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Ficha Técnica

Título: O País Fantasma

Autor: Vasco Luís Curado

Edição: Maria do Rosário Pedreira

Capa: Neusa Dias

Imagem da capa: © Arquivo DN/Fotobanco

ISBN: 9789722058148

Publicações Dom Quixote uma editora do grupo Leya

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O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

Para os meus pais e os meus irmãos, que há vários anos

desenham o mapa de um país fantasma.

Este reino é uma grande loba que tudo devora.

FRANCISCO SOUZA COUTINHO,


GOVERNADOR DE ANGOLA (1771)

Luanda e Uíge, 1961


1

Feitos poucos quilómetros na estrada em direcção a Caxito, o alferes


Capelo viu pela primeira vez embondeiros e palmeiras, os extensos
capinzais, as lagoas pantanosas sobrevoadas por bandos de pássaros, as
lavras onde pequenos agricultores africanos cultivavam mandioca,
milho, ginguba, abóbora e feijão, e mais adiante um rio com águas
barrentas.

A chegada das primeiras tropas enviadas por Lisboa ainda iria


demorar semanas. A companhia saíra de Luanda e avançava para os
lugares massacrados, em coordenação com o resto de um batalhão
eventual.

Ao fim do dia, o comandante, capitão Tolentino, mandou que


parassem numa sanzala deserta, para aí dormirem. O espaço em volta
era amplo e aberto, permitia ter uma visão à distância. Acamparam em
círculo de modo a que as viaturas ficassem estacionadas em posição de
defesa. Dois aviões da Força Aérea sobrevoaram-nos até ser noite.

Caía um cacimbo pesado quando foi servido o jantar, a primeira e


última refeição quente do dia: grão com arroz e pedaços de chouriço. Os
soldados formaram uma fila diante das mesas articuladas em que o
soldado cozinheiro dispusera os recipientes de ferro. Alguém trouxe
uma garrafa de brandy, que regou algumas marmitas. A comida quente e
o brandy geraram conversas animadas.

Sentado sobre uma pedra, a comer da sua marmita, o alferes Capelo


sentiu uma vaga de odores fortes vinda do mato. Não saberia dizer se era
o resultado de mortes naturais ou violentas, mas passou a sentir uma
náusea quando olhava para essa vegetação densa que preferiria ter
conhecido noutras circunstâncias, sem ter de pensar em morte e
putrefacção. Perdeu o apetite e fechou a marmita.

Às dez da noite deitaram-se. Quem não tinha um cobertor recorria a


panos de tenda. Houve quem fizesse a cama debaixo dos veículos ou em
cima de esteiras. A metralhadora Breda, assente num tripé, foi instalada
atrás de um monte de pedregulhos e um furriel deitou-se ao seu lado.

Cansados dos muitos quilómetros percorridos em condições


desgastantes, todos cederam ao sono, confiando nas sentinelas que, a
intervalos regulares, acendiam os faróis dos carros e iluminavam uma
faixa de terreno em volta. Os nervos em alerta das sentinelas faziam
ecoar dentro dos cérebros insones os ruídos do mato. Um tropel de
passos no escuro é a corrida de um porco-bravo ou um grupo de
guerrilheiros em assalto? O estalar de galhos é provocado pelo passo
furtivo de um antílope ou pelo rastejar de alguém? Aquelas luzes que
oscilam nos arbustos são dos pirilampos ou das lanternas de mão dos
atacantes?

O acampamento inteiro acordou quando a noite foi estilhaçada pela


metralhadora Breda, que despejou os seus carregadores, juntando-se-lhe
os disparos das armas das sentinelas dispostas em círculo. Dir-se-ia um
fogo-de-artifício que se propagou por um circuito preparado. Todos
correram a pegar em armas. Falso alarme. A sentinela vira apenas um
gato selvagem que dera um pulo do topo de uma árvore para o chão.

Capelo deambulou pelo acampamento. Trocou palavras em voz baixa


com outros que também ficaram com o sono estragado. Viu sentinelas a
dormir: seriam os primeiros a sucumbir se o inimigo fizesse um ataque
bem organizado. A Lua não era um círculo nítido no céu, mas uma
mancha deformada pelo nevoeiro, um signo maldito que flutuava sobre
os homens.

As sentinelas tornaram a acender os faróis das viaturas, fazendo


aparecer uma muralha de luz à volta do acampamento, e o alferes olhou
para o fundo do terreno à sua frente, que ia dar à floresta. Que olhos os
espreitariam dali? A única coisa que as trevas enviavam para invadir a
luz eram besouros gigantescos, zunindo com as quatro asas abertas e
vindo embater contra os faróis.

A companhia chegou a Carmona, sede do Uíge, a quatrocentos


quilómetros de Luanda, a meio da manhã do dia seguinte. Centenas de
plantações do distrito encontravam-se destruídas. A capital do café,
cidade pioneira por onde se escoavam milhares de toneladas e milhões
de contos por ano, cheia de comércio e actividade, estava paralisada. A
guarnição militar era formada por uma companhia indígena de
caçadores, cento e vinte homens, trinta dos quais europeus. O
comandante da guarnição recebia inúmeros apelos angustiados por rádio
e não podia atender a todos. Os seus homens iam em missão a Quitexe e
a Zalala e a fazendas atacadas. Traziam carros cheios de sobreviventes e
cadáveres. Logo na primeira manhã, encontraram duas crianças brancas
a brincar junto a uma picada que não sabiam que a mãe jazia morta a
poucos metros.

Tinha havido uma tentativa de ataque à cidade, uma noite, mas a


população, sabendo do sucedido na vizinha povoação do Quitexe,
conseguira matar muitos atacantes e pôr os restantes em fuga. Se a sorte
tivesse sido outra, os enfermeiros do hospital já estavam preparados para
envenenar os doentes internados, evitando que fossem chacinados.

Os militares recém-chegados ficaram surpreendidos ao ver que cada


pessoa, habitante da cidade ou refugiado das fazendas e povoações
próximas, tinha a sua carabina, espingarda ou pistola. A maioria perdera
alguma coisa ou alguém. Andavam com a espingarda a tiracolo, comiam
com a arma pousada ao lado, dormiam com ela. Faziam marcas na
coronha da espingarda; uma por cada rebelde que abatiam. Davam à
cidade um ar de far west e já se usava o trocadilho: far-Uíge. Carmona
parecia uma praça de guerra, com barricadas, casas transformadas em
fortins, postos de observação, patrulhamento das ruas, sentinelas.
Continuavam a chegar refugiados de plantações que queriam integrar as
milícias e tinham ao seu dispor todos os transportes válidos. Grupos
civis, mal armados, entravam no mato até às zonas atingidas e
regressavam com notícias de destruições e mortes. Havia muita raiva e
exaltação. Calculava-se em oitenta mil o número de negros que
rodeavam Carmona, como se estes fossem todos assassinos em potência
e não houvesse, escondidos no mato, tantos deles com medo das
milícias. E com boas razões para isso, já que muitos dos milicianos
praticavam represálias brutais. Queriam saber quem tinham sido os
cabecilhas da rebelião, qual o grau de comprometimento dos sobas das
aldeias vizinhas, os contactos estabelecidos com os negros da própria
cidade, os planos para novos ataques.

Estes milicianos já tinham cometido actos violentos e injustos contra a


população negra e continuariam a fazê-lo, mas os militares, que
achavam que a força só devia ser empregue na proporção da ameaça e
de preferência só por eles, descobriram que era inútil exortar à calma
aqueles que tinham visto matar irmãos, filhos e pais, que haviam
presenciado degolações e esquartejamentos, que encaravam cada negro
como um terrorista.

Os habitantes de Carmona estavam indignados porque as armas


encomendadas em Luanda ainda não tinham chegado. Nas incursões
pelo mato, haviam prendido angolanos vindos do ex-Congo Belga.
Faziam rondas até de madrugada, com as armas nas mãos e os olhos
raiados de sangue pelas muitas vigílias.

Cinco fazendeiros que queriam regressar às suas propriedades


juntaram-se à companhia do capitão Tolentino. Conhecedores do
terreno, percebendo alguma coisa das línguas nativas porque ali viviam
há muitos anos ou ali tinham nascido, poderiam servir de guias fora dos
itinerários principais.

De Carmona ao Negage, os cinquenta e dois quilómetros fizeram-se


em boa estrada, entre morros e vales revestidos de vegetação densa. A
companhia passou por grandes sanzalas e na berma da estrada crianças
negras acenaram-lhes.

Negage não fora atacada. Os edifícios, na sua maioria vivendas com


jardins ou armazéns de empresas agrícolas, estavam fortificados.
Também aqui havia milícias que faziam incursões às sanzalas e se
queixavam da escassez de armas e munições. Os estabelecimentos
comerciais estavam abertos. No edifício da Administração havia três
prisioneiros.

Os sessenta quilómetros entre Negage e Quicangulo, onde não se viam


europeus desde o primeiro dia dos ataques, foram penosos. Começaram
a aparecer árvores tombadas a atravancar a estrada e era preciso removê-
las, uma a uma, para os veículos passarem. Todos sentiram que estavam
a penetrar nos domínios que o inimigo conquistara. Atrás da quietude da
paisagem, escondiam-se milhares de olhos que espiavam, milhares de
catanas e canhangulos e outras armas prontas.

Os homens da coluna farejavam a morte e eram farejados por ela.


Cada um empunhava uma pistola-metralhadora. Soldados de pé não
tiravam os olhos do capim alto que vinha até à berma da estrada e que,
nalguns pontos, formava um paredão espesso. O adversário podia estar
ali, a três metros deles, com a arma apontada, e não ser visto. Se se
metessem no capim atrás dele, poderiam ficar quase ao seu lado sem o
verem.

O primeiro jipe descarregou quatro rajadas de metralhadora Breda,


duas à esquerda e duas à direita. Do meio da coluna, o capitão Tolentino
gritou:

– O que é que se passa?

– É um aviso, meu capitão – respondeu um dos soldados.

– Só disparam à minha ordem, ouviram?

Nesta zona, as sanzalas estavam destruídas ou abandonadas, os


habitantes tinham fugido e ido internar-se no mato. Os militares
examinaram a desolação reinante: cubatas incendiadas, porcos mortos à
catanada no meio do terreiro, edifícios de tijolo e telhados de zinco, que
deviam ter pertencido a missões religiosas, queimados ou saqueados.
Viram um cão morto, amarrado pela trela a uma árvore. Fora esquecido,
na precipitação da fuga, e viam-se as marcas na corda que tentara roer.

Retomaram a estrada. Surgiram pontões obstruídos ou arrasados sobre


cursos de água. Perdia-se muito tempo a desimpedir o caminho e a
imobilidade a que eram obrigados dava uma sensação de vulnerabilidade
ainda maior. Os troncos de árvores que só poderiam ser abraçados por
vários homens eram desfeitos com explosivos.

Apareceram dois cães perdidos. Sabia-se que pessoas escondidas no


mato tinham matado os cães para não serem denunciadas pelos latidos;
teriam estes fugido dos próprios donos? Alguns soldados fizeram uma
batida, que nada encontrou. Os cães podiam ter feito, sozinhos, centenas
de quilómetros e vir de muito longe. Estes dois foram adoptados pelos
militares.

A companhia foi sobrevoada por dois aviões da Força Aérea. Os


soldados saudaram-nos e os aviões responderam balançando as asas. Na
sanzala seguinte, abandonada como as anteriores, o capitão decidiu que
parariam para almoçar. Tinham feito dezoito quilómetros em seis horas
e retirado mais de duzentas árvores que obstruíam a estrada. Os dois
aviões sobrevoaram-nos por mais algum tempo, mas não comunicaram
avistamentos de rebeldes.

Prosseguiram. Mais árvores a atravancar a estrada. Os olhos postos no


capim, que se movia com o vento e parecia que era por acção de alguém
escondido. À tarde aconteceu o que já se esperava: o céu despejou uma
quantidade de água que encharcou tudo em poucos minutos e inundou o
terreno com bátegas constantes, no meio do ribombar de trovões que
ecoavam prolongadamente. Os militares que não encontraram lugar
dentro dos veículos envolveram-se em capotes e pensaram que se iam
diluir na terra, no meio de tanta lama.

A manhã, como já vinha sendo habitual, trouxe um tempo


desanuviado, um ar luminoso, carregado do aroma das flores e das
plantas das fazendas. A música dos pássaros celebrava o recomeço do
dia e a fertilidade da terra.

Bem cedo retomaram a marcha. Os vinte quilómetros que faltavam até


Quicangulo foram vencidos em dez horas, debaixo de um sol que
parecia crestar a paisagem. Havia mais árvores derrubadas nestes
quilómetros finais do que em todos os anteriores. Ou era o cansaço que
o fazia crer?

A um quilómetro da povoação veio ao encontro da companhia uma


milícia de dez homens. Armados com caçadeiras, carabinas e velhos
revólveres, tinham a barba crescida e roupas sujas. O chefe avançou,
enquanto os outros mantinham uma postura de alerta. Era um homem
robusto de quase sessenta anos, com um chapéu de cowboy e aquilo que
pareciam garras de um leão ou de um grande felino penduradas ao
pescoço. Passou a caçadeira para a mão esquerda, libertando a direita
para apertar a mão ao capitão, e disse, numa voz cava e com um ar sério
que contrastavam com o alívio que queria expressar:

– Finalmente vos vemos. Chamo-me Serafim.


Apertou depois a mão ao alferes Capelo, que estava mesmo ao lado do
capitão e disfarçou a dor que aquele aperto fortíssimo provocou. O
capitão e o alferes ficaram uns segundos a olhar para este homem, que
tinha aspecto de ser uma criatura natural do mato.

– Que tal estão vocês aqui? – perguntou Tolentino.

– A povoação foi destruída. Só resta a casa onde nos refugiámos.


Mandámos as mulheres e as crianças para o Negage no primeiro dia,
quando as hienas já ululavam.

– Quantos são vocês?

– Quarenta. No primeiro dia entrincheirámo-nos numa casa e pedimos


a Luanda um bombardeamento aéreo. O caralho do emissor avaria como
o caralho, mas de vez em quando lá conseguimos falar e ser ouvidos.
Eram milhares à volta da casa. Os filhos da puta morriam como tordos
mas vinham outros para o lugar deles. Foi preciso dois aviões, em dois
dias seguidos, descarregarem metralha e bombas para eles se irem
esconder no mato. Mas estão aí. Quicangulo está sitiada.

– Aventuraram-se a vir até aqui? Estamos a um quilómetro da


povoação.

– Precisamos de sair para ir à água. O poço fica atrás daquelas


mulembas.

– Arriscam a vida para virem buscar água? – surpreendeu-se o capitão.

– Tem de ser. Metade vigia e a outra metade carrega os baldes. Não


temos água canalizada porque os cabrões arrancaram as tubagens para
fazerem canhangulos.

– E o que é que comem?

– Esgotámos as reservas que tínhamos nos primeiros dias e a partir daí


só temos o que a avioneta do aeroclube larga aqui em cima ou o que
caçamos.

– Têm conseguido caçar?

– Sou caçador profissional há mais de trinta anos – disse Serafim; um


esgar de ódio desfigurou-lhe por um segundo o rosto barbudo. – Mas
costumava ser de caça grossa. Agora caço galinhas-do-mato. E pretos,
claro.

O capitão ficou calado, sem saber o que dizer.

– E vocês? – perguntou Serafim. – O que é que já encontraram?

– Árvores na estrada, pontes destruídas, sanzalas desertas…

– Podem ter a certeza de que eles vos seguem e espiam.

– Tivemos essa impressão.

– Vieram buscar-nos? – perguntou o chefe da milícia.

– Temos de seguir para norte, em articulação com o batalhão. Mas


vocês podem vir connosco, se quiserem.

– E os terroristas? Vão deixá-los ficar por aí?

– A nossa prioridade é evacuar civis.


– Vamos continuar aqui encaralhados? – perguntou Serafim, e os seus
homens, um pouco mais atrás, pareceram expectantes da resposta do
capitão.

– Ou vêm connosco, o que até é bom porque nos reforçam, ou ficam


aqui com alguns homens meus. Não posso disponibilizar mais do que
cinco ou seis.

– E quando é que essas matas são limpas pelo Exército?

– Só quando chegarem tropas de Lisboa.

– E quando é que vai ser?

– Ainda nem sequer partiram. Podem demorar semanas a chegar aqui.

Serafim fez um novo esgar contrariado, cuspiu para o chão e disse:

– Quando é que esta terra, quando é que todos nós, vamos perceber de
uma vez por todas que não podemos contar com Portugal para nada?
Cuspo nos gajos de Lisboa. Cuspo no Terreiro do Paço. Que um
terramoto dê cabo daquilo tudo outra vez.

Virou costas ao capitão e afastou-se, seguido pelos seus homens. O


capitão hesitou, mas nesse momento Serafim, sem se voltar para ele,
disse:

– Bem-vindos ao inferno, meus senhores.

5
Os edifícios da povoação tinham os vidros partidos, telhas arrancadas,
portas escavacadas, vestígios de incêndio. No meio dos escombros e do
entulho avançaram os dez homens da milícia, os cento e vinte da
companhia e os cinco fazendeiros que se tinham juntado a eles em
Carmona. Serafim, ao lado do capitão e do alferes Capelo, apontou para
um ponto entre as árvores que envolviam a povoação:

– Ali enterrámos mais de duzentos. – Indicou um chão de areia solta


do outro lado das árvores, a vala comum mal disfarçada. Dados mais
cinco passos, apontou outra direcção: – E ali enterrámos os nossos cinco
que tombaram.

O capitão e o alferes viram cruzes em cima de cinco sepulturas rasas.

Os militares espreitaram a casa fortificada. Estavam ali os


sobreviventes de Quicangulo. A porta estava reforçada por tábuas
pregadas. As janelas, entaipadas. Havia andaimes a toda a volta das
paredes para se ter acesso a pontos de vigia mais elevados.

A um canto havia um monte de canhangulos e catanas retirados aos


atacantes mortos. Capelo nunca tinha visto um canhangulo. Com cabo
de madeira e um cano de ferro comprido, carregava-se pela boca com
cápsulas fulminantes, chumbo médio ou grosso, pedaços de pregos e de
ferragens. O tiro alcançava quarenta metros, com fraca penetração; à
queima-roupa ou até vinte metros podia provocar ferimentos
dilacerantes. Com ele, os nativos conseguiam caçar elefantes. Já se sabia
que a venda de tubos de aço para canalizações domésticas de água seria
controlada: adaptados ao fabrico de canhangulos, podiam receber um
cartucho de caça de calibre de 12 mm. Um tubo de bicicleta também
servia. Fósforos de cera funcionavam como fulminantes. Capelo
apreciou algumas catanas, de lâmina curva afiada dos dois lados. O
inimigo tinha começado com armas toscas, mas já roubara armas
automáticas e munições em fazendas e postos administrativos.

Os homens de Quicangulo, entre pragas e calão grosseiro, crivaram os


dois oficiais com perguntas. Deram conselhos sobre como andar no
mato. Tinham no rosto as marcas das insónias. Comiam mal havia mais
de uma semana. A água que bebiam, recolhida do poço, era conseguida
à custa de perigos redobrados. Tinham nas mãos as feridas das culatras
das armas e dos punhos das catanas, porque estas também tinham sido
adoptadas. As obsoletas Kropatschek encravavam ao primeiro tiro, os
revólveres e os pistolões já só serviam para peças de museu, as armas
dos caçadores eram em número insuficiente e inapropriadas para uma
defesa perante milhares de inimigos furiosos e eufóricos. Tiveram de
improvisar para quando as munições estivessem esgotadas: encabaram
catanas e facas de cozinha na ponta de paus, afiaram espetos, reforçaram
mocas com pregos, muniram-se de foices e cabos de picareta.

Pouco numerosos, isolados, cercados, mal armados, tendo visto o que


acontecera a amigos, familiares, vizinhos, sabendo o que se passara nas
povoações onde os habitantes tinham sido chacinados, entrincheirados
numa casa onde resistiram a dois assaltos de milhares de rebeldes,
obrigados a vigílias constantes, os nervos tensos e crispados, sem
saberem quando e como tudo iria acabar – não aceitavam censuras pelas
represálias que já tinham exercido. Esta era uma luta pela sobrevivência.

O alerta, em Quicangulo, fora recebido pelo radiotransmissor do posto


administrativo logo na manhã do dia 15 de Março, o primeiro dia da
rebelião. Chegavam comunicações via rádio dando conta de grupos de
africanos que atacavam fazendas e povoações isoladas. Perto de Quitexe
ou Carmona, homens com catanas escondidas nas roupas tinham entrado
nas lojas, de manhã cedo, pedindo um artigo que obrigava o comerciante
a virar-lhes as costas e golpeando-o até à morte. Pela porta que ligava à
parte familiar da casa, chegavam à mulher e aos filhos dos comerciantes.
Nas fazendas, os trabalhadores presentes à formatura da manhã traziam
o seu principal instrumento de trabalho, a catana. A um sinal
combinado, alguns destacaram-se do grupo e mataram em poucos
segundos os capatazes. Juntando-se a outros que emergiam das matas,
gritando palavras de ordem como «UPA, UPA! Mata, mata!», caíram
sobre os trabalhadores fiéis aos patrões.

Nos dias 15 e 16, vagas de atacantes repetiram o procedimento por


todo o distrito do Uíge. Na fronteira norte, de Nóqui até à margem do rio
Cuango, todos os postos sucumbiam à avalanche dos ataques ou eram
abandonados sob ameaça. Sem armas, sem munições, sem possibilidade
de auxílio imediato, foi nesses postos fronteiriços que houve mais
mortos entre os funcionários administrativos, soldados de um batalhão
de caçadores, fazendeiros, capatazes, missionários, polícias,
comerciantes. Pelas matas, alguns brancos ainda fugiam, desvairados e
sem rumo certo. As regiões sublevadas eram enormes e com acessos
difíceis.

O chefe de posto reuniu todos os habitantes e chamou os que estavam


nas fazendas. Entre estes últimos apareceu Serafim, o caçador, armado
até aos dentes. O chefe informou-os da onda sangrenta que iria chegar a
Quicangulo. Uma mensagem via rádio, de uma avioneta civil, deu-lhes a
saber que fora avistada uma concentração de rebeldes a caminho da
povoação. Juntaram todas as mulheres e crianças em duas carrinhas e
enviaram-nas para Negage pela única estrada existente e que já não se
podia considerar segura. Os que ficaram transformaram a casa mais
sólida da povoação num fortim, com o máximo de alimentos e reservas
de água que puderam reunir. O chefe de posto e nove homens, entre os
quais Serafim, fizeram uma incursão no mato para avaliarem a ameaça.
Separaram-se em dois grupos. Os atacantes caíram em cima do grupo do
chefe de posto e chacinaram os cinco, ao mesmo tempo que o grupo de
Serafim recuava perante uma avalanche de homens armados de
canhangulos e catanas e em grande gritaria. Não foram a tempo de se
juntarem aos outros trinta e cinco do fortim, já cercado. Numa
extremidade da povoação, protegeram-se atrás do muro de um quintal,
reforçado com sacos de ração animal. Ouviam o som de apitos partindo
de vários pontos do capim, que deviam ser sinais emitidos pelos líderes
rebeldes. Vinham aos gritos, num clamor compassado e repetitivo:
«UPA, UPA! Mata, mata!» Os homens do círculo mais próximo de
Serafim tinham experiência de caça de palancas, pacaças, elefantes. No
seu ponto de defesa improvisado, receberam o impacto de centenas de
atacantes. Dizimaram as primeiras filas e viram as outras recuar. Era
impossível chegar à casa fortificada. Mantiveram-se atrás do muro do
quintal. Não iam poder resistir a muitas vagas como aquela. Ouviam os
gritos dos que cercavam a casa. A concentração maior fazia-se aí.
Passadas horas, um caça da Força Aérea metralhou os sitiantes. Serafim
e os quatro companheiros aproveitaram o momento em que o avião, já
sem munições, se ia embora e, passando por cima de centenas de
cadáveres, foram bater à porta da casa. Quando conseguiram entrar e a
porta se fechou atrás deles, outras centenas de atacantes, que tinham
recuado para o mato para fugir ao fogo do avião, já vinham correndo a
apertar o cerco, indiferentes aos cadáveres.
Na casa fortificada já os julgavam mortos. Contaram o fim do chefe de
posto e dos outros que o seguiam. Caiu a noite. Para pouparem balas,
disparavam pela certa. Ouviam os gritos de agonia dos que estavam
caídos no chão. Mais distantes, ouviam os sitiantes gritar: «UPA, UPA!
O branco vai morrer, vai morrer, vai morrer…» Deviam ser cerca de mil
os que mantinham o cerco. Era apavorante quando batiam com os pés no
chão e lançavam a gritaria a uma só voz.

No dia seguinte apareceu outro avião militar que, como o anterior,


gastou todas as munições e provocou grande mortandade. Com este
segundo golpe, os rebeldes recuaram para as florestas e não se deixaram
ver. Sabendo que Quicangulo estava isolada, com a estrada de acesso
cortada por centenas de árvores, sem pista de aterragem de aviões,
apostavam em vergar os sitiados, quase sem alimentos nem munições,
pela fome. À noite, estes ouviam batuques e cânticos, viam o clarão das
fogueiras do acampamento dos rebeldes.

Quando saíram, viram mais de duzentos negros mortos que juncavam


as ruas da povoação. Recolheram centena e meia de armas de carregar
pela boca, frascos com pólvora e pedaços de ferro que serviam de
munição. Os edifícios tinham sido destruídos e saqueados. Viram cinco
corpos sem cabeça. Em cima de uma tábua, estavam alinhadas quatro
cabeças e um crânio descarnado. Identificaram as cabeças. O crânio
limpo e branco só podia ser do chefe de posto. Um trabalho de limpeza
digno de um laboratório de Anatomia.

Deram uma sepultura individual aos únicos mortos que lamentavam,


que eram estes cinco. Quanto aos corpos dos rebeldes, atiraram-nos para
uma vala comum. Entre estes havia alguns moribundos, que foram
enterrados vivos.

Desde esse dia, continuaram a viver no fortim, o único edifício que


dava garantias de resistir. Iam para o mato, em pequenos grupos que se
revezavam para caçar e ir buscar a água. Os mais sensatos procuravam
contactar as populações nativas para restabelecer a confiança e tornar a
sua própria posição mais vantajosa. Já tinham sido sobrevoados duas
vezes por uma avioneta que largara víveres e munições.

Os militares eram aguardados para, com forças bem apetrechadas, se


dar o golpe definitivo aos rebeldes – a desejada grande caça ao negro.
Mas foi com um sentimento de decepção que os homens de Quicangulo
perceberam que a companhia do capitão Tolentino teria de prosseguir.

Capelo viu três militares que se entretinham a fazer tiro ao alvo em


latas de conservas vazias, alinhadas sobre um tronco tombado.
Aproximou-se e ficou a ver o divertimento de feira.

Um dos habitantes de Quicangulo perguntou a Capelo se confiavam


nos negros que integravam a companhia.

– Têm a certeza de que não vos cortam o pescoço quando vão dormir?

– Garanto-lhe que são de confiança – disse Capelo. – Estão integrados


no Exército e enquadrados por nós.

– Integrados, pois… – murmurou o outro. – Nós achávamos que os


nossos pretos estavam bem integrados e veja o que aconteceu.
– Também foram assassinados milhares de negros – disse Capelo. –
Os bailundos, por exemplo, que trabalhavam nas plantações.

