias, tinha sido a prisão e a
tortura. Ficou uns segundos a olhar para o portão, como se esperasse vê-
lo abrir-se e os carcereiros aparecerem e levarem-no de novo para a sua
cela. Mas o portão continuava fechado.
Deu uns passos na direcção que lhe pareceu correcta para o centro da
cidade e então viu o seu carro à beira da estrada. Tinha sinais de ter sido
usado pelos guerrilheiros. Espreitou para dentro. Não estava trancado e
tinha a chave na ignição. Era difícil entender também isto, mas, sem
questionar nada, enfiou-se no carro e arrancou.
Chegou a ruas que lhe eram familiares. Não se via ninguém. À sua
frente apareceu qualquer coisa que barrava a estrada. Parou o carro e
saiu. À luz dos faróis reconheceu cadáveres amontoados no asfalto:
eram guerrilheiros, mortos num combate recente. Estava longe de casa,
continuar a pé pareceu-lhe uma má opção. Teve de remover trinta corpos
para abrir espaço para o carro passar. Havia feridos que gemiam no meio
dos mortos. Pensou: «Não posso socorrer ninguém, tenho de sair daqui.»
Quando ia voltar para o carro, ouviu uma voz vinda da escuridão:
– Não fale assim com eles, que eles podem fazer-lhe mal.
– Agora temos de aturar tudo? – Beatriz não se preocupava em falar
baixo. – Eles que voltem para a sanzala, não têm nada que conduzir
carros na cidade.
– Vou para o Cafunfo. Vou ter com o Alexandre. – O tom de Célia era
o de alguém que procurava ouvir a própria voz para se convencer da
consistência das suas afirmações.
– O Alexandre não está à tua espera. Está a ver se fica rico com os
diamantes. Tu já não podes andar por aí. Os caminhos estão cortados
pelos guerrilheiros. Andam a matar pessoas, a violar mulheres. Não há
tropas suficientes para nos defenderem. Não disseste que só se chega ao
Cafunfo por avião? Todos os aviões estão a ser usados para evacuar as
pessoas, para as pôr a salvo, não para te levar para um sítio perigoso e
sem lei.
– Não tens família? Julgas que a tua família é a FNLA? Eles estão em
guerra, tu não és guerrilheira, não tens qualquer utilidade para a FNLA.
A tua família, os teus amigos, estão todos a ir para Portugal. Se teimares
em ficar aqui, vais estar sozinha, entregue à bicharada. Sabe-se lá quanto
tempo vai durar a guerra.
– Sim, eu sei.
A única coisa que a Célia possuía era o diploma do liceu, que Beatriz
ainda tinha em seu poder. O resto ficara em casa da Célia, incluindo
duas arcas cheias com o enxoval que Beatriz lhe preparara ao longo dos
anos, com peças que bordara à mão e que a filha não chegara a usar.
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– Mais valia dar um tiro nos miolos. Acabava-se tudo de uma vez.
– Um tiro nos miolos? Sim, mas só se for nos miolos dos governantes.
– Esse também pode dizer que só leva a roupa que tem no corpo. Mas
devia acrescentar que a roupa está forrada de diamantes.
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Célia olhou para o banco que eu lhe apontava e pareceu só então ter
reparado nele. Tínhamos todos de lutar para conservar a sanidade
mental.
Beatriz vigiava o sono dos filhos mais novos. Tinha visto a fome na
cara de crianças obrigadas a esperar vários dias no aeroporto. Disse-me:
– Juro que não vou ver os meus filhos com cara de fome por terem de
dormir no aeroporto. – E acrescentou, levando as coisas como uma
afronta pessoal: – Querem obrigar-me a isso mas não vão conseguir.
14
No dia seguinte, bem cedo, foi anunciado que chegaria daí a um par de
horas um avião da TAP. Sempre que se fazia um anúncio desses era
grande a alegria dos que contavam embarcar.