– É tudo a mesma porcaria, alferes – disse o homem, com uma careta.


– Tudo igual… Está aí um que fugiu da fazenda e viu criados com
muitos anos de casa assassinarem os patrões e os filhos. Criados que se
dizia que eram de confiança, que tinham andado com os filhos do patrão
ao colo. Antes dos ataques, muitos negros desapareceram das fazendas
onde trabalhavam. Foram juntar-se aos rebeldes, de certeza. Houve um
pico de vendas de catanas, que não levantou suspeitas. Vi criados a afiá-
las. Disseram que eram para o caso de o patrão mandar abrir a mata ou
capinar. Veja aonde levou a filha da puta da confiança.

Capelo sentiu-se no dever de replicar:

– Em Carmona conheci fazendeiros que foram avisados pelos criados


e tiveram tempo de fugir. E houve patrões que não acreditaram nos
criados e os repreenderam por estarem a alarmá-los sem razão.

O outro ficou a olhar para ele com olhos febris, de insónia e pesadelo.
Mas venceu a convicção que já tinha formado: todos os pretos são iguais
e nenhum é de confiança. E, para confirmar esta posição de princípio,
lançou um ruidoso escarro para o chão, que caiu perto das próprias
botas.

Serafim, o caçador profissional, forneceu algumas informações ao


comandante da companhia:

– Convém que tenha uma ideia daquilo com que nós nos confrontamos
aqui. Os feiticeiros têm um papel importante. Dão aos homens o
milongo da coragem.

– O que é isso? – perguntou o capitão Tolentino. – Desculpe-me a


ignorância, mas eu, até há pouco tempo, de África só conhecia o asfalto
de Luanda.

– Milongo é feitiço. Os feiticeiros deram aos homens uma bebida


drogada, à base de liamba, para só verem sangue e vermelho à frente
deles. Disseram-lhes que o deus dos brancos tinha morrido e por isso os
brancos já não tinham força e iam fugir no mar. Bastaria matar alguns e
os outros todos fugiriam, como no Congo Belga. O feitiço fazia com que
a vida não saísse pelos buracos das balas, se eles fossem baleados. E
convenceram-nos de que as nossas balas são maza, que quer dizer água.
Por isso é que eles atacam aos gritos de «Maza! Maza!» Pensam que as
armas dos brancos só disparam água. Mas acho que já lhes mostrámos
que não estamos no Carnaval.

– Como é que sabe isso tudo?

– Temos as nossas fontes… – disse Serafim. – Os feiticeiros sabem


persuadir os seus recrutas. Disparam contra si próprios espingardas de
pressão que só fazem barulho e dizem que estão imunes às balas e que
os que caírem mortos ressuscitarão ao terceiro dia. Os espíritos voltam
para os corpos, se os corpos estiverem inteiros. Por isso é que retalham
os corpos dos brancos, cortam cabeças, braços, pernas, para os espíritos
não voltarem.

– A propósito… – disse o capitão. – Quais são as vossas fontes?

– Os tipos que prendemos. Os feiticeiros disseram-lhes para cortarem


as cabeças dos brancos mortos para não ressuscitarem. Tudo para que
fizessem as coisas mais horrendas. Achavam que quem sobrevivesse
fugiria de tanto horror. Agora veja o nosso lado… Eles continuam a
atacar por cima dos que caem mortos porque acham que vão ressuscitar.
E são vagas atrás de vagas. E nós sem munições. Se eles soubessem que
morrem mesmo, recuavam logo aos primeiros tiros…

– Espere aí – interrompeu o capitão. – Disse que têm aí prisioneiros?


Não me mostrou os prisioneiros.

– Eu não disse que temos prisioneiros.

– Disse que…

– Capitão, eu disse que fizemos prisioneiros. Não disse que os temos.

– Mostre-me os prisioneiros – disse o capitão, empertigando-se. – É


preciso mandá-los para Luanda, para a PIDE lhes sacar informações.

– Como eu disse, capitão, não temos prisioneiros – repetiu Serafim,


parecendo divertir-se com a confusão do capitão. – Os nossos
prisioneiros estão ali, ao pé dos outros todos – e apontou para a vala
comum onde tinham enterrado os rebeldes mortos.

O capitão perscrutou o rosto inflexível de Serafim.

– Agradeço as informações que me deu – disse –, mas devia ter


mantido os prisioneiros vivos. Sabe-se lá o que mais se poderia obter
deles.

– Não se ia obter mais coisa nenhuma. A PIDE não tem métodos


melhores do que os nossos para os pôr a falar. E como é que acha que
nós íamos conviver com prisioneiros tão perto de nós, sabendo o que
eles fizeram às pessoas que nos eram queridas? Há aqui gente que, antes
de conseguir fugir, viu irmãos e filhos e pais serem esquartejados,
violados e estripados. Não são humanos, são bestas indignas de viver.
Pilham, estupram, entregam-se aos instintos desenfreados, ajudados pela
droga. Só têm medo dos feiticeiros. Guardar prisioneiros? Aqui? Nestas
condições? Nem pensar.

A meio da tarde, uma avioneta de um aeroclube do Negage veio largar


alguns pacotes com comida, medicamentos e munições. Fez pontaria
para a copa das árvores mais próximas, para amortecer a queda, e, dando
meia volta, recebendo lá de baixo os acenos dos militares e dos civis,
foi-se embora. Um dos homens disse:

– Uma vez, os pacotes caíram longe demais para os recuperarmos.


Depois, espatifou-se muita coisa no chão. Agora caiu nas árvores, pode
ser que esteja tudo intacto.

A companhia tinha de conservar forças suficientes para, mais adiante,


se desdobrar em destacamentos mais pequenos. Tolentino, perante a
decisão dos sitiados de continuarem ali, nomeou um cabo e cinco
soldados para se juntarem a eles.

Quando as viaturas estavam a arrancar, Serafim disse ao capitão:

– Não conhece África, pois não? Lamento informá-lo de que as coisas


vão piorar. Ainda estamos na estação das chuvas. Há caminhos
intransitáveis. Quando as forças enviadas por Lisboa chegarem, vão
ficar atascadas na lama, que é para aprenderem a fazer as coisas como
deve ser. O pior é que quem se vai lixar somos nós.

Alguns soldados deram por falta dos dois cães adoptados na estrada
para Quicangulo. Assobiaram. Ouviram-se uns latidos. Encontraram os
cães a disputar um braço humano que emergia da vala comum dos
rebeldes, que os animais tinham esgaravatado.

Serafim, que vinha logo atrás, disse:

– É um dos enterrados que faz adeus à companhia que está de partida.

Houve gargalhadas grotescas. Como despedida de Quicangulo e dos


seus homens, não podia haver sinal mais expressivo, tanto da parte dos
que estavam debaixo da terra como dos que ainda estavam por cima
dela.

A partir de Quicangulo, tornaram-se mais frequentes os sinais das


depredações, a desolação, a par de um sentimento crescente de ameaça.
Quanto mais longe de Luanda, mais perto do inimigo, esse inimigo
móvel, escondido, que, desde que tinham deixado Negage, se podia
dizer que estava por toda a parte.

Os militares ora viam sucederem-se serranias e declives escarpados,


onde espreitavam grutas com estalactites, ora afundavam as botas num
labirinto de rios e ribeiros encimados por túneis e galerias de selva
espessa. E seria assim até onde avançassem, até à fronteira norte, por
veredas só conhecidas dos nativos. A terra vermelha estava em muitos
pontos enlameada, levantava-se um pé enquanto o outro se afundava na
papa.

Perto da estrada que continuava, e que ia ter a Damba, a Maquela do


Zombo e à fronteira, a companhia encontrou, na fazenda Felicidade, os
primeiros mortos. Nas fazendas anteriores, os donos e os trabalhadores
tinham fugido a tempo. Logo à entrada, o portão estava encimado por
cabeças de bailundos espetadas em varas. No terreiro de secagem do
café, viram porcos a foçar em cadáveres. Afugentaram os animais com
rajadas de metralhadora. Dava para reconhecer, apesar de desfigurados,
aqueles que deviam ser o pai, a mãe, os filhos. Mais afastados, os
criados. Adultos e crianças tinham a carne retalhada e os ossos dos
braços e das pernas partidos por golpes de catanas. Dentro de casa, o que
não fora levado estava destruído: portas arrombadas, móveis partidos,
vinho derramado, papéis e documentos espalhados no chão. Havia mais
corpos, sangue nas paredes. Mulheres com os seios cortados, meninas de
dez anos despidas, violadas e esventradas, bebés esquartejados dentro de
alcofas; a um deles faltavam os pés e as mãos, talvez levados como
troféus.

Tudo vandalizado nos armazéns, nas cantinas, nos acampamentos dos


empregados. Uma bomba de gasolina destruída. Duas carrinhas
amolgadas e sujas de sangue. Três cabras vagueavam por ali. Havia
campos de café já invadidos por capim.

Os militares enterraram os corpos em covas na orla do terreiro da


fazenda, assinaladas com legendas explicativas. Fotografaram os
cadáveres na posição encontrada e também as sepulturas.

O capitão Tolentino decidiu estabelecer o comando da companhia na


fazenda Felicidade, de onde destacaria pelotões ao encontro de postos
administrativos e outras fazendas. Nos dias seguintes, prenderam muitos
africanos, apontados como terroristas pelos fazendeiros. Bastava a
desconfiança, não havia inquéritos ou averiguações. Amontoavam-nos
numa cadeia improvisada num dos edifícios da fazenda Felicidade. Em
pouco tempo, a cadeia não tinha mais espaço e o capitão determinou
que, regularmente, camiões de caixa aberta, com alguns prisioneiros de
mãos amarradas atrás das costas, escoltados por soldados, partissem dos
edifícios centrais da fazenda e se dirigissem para uma plantação a dois
quilómetros dali, onde os prisioneiros eram alinhados junto de valas já
abertas e abatidos com rajadas de metralhadora. Dois deles tinham a
tarefa de amontoar os cadáveres dentro das valas e, no fim, também
esses eram abatidos e empurrados lá para dentro. Criados fiéis das
plantações eram encarregados de tapar tudo com areia. Havia soldados
que riam enquanto assistiam e tiravam fotografias para os seus álbuns
pessoais. Alguns chegaram a pôr meio corpo dentro da vala e, de arma
aperrada, fizeram-se fotografar nessa posição, junto dos mortos. Capelo
ouviu falar de prisioneiros que estavam vivos quando os cobriam com
pazadas de terra.

Nada como aprender com a experiência. O capitão determinou que,


nos fuzilamentos seguintes, os corpos não deveriam ser atirados para a
vala por dois prisioneiros que depois seriam abatidos, porque isso era
cruel, nem por criados fiéis, porque poderia desmoralizá-los; seria usada
uma retroescavadora que empurrasse os corpos. Não somos torturadores
nem selvagens, queria dizer o capitão. Há que tomar medidas
administrativas que regulem estas coisas e as máquinas existem para nos
ajudar.
8

O capitão Tolentino dizia que gostava de cumprir as regras. Quando


recebia ordens para improvisar soluções radicais, ficava tenso. Bebia
para ter coragem ou não pensar muito. Era um homem forte, tinha umas
mãos enormes e desajeitadas e uma barba ruiva. Quando bebia ficava
com a respiração pesada e um olhar apatetado. Capelo achava sinistra
esta combinação: uma expressão apatetada e uma determinação
inflexível para fazer aquilo que tinha de ser feito.

Endureceram os procedimentos. Uma sanzala inteira foi trazida à


presença do capitão Tolentino. Dizia-se que acolhia guerrilheiros.
Vieram muitas crianças, mulheres e velhos. O capitão bebeu bastante
antes de ir ter com eles. Apareceu a cambalear, com um sorriso ébrio, as
mãos gigantescas desenhando gestos incoerentes no ar. Disse:

– Encostem-se àquela parede. Vamos tirar uma fotografia.

As pessoas da sanzala movimentaram-se e alinharam contra a parede.

– É um momento importante – disse o capitão Tolentino, afastando as


duas pernas para se equilibrar. – Vem aí o Rei do Congo. Ele vai dar-vos
a liberdade. Vamos fotografar-vos. O Rei do Congo vem aí. Vai
proclamar a independência. Está quase a chegar. Mas, primeiro, a
fotografia. Vejo aí muitas Bíblias. Abram as Bíblias e entoem um
cântico a Deus e ao vosso Rei. Vamos, abram as Bíblias, cantem um
hino.

Os mais velhos abriram as Bíblias e começaram a cantar um salmo.


– Ei! – gritou o capitão. – Vocês aí, comecem a tocar para a dança e
batam palmas. E vocês dancem, mas sem desmanchar o grupo. Vocês
tocam, vocês aí cantam e dançam, os outros rezam. Agora de olhos
fechados. Todos a cantar e a dançar de olhos fechados. Deus gosta de
vos ver e ouvir. É para a fotografia. Quando ouvirem um barulho, não
liguem, não abram os olhos, é o barulho da máquina fotográfica. Vamos,
todos fecham os olhos.

O capitão cambaleava, incentivava os que liam a Bíblia, os que


cantavam, os que dançavam. Uma Berliet aproximou-se, com uma
metralhadora em cima.

– Não parem a dança, nem as canções. Bíblias abertas. Vamos tirar a


fotografia. O Rei do Congo vem aí e vai dar-vos a liberdade.

A um sinal seu, a metralhadora começou a fuzilaria, rodando de uma


ponta à outra do grupo alinhado contra a parede. As primeiras filas
caíram, as restantes abriram os olhos. Havia gritos, gemidos, pragas.

O capitão Tolentino tinha a barba vermelha como fogo, a cara rubra


por causa do álcool e do calor da acção, estava embalado pelo seu
próprio estratagema e dirigia-se às filas que ainda estavam de pé, como
se entre ele e elas não estivessem dezenas de mortos:

– Cantem, dancem. Vocês aí, rezem, entoem um hino de louvor,


Bíblias abertas, o Rei do Congo vem aí para a independência. Isto é para
a fotografia.

A metralhadora despejou nova sequência, as rajadas passaram por


cima da cabeça do capitão, cujos cabelos vermelhos e revoltos, faces
vermelhas e olhos afogueados lhe davam um ar de saltimbanco burlesco.
Os últimos a cair já sabiam que não vinha aí o Rei do Congo e que a
liberdade era a morte. O Reino será nos céus.

A companhia sofreu as primeiras baixas. O pelotão do alferes Ribeiro


percorria uma picada em direcção a mais uma fazenda que se sabia ter
sido atacada. Os trinta homens e os quatro veículos, esbarrando com
abatises que tinham de remover, pareciam uma lagarta lenta, um alvo
fácil. Partiram vários tiros de canhangulos, vindos do capim, a três
metros do alvo. Viram a chama das explosões na boca das armas. Os que
não estavam no interior dos veículos, blindados por caixas com pedras,
atiraram-se para o chão. Gritou-se ao longo da coluna e contaram-se três
mortos e dois feridos. Alguns soldados procuraram no mato, mas não
apanharam ninguém: no meio do capim denso era-se engolido e já não
se via nada a meio metro de distância. Deviam ter sido cinco ou seis
atiradores.

Regressaram à fazenda Felicidade e alguns estavam a chorar como


crianças. Capelo ouviu dizer que, se pudessem, rompiam aquelas matas
atrás dos guerrilheiros. A imagem que lhe ocorria era a de demónios
com asas e sede de morte. Pensou em vampiros. Na guerra, aquele que
vê verter o sangue dos que lhe são próximos deseja tomar o gosto ao
sangue dos inimigos. Assim se faz o contágio da sede sanguinária.

Os mortos reclamavam que os vingassem. Este pelotão, o primeiro a


apresentar baixas, tornou-se o mais activo. Cessaram os choros.
Sobreveio a ira e o ódio. Agora estavam em polvorosa para pôr as mãos
em alguém em quem pudessem descarregar a raiva. O capitão Tolentino
reconheceu-lhes esse direito, deu-lhes primazia para acorrerem aos
lugares mais propícios a interceptar rebeldes, segundo as informações
recolhidas.

Ocorreu o desejado encontro. Avistaram silhuetas no meio da


vegetação e fizeram um cerco. Capturaram quatro indivíduos
desarmados. Vasculhando a área, encontraram canhangulos e catanas
que eles deviam ter tentado esconder antes de se renderem. Bem podiam
ter sido estes os atiradores.

Os prisioneiros recusaram-se a falar, por muito que lhes batessem.

– Alferes – disse um dos soldados –, vamos cortar-lhes os tomates.

A sugestão causou entusiasmo, mas o alferes Ribeiro, comandante do


pelotão, sacerdote da vingança, disse aos seus acólitos:

– Calma, rapaziada. Eles podem desmaiar. Quero-os inteiros.

Ordenou aos quatro prisioneiros que cavassem um buraco, o que eles


fizeram com rapidez e resignação, como cumprindo um destino.

– Reguem-nos com gasolina – disse o alferes Ribeiro.

Trouxeram bidões de gasolina de um dos veículos e despejaram-nos


em cima dos quatro que estavam dentro do buraco até à cintura. O
alferes aproximou-se. Tirou um isqueiro do bolso. Os soldados
começaram a rir, antecipando o que ia acontecer. O alferes dobrou um
papel em forma de canudo e queimou a ponta. Atirou o papel a arder
para dentro do buraco e o fogo agigantou-se logo envolvendo os quatro
homens, cujos gritos foram abafados pelo ulular de vitória dos soldados.
Um dos prisioneiros tentou sair do buraco mas levou uma coronhada que
o fez cair para trás.

Foi divertido, mas soube a pouco. Acabou por ser rápido demais. Da
próxima vez poderiam variar. O comandante de companhia deu-lhes a
oportunidade de o demonstrarem. Informado por fazendeiros da região
de que uma determinada sanzala acolhia rebeldes, enviou para lá o
pelotão da vingança para fazer prisioneiros.

Cercada a sanzala, o alferes Ribeiro reuniu toda a gente no centro.


Eram quarenta e tal pessoas. Sabia que a sanzala tinha quase cem;
metade devia ter-se escondido no mato. Quinze homens, novos e velhos,
foram separados e obrigados a sentarem-se no chão. A eles eram
dirigidas as perguntas: onde tinham as armas, quem eram os chefes da
guerrilha e onde estavam acampados. Os homens diziam que não sabiam
nada, eram gente de paz.

O medo exalava dos corpos dos prisioneiros, as mulheres gritavam,


crianças choravam, um pássaro emitiu um grito agudo, insectos voavam
a zunir junto aos ouvidos dos soldados, a quem tudo excitava. Ouviu-se
um tiro e um prisioneiro caiu com um rombo na cabeça. O alferes
Ribeiro virou-se para o soldado que disparara:

– Não era para começar.

– Disparei sem querer – desculpou-se ele.

Houve uma agitação entre os homens que estavam sentados no chão.

– Tudo quieto! Ninguém se mexe! – gritou o alferes.


As pontas das armas agrediam os prisioneiros como se fossem
baionetas. O alferes correu em torno do cacho de homens comprimidos
uns contra os outros, para constranger aqui e ali mais algum movimento.
Os soldados olhavam para a agitação do alferes, olhavam para os
prisioneiros, e então, da arma de um e de outro, como acontecimentos
não comandados pelo cérebro de quem empunhava a arma, saíram
disparos que mataram quatro. Um soldado encarou o prisioneiro que
tinha à frente e não percebeu porque é que ele não caíra, sem se lembrar
de que não caíra porque ele não disparara. Pensou em disparar, mas à
queima-roupa era difícil. Enterrou várias vezes a ponta da espingarda na
pele do homem, para nessa descarga ganhar mais raiva, e matou-o com
um tiro.

As mulheres gritavam, acompanhadas pelo choro das crianças. O


alferes mandou que um grupo de mulheres e crianças fosse metido numa
palhota e lançou uma granada lá para dentro, no que foi imitado por um
furriel. Este pegou fogo à palhota.

Algumas mulheres foram arrastadas para a mata e violadas. A seguir


foram mortas a tiro, não sem que antes ouvissem:

– Já ninguém se vai servir de ti.

Um soldado, depois de violar aquela que lhe tinha calhado, arrancou-


lhe um fio de missangas que ela trazia à cintura e pendurou-o ao próprio
pescoço, como um colar.

A uma jovem grávida abriram-lhe o ventre com uma faca e


mostraram-lhe o feto. A mulher olhou como se não visse nada e
deixaram-na a agonizar. Alguém teve a ideia de abrir a barriga a um dos
mortos e colocar lá o feto. Vários soldados vieram ver isto e riram
muito, a coisa mais divertida do mundo, um homem com um feto metido
na barriga aberta.

Os corpos que estavam à vista foram amontoados e cobertos de capim,


a que pegaram fogo. Esperaram que as chamas aumentassem e então
afastaram-se. De repente, da fogueira saltaram dois que não estavam
bem mortos e que correram para o mato. Um desapareceu, o outro foi
atingido por vários tiros, deu saltos e sacudidelas e por fim ficou imóvel.

– Parecia uma galinha tonta! – disse o alferes Ribeiro.

No centro da sanzala restavam oito prisioneiros. Estes seriam levados


ao capitão. Quando os militares retomaram a picada, viram cinco
rapazinhos na berma. Deviam ter-lhes dito para fugirem quando
sentiram o cerco do pelotão. O alferes gritou aos seus homens para
seguirem e voltou atrás. Lançou uma granada e os soldados riram ao
verem pedaços de crianças voando por todos os lados.

Pelo caminho, surgiram ideias sobre o destino a dar aos prisioneiros.

– O capitão vai mandá-los para Luanda. Lá ainda os soltam.

– Meu alferes, podem ter sido estes que mataram os nossos camaradas.

O alferes escolheu três para mostrar ao capitão e entregou os outros à


rapaziada. Um foi pendurado de uma árvore, de cabeça para baixo, e
chicoteado. O soldado socorrista cortou-lhe uma orelha e colocou-a
dentro de um frasco de álcool. Era um troféu para levar para casa. Outro
regou o prisioneiro com gasolina e queimou-o. Ficaram a admirar a
tocha humana a contorcer-se e depois, imobilizada, consumir-se. Era
interessante ver o cadáver inchar e rebentar. Pingou um líquido
fuliginoso para o chão.

Quiseram variar com os outros. Enforcaram dois de seguida. A um


fizeram passar a corda pelo ramo de uma árvore e esforçaram-se a puxá-
la, para içarem bem alto o enforcado e irem experimentando a tensão da
corda, até o corpo não se mexer mais. Ao outro ataram a corda num
ramo mais baixo, a um metro do solo, e levantaram-lhe os pés do chão e
puxaram-lhe as pernas, observando no seu rosto os estertores da agonia.

Sobraram dois. Aceitavam-se sugestões. Um foi atado pelos pés a um


veículo e arrastado pelo chão durante quilómetros. Foi atirado para um
rio e divertiram-se a ver crocodilos abocanhá-lo e a acabar com ele.
Viram o que restava do tronco de uma árvore morta. Um soldado, com
uma catana, desbastou um dos ramos do tronco e empalaram aí o outro
prisioneiro. O ramo, aguçado como uma lança, trespassou-o do ânus à
nuca. Deixaram-no ficar assim, para aviso de quem o visse.

O alferes Ribeiro entregou três prisioneiros vivos e de boa saúde ao


capitão Tolentino, que os mandou para Luanda.

10

Durante semanas, as populações em perigo ora queriam ser evacuadas


para Luanda, ora exigiam armas para se defenderem. Pistolas-
metralhadoras, espingardas Mauser, pistolas Walther, granadas de mão,
foram dadas às milícias de fazendas e às empresas importantes.
Pretendia-se restaurar depressa a actividade da região cafezeira, centro
da economia da Colónia. Pequenos destacamentos do Batalhão de
Caçadores 3, de Carmona, escoltavam populações, combatiam grupos de
rebeldes, desimpediam itinerários. A companhia do capitão Tolentino
fazia o mesmo. Aviões bombardeavam sanzalas onde se supunha que os
guerrilheiros estavam misturados com a população. Munições feitas para
arrasar abrigos fortificados, pontes, portos, aeroportos, destruíam
cubatas de colmo e deixavam cadáveres e feridos na terra vermelha.
Brancos fugitivos vinham ao encontro das colunas terrestres. Pediam
protecção para voltarem aos locais de assalto, para enterrarem os
familiares e vizinhos que apodreciam a céu aberto, entregues aos porcos,
cães e abutres.

Foi atribuído a Capelo o comando de um dos pelotões, com vinte e


nove homens. Ficou aliviado por não ser o pelotão da vingança, que já
se especializara em torturas e massacres. Tinha um jipe Willy americano,
três jipões e duas viaturas civis compradas em Luanda. Não teve a sorte
de ficar com a metralhadora Breda, com o seu tranquilizador poder de
fogo. Coube-lhe a missão de seguir para as fazendas de dois civis que se
tinham juntado à companhia em Carmona, perturbados por não saberem
nada dos familiares nem se as suas fazendas haviam sido atacadas.

Capelo observara estes homens no meio dos outros fazendeiros. Um


era de meia-idade, o outro tinha cerca de trinta anos. O primeiro
chamava-se Viana e estava em Luanda por causa de uma consulta
médica quando se deram os ataques. Conseguiu apanhar um avião para
Carmona. Não sabia o que fora feito da família: a mãe, a mulher, três
filhos já adultos, as noras e os netos. Diziam que, na sua zona, muita
gente morrera, mas havia sobreviventes escondidos no mato, em fuga, à
espera de serem encontrados por militares ou milícias enviados à sua
procura, como estava a suceder um pouco por todo o Norte. A aflição
deste homem convertera-se numa calma tensa. Falava pouco, tinha uma
atitude grave e alerta, não largava a carabina. Até ali, observara tudo
com uma atenção discreta.

O mais novo, Fraga, estava na mesma situação. Fora a Luanda para


comprar um tractor agrícola, não sabia se a mulher e os dois filhos, de
cinco e três anos, estavam vivos ou mortos. Ao contrário de Viana, era
falador e muito colaborante. Parecia um soldado entre os soldados, e não
um civil. Era um dos primeiros a remover as árvores que obstruíam o
caminho, a reparar os pontões, a envolver-se nas actividades da coluna.
Fraga trazia de Luanda prendas de Páscoa para a mulher e os filhos.

Os dois fazendeiros, antes de conseguirem um avião que os levasse


para Carmona, viram chegar a Luanda as primeiras vagas de refugiados.
Fraga, sempre efusivo, falou a Capelo dos jipes que tinham trazido
mortos das fazendas: crianças degoladas, mulheres arrastadas para os
terreiros, violadas e mortas, deixadas despidas e com um pau aguçado
espetado na vagina, corpos retalhados até ao osso. O condutor de uma
carrinha fugira de cinquenta indivíduos armados com catanas e
conseguira recolher nove pessoas. Foram perseguidos nos primeiros
trinta quilómetros. Perante uma barreira de rebeldes, acelerou: a
dianteira da carrinha colheu corpos, sentiu as rodas pisarem carne e
ossos. Adultos traziam crianças que não eram suas mas cujos pais
tinham morrido. Fraga contou que os brancos de Madimba esconderam
as mulheres e as crianças no capim e seguiram, em coluna, para São
Salvador à procura de armas. O choro das crianças atraiu os atacantes e
todas foram mortas. Em Quitexe, a quatrocentos quilómetros de Luanda,
um quarto da população branca fora chacinada. No Luvo, posto
fronteiriço isolado, os brancos e os mulatos foram serrados vivos, em
serrações de empresas madeireiras. Atados entre duas tábuas com várias
voltas de corda de sisal, colocaram-nos no centro da máquina e
empurraram-nos em direcção à serra, a começar pelos pés, para
prolongar a tortura. Outros jipes iam chegando e traziam histórias
semelhantes. Os feridos começaram a dar entrada nos hospitais.

Como outros, Fraga correra para o aeroporto de Luanda à procura de


familiares. Aviões civis e militares, de companhias aéreas ou de
pequenos aeroclubes, formaram uma ponte aérea entre Luanda e os
distritos do Norte para recolherem milhares de fugitivos. O choro das
crianças e das mulheres exasperava os homens. Por todo o lado, angústia
e desespero. A rádio e os jornais difundiam mensagens de apelo. Fraga
obtivera informações de aviadores que faziam voos de reconhecimento
sobre a região dos Dembos, no coração do distrito do Uíge. Por cima de
Quitexe, Nambuangongo e arredores, a zona mais rica do café,
observaram casas pilhadas e queimadas, máquinas e plantações
destruídas, cadáveres nos terreiros onde se secava o café, viaturas
abandonadas, pistas de aviação obstruídas, estradas e pontes cortadas.
Os pilotos sobrevoavam povoações onde era impossível aterrar, viam
populações entrincheiradas na casa mais alta, geralmente a igreja, e
largavam pacotes com armas, munições, comida, que caíam perto da
porta; os entrincheirados corriam para recolher os pacotes, quando os
que os cercavam à distância, repelidos pelas balas, tentavam cair-lhes
em cima. Pilotos dos pequenos Auster feitos de tela, sem metralhadora
de ataque ao solo ou capacidade para lançar bombas, atiravam granadas
de mão para o meio de ajuntamentos de atacantes.

Luanda, a mais antiga cidade europeia da África subsariana,


adequava-se ao papel de centro da civilização prestes a cair nas mãos
dos bárbaros, e o pânico que tomou os seus habitantes repetia esse tema
ancestral: os bárbaros destroem tudo à sua passagem e entregam-se ao
saque, à matança e à violação; depois da sua passagem, a terra cultivada
e as cidades são pasto de bichos selvagens. Difundiram-se expressões
como «hordas negras», «hordas ululantes», «massas negras», que, em
vagas cataclísmicas, vinham do mato e das sanzalas e matavam os
homens brancos e violavam as mulheres, tomavam posse de tudo o que
era do opressor: a casa, o carro e a mulher do branco. Os negros não
eram indivíduos, eram parte de uma massa.

Ninguém tinha visto a revolta que se preparou nas sanzalas. Milhares


de rebeldes inspiraram-se no Congo Belga, angariaram adeptos,
influenciaram sobas e cipaios.

– Há poucos dias – disse Fraga – foi apreendido um panfleto que


circulou entre os bacongos, escrito em linguagem cifrada. Convocava
para uma festa no dia 15 de Março. Onde estava escrito «as árvores que
dão sombra nesta cidade devem ser cortadas», deveria ler-se: «cortar as
cabeças dos colonos.» Onde se lia «pintar bem todas as pontes», deveria
ler-se: «destruí-las.» Regressaram os fantasmas do canibalismo, dos
sacrifícios humanos. Dizia-se que o papão comunista alimentava a
guerrilha com carne humana, fazia os negros regredirem ao canibalismo
para afugentarem os portugueses. Os feiticeiros precisavam do óleo das
cabeças humanas para os feitiços; as suas reservas estavam quase
acabadas. Ninguém sabia o que era o óleo das cabeças humanas, mas a
expressão fazia estremecer qualquer um. Queria-se acreditar que o
canibalismo fazia parte da natureza do africano e que os comunistas
recorriam a isso para causar terror. Mais tarde, quando fossem os novos
senhores de Angola, poriam em prática a sua própria acção civilizadora.
De uma forma ou de outra, o africano era manipulado: elevou-se-lhe o
grau de civilização para ser colonizado; diminuia-se-lhe agora o grau de
civilização para o usar contra o colonizador. Neste raciocínio, nunca se
reconhecia aos povos nativos a capacidade de decidirem o seu destino.
Vi o fim do estilo de vida despreocupado dos luandenses – continuou
Fraga. – Apontam para os arredores, na direcção noroeste: «Ali é a
guerra…» Fervilham os rumores: acham que a cidade será atacada. De
dia, há uma menor frequência nas praias. Há menos restaurantes e
cinemas abertos à noite. Os passeios fora da cidade acabaram. Parece
que o invasor já está às portas. Assim que se faz noite, não se vê
ninguém nas ruas.

A defesa de Luanda resumia-se aos soldados de uma companhia


indígena e à guarnição de uma fragata na base naval. As autoridades
aceitaram o contributo de civis armados, milícias racistas e vingativas
que não se deixariam conter por nenhuma autoridade superior. Todos os
dias havia motivos de alarme, como o que aconteceu em Úcua, onde os
habitantes pediram socorro e este chegou tarde demais, apenas para
recolher cadáveres. A cem quilómetros, era a povoação atacada mais
próxima. Contou-se que chegara a Luanda uma encomenda contendo os
ossos e a carne de uma família branca do Úcua e dos seus empregados.
Ninguém duvidava: aquilo vinha aí, aproximava-se, já estava às portas.
A mancha sangrenta cobrira todo o Norte e avançava sobre Luanda.

Os luandenses ficaram assustadiços. Sabiam de famílias assassinadas


pelos criados de confiança, o cozinheiro, o caseiro. E em Luanda, o que
iria na cabeça dos criados? Um objecto tombado no chão, uma porta a
bater, um espirro mais alto, atraíam pessoas com armas preparadas. Se
uma criança gritasse no meio de um jogo, os adultos imaginavam
catanas, corpos esquartejados. As sombras debaixo das janelas pareciam
bandidos a tentar entrar nas casas. Estes viriam quando todos estivessem
a dormir. Famílias inteiras, incluindo crianças de dez anos, aprenderam a
usar pistola.

Não se distinguia o culpado do inocente, porque ambos eram negros.


As milícias populares patrulhavam as ruas de Luanda dia e noite com
metralhadoras ligeiras, varapaus e até catanas. Identificavam os negros
que circulavam nas ruas da cidade; os que fugiam eram abatidos e
enterrados numa vala comum, sem identificação.

Marinheiros de fragata, patrulhando o porto, prenderam dois serventes


de traineira que discutiam, bêbedos, qual seria o comandante quando os
brancos fossem expulsos. Isto circulou em Luanda e a certa altura já era
impossível saber se acontecera, se era boato, se anedota. Qualquer
boato, difundindo-se e corrompendo-se, passava a verdade
inquestionável. Um dia correu pela cidade que as escolas seriam
atacadas; pouco depois disse-se que já tinham sido atacadas, que havia
crianças e professores degolados. Os pais encontraram tudo normal nas
escolas, que foram guardadas pela Polícia. Disse-se que foram
descobertas catanas escondidas nos altares da Sé de Luanda, para serem
usadas durante a procissão nocturna de Sexta-Feira Santa, numa acção
orquestrada pelo próprio cónego da Sé, que tinha hóstias envenenadas
para matar altas individualidades durante a missa. O cónego, havia
muito associado a nacionalistas africanos, foi deportado para Portugal.

– Qualquer engraxador ou operário negro pode ser um terrorista –


disse Fraga. – Em Luanda, os brancos têm medo de que os criados
envenenem a comida ou os estrangulem durante o sono. Estão à mercê
de boatos alarmantes. Já há quem veja uma onda assassina descer dos
morros para a cidade e empurrar os brancos para o mar. Alguns até já
olham para a baía e não vêem os navios salvadores. Dormi num prédio
que confina com os bairros africanos, os musseques, e ouvi gritar
durante a noite, a intervalos, até ao nascer do dia: «Angola é nossa!
Branco, vai embora! O branco é merda, merda, merda…»

Nos musseques viviam centenas de milhares de negros em habitações


de madeira e zinco, sem electricidade nem saneamento básico, em ruas
de terra vermelha que as chuvas enlameavam. Uma noite, correu a
notícia de que os habitantes do musseque Sambizanga iam descer à
cidade. As milícias puseram-se em campo. As pessoas recomendavam
umas às outras que não dormissem se não queriam ser mortas durante o
sono: ia acontecer a invasão havia muito prevista. Passavam carros
cheios de homens com caçadeiras, circulavam patrulhas da Polícia, jipes
com soldados de capacete e pistolas-metralhadoras. Havia mulheres a
ajudar, carregando machados e catanas. Os jipes ocuparam a estrada à
volta do Sambizanga, que permaneceu calmo. Dias depois, o musseque
foi incendiado. Brancos dispararam sobre os negros que tentavam
escapar às chamas e impediram os bombeiros de apagar o incêndio. O
mesmo foi tentado no musseque Marçal, onde várias cubatas já estavam
regadas com gasolina. Os negros tinham medo de voltar para os seus
bairros e, no final de um dia de trabalho, procuravam refúgio no centro
da cidade, dentro de autocarros parados, com conhecimento das
autoridades, ou na casa dos patrões.

O receio de um apagão levou a que se estacionassem carros na


Avenida Marginal, à noite, com os faróis virados para o asfalto. Se fosse
cortada a energia, a Marginal não ficaria às escuras. Desbastavam-se
arbustos de jardins que pudessem esconder a aproximação de
bandoleiros. A cidade receava dormir e passava as noites mais iluminada
do que nunca, reflectindo-se nas águas calmas da baía, em contraste com
a sombra dos bairros africanos de onde se supunha que milhares de
olhos a espiavam.

Esta foi a cidade sobressaltada que Fraga e Viana deixaram assim que
puderam, para irem para as suas casas, no centro da região de onde
emanava o horror.

11

Capelo conduziu o pelotão para fora da estrada assinalada no mapa. O


que tinham pela frente, durante muitos quilómetros e dias, eram picadas
antigas com curvas apertadas, onde uma emboscada era fácil de montar
por quem estivesse escondido no capim, que tinha às vezes dois e três
metros de altura. O ataque, ali, seria quase à queima-roupa. Os soldados
vigiavam essa orla do mato dando a si próprios a oportunidade de ver de
onde partiria o primeiro tiro para, depois, quando se atirassem ao chão,
saber para onde dirigir o fogo.

Um ou outro soldado, tomado por um impulso para a acção,


suportando mal a espera de um ataque que não se sabia se ia acontecer,
adoptava atitudes de desafio. Um deles pôs-se de pé em cima do pára-
lamas da viatura dianteira, erecto como a figura de proa de um navio,
afrontando o desconhecido:

– Apareçam, terroristas! – gritou. – Venham cá, terroristas!


A paisagem agora era monótona. Sucediam-se milhares de hectares de
cafezais, sem ninguém para colher as bagas e as pôr a secar ao sol. O
cheiro dos eucaliptos estava por todo o lado, plantados para darem
sombra à planta do café. Bois e vacas espreitavam entre o capim,
despertos do seu torpor pelo barulho dos motores. Atravessavam colinas
que se repetiam até ao infinito, outras vezes deparavam com um ribeiro
que corria num vale. Quando os pontões dos ribeiros estavam
destruídos, os militares tinham de fazer passar as viaturas sobre tábuas
grossas. Havia pressa em chegar ao sítio seguinte e era irritante ter de
parar por causa dos obstáculos postos na picada. Havia valas
disfarçadas. A viatura que abria a coluna ficou com a metade da frente
afundada numa vala e as rodas de trás no ar.

Entre uma e outra fazenda, acontecia não poderem inverter a marcha,


tal a estreiteza das picadas afogadas em capim alto e denso. Teriam de
percorrer oito ou dez quilómetros e fazer essa manobra na povoação ou
fazenda seguinte. Teriam de seguir em frente até mesmo para
retrocederem; estavam bem internados nos domínios do inimigo,
desafiavam-no, atraíam-no.

Uma raridade: uma fazenda intacta. Toneladas de bagas de café


amadureciam nas plantas. Fora dos telheiros, viram máquinas paradas no
ponto em que os donos as tinham deixado. Os edifícios estavam intactos
e, no interior, cada objecto no seu sítio. Os habitantes deviam ter fugido
para alguma povoação para onde estariam a convergir todos os que
conseguiam escapar.

Capelo reparou que o modo de estar de Viana e Fraga traía uma


ansiedade crescente. No entanto, cada um reagia à sua maneira: Viana
mais sombrio e reservado, Fraga mais falador e irrequieto.

Numa fazenda, dois empregados negros vieram ter com eles. Estavam
escondidos desde o dia do ataque, na semana anterior. Contaram o que
se passara, que não era diferente do que acontecera noutros locais.
Mostraram os cadáveres, que tinham reunido numa garagem. O tempo
quente acelerava a putrefacção e o cheiro era insuportável. Os militares
aproximaram-se com o nariz tapado por lenços embebidos em álcool.
Trinta e oito cadáveres, de empregados bailundos, incluindo crianças. A
excepção era um velho e uma velha, com flores em cima. Os
empregados explicaram que estes dois eram os brancos mais antigos da
zona e tinham sido atacados no momento em que iam pôr flores nos
santos da capela da fazenda. Os outros brancos estavam numa fazenda
vizinha onde se celebrava um casamento e foram avisados a tempo.

Capelo perguntou aos criados da fazenda porque é que não tinham


enterrado aqueles corpos. Disseram que queriam que as autoridades que
chegassem os vissem. A explicação era aceitável. Os soldados iam
enterrá-los agora.

Os que foram escolhidos para o serviço aproximaram-se com lenços


amarrados a cobrir a boca e o nariz. Recuaram para tornar a despejar
álcool nos lenços e renovar a sua acção, mesmo que sentissem as narinas
causticadas. Moscas verdes e gordas, que proliferavam sobre os corpos,
chocavam contra quem lhes queria roubar a refeição. Removidos os
cadáveres com pás e enxadas, ficavam à vista manchas no chão e larvas
de insectos que rebentavam quando pisadas; descobriu-se um cadáver
sem cabeça; os cadáveres de três mulheres tinham, cada um, um pénis
metido na boca. Um dos soldados saiu do pátio para ir vomitar. As
moscas, furiosas, picavam os intrusos, que se coçavam e se esfregavam
com álcool. Quando um cadáver, já muito inchado, foi mexido, rebentou
e derramaram-se órgãos e líquidos como que saindo de dentro de um
saco, vendo-se no meio um fervilhar de milhares de larvas e vermes.

Enquanto uns acarretavam os corpos para fora, outros cavaram uma


vala profunda. Os corpos foram alinhados ao lado desta. Um dos
soldados entalou uma pá debaixo de um dos corpos e esboçou o
movimento de alavanca para fazer o corpo rolar para o fundo da vala,
mas parou e hesitou, olhando para o alferes. Capelo percebeu que
esperava uma indicação para saber se podiam empurrar os cadáveres e
fazê-los rolar ou se deveriam pousá-los lá no fundo, com mais cuidado.
Com um meneio de cabeça, Capelo consentiu o gesto já iniciado pelo
soldado. Todos os corpos foram postos a resvalar para a vala, onde
caíram em qualquer posição, uns sobre os outros. Para o casal de velhos,
Capelo deu instruções para se fazer uma cova à parte. Pegou nos ramos
de flores que traziam e colocou-os por cima dos dois mortos. Era
sentimental, reconheceu, mas achou que devia fazê-lo. Pazadas de terra
recobriram a vala e a cova. Fizeram duas cruzes, com duas tábuas
pregadas uma na outra, e espetaram uma em cada monte de terra.

Os dois criados desta fazenda juntaram-se à coluna, que prosseguiu.

12

A noite chegou a meio do caminho. Dormia-se dentro das viaturas ou


debaixo de toldos de tendas. A água do cacimbo acumulada sobre os
toldos serviria para se lavarem.
Na manhã seguinte, penetraram numa floresta cujas copas quase não
deixavam passar a luz do sol. Um calor húmido, de estufa, fazia a roupa
colar-se ao corpo e a poeira agarrar-se ao suor. Alguns soldados
andavam de tronco nu. A atmosfera dificultava a respiração. Nenhuma
folhagem mexia, os pássaros estavam amodorrados e silenciosos, os
troncos estalavam, pisava-se erva ressequida. Era preciso usar os
machetes para abrir caminho entre trepadeiras espinhosas e escavar um
túnel vegetal. Os raios solares pendiam das copas das árvores e
fulguravam com brilhos que encandeavam.

Os soldados espreitavam para o fundo das ravinas onde corriam os


ribeiros e viam troncos, recobertos de musgo e de camadas de hera, que
mergulhavam as suas raízes na água. Passavam moscardos e besouros
gigantes a zunir. A floresta rumorejava de enxames de insectos, de seres
rastejantes, repleta de ecos insondáveis que vibravam por todo o lado,
nos arbustos, no interior dos troncos, no alto das copas. O calor, a
humidade, o ar viscoso e poeirento, o odor intenso das flores e das
folhas e o rumor de milhares de formas de vida ocultas, tudo isso
oprimia e cansava.

Foi um alívio quando saíram da floresta e retomaram uma picada entre


capim. Ao menos conseguiam ver o céu. A picada fazia um cotovelo.
Quando a primeira viatura já tinha dobrado a curva, ouviram-se disparos
de canhangulos e armas de caça. Os que seguiam na segunda viatura
avançaram e ainda viram dezenas de atacantes saltarem sobre o jipão da
frente. O condutor acelerou para escapar ao assalto mas já se lutava
dentro do jipão.

Capelo correra para a segunda viatura e estava a ouvir o testemunho


dos seus ocupantes quando novos disparos e rajadas se fizeram ouvir,
num ponto mais distante da picada. Ordenou que todas as viaturas
avançassem em apoio da viatura que se isolara.

A algumas dezenas de metros estava um soldado morto. O jipão


despistara-se; a parte dianteira mergulhava na vegetação. Dentro do
jipão, mais um morto. Faltavam seis homens, incluindo o sargento que
comandava a secção, e a caixa de munições da viatura. Os atacantes já
não estavam à vista. As buscas no capim nada descobriram.

Capelo assentou o pelotão numa fazenda abandonada a cinco


quilómetros do lugar da emboscada; as casas tinham sido saqueadas
pelos rebeldes. Todo o recheio que não pudera ser levado encontrava-se
escavacado e em desordem.

O alferes contactou por rádio com outras forças do batalhão. Algumas


horas depois um PV2 sobrevoou-os e largou um embrulho com uma
mensagem que dizia que a três quilómetros, mais atrás na picada,
seguiam dois soldados, sendo que um coxeava e era amparado pelo
outro. Capelo foi ao seu encontro, com duas secções. Recolheram os
sobreviventes, que contaram que, quando o jipão fizera a curva e fora
alvejado, o condutor fora ferido num braço. O sargento gritara para que
acelerasse, ao mesmo tempo que uma chusma de atacantes se
precipitava sobre eles. O jipão andara algumas dezenas de metros,
levando soldados e guerrilheiros em luta corpo a corpo e muitos outros
rebeldes a correrem atrás. Um soldado caíra morto para a picada.
Parecera que os restantes iam escapar, porque, depois de terem repelido
os guerrilheiros pendurados no jipão, este ganhara algum avanço. Mas o
condutor não conseguira evitar o despiste. Os ocupantes, vendo os
assaltantes em número muito superior correrem para eles, introduziram-
se no mato. Estes dois correram o mais que puderam e por fim pararam e
esperaram. Ouviram os gritos dos camaradas a serem massacrados.
Quando se sentiram seguros para voltar para a picada, já não
encontraram a viatura nem o resto do pelotão. Calcularam que este
seguiria pela picada e puseram-se em marcha na mesma direcção. Um
deles tinha sido baleado numa perna. Foram sobrevoados por um PV2, a
quem fizeram sinais, o mesmo que avisara Capelo.

No dia seguinte, o alferes conduziu os seus homens ao ponto no mato


onde os dois sobreviventes tinham estado escondidos, na expectativa de
encontrar alguns dos outros, feridos ou mortos. Encontraram três
soldados, esquartejados por catanas, cobertos por moscas varejeiras. Os
rostos estavam desfigurados. Apesar de terem passado apenas vinte e
quatro horas, os ovos que os insectos depositaram nas feridas geraram
milhares de larvas que fervilhavam na carne dilacerada. Os guerrilheiros
tinham emasculado um dos corpos e pendurado o pénis numa estaca.

Propagou-se entre os soldados uma reacção de pânico. Um deles


começou a chorar e a gritar, e Capelo abanou-o com força, ordenando-
lhe que se acalmasse. Capelo obrigou-se a não sucumbir, pois
comandava a missão e tinha de dar o exemplo.

Não encontraram o corpo do sargento. Carregaram os outros em


lençóis para as viaturas que esperavam na picada. Enterraram-nos na
fazenda onde o pelotão se aquartelara.

Quando Capelo estava prestes a pôr a coluna em marcha, segundo o


trajecto inicial, recebeu uma chamada por rádio do comando do
batalhão, que lhe disse que um avião avistara uma clareira no mato que
não existia uns dias antes, o que podia ser indício de actividade por parte
dos guerrilheiros que os tinham emboscado. Retrocederam na picada e
foram inspeccionar essa clareira. Encontraram fogueiras extintas e os
ossos limpos de um esqueleto humano a que só faltava a caveira.
Pendurada numa estaca estava uma carteira com o cartão de identidade
militar do sargento que comandava a secção massacrada.

– Canibalismo – disse o fazendeiro Viana. – Ele foi cozido e comido.

– Tem a certeza? – indagou Capelo.

Viana ajoelhou-se e examinou com atenção alguns ossos:

– Vejam… Marcas de facas. Descarnaram-no bem descarnado.

O silêncio geral reforçou as palavras de Viana.

– É um tipo de festim ritual – disse ele –, uma herança dos antigos


povos jagas, conhecidos pela crueldade. Continuam a praticar-se em
sítios ermos, fora do alcance das autoridades. Alguns destes feiticeiros
canibais juntaram-se aos terroristas apenas para terem acesso a mais
carne humana.

Começou assim algum ascendente de Viana sobre a coluna militar.

13

Os dois fazendeiros, Viana e Fraga, eram os guias, agora que a coluna


estava tão afastada da estrada principal. Quilómetro após quilómetro,
pelas picadas sufocantes, atravancadas, perigosas, aproximavam-se das
suas casas e da verdade.

Chegaram a um pequeno posto que contava apenas com o edifício


administrativo e uma casa comercial. Perto, uma sanzala deserta. Junto
aos dois edifícios havia criados mortos. Presos a árvores, frente a frente,
o chefe de posto e a mulher, com sinais de terem sido torturados até à
morte. O corpo da mulher estava desmembrado e decapitado. Entre os
dois corpos estavam os restos desconjuntados de uma criança pequena.
A poucos metros, mais um branco jazia morto numa posição insólita.
Viram pedaços da bandeira portuguesa.

Dentro das casas, a devastação habitual. Todo o conteúdo de gavetas e


móveis que não interessara aos rebeldes fora despejado no chão. Capelo
examinou documentos à procura dos nomes do chefe de posto e dos
outros brancos e ouviu que o chamavam em altos gritos. Correu para a
casa do comerciante. Os soldados amparavam uma mulher branca, que
parecia prestes a desfalecer. Tinha estado escondida, até àquele
momento, num alçapão dissimulado no soalho de madeira.

Fraca, em estado de choque, demorou a recompor-se. Na manhã do


ataque vira o marido, o comerciante local, ser rodeado por homens
armados. Um deles dera-lhe um tiro com uma caçadeira e o braço direito
ficara pendente do corpo. Os homens divertiram-se a mexer no braço
estropiado e a ouvi-lo gritar. Por fim, acabaram com ele à catanada e
reduziram-lhe a cabeça a uma pasta vermelha. O pânico levou-a a tentar
fugir para o mato pela porta das traseiras, mas o caminho já estava
ocupado por outros atacantes. Lembrou-se do esconderijo que o marido
construíra no chão da casa, um depósito de armas, quando começara a
ficar inquieto por o Congo se tornar independente e ouvira o
governador-geral de Angola dizer que os brancos deveriam aprender a
usar armas. Ali escondida, ouviu os passos dos rebeldes dentro da casa,
por cima dela. Partiam e removiam tudo do lugar. A festa prosseguia lá
fora. Podia ouvir gritos de alguém a ser supliciado e gritos de regozijo e
triunfo. Passaram-se cinco horas. A certa altura, sentindo-se sufocar
naquele esconderijo onde mal cabia o seu corpo, macerada pelo contacto
das caixas de munições e das espingardas que eram o arsenal secreto do
marido, saiu e rastejou até à janela mais próxima. Viu o chefe de posto,
consciente, amarrado a uma árvore; um dos rebeldes batia-lhe com
qualquer coisa na cara. Percebeu que eram os braços decepados do filho
de três anos. Diante dele, amarrada a outra árvore, estava a mulher, já
morta e esquartejada. Sentiu que ia desmaiar. Tornou a esconder-se.
Entrou num estado de dormência. Preferia matar-se a ser torturada.
Adormeceu. Acordou. A fome deu-lhe coragem para sair novamente.
Catou restos da sua própria comida que os rebeldes tinham espalhado
pelo chão. Sucederam-se dias e noites. Saber-se ali sozinha, longe de
tudo e de todos, tão perto dos mortos, com a possibilidade de os
atacantes voltarem, fê-la pensar em sair para o mato e aventurar-se pelas
picadas, na esperança de ser encontrada. Com certeza alguém viria atrás
dos atacantes. Mas o medo de tropeçar primeiro nos rebeldes fê-la
desistir. Adormecia, acordava, delirava, já não sabia se estava
consciente, se inconsciente. Ouvia passos e vozes. Demorou a perceber
que as vozes que estava a ouvir não eram alucinações; eram de soldados.
Abriu o alçapão apenas o suficiente para denunciar a sua presença.
Levantaram-na como se a retirassem de um caixão.

14
O pelotão avançava pelos caminhos estreitos. Preparava-se para novas
emboscadas, sentia-se observado e seguido e tinha disso muitos sinais.
A selva era um bicho que o engolia à medida que avançava.

Ouvia-se o som dos batuques, que podia durar horas, chegavam ecos
de gritos, avisos, clamores. Sair da picada e ir procurar gente no meio
das matas densas poria em risco a missão e seria suicídio.

Os soldados passaram mais do que uma noite em claro, dispostos em


círculo defensivo. Um deles disse ouvir, além dos batuques, um barulho
que lhe soava como css-css-css. Mais ninguém partilhou essa impressão
e a acuidade auditiva do soldado foi posta em dúvida. Mas Viana,
respeitado como o melhor conhecedor daquelas paragens, disse:

– Ele tem razão. É o barulho do afiar de catanas.

Capelo reparou num ligeiro sorriso de triunfo no rosto do fazendeiro,


deformado pela luz vacilante das lanternas. Pelo modo frio como falou,
pelo sentido de oportunidade revelado, parecia querer fascinar os
soldados. Que ganharia ele com isso? Levá-los a praticar actos ignóbeis,
ou a tolerar as ignomínias que ele viesse a praticar?

Esta impressão foi confirmada no dia seguinte. Já não faltava muito


para anoitecer e passaram horas na picada a levantar os obstáculos
quando Capelo reparou que a viatura da frente levava duas cabeças
humanas espetadas em estacas. Não eram recentes; olhando para elas,
não sabia se eram de trabalhadores de fazendas, se de rebeldes.