Beatriz fez-me sinal para eu entrar com os quatro mais novos. Havia
mais algumas crianças de outras famílias que seguiam atrás, na fila.
Beatriz ia dizendo às hospedeiras, à medida que os nossos filhos
entravam no meio de outras crianças:
– Faça sair daí de dentro aquelas pessoas que entraram à nossa frente e
que não estavam inscritas na lista de espera. Faça-as levantar para
entrarmos nós. Eu não saio daqui enquanto não resolverem o problema.
A dois filhos que já tinham entrado e voltaram atrás para ver o que se
estava a passar, Beatriz disse:
Quem não iria dormir nem por um minuto era Beatriz. Sentado vários
lugares mais atrás, assisti às suas manobras. Levantou-se para ir ver
Miguel, isolado da família, e dar-lhe a certeza de que não estava
sozinho. Perto do seu lugar, viu uma mulher com ar arrogante a fumar
um cigarro com uma boquilha de marfim. Estava acompanhada pelo
filho adolescente. O cigarro caiu da boquilha e perdeu-se no chão.
Beatriz disse-lhe:
Ela olhou para o chão, mas sem se esforçar muito para encontrar o
cigarro. Beatriz insistiu:
– Não tem grande perigo fumar aqui, mas fez bem em avisar-me.
– Olá, mãe – disse eu, com a consciência aguda de que, dezanove anos
antes, quando eu partira para África, ela só me vira com um filho e
agora eu lhe apresentava mais seis.
Toda a gente viveu às custas das colónias, mas com a chegada dos
retornados propagou-se a ideia de que as colónias só davam prejuízo.
Sobre estes que retornavam deveria recair todo o ónus da derrocada. No
dia 24 de Abril, os da Metrópole aplaudiam o ditador; no dia 25 de Abril
acompanharam o golpe militar, a ver no que aquilo ia dar; no dia 26,
entusiasmados com o resultado, já se diziam progressistas e
anticolonialistas desde pequeninos. Os do Ultramar vinham numa altura
em que o País julgava ter-se transformado; poderiam servir de bode
expiatório para tudo o que correra mal ou viesse a correr mal.
– Isso mesmo.
– Não. Quem é?
– Ainda não sei bem. Vamos ver se está por aqui. Ele procura os
retornados, solidariza-se. Olhe, ali está ele.
A tropa dizia a quem não tinha casa para ocupar as casas vazias.
Famílias ciganas ocupavam andares de prédios e eram vistos burros a
espreitar das janelas. O comando militar que zelava pelo cumprimento
das políticas revolucionárias ordenou a um alferes que escoltasse, com
meia dúzia de soldados, as pessoas que iam ocupar uma casa vazia, mas
os donos da casa, tendo ido passar férias no Algarve, estavam de
regresso; o alferes entregou a casa aos legítimos donos, o que enfureceu
os seus superiores.
O próprio mar foi considerado fascista, porque fora o meio pelo qual
Portugal levara o colonialismo e a opressão a outros povos. Desde
Xerxes, o rei persa que mandou chicotear o mar porque este ousou
afundar-lhe as naus com que contava invadir a Grécia, que o mar não era
tão vilipendiado pelas leis humanas.
POLÍCIA: Lá, ouvi dizer: «Branco, volta para a tua terra.» Aqui ouço:
«Retornado, volta para a tua terra.» Fazem-nos sentir estrangeiros.
Vejam estas fotografias que tirei nas sanzalas. Eles adoravam-me. O
africano tem boa índole. Quem o virou contra nós foram os dirigentes
dos movimentos.
POLÍCIA: Somos parte dos danos secundários. Para nós não houve
democracia. Não era para haver democracia, com o 25 de Abril?
– Filho da puta!
– Quer vir comigo ao cais? Esta tarde vou lá buscar um carro, a única
coisa que consegui despachar de Angola.