– O que vem a ser isto? – perguntou o alferes. – Quem pôs isto aqui?

– Foi o senhor Viana – responderam os soldados, atrapalhados.


– Há quanto tempo?

– Hoje de manhã.

– Hoje de manhã? E vocês não me disseram nada? Já se esqueceram


de quem é o comandante? Chamem o senhor Viana.

Viana apareceu diante de Capelo.

– Porque é que fez isto? – perguntou o alferes, apontando as cabeças.

– É um aviso – disse Viana. – Assim não nos atacam.

– Como é que sabe?

– Conheço a mentalidade dos negros.

– Não tem o direito de fazer isto. Muito menos sem a minha


autorização.

– Você veio para Angola cumprir o serviço militar obrigatório – disse


Viana. – Há três meses nunca tinha posto o pé em África. Eu vivo aqui
há mais anos do que aqueles que tem de vida. Isto que aqui está é um
aviso. Eles acreditam que os corpos decapitados não podem ressuscitar.

Os soldados, em volta, ouviam um e outro com igual atenção. O que


Viana dizia soava-lhes como verdade absoluta e importante. Capelo teve
a sensação de que o que ele próprio dizia não colhia o mesmo favor.

– Senhor Viana, não tolerarei isto.

– Se retirar daí estas cabeças, ficamos mais fracos aos olhos daqueles
que nos estão a espiar. Temos de jogar com as superstições deles.

Dois ou três soldados olharam para Capelo, como se pensassem: «E


agora, que resposta tens tu para isto?»

– Não é assim que vamos derrotá-los – afirmou Capelo, dirigindo-se


ao fazendeiro, mas em voz alta para todos ouvirem. – Nunca sendo
selvagens.

– Vai expor-nos a todos ao perigo se retirar daí essas cabeças.

Viana parecia estar a representar os soldados, como se tivessem


delegado nele a tarefa de conquistar ao inexperiente alferes o direito de
comandar a coluna. Evocava os medos dos outros, medos que ele
próprio agravara com a história do barulho do afiar das catanas e outras
parecidas, para os manipular e indispor contra Capelo. O alferes
percebeu que o momento era decisivo para confirmar a sua posição
diante dos subalternos.

– Estas cabeças vão ser enterradas já – disse. – Martins, Almeida…


tirem-nas daí.

Os dois soldados nomeados, ao passarem por Viana, hesitaram,


chegaram quase a parar, como se esperassem a anuência dele. Capelo
não gostou de ver esta hesitação. Dir-se-ia que, se o fazendeiro quisesse,
anularia a ordem do oficial.

– A propósito, onde é que arranjou estas cabeças? – perguntou Capelo.

– Trazia-as comigo.
– Desde quando?

– Há muitos dias que não nos têm faltado mortos e decapitados.

– E como é que as transportou?

– Ora essa, senhor alferes, não sabe como é que se transportam


cabeças de pretos? Dentro de sacos, claro…

Um sorriso mau desfigurou o rosto do fazendeiro. Capelo deu-se por


satisfeito por serem removidas e enterradas as cabeças. Mas estava posta
a nu a atitude desafiante de Viana que sugestionara os soldados e os
recrutara para o seu lado. Numa terra que desconheciam, cercados por
um inimigo numeroso, pareciam mais inclinados a aceitar a liderança
espontânea do fazendeiro do que a do alferes. Não seria suficiente vigiar
os que se escondiam no mato, seria também necessário vigiar Viana.

Viana era intratável. Ainda em Carmona, Capelo ouviu uma história


sobre ele. O fazendeiro enviuvara. Quando o filho mais velho chegou a
uma idade de pensar em casar-se, o pai aconselhou-o a pôr um anúncio
num jornal de Lisboa para arranjar noiva. Passados uns tempos o filho
obteve resposta, combinou tudo com a noiva, pagou-lhe a viagem.
Quando ela chegou a Luanda, ele estava ausente na caça durante uns
dias e pediu ao pai que fosse buscá-la. Na fazenda, na ausência do filho,
Viana entendeu-se de tal maneira com ela que disse ao filho, quando
este chegou da caça, com toda a autoridade de chefe da família: «Manda
vir outra, que esta fica para mim.»

Escureceu depressa, como sempre acontece nos trópicos, quando


chegaram à fazenda de Fraga. Este, ansioso, dava indicações à coluna
que seguia o caminho que derivava da picada e conduzia à sua
propriedade.

– Ali está a minha casa – apontou.

No mesmo instante, um tiro atingiu-o em cheio. Caiu morto. Todos


saltaram das viaturas e se estenderam no chão. Nessa posição, fizeram
fogo para o ponto do capim onde fora visto o clarão na boca do
canhangulo. O tiroteio cessou e mantiveram-se uns instantes na
expectativa. Capelo mandou uma secção fazer uma batida no terreno,
entre capim com dois metros de altura. Não encontraram ninguém.

Quando entraram na casa do jovem fazendeiro, já não lamentaram a


sua morte: encontraram os corpos mutilados da mulher e dos filhos. Já
não receberiam as prendas de Páscoa que o pai lhes trazia. Sem o saber,
o rebelde que disparara sobre Fraga dera-lhe o tiro de misericórdia.

15

Viana tinha um ar feroz quando, no dia seguinte, avistaram a sua


fazenda. Os primeiros edifícios apareceram na curva da picada e ele
apertou a carabina com as mãos enclavinhadas. Saltou da viatura da
frente e correu.

– Não se afaste de nós! – gritou Capelo, mas o fazendeiro não lhe


ligou.

Ninguém no exterior. O interior da casa principal estava saqueado;


não havia vivos nem mortos. O mesmo nos armazéns. Em princípio, era
bom sinal: as pessoas tinham fugido para o mato. Mas teriam sido
apanhadas aí? Era necessário fazer batidas em redor. Dividiram-se em
pequenos grupos.

Era difícil imaginar o que iria na cabeça de Viana. Vasculhando o


mato em redor, que poderia ele descobrir? Os seus familiares mortos em
avançado estado de putrefacção, ao fim de tantos dias expostos ao sol, à
chuva, à depredação de animais?

Viana era agora o guia indispensável. Capelo, como forma de respeito


pela sua aflição, permitiu que tivesse algum ascendente sobre os
elementos que o ajudavam. O fazendeiro tentava adivinhar o que teriam
pensado os familiares ao meter-se no mato, que caminhos poderiam ter
escolhido, e Capelo organizava as batidas em função dos seus palpites.
Depois de se esgotarem vinte e quatro horas nos arredores da fazenda,
impôs-se como coisa lógica que os fugitivos teriam tentado chegar à
estrada que ligava Negage à Damba, para aumentar as probabilidades de
serem encontrados por militares ou civis. O plano que Capelo trazia
desde o início era retomar essa estrada mais a norte, mas deixou-se
convencer por Viana a dividir o pelotão em duas secções, uma que
prosseguiria nas picadas e outra que se dirigiria para a estrada. As duas
secções reunir-se-iam num máximo de quarenta e oito horas num
determinado ponto da estrada.

Capelo não confiava em Viana. Receava que manipulasse os soldados


para realizar o seu desejo de vingança. Para o controlar, manteve-o perto
de si. Patrulharam a estrada para cima e para baixo. Capelo só se
separou de Viana quando decidiu formar duas subsecções, uma para
cada sentido da estrada. Andavam nisto há vinte e quatro horas quando
Capelo recebeu uma comunicação do seu furriel pelo rádio:
«Encontrámo-los.» Ordenou a inversão de marcha e foi juntar-se à outra
subsecção.

Treze pessoas tinham emergido do mato ao fim de uma semana de


desespero. Os familiares de Viana: a mãe, a mulher, um filho, as três
noras e os quatro netos, e três criados. Traziam as roupas e a pele
rasgadas pelos espinheiros. Capelo teve a impressão de que faltava
alguém. Viana estava um pouco à parte, de costas voltadas para todos, a
chorar, mas sem fazer ruído. Só lhe via as costas sacudidas por soluços
violentos. Dois dos seus três filhos tinham sido mortos. O mesmo
homem que tivera a frieza de espetar cabeças em estacas, para
aterrorizar inimigos, chorava a morte dos seus.

O filho sobrevivente de Viana conduzira o grupo. Tinham estado


horas entrincheirados em casa. Do telhado, armado com uma espingarda
para caçar elefantes, matou dezenas de atacantes. Cada tiro desfechado
contra um grupo abria um carreiro e matava vários de uma vez. Não
podiam ficar ali. Aproveitando um momento de recuo do adversário,
saíram todos de casa e esconderam-se numa lavra de mandioca, densa,
que lhes deu abrigo até ao dia seguinte. Saíram para o mato à procura da
estrada. O filho de Viana só podia confiar uma arma ao sobrinho mais
velho, de doze anos. De vez em quando, subiam os dois às árvores para
verem se estavam a ser seguidos. Não tinham abrigo, nem contra a
chuva, nem contra o sol. As crianças desmaiaram com fome. Comiam
frutos silvestres, bebiam água de charcos barrentos, servindo os sapatos
como copos. A mãe de Viana pesava cento e trinta quilos e não
conseguia acompanhar os outros. Atrasava a marcha do grupo. O neto
não lhe deu ouvidos quando, um dia, ela lhe pediu que a matasse. As
mulheres rezavam. À noite receavam encontrar onças ou pacaças. A
principal preocupação era nunca parar. Quando pressentiam os rebeldes,
seguiam outro percurso que os afastava do objectivo. Por duas vezes, os
dois que estavam armados encararam grupos de atacantes, que gritavam
«UPA, UPA! Mata que é branco!» Das duas vezes, visaram um que
vestia um sobretudo e levantava e baixava no ar um pau na mão
esquerda e uma catana na mão direita, porque acharam que devia ser o
feiticeiro. Um tiro das suas armas abria um carreiro num grupo
compacto, caíam mortos cinco ou seis e os outros fugiam. Já estavam há
dois dias na berma da estrada, embora não se mostrando, quando
ouviram motores de carros. Espreitaram. A primeira pessoa que viram
foi o chefe da família: Viana, erecto acima do tejadilho da viatura da
frente, com a espingarda apertada contra o corpo, como o dono das
terras que regressa para impor a sua lei.

16

Outras pessoas que fugiram para o mato tiveram um destino diferente


dos familiares de Viana. Destacamentos militares encontraram ossos
descarnados e espalhados no chão das matas. Eram daqueles que tinham
fugido e não foram encontrados a tempo. Esgotados, minados por febres
delirantes e feridas que infectavam depressa no clima tropical, as feras
refastelaram-se com a sua carne.

Por esta altura, na metade do destacamento que comandava, enquanto


a outra continuava nas picadas, Capelo tinha a seu cargo dez familiares e
três criados de Viana, contando mulheres e crianças esgotadas, e ainda
dois criados recolhidos de uma fazenda, a mulher retirada do alçapão e o
soldado ferido. Era preciso chamar um avião que levasse essas pessoas
incapazes de combater. Seriam evacuadas para Carmona ou Luanda.
Estava desejoso de se livrar de Viana.

Encontraram um terreno liso junto à estrada que poderia servir de pista


de aterragem. Capelo pôs os homens a aplanar o terreno para esse fim e
fez, via rádio, o pedido de evacuação aérea. Disseram-lhe que o avião só
chegaria na manhã seguinte.

Dormiriam ali. Capelo mandou dois grupos patrulharem em volta,


para ter a certeza de que a zona era segura. Um dos grupos reapareceu
com um prisioneiro, um velho que estava por ali e que a patrulha achou
suspeito.

O velho era magro, musculoso, rijo de corpo. Tinha uma expressão


que lhes pareceu arrogante. Os soldados disseram a Capelo que o velho
só falava numa língua nativa. Viana ofereceu-se para o interrogar em
quicongo:

– Onde é que moras?

– Na aldeia do Chiribo.

– O que estavas a fazer nestes matos?

– Vieram à aldeia e disseram que ia haver uma guerra contra os


brancos e que se nós não participássemos seríamos mortos. Prometeram
as propriedades e as mulheres dos brancos. Eu fugi para o mato.

– És feiticeiro?

– Não.
– Eu acho que és. Usaste o milongo da coragem e outros feitiços para
os homens atacarem os brancos?

– Não, não usei.

– Vives de quê?

– Tenho uma lavra.

– Quantos brancos mataste?

– Não matei nenhum.

– Que fazendas atacaste?

– Não ataquei fazendas.

– És um grande mentiroso, não és?

– Não sou mentiroso.

Viana ficou calado, a olhar para ele com ódio.

– Que foi que ele disse? – perguntou Capelo.

– Veja como são manhosos. Disse que fugiu da aldeia dele porque o
obrigaram a juntar-se aos atacantes, caso contrário matavam-no. Ora,
isso é o que os feiticeiros fazem, e eu sei que isto que aqui está é um
feiticeiro a querer passar por vítima dos feiticeiros. Se eu não estivesse
aqui, ele ria na vossa cara. Veja o ar arrogante dele.

– Vou mandá-lo para Luanda – disse Capelo. – Pode dar informações.


– Ninguém o aliciou – disse Viana, cortante. – Ele é que aliciou os
outros.

– Muito bem. Em Luanda isso ficará esclarecido.

Pelo canto do olho, Capelo viu o início do movimento de Viana, que,


demasiado rápido para permitir qualquer reacção, deu dois passos em
frente, encostou a ponta da espingarda à testa do prisioneiro e disparou.
O velho caiu, morto.

– Você está preso! – gritou Capelo. – Dê-me a sua arma.

Um soldado avançou para o fazendeiro que, sem se mexer, se limitou


a deixar que o outro lhe tirasse a carabina das mãos. Viana não se
importou de matar aquele homem à vista dos netos. Para os netos, o avô
era um homem poderoso: matava os pretos maus.

– Só fica com a minha arma porque amanhã chega o avião e já não


vou precisar dela – disse Viana. – Senão, não ma tirava.

– Ia ser bonito, se você se recusasse a dar-ma.

– Pode crer que só me deixo desarmar porque o avião vem aí e eu vou


com a minha família para Carmona. Tenho o direito de defender o que é
meu.

– Fala dos seus direitos – disse Capelo, já sem disfarçar a irritação. –


E os seus deveres? Desrespeita as regras desta coluna e mina a minha
autoridade. E agora mata o prisioneiro que devia ser interrogado.

– Interrogado? Alferes, o homem ia continuar mudo, a gozar


connosco.

– Existem regras…

– Mas quais regras? As do Exército? Perceba de uma vez para sempre


onde é que está. Já se passou muito tempo desde que saiu de Luanda, já
tropeçou em tantos cadáveres e fala como se estivesse num quartel em
Luanda ou em Lisboa. Isto é o mato, alferes, e está cheio de terroristas.

– A sua indisciplina põe em risco a missão que eu comando. Eu tenho


de responder ao Comando Militar de Angola. Você não responde a
ninguém. Quer fazer as coisas à sua maneira. Integrado nesta coluna,
tem os mesmos deveres dos outros.

– E os outros têm dois filhos mortos? – Viana abria muito os olhos e


tinha uma baba branca no canto dos lábios. – Uma fazenda destruída?
Uma família que teve de sobreviver como os animais no mato durante
sete dias? É perante os meus filhos e netos que eu respondo. O único
aqui que poderia saber o que eu estou a passar era o Fraga, que morreu
antes de ver a família morta.

Perante os gritos de Viana, Capelo, sem perder o controlo, disse:

– Respeito o seu luto, mas não posso ser cúmplice dos seus actos. Vou
ter de participar de si. Matou um homem que eu fiz prisioneiro.

– Aquilo não era um homem, alferes – tornou Viana, ofegante. – Era


uma criatura abaixo dos animais. Sei lá eu se não foi ele quem matou os
meus filhos. E fala-me em participações. Desde que saiu de Carmona
que anda a ser seguido por selvagens como este que querem arrancar a
sua cabeça e espetá-la na ponta de um pau. Esqueça as regras militares.
Isto é olho por olho, dente por dente. Está escrito na Bíblia. Aonde
pensa que vai com participações e queixas? Os pretos só respeitam a
força. Os seus interrogatórios são provas de fraqueza que os encorajam
ainda mais.

– Fala da mentalidade dos pretos. E a sua? Se à violência respondemos


com violência, o problema continua e há mais mortos de um lado e do
outro.

– Sim, este agora é o nosso mundo. E eu paguei um preço elevado. Se


os meus filhos não puderam continuar a viver, este feiticeiro também
não podia. A sua justiça é boa para a messe de oficiais e para a caserna,
alferes. Aqui não funciona, pode ter a certeza. Eu não posso mudar nada,
ninguém pode. Vai continuar a ser assim.

– Não, não vai, porque esta coluna vai ver-se livre de si.

– Estamos conversados, senhor alferes. Se o avião não estivesse aí a


chegar, a história seria outra.

Viana afastou-se. Mais tarde, Capelo pensou que se o velho estivesse


envolvido na matança talvez já se tivesse mentalizado para morrer.
Mesmo assim, não podia consentir o olho por olho, dente por dente.

Na manhã seguinte, o avião, um Dakota, poisou no terreno aplanado.


Embarcaram todos os civis e o soldado ferido na emboscada.

Capelo e os seus homens prosseguiram. Voltando por outro caminho


para o comando da companhia, na fazenda Felicidade, deveriam
encontrar mais mortos e depredações, mais rebeldes e fugitivos, talvez
mais Vianas e Fragas e feiticeiros verdadeiros e falsos.
Moçâmedes, 1956-1961

Longe do mar, o solo é duro, a terra é plana, monótona, de cor


amarelada, com arbustos rasteiros. Não há estradas delimitadas e o chão
é liso como asfalto. A luz ofusca, o ar ondula, aqui e ali avistam-se
animais em fuga, correndo como sobre uma pista e levantando uma
poeira leve. Se não desaparecem atrás de montes de pedras ou em
depressões do terreno, desvanecem-se na distância. Junto à costa, as
estradas são de areia solta e é preciso atapetá-las com capim e ramagens
para os carros não ficarem atascados. E, à volta, as dunas de areia
enviadas pelo grande deserto do Namibe, algumas com trinta metros,
movimentadas pela garroa, um vento quente e forte. As dunas tocam as
ondas do mar. Perto do litoral, a paisagem mostra vultos esculpidos ao
longo de milhares de anos por deposição de materiais e pela erosão do
vento, formas fantásticas e bizarras que lembram pirâmides ou castelos,
pedaços de muralhas, ruínas de cidades imperiais.

A sul, o rio Cunene, o segundo maior de Angola, é a fronteira com o


antigo Sudoeste Africano. Quem regressa de uma visita às cataratas de
Ruacaná, numa curva do rio, pode parar no Morro do Tchitundu-Hulo, o
Morro Sagrado dos Mucuíssas, na região de Capolopopo. Há que subir
uma escadaria íngreme de lajes escorregadias que abrigam lacraus e
escorpiões e, por fim, entra-se numa gruta com gravuras de arte pré-
histórica que consistem sobretudo em círculos, traços, figuras de
animais. Ninguém sabe quem desenhou estas formas.
Moçâmedes beneficia da proximidade do mar, que tempera o calor
irradiado pelo deserto. É o terceiro porto da Colónia e a estância balnear
do vizinho distrito da Huíla, cuja sede é Sá da Bandeira. Na praia das
Miragens, paralela à Avenida Marginal, as famílias vão a banhos.
Quando, em Março, começa a soprar um vento fresco, as idas à praia
podem ser substituídas por passeios e piqueniques nas hortas junto do
rio Bero, oásis criados pelo homem no semideserto. O percurso para a
cidade de Sá da Bandeira faz-se sobre desníveis superiores a mil e
setecentos metros. O panorama é assombroso a cada curva da estrada; a
planície e a savana cedem lugar a desfiladeiros, precipícios, escarpas de
beleza selvagem.

No topo da serra, uma plataforma abre uma perspectiva sobre a região


em volta, a terra dos mucubais, povo de pastores e caçadores de leões. É
o miradouro da Tundavala, onde se encontra uma fenda abissal com
paredes de granito e reentrâncias cheias de ninhos de cobras. Dir-se-ia
que a montanha foi cortada por um serrote gigante. Debruçando-se sobre
o abismo, ou atirando o olhar sobre as montanhas e as planícies
avistadas até ao horizonte, esquecem-se os trabalhos humanos. Existe
apenas a majestade geológica e a flora, num silêncio anterior à criação
do Homem, eco mudo da vida arcaica do planeta.

Diante do espelho do meu quarto no Hotel Moçâmedes, verifiquei que


ainda não me tinha habituado à farda branca e às divisas de aspirante.
Ajeitei a pala do chapéu sobre a testa. Acho que não estava ansioso.
Confiava na normalidade do sistema.
Fui apresentar-me ao administrador de concelho:

– Vítor Mateus, aspirante.

O administrador entregou-me aos cuidados de um secretário e de um


chefe de posto. O secretário, o «velho Saraiva», o funcionário mais
antigo da Administração de Moçâmedes, disse várias vezes, na nossa
primeira conversa: «Eu, que envelheci ao serviço do Ultramar…»
Delegou no chefe de posto Amaral a tarefa de me guiar na fiscalização
de empresas e lojas.

Nesta fase de habituação às minhas funções, procurava absorver as


novidades. Uma delas foi o hirsutismo de Amaral. Pensando bem, não é
que isso fosse muito importante para as tarefas e deveres da
Administração Civil do nosso concelho. Amaral era o homem mais
peludo que as pessoas que o conheceram já tinham visto. Se não
fechasse o último botão da camisa da farda, os pêlos espreitariam pela
gola. Espreitavam pelas mangas das camisas, que usava sempre
compridas.

Fui iniciado na fiscalização de uma pescaria. Amaral inspeccionou as


normas de alimentação, vestuário e alojamento. Na cantina, durante a
refeição, chamou um contratado à parte, para o subtrair às represálias do
patrão:

– Quantas vezes comeste carne esta semana?

– Estou aqui há dois meses e ainda não comi carne – disse o


contratado.

As tarimbas onde os contratados dormiam e o vestuário dado pelos


patrões eram do material mais ordinário. Amaral contou-me que havia
esquemas de venda de alimentos estragados. Os comerciantes e os
funcionários envolvidos compravam casas e carros melhores; entre os
trabalhadores negros que adoeciam, alguns morriam.

Verificámos as guias de pagamento e outros documentos da pescaria.


O dono esperava num silêncio sombrio. Observei-o: tinha um bigode
que, descaído sobre os lábios e tapando-lhe a boca, lhe dava um aspecto
tristonho, acentuado pelos dois braços musculados que pendiam ao
longo do corpo, como uma força constrangida prestes a rebentar. Parecia
ofendido por estar a ser inspeccionado. Os documentos estavam em
ordem, o que lhe deu confiança para dizer:

– A vida dos negros é melhor do que a que eu tinha em Portugal.


Éramos nove irmãos, andávamos descalços, dormíamos em duas camas.
Havia uma sardinha para três todos os dias. Fui trabalhar na ceifa aos
dez anos, de sol a sol. Os pretos não têm mais razões de queixa do que
qualquer um de nós que seja filho de pobres.

Ao fim da tarde fomos fiscalizar o horário das lojas. Amaral


estacionou o jipe da Administração atrás de um muro.

– Paro fora da vista dos comerciantes – disse-me. – Têm um moleque


no telhado que avisa da nossa aproximação e fazem sair os clientes pela
porta do fundo.

O primeiro estabelecimento onde entrámos já tinha a porta fechada


mas mantinha lá dentro clientes, todos negros, que o comerciante ia
embebedando para fazer mais dinheiro. Assim que a porta se abriu, os
três cipaios que nos acompanhavam começaram a distribuir chicotadas
aos clientes, para os expulsarem.

– Não é para bater! – gritou Amaral. – Venho fiscalizar o comerciante.

A loja, vocacionada para a clientela africana, parecia-se com todas as


outras. Ali se via um pouco de tudo: fogões a petróleo, aguardente, peixe
seco, óleo de palma, panelas de esmalte, baldes de plástico, tecidos,
pulseiras de missangas, pneus de bicicletas. Amaral confrontou o
comerciante com o não cumprimento do horário da loja e levantou um
auto. O administrador notificá-lo-ia a ir à Administração para pagar a
multa.

Alguns comerciantes, aproveitando o analfabetismo dos clientes,


alteravam os pesos e as medidas e arredondavam a conta para cima.
Ligavam as torneiras da água pública às suas próprias casas e vendiam-
na à população negra com lucros até mil por cento. Convenciam os
negros a comprar coisas de que não necessitavam, endividando-os com
créditos sobre os quais incidiam juros exorbitantes. Se o endividado não
pagasse, era espancado. Se fugisse e fosse apanhado, era castigado pela
Administração e devolvido ao patrão. O vinho era com frequência
adulterado: juntavam-lhe água e de um litro faziam cinco, depois
adicionavam álcool etílico para disfarçar a diluição, resultando uma
mistela que fazia mal à saúde e emborrachava mais depressa. Não se
dizia que os negros eram propensos aos vícios em geral e ao alcoolismo
em particular? Que culpa tinha o comerciante se eles, bêbados, se
endividavam? Destilarias clandestinas, com alambiques toscos,
fabricavam aguardente de má qualidade a partir do fermento da
mandioca, do milho ou da seiva de palmeira, uma mixórdia que
desrespeitava as normas sanitárias e cuja maior virtude era embebedar
clientes para ficarem em estado de gastar todo o dinheiro que tivessem e
não tivessem.

Os comerciantes do mato tinham tudo o que o progresso podia


transportar para as zonas inóspitas. Alguns davam injecções. Era uma
imprudência permitir que indivíduos sem escrúpulos fossem o elo de
ligação entre a civilização europeia e multidões de nativos. Vindos de
uma sociedade rural arcaica, semifeudal, humilhados e enganados toda a
vida, iam para África para enriquecer o mais depressa possível
enganando os negros que, como descobriam assim que chegavam,
estavam ainda mais abaixo na escala social. Amaral deu-me a conhecer
o ditado colonial: passado o equador, qualquer jornaleiro passa a patrão
e qualquer Maria se torna Dona Maria. Esta frase permitiu-me perceber
séculos de história do nosso país e do mundo. Sempre fui adepto dos
provérbios.

Lembrava-me muitas vezes de que na Constantinopla dos sultões os


comerciantes desonestos eram pregados pela orelha à porta das suas
lojas. Em África, porém, os negros não eram considerados dignos de
respeito e protecção ao ponto de se tomar tal medida.

– Vais deparar com muito disto e pior – disse-me Amaral. – Há


comerciantes que sequestram um negro na loja e dizem que ele só sai
quando a família pagar a dívida. Vamos lá buscá-lo e pomo-lo a
trabalhar nas estradas.

– E o que é que se faz ao comerciante? – perguntei eu, para cumprir o


guião de ingénuo que se esperava de mim.

– Ora… nada – foi a resposta natural.


No dia seguinte, o comerciante que fora autuado por não respeitar o
horário da loja foi à Administração tentar a anulação da multa.
Administradores corruptos mandavam anular os autos em troca de
favores: quando iam fazer compras, chegada a hora de pagar, era-lhes
dito que não deviam nada.

Era necessário fiscalizar os camionistas, na sua maioria brancos. Estas


acções decorriam de madrugada, quando os contrabandistas circulavam
com mais frequência para evitarem ser barrados. Eu e Amaral,
acompanhados por três cipaios, mandámos parar um camião cheio de
frigoríficos e fogões. O condutor não tinha nenhuma guia da carga.
Amaral recusou o suborno que este lhe ofereceu. Quando reentrou no
veículo, deixou ver um revólver que segurava na mão e disse:

– A mercadoria que tenho aí atrás é o investimento de uma vida inteira


de trabalho. Se me apreendem a mercadoria, perco tudo.

Olhámos para o revólver que ele manipulava como alguém que,


conversando enquanto come, faz gestos distraídos com o garfo.
Trazíamos à cintura a pistola de serviço, obrigatória nestas acções. Mas
o camionista, do seu ponto privilegiado, num acto de desespero, podia
visar qualquer um de nós ou os cipaios.

– À luz da lei – disse Amaral –, a sua mercadoria é contrabando.

– Chefe – tornou o camionista –, a mercadoria aí atrás é o


investimento de uma vida inteira de trabalho. Se me apreendem a
mercadoria, perco tudo.

Foi arrepiante ouvi-lo repetir a mesma frase, com os olhos parados e


uma arma na mão. O seu gesto era ambíguo: tanto podia disparar sobre
nós como atirar contra si próprio. Após um longo silêncio, em que senti
que Amaral calculava todas as possibilidades, este disse:

– Siga.

O revólver, tal como aparecera, desapareceu.

Ao fim de alguns dias, participei na minha primeira rusga às sanzalas.

Esperámos pela noite. Cercámos a sanzala escolhida quando sabíamos


que os negros estavam a dormir nas cubatas. Das carrinhas saíram vários
aspirantes e chefes de posto. Os faróis das carrinhas davam a luz
necessária. Alguns cipaios foram colocados em locais estratégicos para
impedirem tentativas de fuga. Outros entraram nas cubatas. Ignorando a
mulher e as crianças, disseram ao homem:

– Sai e traz os documentos.

Cá fora, os homens formaram uma fila. Verificámos as cadernetas


pessoais: o imposto indígena, as obrigações de trabalho, a autorização
para se deslocarem fora da circunscrição. Quem tivesse a caderneta em
ordem regressava à sua cubata. Quem não tivesse pago o imposto ou
estivesse indocumentado ia para um grupo à guarda dos cipaios.
Não eram necessárias armas ou algemas. A atitude dos homens era
submissa. Encaravam aquilo como uma fatalidade. Os cipaios davam
alguns empurrões e golpes de chicote para manter compacto o grupo de
prisioneiros.

Nós, os funcionários, não entrávamos nas cubatas, por causa das


pulgas, ali onde pessoas, cães e galinhas partilhavam a insalubridade.
Desconhecendo isto, entrei candidamente numa cubata, porque o cipaio
me disse que o homem que estava lá dentro jazia doente numa enxerga.
Quando, nessa madrugada, cheguei a casa, mergulhei as calças numa
banheira cheia de água e as pulgas emergiram numa mancha preta.

Os negros apanhados em situação irregular encheram as carrinhas, que


regressaram ao centro da cidade. Enfiámos os homens na cadeia da
Administração, um espaço exíguo e sem janelas que servia de cela e a
que os funcionários chamavam «o buraco». Quarenta homens foram
enfiados num espaço onde caberiam uns dez.

Na manhã seguinte, quando os retirámos, dois estavam mortos por


sufocação. Os restantes alinharam na parada. Os patrões dos contratados
vieram buscá-los e pagaram pelos que tinham o imposto em falta. Os
que não foram resgatados regressaram à cadeia.

– O que é que se vai fazer a estes que voltaram para a cadeia? –


perguntei, cheio de boa vontade.

Com o seu gesto automático de esconder os pêlos que espreitavam


pelas mangas da camisa, Amaral esclareceu-me:

– Não lhes faltará o que fazer. A prisão é convertida em trabalho. As


pescarias e as indústrias do peixe de Moçâmedes estão sempre a
requisitar mão-de-obra. Se esta gente não fosse tão desleixada, se
colaborassem um pouco mais, no seu próprio interesse…

– Quem?

– Estes negros, ora! Os contratados são trazidos de longe, para não se


sentirem em casa e se concentrarem só no trabalho. Têm de deixar as
lavras que sustentam a família e que até dão um rendimento superior ao
do contrato. Se eles se apressassem a cumprir o contrato, ou se se
dessem como voluntários para o cumprir em vez de fugirem ou se
esconderem, mais depressa se despachavam e voltavam para as suas
terras com a família.

A ligeira exaltação de Amaral foi acompanhada pelo gesto de ajeitar


as mangas e a gola da camisa, para tapar os pêlos que teimavam em
aparecer.

– O que é que acontece à família, enquanto eles cá estão?

– As mulheres trabalham a dias numa casa particular, os filhos


tornam-se moleques ao serviço dos brancos. Se o contratado foge, a
família é feita refém e as mulheres são mandadas para um trabalho
qualquer, que até pode ser o mais duro de todos, a construção de
estradas. Ora, se assim é, porque é que eles não cumprem o contrato,
para voltarem mais depressa a casa e não prejudicarem a mulher e os
filhos? Mas esta gente tem outra maneira de raciocinar…

– E os que fogem acabam por se entregar, para tirarem a mulher do


trabalho nas estradas?
– Umas vezes sim, outras não. É por isso que há mulheres grávidas ou
com filhos pequenos às costas a baterem estradas com um maço.

– Os patrões podiam chamá-los à razão – sugeri.

– Os patrões não querem saber do bem-estar do contratado e da sua


família. Veja, Mateus… No tempo da escravatura, o dono tratava o
escravo como um boi ou um cavalo que tinha custado bom dinheiro.
Agora o patrão não tem de se preocupar com o contratado, basta-lhe
requisitar outro para o substituir.

Uma manhã, bem cedo, vi algumas dezenas de africanos alinhados na


parada da Administração. Cada um tinha uma trouxa aos pés, com o ar
de quem esperava por qualquer coisa. Também eu fiquei à espera, a ver
o que ia acontecer.

Esta leva de africanos tinha terminado o contrato. Iam ser enviados


com a família para a terra de origem. Um funcionário veio entregar uma
quantia em dinheiro a cada um: a parte do vencimento que fora
depositada em seu nome pela Administração. A outra parte, que o patrão
para quem tinham trabalhado lhes pagara, já fora gasta nas cantinas das
pescarias e das fazendas, onde se embebedavam ou a isso eram
estimulados pelos comerciantes.

Os homens pegaram nas suas trouxas e marcharam para o exterior. Eu


estava a olhar para a fila que se movia quando ouvi a voz de Amaral:

– Mateus! Venha comigo!

Amaral estava já ao volante do seu jipe. Juntei-me a ele.


– Vamos vê-los embarcar. Estes vão de navio para Benguela.

No porto, a mesma fila que eu vira sair do edifício da Administração


estava agora a subir para o navio.

– Veja, veja… – Amaral, com uma excitação divertida, apontou-me


três indivíduos que estavam a cinquenta metros do navio, em silêncio,
estáticos, a olhar para cima, para os que embarcavam. – São
comerciantes. Vêm ver se conseguem fazer negócio. Dantes, quando
despachávamos os contratados para o transporte, alguns comerciantes
interceptavam-nos antes de embarcarem, impingiam-lhes bugigangas e
rapavam-lhes o dinheiro todo. Mas o que é suposto é o contratado
chegar a casa com algum dinheiro. O administrador Gouveia acabou
com essa brincadeira. Agora escoltamos os ex-contratados até ao
transporte, para não serem assediados.

Os três comerciantes, vendo frustrada a sua intenção de abordar os


africanos, afastaram-se. Havia neles alguma indolência, mas também
uma teimosia resignada. Vi que Amaral os fitava com uma expressão de
triunfo. A sua posição, com os braços apoiados sobre o volante do jipe e
o queixo encostado às mãos cruzadas, e a retirada lenta dos
comerciantes, faziam lembrar um duelo de predadores disputando a
mesma presa.

Quando voltávamos para a Administração, eu disse, referindo-me aos


africanos que vira serem acolhidos no navio:

– Estes já se safaram.

– Talvez sim, talvez não – disse Amaral. – Depois de um contrato de


um ano, o trabalhador tem direito a seis meses em casa. A partir daí está
sujeito a novo contrato. Mas pode acontecer que um dia depois de
chegar a casa seja levado pelos cipaios para outro local de trabalho.
Muitos mutilam-se para não serem agarrados. Arrancar um dedo ou
esmagá-lo com uma pedra é comum.

– E o que é que nós fazemos?

O chefe de posto respondeu agitando a mão direita no ar, em círculos,


designando com esse gesto vago que a nossa atitude seria também vaga,
isto é, não faríamos nada de especial. O movimento da mão de Amaral,
que por momentos se libertara do volante, terminou na gola da camisa,
para esconder os pêlos do peito que queriam aparecer.

Depois ele contou-me que os contratados que eram levados para as


roças de cacau de São Tomé e Príncipe, de onde se dizia que nenhum
voltava, frequentemente se atiravam ao mar.

– São Tomé é um nome temido por todos os africanos sob


administração portuguesa. Faça a seguinte experiência, Mateus.
Pronuncie o nome São Tomé diante de qualquer preto e vê-lo-á
estremecer de terror.

E riu-se, espicaçado pelas suas próprias palavras.

De pessoas como o Amaral e eu esperava-se que garantíssemos a


administração territorial e as relações de poder entre patrões e
empregados, brancos e negros, senhores e criados.

5
Muitos colegas meus gostavam daquela carreira no quadro
administrativo, porque podiam caçar, dar grandes passeios de jipe, tomar
contacto com a Natureza e com os aspectos não europeus de África. Mas
a mim sempre me calhou melhor um trabalho de gabinete. Prefiro o pó
dos livros à poeira levantada pelas rodas de um veículo todo-o-terreno.

Havia, é certo, coisas pitorescas, como passear de barco com os


pescadores da Baía dos Tigres, que matavam tubarões a tiro. O peixe
arrastado pelas redes atraía os tubarões; os homens, com armas de fogo
com que poderiam matar um antílope, alvejavam-nos e içavam-nos para
bordo.

O secretário ou o administrador levavam-me nas visitas aos postos de


Lucira, Cainde e São Nicolau, na área de jurisdição de Moçâmedes.
Percorrendo centenas de quilómetros nas zonas semidesérticas,
podíamos encontrar zebras, avestruzes, antílopes, elefantes, leões,
macacos-cães, rinocerontes, hipopótamos. O mais frequente era
depararmos com cabras de leque, que podiam ver-se em grupo perto da
estrada. O cipaio subia para a capota do jipe e soprava um silvo agudo
num apito; as cabras estacavam, com as orelhas espetadas no ar. O
cipaio mirava uma delas com a espingarda e disparava. Depois,
esquartejava o animal e distribuía a carne por todos. Uma vez, fomos dar
com a cabra atingida a agonizar; Gouveia, o administrador, deu-lhe o
tiro de misericórdia com uma pistola. O ar grave e solene com que o fez
tinha o seu quê de administrativo, como se dissesse: «Vejam, pus fim ao
sofrimento do animal, faço o que é necessário, sem espalhafato, com um
rigoroso sentido de justiça.»

Fora do serviço, eu frequentava um dos três clubes exclusivos de


Moçâmedes, o Náutico, onde se jogava bridge e se bebia uísque ao fim
do dia ou após o jantar. Nas manhãs de domingo, era agradável estar na
varanda que tinha vista sobre a praia das Miragens ou jogar uma partida
no campo de ténis.

O que mais me interessava, nos tempos de lazer, era reunir amigos que
jogassem xadrez. Eu andava a desenvolver uma abertura inovadora, a
que chamara Abertura do Tigre, em homenagem à Baía dos Tigres, ali
próxima: as peças mais adiantadas desenhavam sobre o tabuleiro uma
linha ondulada, como as listas das dunas que, avistadas pelos pescadores
algarvios que chegaram a Angola no final do século XIX, lembravam as
malhas de um tigre e serviram de inspiração para o nome da baía. Era
uma abertura de jogo capaz de criar vantagem perante um adversário
desprevenido. Projectava escrever sobre ela um artigo que enviaria à
secção desportiva da revista Notícia, de Luanda.

Inscrevi-me em torneios por correspondência. As partidas eram lentas,


ao ritmo dos serviços postais, mas proporcionavam um campo de
reflexão e experimentação. Na adolescência, tive como professor de
xadrez um indiano de Goa, exilado em Cabo Verde por defender a
independência dos territórios portugueses da Índia. Já velho, fora morar
com uma filha em Portugal. Eu acarinhava a fantasia de que ter
aprendido xadrez com um indiano me colocava na mais nobre tradição
do jogo, que se diz ser originário da Índia.

Para as Festas da Cidade de Sá da Bandeira, que incluíam competições


desportivas entre equipas de várias cidades, eu, Amaral e Pieter, um
funcionário das Finanças descendente de bóeres, propusemos que o
xadrez fosse admitido como modalidade competitiva. Estivemos três
dias em Sá da Bandeira. Moçâmedes ganhou na contagem geral de todas
as classificações desportivas, o que não acontecia havia muito. A vitória
deveu-se ao xadrez, que desempatou os resultados gerais. Eu e os meus
dois amigos cobrimo-nos de glória.

À minha mesa de trabalho chegou um som que fazia pensar em


pancadas vibradas a espaços regulares. Debrucei-me a uma janela. Vi,
na parada da Administração, doze negros a receberem, um a um,
palmatoadas que um cabo de cipaios assentava na mão que lhe estava
submetida, com uma palmatória grossa de madeira. O batido gritava a
cada palmatoada, contorcia-se, recuava como quem queria fugir,
entalava a mão entre o braço e o corpo para aliviar a dor, mas era
obrigado a reaproximar-se para as palmatoadas seguintes sob a ameaça
do chicote de outro cipaio; se fechasse a mão, recebia uma chicotada.

O secretário Saraiva, impassível, assistia aos castigos de um varandim.


Era ele quem determinava o número de palmatoadas.

Fechei a janela. Conseguia imaginar coisas mais agradáveis de serem


vistas e ouvidas. Fui redigir qualquer coisa na máquina de escrever para
abafar o som vindo do pátio.

Já não tinha dúvidas de que o principal instrumento de trabalho dos


cipaios, uma tropa necessária para o contacto com as «massas negras»,
era o chicote, de cavalo-marinho ou de tiras de pele de hipopótamo.
Quanto mais os cipaios fossem zelosos a cumprir as ordens do chefe,
mais afastavam o chicote das suas próprias costas.
A vida de um funcionário público colonial, explorando o seu próprio
gabinete, é cheia de aventuras: encontrei uma palmatória numa gaveta e
examinei-a. Tinha trinta centímetros de comprimento, terminando num
disco de dez centímetros de diâmetro e dois de espessura, com cinco
buracos no meio. A pele penetrava nos buracos. Segundo um cálculo
conhecido, um adulto poderia aguentar até cinco palmatoadas sem
gemer nem gritar. Numa língua nativa, os africanos designavam-na com
a palavra «dor».

Procurava não estar na parada sempre que começavam as sessões de


castigos. Agredia-me os nervos, aquilo. Os castigos eram por
desobediência, insubordinação, fuga, recusa de trabalhar, vícios. Não
havia uma tabela que estipulasse o número de palmatoadas para cada
infracção. Dependia do saber empírico de quem decidia, do seu sentido
de equanimidade ou do seu sadismo. Um negro que roubasse duas ou
três bananas da árvore podia receber uma vintena de palmatoadas em
cada mão. Patrões levavam trabalhadores para serem castigados.
Senhoras iam queixar-se dos criados por faltas ao serviço, desleixo ou
pequenos furtos. Não era raro a dona de casa dizer ao criado: «Partiste
um prato? Vê lá se queres ir fazer uma visita ao administrador.»
Algumas mandavam o moleque à Administração com um bilhete que
dizia para castigarem o portador da mensagem, que chegara tarde ao
serviço ou tirara fruta de uma árvore do quintal.

As palmatoadas chegavam a ultrapassar a centena. Os que apanhavam


cinquenta ou sessenta podiam parar de gritar. Tão arrepiante como ouvir
os gritos era o silêncio de quem já não conseguia gritar de dor. Se as
mãos sangrassem e a pele ficasse agarrada à madeira, batia-se nas
plantas dos pés, que aguentavam mais, e nas nádegas, recobertas por
uma serapilheira molhada para resistirem. Havia quem saísse amparado.
Alguns tinham de ser levados para o posto de enfermaria. Para os que
morriam, certificava-se uma causa de morte conveniente. Isto acontecia
apesar de os discursos oficiais afirmarem que era proibido bater nos
negros e que estes estavam gratos por serem portugueses.

Havia um cipaio que, além das palmatoadas, usava outra técnica: com
a mão esquerda segurava a cabeça do punido, para não rodar, e com a
direita assentava os mais fortes bofetões que alguma vez vi alguém dar.
Vi negros ficarem com a cara inchada. Podia pensar-se que alguns
ficariam surdos.

O velho Saraiva era exacto no número de palmatoadas que estipulava.


O seu zelo no cumprimento das regras eliminava a impulsividade.
Impedia o sadismo, mas também a compaixão. Os sobas podiam ser
punidos com palmatoadas quando não apresentavam o número de
homens exigido pela Administração para irem para os contratos.
Homens de cabelos brancos, que tinham uma posição de autoridade
perante os outros, vinham receber a sua dose e eram castigados em pé de
igualdade.

Eu tinha tirado a carta de condução à pressa, beneficiando da


condescendência do examinador. Quando era necessário um dos
aspirantes conduzir uma das carrinhas Chevrolet da Administração,
alegava outras tarefas urgentes. Um dia, não consegui escapar. O velho
Saraiva atirou-me as chaves da carrinha, que agarrei no ar, e encarregou-
me de ir tratar de um assunto.
Amaral, a quem confidenciara a minha falta de desembaraço, veio à
janela. A carrinha tinha as mudanças junto ao volante, surpresa com que
eu não contava. Arranquei sem ter conseguido engatar a marcha-atrás.
Quando pisei no acelerador, o veículo atirou-se para a frente enquanto
eu olhava para trás e só não foi chocar contra um muro porque o motor
se foi abaixo. Ouvi as gargalhadas de Amaral.

Lá tirei a carrinha do estacionamento e segui pela estrada larga. Já


sentia que o veículo respondia aos meus comandos. Ao fazer uma curva,
sem abrandar, com medo de deixar o motor ir-se abaixo, o meu corpo
deslocou-se contra a porta, que se escancarou, e caí desamparado na
estrada. A carrinha, desgovernada, invadiu um terreno arrelvado e
deteve-se. Sentindo-me cheio de sorte por nada de grave ter acontecido,
e por já não estar à vista de Amaral, tornei a sentar-me ao volante e
prossegui.

Podia ficar com a carrinha depois das horas de serviço e aos fins-de-
semana. Saraiva pedia-me boleia todos os dias para ir para casa. Um dia,
quando passávamos diante de uma casa particular, uma senhora
apareceu à porta e pôs-se a varrer o pátio com gestos vigorosos. O
secretário virou-se para mim:

– Vê aquela mulher? Requisitou-me um moleque. Põe-se à porta a


varrer o chão para mostrar que precisa do moleque.

Pouco antes de eu chegar, Saraiva casara a filha com um chefe de


posto. Estavam a caminho do Norte, para onde o genro fora transferido.

– Olho para vocês e penso no meu tempo. Você, o Amaral, o meu


genro… Vão envelhecer como eu, ao serviço do Ultramar, quando esta
Província for ainda mais pujante, e lembrar-se-ão de quem por cá andou
antes.

Voltava ao seu assunto preferido: como a maneira de estar dos


portugueses em África era diferente da dos outros europeus, um
exemplo de tenacidade e vocação missionária para levar a cristandade e
a civilização a terras e gentes remotas.

– Conhece aquela do português e do inglês que vão à pesca? Não é


uma anedota. Um português e um inglês, em África, vão à pesca. Cada
um tem um criado negro. O português é ríspido com o criado. O inglês
trata bem o seu, mas com altivez. Os criados caem ao rio quando
atravessam um pontão e estão prestes a afogar-se. O inglês ignora o
assunto. O português atira-se às águas e, com risco da própria vida, salva
os dois criados. Isto ilustra a nossa maneira de ser, os nossos extremos
emocionais. Somos capazes de ternura e brutalidade numa rápida
sucessão. Está-nos na massa do sangue.

– Essa história vem nos livros? – perguntei, tentando ser ingénuo.

– Já não sei se a li, se ma contaram.

Não faltavam lendas para suportar a ideologia. Tudo se podia


interpretar à luz da crença numa missão histórica. Quando conduzia a
carrinha, ao fim-de-semana, fazendo percursos maiores, mas sem nunca
afrontar o terreno desértico, passava diante da casa do capitão Viegas.
Se Saraiva gostava de se intitular «o velho», este Viegas era quem
merecia tal cognome. Era o habitante mais antigo de Moçâmedes.

Um dia, na Administração, aonde fora tratar de assuntos pessoais,


Viegas contou-me que nascera no Ribatejo, em 1870, filho de pequenos
lavradores. Quando atingiu a idade adulta, desejoso de aventura, pensou
em embarcar num navio mercante para o Extremo Oriente ou o Brasil.
Alistou-se no Exército, no quadro colonial. Embarcou para Angola com
uma farda de soldado e seguiu as pisadas dos fantasmas que povoam o
nosso imaginário nacional. Foi ascendendo na carreira militar até se
tornar oficial. Andou pelo Sul, em postos distantes. Nalguns era o
primeiro a assumir funções, noutros ia render militares semimortos de
malária. Em 1907, participou nas expedições punitivas contra os povos
do Cunene. Em 1910, estava entre os que ocuparam Cafima. Dois anos
mais tarde, foi convocado para o posto de N’Giva. Chamado à presença
do comandante do destacamento e do governador da então província da
Huíla, numa tenda de campanha que tinha caixotes como secretárias e
cunhetes de munições como bancos, disseram-lhe que, por ser solteiro,
fora escolhido para se casar com a filha de um soba importante. Era
necessário melhorar as relações diplomáticas com o soba e ao mesmo
tempo fazer um trabalho de espionagem, já que o seu futuro sogro se
entendia com os alemães do Sudoeste Africano. Um cortejo numeroso e
festivo veio entregar a noiva; Viegas recebeu-a no meio do arame
farpado. Cumpriu a sua dupla missão de marido e espião. Observou e
relatou movimentos de alemães. Ano e meio depois, foi chamado para
outro posto. Devolveu a noiva ao pai. Quando me contou isto, o velho
disse, muito sério: «Não houve choros.» Em 1915 e 1916, estava sob as
ordens do general Pereira d’Eça nas campanhas contra aqueles povos
indígenas que, reprimidos em 1907, aproveitavam o rescaldo do
combate de Naulila, entre portugueses e alemães, para se revoltarem
outra vez. Casou-se com uma jovem das famílias mais antigas da
burguesia de Sá da Bandeira. Reformado como capitão do Exército
colonial, estabeleceu-se em Moçâmedes, numa casa no extremo da
cidade. Vivia com a mulher. Os filhos faziam a sua vida em Luanda. Os
velhos nunca pensaram em morar noutro sítio que não fosse aquela casa
na orla do deserto.

Saraiva veio perguntar como estava a correr a minha adaptação. Eu


queria saber mais sobre os castigos corporais que ele administrava, mas
resolvi fazer uma elipse, por assim dizer, antes de chegarmos aí.
Entretanto, talvez aumentasse a confiança mútua, para Saraiva me falar
com sinceridade.

– Aqui usa-se muito a força – disse eu. – A maneira como mandamos


os cipaios à frente, nas rusgas, nas inspecções… Têm um ímpeto difícil
de conter. Correm com os negros à chicotada.

– Sim – disse Saraiva. – É para isso que eles servem.

– Emprega-se uma força exagerada – afirmei.

– Já temos muita experiência nisto. O preto não deve ser tratado com
excessiva brandura, porque a brandura, na mentalidade do preto, é vista
como fraqueza e encoraja-o a ser indisciplinado. Tem de compreender
isto, Mateus.

Saraiva era o primeiro de muitos que eu iria encontrar: os que


começavam a frase com a expressão «o preto».

– O preto – tornou Saraiva – não gosta de trabalhar. Há que castigá-lo


como um pai castiga um filho. É isso que se exige de nós, é essa a nossa
missão: civilizar, ensinar, conduzir. A situação não é muito diferente na
Metrópole. Lá, a autoridade trata as pessoas à bordoada quando é
necessário. O que é que nós estamos a fazer em África, Mateus? O que é
que nós estamos a fazer aqui mesmo, em Angola, desde que as caravelas
do Diogo Cão encostaram em solo angolano, em 1482? Uma das coisas
mais nobres e belas da Humanidade é esta vocação portuguesa para
colonizar e civilizar. É um dever humanista trazer a civilização a quem a
não tem. Somos, desde a época das grandes navegações, o porta-
estandarte da civilização latina cristã. Ao contrário de outros, não
fizemos colónias para funcionarem como empresas lucrativas.
Queremos tirar esta gente da barbárie. O Acto Colonial diz que possuir e
colonizar domínios ultramarinos e civilizar os indígenas faz parte da
essência orgânica da nação portuguesa. Não são palavras vãs, Mateus,
são a nossa razão de ser, a razão de existir no mundo um país chamado
Portugal. E fazemo-lo sobretudo para benefício do nativo. O preto é uma
criança grande que vive segundo o instinto, mas no fundo é dócil, é
acessível aos nossos esforços educativos.

– Então isto um dia terá um fim – disse eu. – Se educamos o nativo, se


o elevamos ao nosso nível, ele deixará de precisar da nossa
generosidade.

– Aí você engana-se, Mateus. Não leva em conta alguns dados


essenciais. A nossa presença aqui tem de se perpetuar. Até quando?
Ninguém sabe. O preto, se se libertar, regride. Você é novo nisto,
Mateus, nem imagina… Ouça alguém que envelheceu ao serviço do
Ultramar. Você não faz ideia do que era o nativo antes de nós o
colocarmos sob a nossa influência. Vivia no paganismo, dominado pelos
feiticeiros, envenenado pela magia negra. O homem vivia à custa do
trabalho da mulher. Nós estamos a salvar-lhe a alma com a única
religião verdadeira, que é a cristã. O nativo, se escapasse da nossa
influência civilizadora, voltaria a cair nos mandos e desmandos de
régulos e sobas cruéis, seria explorado por feiticeiros que usam as
superstições mais repugnantes, aterrorizado por seitas que se dedicam ao
assassinato ritual, a torturas, a mutilações. O preto, se lhe faltar a nossa
liderança, volta a pôr a mulher e as filhas a trabalharem na agricultura e
dedica-se à poligamia e à venda dos filhos. Volta a alugar a mulher e as
filhas a qualquer homem que lhe dê um maço de cigarros, uma garrafa
de vinho ou alguns angolares. É isto o que aconteceria se nós nos
retirássemos de África, Mateus. Seria catastrófico para todos estes
bárbaros que nós transformámos em almas cristãs. Mas, como sabe, é
ténue o verniz da civilização. A nossa pressão educativa é constante, de
outra forma o preto recai na brutalidade, volta às paixões desenfreadas
da raça, à libertinagem, ao jogo, à mais completa ociosidade. Há
fenómenos biológicos que estão estudados e que favorecem essa
regressão, que paralisam o desenvolvimento intelectual do negro ao sair
da infância. O espírito dos aborígenes está cheio de crenças
supersticiosas que nós combatemos continuamente, para que não tornem
a mergulhá-los na selvajaria. Quando eu tinha a sua idade, Mateus, e
estava onde você está agora, jovem aspirante, desejoso de dar o meu
contributo nesta grande obra que aqui fazemos, os mais antigos, os
colegas que já tinham envelhecido antes de mim ao serviço do Ultramar,
lembravam-se de casos de canibalismo e outras coisas que tais. O preto
era pouco mais evoluído do que o chimpanzé ou o orangotango. Há
testemunhos antigos de cópulas com estes animais. Contava-se que
tinham sido vistas mulheres negras a ter relações sexuais com macacos.
Veja onde está o preto agora. As nossas leis, os nossos ideais
missionários, a nossa burocracia e organização, não param de colher
frutos.
Perante o fervor de Saraiva, resolvi colocar questões práticas:

– Há patrões que não cumprem o código do trabalho dos contratados.