Inácio olhou à sua volta, como se tivesse dúvidas sobre se o outro lhe
dirigira a pergunta, e respondeu:
– Isso, chame a Polícia! Julga que me mete medo? Não sabe resolver
os seus assuntos sozinho? Precisa de chamar quem o proteja?
Célia estava arrependida de ter vindo. Achava que deveria ter ficado
para partilhar o destino da sua terra, lutar pelo direito de ficar lá, com
todos os riscos que isso implicasse. Beatriz falava-lhe no perigo de
morte que seria ter ficado, Célia respondia que teria valido a pena
morrer por aquela terra porque tinha valido a pena viver nela. Desde o
primeiro dia que aqui chegou, falava em embarcar de novo para Angola.
Disse-nos que nunca mais iria ser a mesma pessoa. A energia, a
iniciativa, a liderança, tinham desaparecido. África é que lhe tinha dado
confiança em si própria e inspirado todas as suas qualidades. África
chamava-a para grandes coisas. Sentia que estava a tornar-se uma
sombra do que fora. Algo fora cortado. O que estava agora a viver, o que
ia viver dali em diante, era este arrastar-se, esta expectativa constante de
algo que não se realizaria nunca. Ia reagir aos encontrões, aos choques,
mas perdera a capacidade de decidir e escolher. O resto da sua vida
continuaria o movimento iniciado pela expulsão de África. O grande
encontrão fora esse, e só lhe restava deixar-se levar para onde esse
encontrão a empurrasse, sem nada fazer para o deter porque a única
coisa que teria valido a pena era ter prosseguido a trajectória que fora
interrompida.
– Esse senhor de quem está a falar não é aquele que vai ali?
– Alexandre!
Epílogo
Vertigem
Assim que abriu a porta, ela desatou a chorar. Apertou-o com força e
molhou-o com as suas lágrimas. Capelo reparou que eram lágrimas
rápidas, que desapareceram tão depressa como apareceram, e que ela se
apressou a secar com cuidado, com um lenço, para não estragar a
espessa camada de pó-de-arroz que lhe dava um ar de fantasma.
Recebeu-o vestida num robe cor-de-rosa fluorescente.
Pensando que o irmão lhe vinha pedir dinheiro, mal se sentaram ela
começou a desfiar o rol dos seus queixumes: as doenças, as despesas
com a saúde, a pensão de viuvez que não dava para nada, o que faria se
não fosse a compreensão do farmacêutico, do merceeiro, do carteiro.
Falou de requerimentos e pedidos de ajuda ao Estado, depois lhe
mostraria os papéis todos, guardados numa pasta. Passou para a
descrição pormenorizada das enfermidades, das dores, das dificuldades
em andar, da visão que se lhe turvava em certos momentos, do vazio
dentro da cabeça, dos quase desmaios no meio da rua que alarmavam os
vizinhos e os transeuntes.
Naufrágio
– E isto não vai ficar por aqui. Queremos dar uma tareia aos
comunistas.
O caixão que continha terra de Angola foi erguido no ar, acima das
cabeças, e só então é que Mateus o viu. Num impulso absurdo, vários
braços empurraram o caixão na direcção dos ex-combatentes, como para
lhes mostrar que tinham alguma culpa pelo morto de que se estava a
fazer o funeral simbólico. Pondo-se em bicos de pés, Mateus tornou a
ver o caixão, caravela periclitante movida por vagas e vagas de braços,
que alcançou o limite daquele mar e oscilou mais ainda, porque já não se
sabia que rumo lhe dar, e desapareceu da sua vista, náufrago.
Índice
CAPA
Ficha Técnica
Luanda e Uíge, 1961
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Moçâmedes, 1956-1961
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Uíge, 1961-1964
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Gabela, 1964-1974
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Gabela e Luanda, 1975
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Malange, 1975
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Nova Lisboa, 1975
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Lisboa, 1975
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3
4
5
6
7
8
Epílogo
Vertigem
Naufrágio