Há comerciantes que enganam os negros com os pesos e as medidas, que
prendem a clientela às dívidas e aos juros. Todos os dias vemos coisas
dessas. A Administração instalou bocas de água públicas para que os
negros não tenham de comprar água canalizada ou deslocar-se
quilómetros até ao poço mais próximo. As bocas de água foram
destruídas. Foi com certeza algum comerciante que viu o negócio
afectado.

– Há problemas com alguns comerciantes e alguns patrões. Se os


fiscalizamos é porque eles se sentem tentados a prevaricar…

– Diz-se – continuei, aproveitando o embalo – que um recrutador que


ande pelo mato ao serviço de uma empresa pode cruzar-se com um
africano, exigir-lhe a identificação, rasgar-lhe a caderneta e entregá-lo
como indocumentado ou vagabundo, obrigado a ir para o contrato. O
recrutador recebe uma percentagem por cabeça, assim como o
administrador ou o chefe de posto.

– Sim, sim… – disse Saraiva, tentando disfarçar o desconforto.

– Também se diz que a concessão de terras exige um documento que


certifica que não estão ocupadas por africanos, mas as autoridades, por
suborno ou para favorecer a economia, deixam expandir as fazendas dos
europeus e concedem os certificados mesmo que as terras já tenham
dono. Mascaram-se roubos, chantagens, homicídios. No Norte, milhares
de negros expropriados e perseguidos fugiram para o outro lado da
fronteira e, quem sabe, foram juntar-se às organizações anticoloniais.
– Sim, sim… – Saraiva levantou a mão, como para se proteger das
minhas palavras, ao mesmo tempo que franzia a testa dando a entender
que tudo já tinha sido pensado e solucionado por si próprio. – O que se
passa é o seguinte. Não se pode beliscar os interesses dos brancos.
África tem de continuar a ser atraente para a emigração. Precisamos de
mais brancos, mas têm de ser idealistas e patriotas. Não queremos a ralé.
Também não devem vir os meninos de família que perderam tudo e são
funcionários incompetentes. Há comportamentos individuais
condenáveis, mas isso não belisca os princípios do sistema. Nós cá
estamos para controlar os estragos. Os bons exemplos têm de compensar
os maus. O branco é um modelo que o preto tenta imitar, o que até ajuda
a ultrapassar as diferenças entre pretos, porque, como você precisa de
saber, Mateus, os pretos, entre si, são do mais racista que há. As
diferenças tribais entre eles ficarão diluídas se eles se identificarem
connosco. Por aí se vê que os racistas não somos nós, os racistas são
eles, e até nisso os podemos ajudar a evoluir. O preto tem os olhos
postos em nós, porque é movido pelo instinto de imitação. Compete-nos
a nós sermos exemplares. É como fazemos com as crianças. O preto
atribui poderes sobrenaturais ao branco, usemos isso para o cativarmos
para o lado do bem. Temos muitos recursos para isso. Veja o caso da
tropa. Já viu que excelente oportunidade é dada ao preto ao fazê-lo
ingressar no Exército? O que é que ele ganha com isso? Uma língua e
uma nacionalidade. Não sei se já viu companhias indígenas, só com um
sargento e um oficial brancos. Na tropa o preto aprende um ofício:
condutor, ajudante de mecânico, auxiliar de enfermeiro, serralheiro,
carpinteiro, caiador, pedreiro, pintor, padeiro, sapateiro, auxiliar de
capataz, até mesmo escriturário. Depois de uma comissão na tropa, está
mais civilizado para entrar no mercado de trabalho. Pode ir para serviços
do Estado, ser cipaio, polícia, guarda, contínuo, auxiliar de enfermagem.
Vai para serviços privados, como criado, servente, guarda de
propriedades. Ganha o preto e ganha o branco. O preto, porque se
civilizou pela dignidade do trabalho. O branco, porque precisa de se
ocupar com funções mais complexas. Já se calculou que, para cada
branco desempenhar as suas actividades sociais e económicas, é
necessário o trabalho de três africanos. Há aqui uma colaboração eficaz.
O europeu guia e educa o nativo, o nativo fornece a sua resistência física
para o trabalho manual, que é a sua principal qualidade. Nós precisamos
dos nativos, eles precisam dos europeus. Vê alguma coisa de errado
nisto?

Saraiva fez uma pausa para me deixar dizer alguma coisa.

– O preto… – disse eu, tropeçando no hábito linguístico dele – não


escapa ao trabalho obrigatório. O imposto indígena, que deve ter sempre
em dia, obriga-o a trabalhar para o branco para pagar o imposto. Se não
paga, é considerado vadio e prendemo-lo.

– Certo, certo.

– A pena de prisão é transformada em trabalho correccional.

– Certo.

– Ou seja, ele nunca escapa a isto. Ou trabalha antecipadamente para


pagar o imposto, ou trabalha porque não pagou o imposto.

– Percebeu bem, Mateus. Ou o indígena trabalha para pagar o


imposto, quando é convocado, ou trabalha porque não pagou esse
imposto, quando o apanhamos em falta. A coisa foi bem pensada. O
imposto indígena não tem este nome por acaso. É um imposto que
decorre do facto de se ser indígena, não em função de rendimentos
anteriores. É um instrumento civilizador. Submete o indígena à nossa
soberania, faz dele um contribuinte que tem de colaborar na grande obra
comum. Moraliza-o. O tempo da escravatura acabou. Este instrumento
foi criado para pôr o indígena a civilizar-se pelo trabalho. Não sendo nós
esclavagistas que põem grilhetas no pescoço, nas mãos e nos pés do
preto, que outra forma teríamos de o tirar da palhota onde ele gostaria de
estar, porque é indolente? Criámos esta forma, que só o dignifica.
Repare que, de propósito, o imposto não pode ser pago em espécie, mas
em dinheiro. A esmagadora maioria dos pretos não pode pagar o
imposto com o que produz na horta, tem de trabalhar de modo
voluntário nas nossas empresas.

– Há muitos no trabalho compelido, que vamos buscar às sanzalas.

– Digo voluntário para sublinhar o valor moral da lei – respondeu


Saraiva, como se fosse evidente. – Se o preto não se apresenta, nós
vamos buscá-lo aonde se esconde. Mas acredite, e vai verificar isso por
si próprio, que muitos se apresentam voluntariamente, porque sabem que
serão descobertos mais tarde ou mais cedo e que não vale a pena viver à
margem de uma lei que os beneficia a eles mais do que a nós. E se
pegamos no infractor, que tem as suas obrigações contributivas em falta,
e o colocamos num trabalho em regime correccional nas estradas, isso é
tão bom para ele como para nós. Bom para nós, porque as estradas e as
infra-estruturas desta terra não param de crescer, e bom para ele porque
o livrámos da prisão. Na cadeia, o preto não se civilizaria. A cadeia
agradaria muito à inércia e à moleza naturais do indígena. Seria um
prémio para ele, não uma punição. Acredite: a cadeia seria a melhor
coisa que poderia acontecer ao indígena. Mas nós, que temos obrigação
de pensar de outra maneira, transformamos a pena de prisão em
trabalho, damos ao indígena a oportunidade de aprender os valores do
trabalho, ao mesmo tempo que se satisfaz a necessidade, nunca
satisfeita, de gente para os trabalhos básicos. O trabalho, mesmo
compelido e punitivo, é uma escola de valores e de formação
profissional. Estamos a fazer o bem, mesmo que o preto, e até alguns
brancos, não o entendam. Tudo foi pensado para benefício de todos.

Lembrei-me de um provérbio (já disse que gosto muito de


provérbios?): se o chimpanzé soubesse falar, o branco punha-o a
trabalhar.

– Mas há mais, Mateus. Há mais instrumentos que usamos nestes seres


para fazermos deles portugueses. Não portugueses como você e eu,
claro, sempre haverá diferenças antropológicas que seria ridículo
ignorar. Graças a nós eles ganham uma língua, um passado histórico,
que é a História de uma das nações mais antigas da Europa, um trabalho,
uma religião, alcançam, se se mostrarem merecedores, igualdade perante
a lei. As nossas lendas, a nossa bandeira, os nossos heróis e santos, tudo
o que temos de mais sagrado oferecemos ao indígena. Isto é pouco? Isto
é muito, é muitíssimo, Mateus! O canto coral, por exemplo. Já viu coros
formados por negros? Quando cantam o hino nacional e canções
folclóricas portuguesas, estão a absorver valores, Mateus, estão a
absorver cultura. Temos de manter o preto sempre ocupado com o
trabalho, que eleva e dignifica, mas também com estas distracções
musicais e jogos, para afastar a indolência e os vícios a que ele é
propenso, como o alcoolismo.
Eu já tinha visto esses coros de negros a quem ensinavam o hino, mas
também vira a galhofa dos que assistiam. As danças africanas, ao som
de batuques, eram consideradas obscenas, mas se punham os africanos a
cantar à maneira dos brancos via-se nisso uma imitação grotesca que
fazia rir à socapa. Se vestissem roupas nativas eram selvagens; mas, se
vestissem roupas europeias, chamavam-lhes calcinhas. Se não falassem
português eram selvagens; mas, se falassem, troçavam deles por causa
do sotaque ou da maneira como deturpavam certas palavras.

Entretanto, o secretário calou-se por momentos, sensibilizado, e


pareceu-me que estava a evocar alguma imagem agradável.

– Há quem viva uma vida inteira em África sem deixar de pisar o


asfalto das cidades. Nunca seja um desses, Mateus. Quando fui aspirante
e chefe de posto, contactei com as massas negras, conheci muitos sobas
e muitas paisagens maravilhosas. Cheguei a fazer centenas de
quilómetros a pé na área do meu posto sede. A minha mulher e os meus
filhos em casa, e eu a fazer recenseamentos de sanzala em sanzala, de
sobado em sobado, durante semanas. Dormia numa cama de viagem,
que armava numa cubata oferecida pelo chefe da aldeia. Fazia-me
acompanhar por um cipaio, armado com uma espingarda, e um grupo de
carregadores que transportava a minha cama de armar, alguns utensílios
de cozinha, alguns alimentos, alguma roupa. Eles carregavam-me às
costas, em cima da machila, quando precisava de atravessar ribeiros a
vau. Nos grandes rios é que havia pontes pênsis de corda e tábuas, que
nos fazem sentir trapezistas sem rede, porque lá em baixo está o abismo,
correntes tumultuosas, a boca do crocodilo. Quando viajava de noite
ouvia as canções dos carregadores, os sons da Natureza, as aves, o
rumorejar dos rios e das cascatas, o gemido de um elefante bebé a
chamar pela mãe, manadas de antílopes em fuga, a mugir e a fazer
tremer o chão com os cascos. Uma noite fui despertado por ruídos da
selva e saltei da minha cama de campanha. Do outro lado do rio, rugiam
panteras que vinham beber água. Mais atrás, hienas e chacais uivavam.
Em cima, abutres aos gritos. E eu ali, do outro lado do rio, aterrado e
maravilhado. Se tinha tempo, juntava-me a um grupo de caçadores atrás
de um leão ou de um elefante.

Tentei imaginar-me com a idade do velho Saraiva. Envelheceria ao


serviço do Ultramar? Começava a formar o esboço de uma pergunta
sobre os castigos corporais. Já previa a argumentação do secretário,
baseada nas leis e nos preceitos que para ele ordenavam tudo. Saraiva
estava embalado:

– Mateus, você vai ouvir muitas vezes que nós somos colonizadores
diferentes, melhores do que os outros. E de mim vai ouvir o mesmo,
porque é verdade. Vou contar-lhe um episódio que vivi em 1950,
quando estava em Nóqui. O rio Congo tem ali uma inflexão e, a partir de
Nóqui, serve de fronteira natural. Já ouviu falar de Simão Toco? É o
líder de um movimento religioso, de carácter messiânico e profético.
Anuncia a vinda de um novo Cristo que derrubará os poderes actuais
para fazer reinar a justiça. Como vê, é uma actividade um tanto ou
quanto suspeita. A certa altura ele foi para o Congo Belga e levou
discípulos. Os belgas decidiram expulsá-los e entregá-los às autoridades
portuguesas. Eu e o intendente do distrito levávamos um cabo de
cipaios, com a sua espingarda Kropatschek. Os belgas passaram a
fronteira numa coluna militar com vários camiões e uma escolta armada
de dezenas de homens. Descarregaram quase duzentos tocoístas.
Perguntaram-nos pela nossa escolta. O intendente, o Ramalho, apontou
para o cabo de cipaios e disse: «Esta é a nossa escolta.» Sentindo-se
observado, o cabo de cipaios empertigou-se e apertou mais a espingarda.
Vi o espanto na cara dos belgas. Os presos foram postos em formatura
diante do nosso cipaio. Os belgas perguntaram onde ficava a cadeia em
que os íamos meter. O Ramalho, com a maior naturalidade, disse que
não havia ali perto cadeias em condições e que os presos iriam para uma
aldeia até se decidir o que fazer. Os belgas ficaram atarantados com esta
resposta. De repente, os presos pediram autorização para cantar. E
imagine, Mateus, o que é que eles quiseram cantar… O hino nacional.
Pusemo-nos todos em sentido. Eu sentia-me comovido, e creio que o
Ramalho e o cabo de cipaios também. Os belgas, esses, atingiram o
cúmulo da estupefacção. Aquilo foi um exemplo de amor à pátria. O que
é que isto prova? Primeiro, que os belgas não sabem estar em África,
porque não têm a consciência tranquila. Segundo, que nós temos uma
maneira diferente de estar em África. Não estamos aqui para enchermos
os bolsos e voltarmos ricos para a Metrópole, estamos aqui para nos
fixarmos à terra e civilizarmos os indígenas. Não receamos nada porque
não fizemos nada para merecermos ser maltratados. Terceiro, e mais
importante, os nativos têm orgulho em ser portugueses. Que belo
exemplo do mundo lusíada que criámos em cinco continentes! Não
somos como outras potências coloniais, que só queriam explorar e ter
lucro e montaram em África empresas comerciais com nomes de países.
Só espero, Mateus, que ao longo da sua carreira tenha oportunidade de
viver momentos como este. Quando você me vê ali na parada, a assistir
às palmatoadas, o que é que julga que me passa pela cabeça? Às vezes
estou ali diante dos homens que esperam o castigo e lembro-me dos
duzentos tocoístas na fronteira. Coisas dessas são a prova de que
procedemos melhor do que outras potências que estiveram ou ainda
estão em África. Nesta missão, que é o nosso destino transcendental,
único no mundo, nem uma só palmatoada ou chicotada foi em vão.

Beatriz, a minha mulher, tinha ficado em Lisboa a completar os


estudos. Passados dois anos, desembarcou em Luanda. Amaral e a
mulher ofereceram-se para irem comigo recebê-la, no jipe do chefe de
posto. Era um percurso extenso, ida e volta, mas a sociedade branca
achava que a sua força dependia da rápida integração dos recém-
chegados.

Beatriz chegava em plena estação seca. Tinha os pés inchados do


calor. Mal pisou o cais, procurou descalçar-se e esticar as pernas. Vinha
com Célia, que eu deixara com um ano. Célia não se lembrava de mim e
durante a viagem perguntou à mãe se cada homem que se aproximava
delas era o pai.

Depois do almoço iniciámos o percurso de mil e duzentos quilómetros


para Moçâmedes. Pernoitámos em Sá da Bandeira. A caminho, Beatriz
julgava avistar montanhas verdes, de tom uniforme, como se fossem
arrelvadas, até que, mais perto, percebia que estavam cobertas de copas
de árvores.

Deixei o Hotel Moçâmedes, que fora até aí o meu único lar. Tinha
tudo preparado para Beatriz e Célia. Fomos habitar uma casa perto do
limite da cidade, já no areal, à vista do deserto. Beatriz detestou tudo: a
casa de banho era no quintal; havia uma capoeira e galinhas que
espalhavam penas por todo o lado; sondando paredes, detectou fissuras e
pontos de infiltração da humidade vinda do mar, que se notava mais à
noite.

Fomos para outra casa. Uns dias depois, encontrámos um cacho de


formigas na torneira da cozinha. Que desígnio ecológico se pervertera ao
ponto de as afastar dos seus percursos naturais, e virem formar aquele
bolbo prolífico e insolente na nossa torneira, era algo que eu gostaria de
ter adivinhado. Em vez disso, matei-as com petróleo e fogo e cerquei a
casa com petróleo. As noites eram de insónia por causa do coaxar
infernal das rãs de um charco próximo. Uma noite, atingi o cume do
desespero, armei-me com um pau, fiz-me acompanhar por um criado
que levava uma lanterna e procurei o charco. Eu escorregava na areia
solta, a luz da lanterna vacilava, mas a minha raiva não. Vibrei golpes
certeiros com o pau, causando grande mortandade entre as rãs. Pareceu-
nos que o barulho redobrou nas noites seguintes. Quando fomos dar com
novo cacho de formigas na torneira da cozinha, decidimos procurar
outra casa. O secretário Saraiva, sabendo das minhas mudanças recentes
e do grau de exigência de Beatriz, cedeu-nos uma casa que lhe era
atribuída como funcionário do Estado mas que não usava porque vivia
numa outra mais central. Esta era funcional e tinha um quintal grande,
com uma figueira e uma macieira.

As pessoas que se habituaram a ver-me sozinho durante dois anos e


me julgavam solteiro olhavam agora embasbacadas para mim e para
Beatriz. Observei isso mesmo a Beatriz, que me disse:

– Estava a pensar se esse embasbacamento terá outras razões.

– Que razões?
– Não sei, talvez te tenham visto com outra mulher.

– Outra mulher? – Ri-me da sugestão.

– Que riso agudo é esse? Até parece que me estás a esconder alguma
coisa.

– Os que nos vêem agora juntos não me julgavam capaz de ter uma
mulher tão bonita.

– Podes estar a dizer isso só para me iludires.

Antes de esboçar uma resposta, lembrei-me de que a argumentação


racional, esforçada, é típica dos que escondem aventuras extraconjugais.
Quem está inocente brinca com o assunto ou não sabe o que dizer.
Resolvi que não sabia o que dizer.

– Estiveste aqui sozinho dois anos – disse Beatriz. – Podes até ter
iniciado uma outra família.

– Outra família? Isso deve dar muito trabalho. E despesa. Além disso,
como é que eu ia esconder isso numa cidade tão pequena?

– Pode não ser na cidade – tornou Beatriz, implacável. – Pode ser na


sanzala. Aqui em África isso deve ser muito comum.

O meu silêncio queria representar que aquilo para mim era novidade.

– Para onde é que tu vais quando sais com a carrinha da


Administração? – insistiu Beatriz, mas num tom que não me dava a
saber se estava convicta de eu ter uma amante ou outra família.
– Gosto de passear. Queres ir passear?

– Não estamos a falar sobre se eu quero passear. Perguntei aonde vais


nos teus passeios.

– Antes de tu chegares, andava por aí… Gosto de conduzir. Tenho


uma vida simples e transparente.

– Fala-me da tua vida simples e transparente.

– Quando não trabalho, estou no Náutico, ou jogo xadrez no hotel com


os meus amigos.

– Quem são esses amigos?

– O Amaral, chefe de posto, o Pieter, funcionário das Finanças… Já te


disse que o xadrez deu a Moçâmedes a vitória nas Festas da Cidade de
Sá da Bandeira?

– Já – disse Beatriz, aborrecida.

Mostrei-lhe os meus contos e poemas mais recentes. Devolveu-me o


maço de folhas passados três dias: tinha corrigido algumas gralhas e
pequenos erros. A professora, que ela se preparava para ser, sobrepôs-se
à leitora de poesia, que eu sabia que ela também era. Questionou-me
sobre certas imagens, tomando-as como factos biográficos. Num poema,
eu referia-me ao «meu primeiro dinheiro honesto», e a uma «menina da
barraca de tiro da feira» que conseguira que eu gastasse ali as minhas
moedas a troco de olhares sedutores. Beatriz quis saber quem era essa
menina, que idade tinha eu quando a conhecera, e se, sendo aquele
dinheiro «honesto», tinha havido algum dinheiro que eu ganhasse de
modo desonesto. Fez-me um inquérito que misturou técnicas policiais e
ciúme retrospectivo e eu dei por mim a defender-me. Tomemos como
certo que nunca um poeta será entendido pela sua legítima esposa.

Fiquei a pensar na questão da carrinha. Agora com mulher e filha, e a


perspectiva de mais filhos futuros, eu tinha de mudar de hábitos. Um
dia, indo a Lucira em serviço com o Amaral, vimos dois carros
americanos, um Plymouth e um Oldsmobile, debaixo de um telhado de
zinco, à beira da estrada. No regresso, comprámo-los por cinco contos
cada. Reentrámos em Moçâmedes em grande estilo, cada um a conduzir
uma banheira americana. O Plymouth era o meu primeiro carro. Tinha
os travões desafinados; era preciso dar duas ou três pisadelas enérgicas
no pedal para o carro parar. Uma porta só se fechava batendo com muita
força. Lá atrás caberiam muitas crianças e sobraria espaço, achava eu. O
motor, com oito válvulas, das quais só seis funcionavam, chegava para
ultrapassar qualquer outro carro em esforço numa subida, como pude
constatar várias vezes ao fazer a ascensão da serra da Chela.

Por esta aquisição, fui cumprimentado pelo Saraiva:

– Vejo que se está a civilizar cada vez mais. É isso que faz a mulher
na vida de um homem.

– Acha?

– Sem dúvida. Ouça o que lhe digo: tudo o que um homem faz, tudo,
até as guerras, até os piores crimes, é por causa das mulheres, sobretudo
para lhes agradar. Tudo, Mateus.

– Se o diz…
– Digo e faço. E você também faz, mesmo que não o saiba. Tudo, mas
realmente tudo o que os homens fazem, é para as mulheres, ou por causa
das mulheres, ou tem a ver de uma maneira ou de outra com as
mulheres. Das coisas mais simples às mais complexas. É por causa das
mulheres que tomamos banho. Acha que se só houvesse homens no
mundo, os homens tomariam banho? Claro que não. E ir à Lua, e
construir fábricas gigantescas… olhe, tudo, tudo! Tudo tem a ver com as
mulheres. É só por elas e para elas que os homens constroem o mundo.

– Nunca tinha pensado nisso.

– Mas já pensei eu. Ouça alguém que envelheceu ao serviço do


Ultramar.

Três anos depois da chegada de Beatriz a Moçâmedes, rebentou a


sublevação no Norte, muito distante mas irradiando as suas ondas de
choque. Causou sobressalto a convicção de que as chacinas estavam
planeadas para acontecer em toda a Angola, e que só teriam resultado no
Norte devido à facilidade de recuo para o lado de lá da fronteira.
Descobriram-se listas com nomes de brancos a abater. Dizia-se que em
Moçâmedes existiam listas dessas, embora ninguém tivesse chegado a
vê-las. Qualquer branco se sentia no direito de achar que o seu nome
constava numa lista semelhante. Isto queria dizer que os assassinos
estavam em toda a parte, aguardando uma oportunidade, à porta de casa,
ou já lá dentro, na pessoa dos criados e dos serviçais. Mas, se isto
parecia verdade nas zonas isoladas do Norte, já não parecia tão certo ali,
no Sul, onde não havia movimentações suspeitas.
As pessoas diziam umas para as outras: «Connosco é diferente. Os
belgas, os franceses e os ingleses são funcionários que cumprem um
contrato, não se adaptam à terra, fazem uma contagem decrescente para
voltar para a Europa, perante a mais pequena ameaça vão-se embora.»
Ao contrário dos outros europeus, o colono português típico passava mal
em Portugal. Se em África prosperava e lhe nasciam filhos, sentia que a
terra era tão dele e dos filhos como dos nativos. A sua mulher não ia
para a Europa para os filhos nascerem lá. Embora preferisse uma família
branca, a ideologia colonial elogiava a fama do homem português de
fecundador de raças mistas. Imaginava esse homem pioneiro rodeado de
mulatinhos e comportando-se como um Adão, fundador de uma estirpe
adaptada aos trópicos. Como desalojar gente assim?

Em Moçâmedes, como noutros lugares, justiceiros por conta própria e


milícias civis espancavam e matavam negros. Um certo comerciante
chegava todos os dias a casa com as roupas sujas de sangue. A mulher
exigia que se lavasse no quintal antes de entrar.

A Administração obrigou as milícias a dissolverem-se. Chegámos a


prender, para os protegermos, os negros que poderiam ser as próximas
vítimas.

Falava-se de quatrocentos a mil brancos e cerca de seis mil negros


mortos no Norte. Já não se podia esconder que fora o maior massacre
contra brancos alguma vez ocorrido em África. Passado um mês desde o
começo dos ataques, Lisboa ainda não enviara tropas. A apatia do
governo central era vista como um sinal de que os brancos de Angola
estavam votados ao abandono.

Saraiva, o velho Saraiva, como gostava de se nomear, perdera nos


massacres a filha, o genro e os netos. Eu e Beatriz fizemos uma visita de
condolências. Dentro da casa, o luto pairava como incenso. Estava lá
muita gente. Falava-se em voz baixa. O secretário e a mulher estavam
sentados num sofá. Ele chorava muito, mais do que ela.

Um colega da sede da Administração, o Rebocho, chefe de posto,


cumprimentou-me de longe com um aceno de cabeça. Pareceu fixar-me
com uma certa determinação no rosto, como se tencionasse dizer-me
alguma coisa severa. E não me enganei, porque o vi dirigir-se até mim.
Segredou-me:

– Ele sente-se culpado porque pôs o genro no quadro administrativo.

– Sim, eu sei – disse eu.

– Gente que está sentada nos seus gabinetes, em Moscovo e em


Pequim, decide financiar terroristas para nos afugentar daqui. Interesses
de potências comunistas, decididos a milhares de quilómetros, nos
confins da Ásia, e a consequência é o velho Saraiva e a mulher a
chorarem ali no sofá.

Achei que Saraiva devia concordar com isto. Para ele, fazia sentido
que fossem agentes comunistas infiltrados, a soldo de potências
estrangeiras, a manipularem as boas gentes angolanas e a convencerem-
nas a atacar as boas gentes portuguesas.

– Vamos dar uma lição aos terroristas – tornou Rebocho, num tom
ciciado que dava mais solenidade à promessa. – Usaram em larga escala
um método que foi bem-sucedido com os belgas em pequena escala.
Mas com isto só mostraram não nos conhecer. Vamos defender os
nossos direitos. Não há ONU que nos ponha daqui para fora. Não há
imperialismo comunista que nos afugente. Vão descobrir que somos um
osso duro de roer. O mundo vai tornar a saber quem são os portugueses.

Era inaceitável a sugestão de que o povo angolano tivesse vontade de


se libertar do domínio do branco. Aquilo tinha de ser obra de líderes
políticos financiados no estrangeiro, ajudados por feiticeiros que
controlavam a mente dos negros, os quais não atacariam os brancos a
não ser que estivessem drogados ou aterrorizados. Se Saraiva aceitasse
que o desejo de liberdade era espontâneo na população negra, isso seria
a derrota dos seus ideais.

– Todos juntos – disse Rebocho – vamos dar uma grande resposta.


Seremos todos necessários. Conto consigo.

Seria isto uma chamada de atenção para a minha já famosa brandura?


A brutalidade e a repressão iriam aumentar e homens como Rebocho já
se perfilavam para estarem à altura dos acontecimentos. Fazia daquilo
uma questão pessoal. Senti repugnância. Mas tinha ido ali numa visita
de condolências e o velho Saraiva merecia-me suficiente respeito para só
querer pensar nele por agora. O seu choro, terrível de se ouvir,
relembrava-o.

Deixei Beatriz a falar com a mulher de Saraiva e, como este estivesse


nesse momento rodeado de pessoas, saí para o pátio da casa, onde se
reuniam alguns homens para poderem falar de um modo mais desabrido.
Também lá estava o Rebocho. Cada um queria ultrapassar os outros em
indignação e ninguém ouvia ninguém.

– Porque não fazer uma declaração unilateral de independência para


obrigar Lisboa a rever as suas prioridades em relação a África?

– A solução terá de ser a transferência do governo de Lisboa para


Luanda.

– A ONU apoia os nacionalismos africanos, a imprensa estrangeira


divulga notícias pró-independentistas, as grandes potências querem
explorar as riquezas do Ultramar português, mas nessa corrida o Leste
comunista revela-se mais capaz…

– Oh, os africanos não estão preparados para governar. Veja-se o


Congo… Caos, deboche, anarquia. Lá já ninguém trabalha. Só se
sobrevive roubando. Os animais entram nas cidades, a erva invade os
passeios e o asfalto. Os negros divertem-se nos elevadores, para baixo e
para cima, até que os avariam e ninguém os conserta.

– Angola permanecerá una, um oásis no meio do continente


desagregado, enquanto houver angolanos e portugueses em fraternal
união. Vai-se infligir a surpresa do século aos russos.

– Chegou a Luanda um grupo de danças folclóricas da Metrópole.


Enviem soldados, os dançarinos que venham depois.

– Alguns angolanos brancos querem dar rédea solta aos negros para,
instalado o caos, se apossarem do governo da Colónia e proclamarem a
independência. A imprensa pode ajudar nesse projecto, o que é perigoso,
ou, pelo contrário, ignorá-lo, o que também é perigoso.

– Que se fuzilem jornalistas, então.

– Não se pode continuar a aceitar que os angolanos brancos não


ocupem os mais altos cargos da administração e da economia, que a
balança comercial seja tão desfavorável, que compremos o que
produzimos. Podemos ser independentes. Portugal é que depende de
nós.

– Mas o governador-geral vai ou não chamar tropas de Portugal?

Voltei para dentro. Olhei para o secretário, sentado no sofá, sacudido


pelos soluços, sozinho e inalcançável, apesar de a mulher lhe segurar a
mão, apesar da visita dos amigos e dos colegas. Envelhecera, como ele
dizia, ao serviço do Ultramar, para chegar a perder as pessoas mais
queridas da maneira mais brutal. Parecia mais velho, pensei.

Outro exemplo de caducidade captou a minha atenção. A carrinha


Chevrolet da Administração fazia rondas para detectar movimentos de
gente forasteira, que viesse trazer ideias subversivas e ordens para a
rebelião. O traçado das ruas, regular e amplo, facilitava a observação.
Diante da casa mais isolada de Moçâmedes, os ocupantes da carrinha
viam o capitão Viegas, o mais velho habitante, no alpendre da casa, com
a obsoleta Kropatschek nas mãos, que ele fora buscar ao baú e limpara e
municiara. Envergava a farda do tempo em que combatera sob as ordens
de Pereira d’Eça. Ali se postava todos os dias, pronto a defender a
mulher, tão idosa como ele. Ostentava ao peito condecorações das
campanhas do Sul de Angola, como a «Medalha da Vitória» da Primeira
Guerra Mundial. O velho soldado permanecia no seu posto. Mantinha-se
vigilante, com uma arma tão velha como ele e que encravaria logo ao
primeiro tiro. Da carrinha da Administração, acenávamos-lhe. Ele fazia
um cumprimento seco, sem desmanchar a pose marcial. Com imagens
dos massacres impressas na minha mente, imaginei a casa a ser atacada.
O que poderia fazer o capitão Viegas, reformado do extinto quadro do
Exército colonial? Desfecharia um tiro ao atacante mais próximo e
depois sucumbiriam, ele e a mulher, às mãos que os despedaçariam.
Quando passava por ali, via-o na mesma posição, sentinela ineficaz e
teimosa que não podia defender mais do que a sua própria memória
senil.

10

Achei-me cheio de sorte por não ter sido colocado num posto do
Norte. Poderíamos, eu, Beatriz, as duas crianças entretanto já nascidas e
a terceira em gestação, estar agora entre os mortos.

As fotografias dos massacres apareceram em jornais, para diabolizar


os atacantes e justificar a violência da reacção que se preparava. Viam-
se terreiros de secagem do café onde jaziam os cadáveres de famílias
brancas e dos seus criados. O berço onde um bebé de dias estava morto.
Mulheres nuas, degoladas, em cima de capim rasteiro, com as pernas
afastadas e paus espetados nas vaginas. Pénis pendurados em estacas.
Cabeças cortadas de criados alinhadas como garrafas numa prateleira.
Um criado caído junto a uma porta e manchas de sangue na parede.
Cadáveres queimados, em posições hirtas. Corpos com membros
decepados, parecendo bonecos desarticulados. Corpos inchados pela
putrefacção. Pensei que Beatriz iria ficar transtornada ao ver as
fotografias, o que aconteceu em grau menor do que esperava. Atribuí a
força moral de Beatriz ao facto de estar grávida.

Achar que um acaso me protegera foi mais um motivo para seguir os


acontecimentos relativos a Mucaba. Durante dias, Angola inteira, por
rádio, seguiu os seus ecos angustiados.

Às oito da noite do dia 29 de Abril, mais de um mês depois dos


ataques de Março, quando muitos postos e povoações do Norte
continuavam isolados, a sala de operações da Força Aérea, no aeroporto
de Luanda, recebeu uma comunicação do chefe de posto de Mucaba: a
povoação estava a sofrer, desde as cinco e meia da tarde, um ataque de
milhares de rebeldes. Mucaba era uma minúscula povoação na crista da
serra com o mesmo nome, quase afogada pela selva, de acesso difícil.
Não era mais do que uma dúzia de pequenas casas brancas e uma igreja
de construção recente. Os defensores, um grupo de trinta e sete pessoas,
estavam refugiados na igreja e já quase tinham esgotado as munições. O
radiotransmissor P19 ia comunicando, aflito, o que se passava e pedia o
socorro de aviões que bombardeassem a área em volta, cheia de
atacantes. Alguns aviões de reconhecimento saíram de Luanda em
direcção a Mucaba e depararam com um nevoeiro impenetrável sobre a
serra. Às onze da noite o chefe de posto informava que a investida à
povoação prosseguia. Calculava em cerca de dois mil o número de
atacantes. Escasseavam as munições, mas as ruas da povoação estavam
cheias de cadáveres dos assaltantes. Pedia-se auxílio urgente. Perto da
meia-noite, nova comunicação do chefe de posto de Mucaba: «Estamos
a morrer… Não temos munições… Eles nascem do chão…» Quem
recebia as mensagens de Mucaba só podia antecipar a chacina total. As
agências noticiosas que acompanhavam, minuto a minuto, os pedidos de
socorro, já falavam nos «heróicos defensores de Mucaba». Entretanto,
mais dois aviões tinham partido para tentar socorrer a povoação. À uma
e meia da madrugada, nova mensagem do chefe de posto: «Não temos
munições… Eles investem sobre a porta principal da igreja… Salvem-
nos…» Um avião militar voltou sem ter conseguido largar caixotes com
munições e armas para os refugiados na igreja. Às três da manhã, o
emissor de Mucaba não respondia e, na sala de operações da Força
Aérea, uns achavam que os brancos tinham sido chacinados, outros
preferiam acreditar que o aparelho estava avariado. Os aviões rasavam
as árvores e a igreja, sem furar o cacimbo, sendo os motores ouvidos
pelos sitiados, e iam-se embora.

Os operadores de rádio da sala de comando esquadrinhavam os


quadrantes dos seus receptores, tentando encontrar a frequência do
emissor de Mucaba. Às cinco da manhã, partiu mais um avião PV2.
Rompeu o nevoeiro ao raiar da manhã e avistou a povoação. Numa
abertura do telhado da igreja, um dos sitiados acenava com alegria
frenética. Os atacantes dedicavam-se ao saque das casas, sem terem feito
tudo o que estava ao seu alcance para abater a porta da igreja, talvez por
acharem que o iriam fazer daí a pouco. O avião, em voos picados,
descarregou toda a capacidade de fogo que possuía sobre os sitiantes.
Rasou a crista das árvores e perseguiu os atacantes pelas ruas de
Mucaba, despejando as cinco metralhadoras. Caíram bombas onde havia
maiores concentrações. Os sobreviventes corriam a esconder-se na mata.
Esgotadas as munições, fez vários círculos e retomou os voos picados
para desbaratar os atacantes que, emergindo da mata, procuravam
reaproximar-se da igreja. Quando o avião regressava a Luanda, cruzou-
se com dois T6, de ataque ao solo, que iam continuar o socorro. Lá em
baixo, numa estrada serpenteante e íngreme, atravancada de árvores
derrubadas, uma coluna de militares e civis, na qual se contavam alguns
pára-quedistas, avançava devagar. Horas depois, um Dornier aterrou
numa rua de Mucaba, perto da igreja. Entre os atacantes havia mais de
trezentos mortos.
A imprensa enalteceu a «epopeia de Mucaba» e a «povoação mártir de
Mucaba». Foi dito que o ter permanecido naquela serra isolada, quando
já tinha havido tantos massacres em volta e se sabia que os rebeldes
estavam a monte, fora uma prova de patriotismo e coragem. O
governador-geral enviou um comunicado: «Acabais de praticar um dos
maiores feitos da nossa História. Angola inteira recordará os heróis,
civis e militares, de Mucaba, e venerará a memória dos que tombaram
no campo da honra.»

O chefe de posto de Mucaba foi chamado a Luanda. Promoveram-no a


administrador de circunscrição de terceira classe e recebeu a Medalha de
Ouro de Serviços Distintos e Relevantes no Ultramar. Conviveu com
generais e governadores, foi figura central de festas e recepções,
cumularam-no com honrarias. Facto que o regime sublinhou: o chefe de
posto era um mestiço cabo-verdiano, prova da fraternidade de todas as
raças, cores e tonalidades de pele no Império Português. Na Metrópole e
nas colónias havia a intenção de dar a certas ruas o nome de Heróis de
Mucaba.

A Emissora Nacional usou o episódio numa peça radiofónica, um


produto da propaganda oficial que queria mobilizar todos para a defesa
intransigente de uma Angola portuguesa. A mitologia colonial ia
precisar daquelas imagens de massas ou hordas que ululavam.
Recontavam-se os acontecimentos, para emocionar a audiência com um
caso que era já um símbolo. A narração era acompanhada por uma
música dramática. Actores, baseando-se na troca de mensagens entre a
povoação e Luanda, liam aos microfones, em diferentes tons
emocionais, um texto que reproduzia a sequência dos eventos. À voz do
narrador juntavam-se outras, a do chefe de posto e a do comandante do
avião salvador. A peça foi emitida várias vezes. Encontrei a ocasião de a
ouvir do princípio ao fim.

Dizia o narrador, numa voz pausada e clara:

– Mucaba está alcandorada nos picos da serra, entre cafezais, ali onde
o esforço constrói a prosperidade, onde brancos e pretos fazem do café
um dos símbolos de Angola. A povoação consiste em poucas casas
brancas tendo ao fundo a igreja, como um pastor seguido pelas suas
ovelhas. O acesso é difícil. Às cinco e meia da tarde do dia 29 de Abril,
começa o ataque. Milhares de homens ávidos de sangue e de carnagem
empunham catanas e cercam Mucaba. Trinta e sete defensores da
povoação refugiam-se na igreja, baluarte da fé cujas paredes e portas
podem resistir mais tempo do que as casas de habitação, estas feitas
apenas a pensar no são convívio entre raças. Dois mil assassinos,
eufóricos com os crimes que vêm praticando em fazendas isoladas,
aonde o socorro chega tarde, permitindo-lhes confiar na impunidade,
cercam os trinta e sete bravos. Entre cânticos guerreiros, guinchos
inumanos e urros, ouvem-se vozes de comando que dizem: «Não tenham
medo, as balas dos brancos não matam, as balas dos brancos são
água…» Trinta e sete bravos, com poucas munições, atiram da igreja e
fazem tombar aqueles que, dando saltos, gritos e gargalhadas selvagens,
querem beber o seu sangue. O chão esconde-se debaixo de cadáveres,
mas dele parecem brotar mais e mais atacantes, a quem a morte dos seus
irmãos de crime e de orgia não inibe de continuar a saltar, a gritar e a
gargalhar, antegozando o massacre dos trinta e sete bravos. Cada minuto
que passa aproxima os trinta e sete e os quase dois mil do confronto
físico, adiado apenas pelas últimas balas e pela espessura das paredes da
igreja. Às oito da noite a mensagem do chefe de posto, partindo do
reduto prestes a cair, chega à sala de operações da Força Aérea, em
Luanda.

Aqui fazia-se ouvir uma outra voz, emocionada mas firme:

– Mucaba está a ser atacada por milhares. Estamos na igreja.


Resistimos, mas as munições estão quase a acabar.

Regressava o narrador:

– Aviões partem em socorro da desesperada povoação, deste pequeno


rincão que quer continuar a ser português. Mas o que encontram é um
espesso nevoeiro, um cacimbo que não permite mais do que sobrevoar
cegamente a serra, como se os feiticeiros que comandam os assassinos
tivessem convocado esta protecção maléfica que lhes permitirá cevar o
seu ódio sem que possa chegar socorro. Já é noite e a luta não abranda.
As munições escasseiam. O emissor P19 continua a enviar pedidos de
socorro.

Ouvia-se a voz atribuída ao chefe de posto:

– Não temos meios para resistir. Socorram-nos. Eles aproximam-se.

– Outros postos – prosseguia o narrador –, sintonizados com a


frequência do emissor-receptor de Mucaba, seguem o drama e enviam
mensagens de encorajamento.

Neste ponto, outros actores faziam-se ouvir:

– Aguentem… Tenham coragem… A Força Aérea já está a


caminho…
A narração empolgava os ouvintes alternando a voz contida do
narrador e a emotividade corajosa do chefe de posto entrincheirado, tudo
isto pontuado por uma música que aumentava o clima de incerteza.
Dizia o chefe de posto:

– As nossas munições estão no fim. Mandem aviões. Eles são muitos.


Parece que nascem do chão. Não aguentamos mais. Ajudem-nos.

O narrador:

– Do interior da igreja, os resistentes ouvem o ronco dos aviões que,


não rasgando o nevoeiro, regressam às bases. A salvação tão próxima, a
duzentos metros acima do telhado da igreja, mas impotente. O clima é o
maior aliado dos atacantes. Um dos resistentes, quando espreitava para
repelir os atacantes mais próximos, é atingido e morre. A primeira baixa.
A bateria do P19 está descarregada e só permite, de vez em quando,
mensagens curtas.

O chefe de posto:

– Não temos munições. Eles investem sobre a porta da igreja. Vamos


morrer. Salvem-nos por amor de Deus. Combateremos até ao fim.

Neste ponto, o narrador intervinha:

– Combateremos até ao fim, diz o chefe de posto. Morrerão com


honra. Morrerão como portugueses. Na hora extrema, não esquecem os
maiores da História e da Pátria. Neste momento, já todos, incluindo
estes bravos que se preparam para morrer, sabem que se está a escrever
mais uma página heróica de uma saga eterna. O P19 emudeceu, com a
bateria fraca. Quem o escutava, quem queria continuar a escutá-lo como
se nesse fio de voz persistisse a vida dos sitiados, convence-se do pior.
São seis da manhã quando o P19, intermitente, permite enviar a
derradeira mensagem.

O chefe de posto:

– Vamos combater à baioneta quando eles arrombarem a porta.

O narrador:

– O chefe de posto não comunicou a decisão que tomaram: reservam


as últimas balas para se matarem, para não satisfazerem o desejo que o
inimigo tem de cevar o seu ódio animal roubando-lhes a vida de maneira
selvagem.

Surgia uma outra voz, a do último piloto, comunicando com Luanda


para dar conta do nevoeiro que já repelira os aviões anteriores e tentando
comunicar com os sitiados, cujo aparelho ficara mudo. O narrador
acrescentava:

– Atroz incerteza. Silêncio atroz. Fora avaria? Estariam mortos? Os


dois mil estariam a beber o sangue dos resistentes, pelo próprio crânio
destes, entretanto escalpelizado e descarnado? Que imagens terríveis o
silêncio e o nevoeiro impenetrável permitiam formar na mente dos
tripulantes do avião e daqueles que, muito longe, examinavam as telas
luminosas dos radares.

Mais adiante, após prolongar ao máximo a expectativa dos ouvintes:

– E dá-se o milagre. O manto que protegia os malfeitores cedeu uma


nesga à tenacidade inquebrantável dos tripulantes do avião. E foi à
primeira luz da manhã que Mucaba apareceu, alcandorada na serra,
avistada do alto por este anjo com um motor rugidor e cinco
metralhadoras que a civilização inventou para a defesa da civilização.
No voo picado sobre a povoação, sobre a igreja, sobre a turbamulta dos
assassinos que a cercam, um pensamento sombrio toma aqueles que
estão, do alto, a chegar: estariam os heróicos defensores já mortos?
Estaria a igreja já arrombada, teria o sangue dos defensores já sido
bebido no altar da igreja, numa negra missa satânica? Mas não, porque
um homem, um dos trinta e sete heróis, faz emergir o corpo por um
buraco do telhado da igreja e acena para o avião. Morte e devastação à
roda da igreja, morte prestes a arrombar a porta da igreja, mas ele,
sentinela que vê primeiro e é o primeiro a ser visto, ri de alívio e
felicidade porque ama a vida e acena para a vida que chega e a vida que
é salva no último segundo. Riamos nós com ele, choremos nós de
alegria com ele. O avião faz cair uma chuva de fogo, justíssimo fogo que
faz com que os assassinos, já não saltando, nem gargalhando, nem
gritando na antecipação da sua vitória vil, soltem uivos de hienas
afugentadas pelo rugido do leão.

E, ao fim de uma hora, o narrador chegava ao ponto culminante:

– Heróis de Mucaba, vós fostes o sustentáculo da alma lusa. Que o


vosso acto inspire o maior número de almas e ajude a reerguer o espírito
do ser pátrio. Vós colocastes-vos no seguimento daqueles que serviram a
glória da nação em actos de dedicação e sacrifício. Provastes que somos
capazes de cometimentos que não desmerecem da obra imortal e
soberba dos nossos antepassados. Não foi já o mesmo em castelos
cercados por mouros, no território natal, e em quadrados defensivos
assaltados por castelhanos? Não foi já assim em cidadelas muralhadas
envolvidas por multidões de turcos e asiáticos, na Arábia e na Índia?
Não foi assim em acampamentos com paliçada de madeira vandalizados
por índios no Brasil? E não foi parecido o que aconteceu no próprio solo
angolano, há trezentos anos, quando baluartes de resistência derrotaram
os invasores holandeses? Como sempre acontece com portugueses, vós,
heróis de Mucaba, resististes em inferioridade numérica e prevalecestes
auxiliados apenas pela força da fé. Quem quiser saber o que é o
patriotismo, olhará para vós. Defendestes o património que é vosso por
direito e por justiça, o património adquirido e desenvolvido à custa do
suor e do sangue dos filhos da nação, à custa do sacrifício de tantas
vidas. Com a vossa fé inabalável, o vosso heroísmo, engrandecestes um
povo que no mundo tem erguido os mais altos monumentos da Fé e da
Coragem. Altos destinos chamam por nós. Respondamos todos à
chamada. Cabeça erguida, músculos retesados, continuemos a obra
iniciada. A vós, heróis de Mucaba, e a todos que ouvis, dizemos: Viva
Portugal!

Sozinho, sentado na poltrona, eu tinha ouvido tudo. Confesso que,


enquanto ouvia, olhava para a parede à minha frente, como se alucinasse
aí, numa tela imaginária, as pessoas e os objectos que a narrativa
evocava. Devo admitir também que, por uma hora, suspendi quaisquer
outras considerações e me deixei afectar pelo relato. E, já agora, não
vale a pena esconder que me soerguia da poltrona nos momentos mais
emotivos e culminantes como quem se prepara para se levantar de um
pulo, em alerta, escutava cada palavra saída do aparelho de rádio como
se estivesse lá, na igreja cercada que não ia resistir muito mais tempo, e
os meus ouvidos tivessem de se aguçar para ouvir passos nos degraus da
porta e o raspar das catanas já a experimentar a solidez do metal da
fechadura.
Refiz-me da experiência. Enterrado na poltrona, recuperei das
emoções. Pensamentos sombrios vogavam à tona da minha consciência.
Mas foi outra voz que ouvi e me pareceu estranha e diferente:

– Pai, a mãe está a chamar para o jantar.

Era a Célia, então com seis anos, que espreitava pela porta do
escritório. A rotina doméstica estava intacta. O que se passara longe dali
só me chegava nas ondas electromagnéticas de uma antena da rádio.

11

Era necessária uma afirmação de soberania. Salazar, com algo de


seminarista, mestre-escola e merceeiro, tinha feito de Portugal um misto
de convento, escola primária e mercearia. Reunia as tendências
estruturais da nação: autoritarismo, nacionalismo e colonialismo. Era a
emanação da personalidade colectiva, que delegara nele a condução de
um Estado paternalista e policial. Faltava-lhe a vertente militar, que
agora poderia ser activada. Então, Salazar enviou tropas para ocupar a
região amotinada. O gesto do ditador foi visto como magnânimo.

Dois batalhões de caçadores e quatro companhias de artilharia


chegaram a Luanda no segundo dia de Maio. Dois mil homens
desfilaram na Avenida Marginal. Os luandenses, delirantes de alegria,
como antes tinham estado de terror, atiraram flores, aplausos, gritos de
incentivo. A tropa vinha vingar os brancos mortos, esmagar os rebeldes.
Passados dois meses desde o começo dos ataques, durante os quais só se
contara com as milícias civis e os efectivos militares presentes no
terreno, uma enorme coluna partiu para os distritos do Norte, escoltada
por aviões da Força Aérea. Saiu de Luanda pela estrada de Catete e
estendeu-se por centenas de quilómetros. Depois, fragmentou-se em
destacamentos cada vez mais pequenos, distribuindo-se pelo território.

Os colonos, nos lugares isolados, possuíam uma cultura de fronteira e


confiavam no uso da força. Tinham deixado a pobreza em que viviam e,
acossados, sem um lugar para onde se retirar na Metrópole, iam
defender-se sem se preocuparem com a opinião pública mundial, que
aliás não conheciam por causa da censura. Em seu auxílio viria a
paranóia nacional da pátria-mãe, que reagia a perigos de invasão com
atitudes exacerbadas de patriotismo, uma espécie de loucura heróica que
se inspirava nas glórias passadas. Os nacionalistas africanos tinham pela
frente, não apenas uma potência colonial obsoleta, mas a própria
encarnação do hipernacionalismo europeu.

Para combater a infiltração de agitadores, a Administração aumentou


os interrogatórios, as prisões, os desaparecimentos. Os agentes
encarregados de interrogar e torturar adoptaram uma máxima que se
supunha baseada num saber antigo: «O preto só fala com pancada.» As
rusgas às sanzalas passaram a ter como alvo os suspeitos de terrorismo,
contando com a colaboração da Polícia. As armas eram obrigatórias.
Para o desafio dos novos tempos, a espingarda Kropatschek começou a
ser retirada dos postos administrativos e foi substituída pela pistola-
metralhadora FBP, que tinha uma cadência de quinhentos tiros por
minuto.

Quando, em Moçâmedes, uma remessa destas pistolas-metralhadoras


chegou para ser distribuída aos funcionários da Administração (mas não
aos cipaios), um militar do Exército veio dar-nos instrução. O
administrador de concelho dispensou Saraiva deste treino. O velho
Saraiva, a alcunha que ele escolhera para si, estava alquebrado, abatido.
Devia ser-lhe difícil pegar em armas depois do assassinato da filha e dos
netos.

Os funcionários aprendiam a desmontar e montar a pistola-


metralhadora em menos de dois minutos, cada um diante de uma arma
posta em cima de uma mesa. Eu não conseguia uma coordenação rápida
de movimentos. O que me parecia ser uma peça destacável afinal não
era; a peça que decidira ignorar, por me parecer inseparável de outra,
afinal desatarraxava-se, desenroscava-se, desacoplava-se. Feito isto, não
conseguia perceber onde se tornava a encaixar cada peça solta. Ficava a
olhar para um puzzle incompreensível sobre a mesa.

O chefe de posto Rebocho exibia um dom natural para estes


exercícios. Oferecia-se quando o instrutor pedia um voluntário para
demonstrações. Manejava a arma como se fosse um prolongamento do
seu corpo. Julguei ver olhares de desdém de Rebocho dirigidos a mim.

A meio da primeira sessão de explicações sobre a pistola-


metralhadora, alguém bateu à porta. Era Saraiva, que entrou perante o
silêncio de todos. Apesar de dispensado, queria aprender o mesmo que
os outros. Na carreira de tiro, os meus desempenhos foram tão
medíocres como dentro da sala. Mas não fui o pior classificado: o
secretário Saraiva tremia quando carregava no gatilho. O instrutor,
informado da sua tragédia familiar, abordava-o com modos
benevolentes.

12
Os funcionários da Administração e alguns polícias e agentes da PIDE
foram ao porto de Moçâmedes esperar um navio que trazia de Luanda
cinquenta e cinco nacionalistas presos. Era de noite. Holofotes emitiam
uma luz doentia sobre o cais. Eu carregava a pistola-metralhadora que
me fora atribuída e que não saberia usar. Os cipaios estavam perfilados.
Mais atrás, as carrinhas prontas para levarem os presos para a cadeia da
Polícia. Perto de Moçâmedes, fora criada a colónia penal de São Nicolau
para fixar indivíduos implicados em actividades subversivas. Os que
escapavam à tortura da PIDE e ao isolamento das celas cultivavam as
terras.

O navio já tinha passado a Ponta do Giraul, o extremo norte da baía.


Daí a meia hora lançaria as suas amarras sobre o cais. Sob a luz artificial
que varria o espaço, senti a corrente emocional que ligava todos aqueles
homens. Observei o Rebocho. O chefe de posto, impecável na sua farda,
com as mãos cruzadas atrás das costas, levantava-se repetidas vezes nas
pontas dos pés, erguendo e baixando os calcanhares e fazendo ruído
quando estes batiam no chão. Tinha os sentidos alerta, os músculos
tensos, prontos, como um cão de caça. Como poderia eu competir com
esta prontidão?

O navio acostou. Pusemo-nos em posição para recebermos os presos.


Estes desceram em fila indiana. Quando a maioria já tinha passado,
vimos um indivíduo lá em cima, debruçado sobre a amurada, gritar:

– Atenção! Vai descer o Van Kolken!

Todos olhámos, para ver quem ia aparecer no topo das escadas. Vimos
descer um africano magro, com aspecto inofensivo e uma pequena
trouxa às costas. Era um activista político. Temiam-no porque era
instruído. O chefe da escolta devia ter feito aquele espalhafato para
exibir o seu próprio zelo.

As carrinhas em que os presos seguiam muito apertados arrancaram


para a cadeia da Polícia. Numa camarata cheia de presos, apinhando por
completo um espaço onde não podia haver privacidade, Van Kolken
arranjou um lugar, vestiu a farpela de prisioneiro, dobrou as suas roupas
sobre a cama e sentou-se na borda da mesma, as mãos sobre os joelhos,
olhos fitos no chão, alheado da sujidade e do tumulto envolventes.
Soube mais tarde que não foi para o Campo de São Nicolau, onde só
poderia ser obrigado a trabalhos duros, mas para a secretaria de uma
pescaria, num lugar ermo e sujeito a vigilância.

Numa noite, chamaram-nos para participar numa rusga às sanzalas


próximas de Porto Alexandre, em reforço dos colegas desta vila
piscatória, ligada a Moçâmedes pelas estradas do deserto e incrustada
numa costa árida e plana que continuava, sem variações, até à Baía dos
Tigres e à fronteira sul. Havia rumores de que os rebeldes do Norte
estariam a preparar um grande ataque na zona de Moçâmedes, igual ao
que acontecera lá em cima. Era preciso apanhar os indocumentados e os
estrangeiros, os principais suspeitos. Numa das tabancas, vimos um
negro albino, sentado numa cadeira, muito quieto, de costas para a porta,
como que a olhar para a parede ou para o vazio. A pele era clara, o
cabelo era uma penugem rala, cor de laranja. Os olhos, que espreitei à
distância, eram aquosos e vítreos. Não se mexeu do lugar e ninguém o
interpelou. Não foi removido da sua pose imóvel e distante. Em muitas
partes de África havia superstições acerca dos albinos. A atmosfera
sobrenatural que o rodeava contagiou os elementos da Administração.
13

Havia por ali agentes da PIDE que tinham ido a Lisboa aprender
técnicas de interrogatório e tortura. Rebocho, que a isso não era
obrigado, oferecia-se para assistir e participar. Numa das suas típicas
fanfarronadas, dizia aos agentes da Polícia sobre determinado
prisioneiro:

– Eu faço-o falar!

Os sádicos e os psicopatas, num ambiente favorável ao uso de


quaisquer meios para se obter resultados, podiam sair das suas carapaças
administrativas e florescer em todo o seu esplendor.

Não era o caso do chefe da Polícia, que eu conhecia bem porque


tínhamos um interesse comum em poesia. Às vezes ele mostrava-me
poemas da sua autoria, versos de um lirismo banal. Nunca pensei ter de
assistir ao aniquilamento da sua personalidade; o facto de ele escrever
maus versos não o tornava merecedor de tal sorte. Quando disse que não
queria assistir aos interrogatórios com torturas, os agentes da PIDE
obrigaram-no, por ser chefe da Polícia. Ao fim de uns dias, sentindo-se
tão torturado como os prisioneiros, deixou de conseguir dormir e foi-lhe
dada uma licença médica. Lamentavam-no: «O homem fazia versos…»

Recebi a visita do chefe da Polícia no meu gabinete. Trazia alguns


sonetos para eu ler. Num primeiro momento, quando o vi com um ar
abatido, a minha solidariedade de autor poético levou-me a pensar que
ele estava desanimado com os poemas, e só depois é que me lembrei das
verdadeiras razões da sua licença médica. Com gestos lentos e uma
fisionomia apática, abriu a pasta dos seus manuscritos e aproximou-me
uma folha muito rasurada:

– Veja como ficou esse…

Reli o soneto, que me parecia pior a cada releitura. A imagem era


muito estafada: o poeta voltava ao cais de onde vira partir a mulher
amada, olhava para o horizonte e ansiava ver a vela do navio que traria
de volta a dona do seu coração. E digo «dona do seu coração» porque
essa frase estava lá. Enquanto eu lia, senti que ele me fitava com
intensidade.

– Vê a diferença? – perguntou. – Substituí «redondamente» por


«ocamente». Ele sente-se oco, a mulher partiu. Que acha?

– Sim, ele sente-se oco – tentei esquivar-me, sem convicção.

– Mas não gosta?

– Da outra vez perguntou-me o que é que eu pensava da palavra


«redondamente». Transporta a ideia da redondeza da Terra, do mar, a
redondeza do corpo da mulher, que lembra o abraço, o amor…

– É verdade, esqueci-me disso. – O chefe da Polícia tornou a pegar na


folha, riscou «ocamente» e reescreveu «redondamente».

– Senão, é pior a emenda que o soneto.

Ele olhou para mim com sobressalto. Percebi, tarde demais, que a
minha propensão para os provérbios me tinha traído. Tentei compensar:

– Mas você é que sabe o que faz mais sentido para si.
– Não, não, tem razão. Aquilo do abraço, do amor… E veja este.
Escrevi-o ontem, para tentar esquecer certas coisas… Mas deparei-me
com um problema: preciso de uma palavra que rime com «lâmpada».

– Isso vai ser difícil.

– Não há? Já fui ao meu dicionário, mas é fraquinho.

– Lâmpada, lâmpada… assim de repente…

Li o poema e sugeri:

– Porque é que não põe «vela» em vez de «lâmpada»? «Vela» tem


mais tradição do que «lâmpada». E encontra rimas mais fáceis para
«vela».

– Dê-me exemplos. – Ele dispôs-se a escrever, como um aluno


aplicado.

– Há tantas… «Tela»… «trela»… «bela»… «ela»… «dela»… Sabe,


eu pratico mais o verso livre.

– O verso livre? O que é isso?

Quando, para meu alívio, os manuscritos regressaram à pasta, o chefe


da Polícia deixou-se ficar sentado, em silêncio. As mãos, postas sobre a
mesa, tinham um tremor ligeiro.

– Não imagina o que me custou vir aqui – disse ele. – A prisão é


mesmo ao lado. O que eles fazem nos interrogatórios…

Perante a hesitação dele, perguntei:


– O que é que eles fazem?

Olhou para as próprias mãos, agora erguidas como num gesto de


rendição, e disse:

– Partem os dedos das mãos dos presos à martelada. O barulho dos


ossos a partirem-se…

Tornou a pousar as mãos na mesa, para disfarçar os tremores. Olhou


para mim como se estivesse insensível e acrescentou, com uma voz que,
por ser neutra, soava de modo sinistro:

– Fazem-lhes cortes com navalhas em várias partes do corpo. Na


língua, nas orelhas, no nariz, nos dedos, nos testículos…

Esta enumeração provocou-me um desconforto físico que contrastava


com a apatia e lentidão do chefe da Polícia.

– Não admira que você não tenha aguentado aquilo – disse eu.

– E queimaduras – tornou ele, no mesmo tom –, fazem queimaduras


com maçaricos ou com álcool a que chegam fogo. Têm lá uma corda,
amarrada ao pescoço do preso, que passa por cima de uma trave e é
puxada para o estrangular, até quase ao desmaio… Mas há sempre um
ou outro que morre.

Calou-se, a olhar para mim. Eu não sabia o que dizer; para aquilo já
não havia rimas fáceis. Mas ocorreu-me:

– Ouvi dizer que o director do Campo de São Nicolau encomendou


uma cadeira eléctrica. É verdade?
– Ouvi-os falar disso, lá nos interrogatórios – respondeu, com aparente
indiferença.

Remeteu-se a um silêncio demorado. Depois, de maneira bizarra,


ergueu de novo as mãos que tremiam e simulou o gesto de apertar o
próprio pescoço. Eu não sabia o que pensar daquilo e já estava a ficar
inquieto, quando ele disse:

– Obrigam os presos a enforcarem outros presos. Vi um pai que teve


de enforcar o filho, e um filho que teve de enforcar o pai.

Percebi finalmente que havia um desfasamento entre as palavras e os


gestos do chefe da Polícia: com as mãos fazia o gesto que pensara
simular e só alguns segundos depois é que o explicava por palavras.
Desta forma, cerrou a mão direita e aproximou-a de um olho, como se
fosse um óculo, e só depois do que me pareceu muito tempo é que
juntou:

– Está aqui um torturador da PIDE que se especializou em arrancar


olhos. Coloca os olhos na mão da vítima e manda-a embora.

Ainda se demorou, em silêncio, no meu gabinete. Disfarcei o melhor


que pude a impaciência por o ver ir-se embora. Por fim, despediu-se.
Quando já estava perto da porta e de costas para mim, ouvi-o murmurar:

– Lâmpada, lâmpada…

14

Rebocho, que não tinha um posto atribuído para chefiar, recebeu


carta-branca para interrogar prisioneiros na busca de informações. Esta
era a cruzada em que ele e tantos outros podiam prosperar. Sentia-se
cheio de importância com o seu novo poder e a liberdade de acção.
Levava prisioneiros para o deserto e enterrava-os só com a cabeça de
fora, para os obrigar a denunciar outros rebeldes. Deixava-os ali
sozinhos, ia-se embora, depois voltava, ameaçando deixá-los para
morrerem.

Se alguém comentasse a força envolvida nos interrogatórios, reagia:

– Não há perdão para assassinos e violadores de crianças. Que fariam


vocês com o assassino dos vossos filhos?

Tornara-se um celerado. Se alguém dissesse que as torturas só


agravariam a revolta dos negros, ele respondia:

– Só porque o bandido é negro ninguém lhe pode tocar? O Estado tem


o direito de reprimir o terrorismo e defender as pessoas de bem.

Evocava o exemplo de Saraiva, que perdera a filha e os netos.


Apropriava-se da dor e do luto de Saraiva para justificar tudo. Quanto
mais Saraiva se afundava na apatia, mais ele se mobilizava para a acção.

Um dia, alvoroçou toda a gente da Administração com a notícia de


que tinha recolhido informações sobre um submarino russo que ia, numa
das próximas noites, descarregar material num ponto deserto da costa,
perto de Moçâmedes. Havia muito que se dizia que submarinos russos
chegavam às costas angolanas e descarregavam armamento para os
guerrilheiros.

Rebocho procurou arregimentar camaradas para essa caça ao


submarino. Um dia em que estavam reunidos vários funcionários,
perguntei-lhe:

– O que é que os russos vêm fazer às praias de Moçâmedes?

– Não sabes? – reagiu ele, arregalando os olhos. – Não sabes que a


Rússia quer tomar conta de África? Financiam os terroristas para nos
expulsarem e depois vêm eles para aqui mandar. As praias de
Moçâmedes não são vigiadas. É debaixo do vosso nariz que vão passar
as armas que podem matar as vossas mulheres e os vossos filhos? Só por
cima do meu cadáver! Começaremos hoje à noite a vigiar as praias.
Quem vem comigo?

Olhou para os aspirantes e chefes de posto, mas não houve


voluntários.

– Ouçam… Quem transformou em terroristas os pretos portugueses


que viviam na paz e na prosperidade que nós criámos? Quem? Agentes
comunistas. Quando meterem as mãos no que é nosso, vai tudo pelo
cano abaixo, como aconteceu no Congo. É contra isso que estamos a
lutar.

Houve murmúrios e monossílabos de concordância.

– O administrador espera voluntários, se não houver nomeará alguns.


Mas pelo amor de Deus, não há voluntários? Não há ninguém? Muito
bem – disse Rebocho, encarando todos em tom de desafio. – Quem está
comigo na defesa de terras que há mais de quatro séculos são terras
cristãs de Portugal?

Ninguém respondeu.
– Vocês envergonham aqueles homens lá de cima que pegaram em
armas para defenderem fazendas e vilas contra hordas inteiras.

– Ó Rebocho… Essa do submarino russo… – disse um.

– Ouçam… Não sejam tolinhos. Em Angola joga-se o xadrez mundial.


Peões negros contra peões brancos, a Rússia contra o Ocidente.

– Pergunta ao Mateus se essa metáfora está bem aplicada, porque o


Mateus é que é o especialista em xadrez. Mateus, o que é que achas?

– É boa, a metáfora – disse eu.

– Ouviste? A metáfora é boa.

– Vocês estão a gozar – disse Rebocho, fuzilando um a um com o


olhar. – Não vêm comigo? Vou ter de ir sozinho com o meu cabo de
cipaios?

– Quando vires o periscópio do submarino manda o cipaio chamar-me.

– Brinquem, brinquem… Até um dia em que já não vão brincar mais.

Foi-se embora com o ar de quem ia enfrentar sozinho o império


soviético. Acompanhado por uma pequena tropa de voluntários e
cipaios, foi vigiar a costa, ao frio, durante algumas noites. Nada
aconteceu. Mais tarde, alguém que esteve presente numa dessas noites
contou-nos que Rebocho se empolgou quando seguia, através dos
binóculos, um objecto estranho, oval, que assomou à superfície das
águas e se aproximou da areia, até descobrir que era uma tartaruga
gigante. A história provocou risos e circulou nos corredores do edifício
da Administração, nas costas de Rebocho.

Vieram dizer-me que quando Rebocho solicitou ao administrador um


aspirante que o acompanhasse em certas acções, e alguns nomes foram
propostos, o administrador Gouveia disse, quando o meu nome foi
pronunciado:

– É um bom funcionário, mas não tem mão nos pretos. Pense noutro.

15

Todos os meses, o administrador Gouveia enviava ao governador de


distrito um relatório sobre acções antiterroristas, baseando-se nos
relatórios dos chefes de posto do concelho. Eu coligia as informações.
Quando não havia actividades suspeitas a reportar, escrevia-se no
parágrafo correspondente: «Nada a referir.» O administrador, desejoso
de mostrar serviço aos superiores, dizia-me:

– Nada a referir? Outra vez? Invente qualquer coisa, homem…

Eu inventava: «Foi interceptada uma carrinha com elementos


africanos desconhecidos, os quais foram identificados como
trabalhadores a caminho da Baía dos Tigres. Foi avistado um avião
bimotor a sobrevoar o concelho, apurando-se que era pilotado, em
recreio, por um fazendeiro da Huíla.» Era preciso escrever qualquer
coisa e o administrador ficava satisfeito: detectaram-se movimentos e
descobriram-se as causas. Assim eu fazia o que estava ao meu alcance
para ajudar o Império a manter-se.

Uma vez que eu não era solicitado para operações mais musculadas, o
administrador escolhia-me para o acompanhar nas suas rondas a todos
os postos do concelho. Gouveia era um homem com uma inteligência
prática. Gostava de explicações simples que levava até às últimas
consequências. Evitava as visões globais e complexas, as alternativas
incertas. Era frequente dizer: «Lá está…», para associar a novidade à
explicação que já adoptara, que já trazia pensada e arrumada dentro da
sua cabeça, não sendo coerente a associação que estabelecia.

A sua explicação para as lutas de independência resumia-se à


influência que as missões protestantes tinham sobre os nativos. As
missões católicas ocupavam-se dos graus mais básicos do ensino, tendo
em vista as profissões mais modestas e a formação de uma mão-de-obra
barata ao serviço dos brancos, enquanto as missões protestantes
preparavam para a admissão aos liceus e formavam quadros africanos.
Depois dos massacres, algumas missões protestantes foram atacadas,
outras encerradas por não se poder garantir a sua segurança. O governo
expulsou missionários sob a acusação de fazerem propaganda
subversiva. Pastores metodistas norte-americanos e canadianos
declararam que dezenas de padres negros da sua congregação foram
presos ou mortos.

– O problema – dizia Gouveia – é que o ensino mais avançado dos


nativos está entregue às missões protestantes, a estrangeiros que não
zelam pela portugalidade desta terra. Muitos nem falam português,
trabalham as mentes com ideias de independência, dão abrigo a
rebeldes. O que é que você julga? Todos esses nacionalistas angolanos
estudaram em escolas das missões protestantes.

– Houve missões atacadas pelos rebeldes – contrapus.


– E quem me diz que não foram os missionários que disseram para
lhes destruírem as instalações, para não parecer suspeito que no meio de
tanta destruição só elas ficassem de pé? Isto tudo tem uma razão.

– E os padres americanos e ingleses que tiveram de fugir, com medo


de represálias? – perguntei, interessado no raciocínio do administrador.

– Lá está… Fugiram porque se sentiam culpados. Sei de fonte segura


que as missões protestantes possuem postos retransmissores
potentíssimos, muito melhores do que o nosso P19. Para que é que eles
querem esses meios tão avançados? É para falarem com Deus? Não me
parece.

– É para quê, então?

– Ora, é para controlarem as operações na sua área de influência. As


missões protestantes são a guarda avançada da CIA em África. São
espiões e agentes subversivos. Depois queixam-se de que são atacados.
Não aprovo a violência, mas tenho de compreender porque é que eles
são atacados. Isto quando não são eles a destruir as suas próprias
instalações, para ocultarem provas comprometedoras e dizerem que
fomos nós. O problema é que esses padres estrangeiros partilham a
opinião dos políticos dos países deles. São a favor desta moda dos
nacionalismos africanos. É bom que percebam que o Estado autoriza a
liberdade de culto apenas se não lesar a soberania portuguesa e a ordem
pública. Se se limitassem a ensinar a ler e a escrever, tudo bem, mas
falam aos negros de liberdade e de justiça. Mesmo que não queiram,
encorajam o terrorismo. Estas verdades têm de ser conhecidas no mundo
inteiro. No antigo Congo Belga morreram sete europeus, em Angola
largas centenas. Temos de mobilizar a nosso favor a consciência
mundial, como os belgas fizeram com os seus sete mortos.

– Os belgas tinham a tarefa facilitada, porque queriam ir-se embora.


Nós estamos na situação oposta: queremos cá ficar quando o resto do
mundo diz que devemos sair.

– Lá está… – disse o administrador, com um gesto evasivo. – Como


pode Angola ser independente, se é uma criação de Portugal? Os líderes
dos movimentos de independência vivem no estrangeiro há muitos anos
e não conhecem a realidade angolana, já não conhecem a terra nem o
povo que eles imaginam poder governar.

Percebendo que os argumentos místicos não eram o meu forte, o


administrador concluiu, como se recitasse um versículo bíblico:

– Angola vai continuar portuguesa, porque essa é a vontade dos


angolanos e de Deus.

«Deus deve ter planos especiais para nós», pensei. «Se calhar desistiu
dos judeus e agora escolheu os portugueses.»

Vimos um carro avariado na estrada. Um indivíduo com roupas claras


e chapéu colonial olhava para o jipe da Administração, que se
aproximava. Era um geólogo que vinha da serra da Chela, onde
pesquisava as jazidas minerais. Demos-lhe boleia para Moçâmedes, de
onde sairia um reboque para ir buscar o carro avariado.

O administrador fez algumas perguntas sobre as pesquisas geológicas.


O geólogo, falando das jazidas de mármore, calculou que durariam vinte
mil anos. Senti o contraste entre o tempo actual, onde se fazia a
guerrilha e a contraguerrilha, as prisões e as torturas, e o tempo das eras
da Terra que se conta por milhões de anos. Olhei com inveja para o
geólogo, que parecia mover-se à vontade nesse outro tempo. Depois,
olhei na direcção da serra da Chela e tive um pensamento que me fez
sorrir: «Angola ainda será portuguesa daqui a vinte mil anos?»

Éramos uma criatura de lenda, dormíamos um sono enfeitiçado, não


queríamos acordar para as novidades da segunda metade do século xx.
Mas não éramos só isso. Ter um império colonial permite vestir todas as
peles oferecidas pelos contos de fadas: para muita gente éramos o ogre,
o diabo, o génio mau. Íamos acordando aos poucos do nosso sono, a
cada murro que nos davam, porque, pouco depois, houve mais surpresas.
Em Agosto, tropas do Daomé tomaram o Forte de São João Baptista de
Ajudá, erguido na antiga Costa dos Escravos, no século XVIII, para
proteger o tráfico que ali se fazia desde o século XV. Só lá estavam dois
funcionários, que lançaram fogo às instalações. Em Dezembro, a União
Indiana anexou os territórios de Goa, Damão e Diu: a guarnição inteira,
três mil e quinhentos militares, foi presa; era o fim de quase quinhentos
anos de presença portuguesa na Índia.

16

Os torneios de xadrez já não contavam com Amaral, transferido para o


posto de Cainde. Fui visitá-lo.

A duzentos quilómetros de distância para o interior, Cainde não era


mais do que o posto administrativo e o posto de enfermagem,
envolvidos por sanzalas com uma população numerosa. Brancos, apenas
Amaral, o enfermeiro do posto sanitário e um comerciante que ia lá abrir
a loja em certos dias da semana, um barracão com paredes de adobe e
coberto por chapas de zinco. Um lugar longe de tudo, sem escola. A
mulher e os filhos de Amaral tinham ficado em Moçâmedes.

Quando parei o Plymouth diante da casa do posto e desliguei o motor,


fui envolvido pelas vagas da Quinta Sinfonia de Beethoven. Olhei para o
pequeno edifício, cuja porta e janelas abertas escoavam as notas
sinfónicas em catadupa. Não estava ninguém à vista. O mato parecia
desabar sobre as poucas casas. Imerso naquela atmosfera sonora tão
inesperada, julguei estar num sonho. Amaral apareceu à porta. Reentrou
na casa e foi baixar o volume de som do gira-discos.

A porta e as janelas do fundo estavam escancaradas. No alpendre das


traseiras, dois cipaios estavam a limpar as velhas espingardas
Kropatschek.

– Vim no dia das limpezas – observei, indicando os cipaios.

– Não. É só para os manter ocupados.

Sentámo-nos à mesa de trabalho. Na parede estava pendurado o mapa


da região, desfigurado por sinais e legendas. Amaral usava as mangas da
camisa branca da farda para ocultar os pêlos abundantes dos braços. Do
colarinho bem apertado teimavam em espreitar pêlos do peito e do
pescoço.

– As saudades que eu tenho de uma das nossas partidas de xadrez –


disse-me. – Aqui desterrado, só posso jogar contra a minha própria
sombra.

– Como é que os nativos te encararam?


– Acho que bem. Tenho aí um soba. Os nativos andam a fazer-nos de
parvos com os sobas. Sabem que a Administração só os reconhece para
se aproveitar da autoridade deles. Quando vamos às aldeias e
perguntamos pelo soba, apontam o mais velho. Ninguém me tira esta da
cabeça: o soba verdadeiro esconde-se no mato e nunca aparece aos
brancos. Atrás do soba fantoche está o verdadeiro, que é quem manda.

– Faz sentido – considerei.

– Mas digo-te uma coisa… Se houver por aí um soba verdadeiro


escondido, a espiar-me, eu hei-de descobri-lo.

– E o teu soba fantoche?

– Calças azuis, jaqueta com muitos botões dourados, um chapéu de


coco, tampas de latas de conserva a fazerem de medalhas… Traz sempre
uma sombrinha franjada de rendas. Disse-lhe que não terá problemas se
me facilitar o recrutamento de trabalhadores. Mas terá problemas se não
o fizer. Cada macaco no seu galho, eu incluído.

– Postos como este – disse eu –, rodeados por milhares de negros, se


eles se revoltarem basta-lhes as mãos nuas e dão cabo de ti, do
enfermeiro, do comerciante e dos cipaios. Para te defenderes, tens armas
com cem anos.

– As Kropatschek? Encravam ao primeiro tiro. Mas esqueces-te de


que a principal arma é o medo. Enquanto eles tiverem medo não nos
farão nada.

– Já tiveste de julgar algum caso?


– Um deles veio queixar-se. Tinham-lhe destruído metade da horta e
roubado duas enxadas. Não havia suspeitos. Perguntei-lhe se havia
alguém que tivesse tido a oportunidade de fazer aquilo sem ser visto.
Apontou-me três ou quatro nomes. Chamei um deles ao acaso e mandei
um dos cipaios dar-lhe vinte palmatoadas em cada mão. Era demasiado
moroso descobrir o culpado. A morosidade da justiça encoraja os negros
a vingarem-se uns dos outros e mais vale castigar depressa um inocente
do que não fazer nada. Ele disse-me: «Patrão, eu não fiz nada!» E eu
respondi-lhe: «É para veres o que te aconteceria se tivesses feito.» Podes
crer que este foi dominado e subjugado. E os outros ficaram todos a
saber.

– Por essa lógica, mais vale punir um inocente do que ilibar um


culpado. O que é preciso é punir alguém, nunca absolver.

– Podes absolver um negro, desde que culpes e castigues outro. Não


castigar ninguém, isso é que não. Eles têm uma moral diferente da
nossa. A impunidade, para eles, seria um sinal de fraqueza da nossa
parte. Por aí começaria a desmantelar-se o nosso edifício. Têm de ter
medo de nós. Vejo-te a coçar a cabeça, o que em ti é sinal de que estás a
pensar nalguma objecção.

– Pois… Se o medo é a argamassa que mantém o nosso edifício de pé,


receio pela estabilidade do edifício.

– O medo paralisa. Se nos perdem o medo, será a catástrofe.

– E porque é que não delegas os castigos no soba? – perguntei.

Amaral fez uma careta.


– Isso desautorizaria a Administração Civil. O castigo mostra quem é
que manda. Nós é que mandamos. O soba é útil para nos trazer pessoal
para trabalhar, para ajudar no recenseamento… Mas, se o deixamos
punir, o indígena passa a vê-lo como mandando mais do que nós.

– Disseste que estás convencido de que o soba verdadeiro não se


mostra. Como é que podes competir com ele?

– Acredito nisso – afirmou Amaral, num tom solene, aproveitando a


solenidade da sua expressão para ajeitar as mangas da camisa, para tapar
os pelos dos braços que teimavam em aparecer. – O soba verdadeiro
anda escondido e faz a sua sabotagem. Mas o que é que ele pode fazer?
Se for muito indiscreto, eu saberei, e aí castigarei e reforçarei o medo.
Se for discreto, não chega a fazer mossa. Portanto… tudo se mantém.

– Fiscalizas o comerciante?

– Disse-lhe que não vou tolerar aldrabices. O tipo tem maus hábitos do
passado. De resto, meu caro, estou aqui tão isolado que podia fazer o
mesmo que o chefe de posto de Dirico.

O chefe de posto de Dirico era uma lenda da Administração Civil. Nos


anos trinta, achando-se no extremo sul do Cuando-Cubango, junto ao rio
Cuangar, acessível através de picadas difíceis, a centenas de quilómetros
da sede da circunscrição e nunca visitado pelo administrador, resolveu
ausentar-se por seis meses e ir para Lisboa sem informar a hierarquia. Já
tinha entregado a receita do imposto indígena e o relatório do
recenseamento anual. Fez os relatórios de serviço mensais,
correspondentes aos seis meses seguintes, e deu instruções ao cabo de
cipaios para os enviar, na ordem disposta, para a sede de circunscrição
no fim de cada mês. Atravessou a fronteira no rio Cuangar e
funcionários sul-africanos ajudaram-no a chegar a Walvis Bay, onde
embarcou para Lisboa. Passada a licença de seis meses que concedera a
si próprio, fez o mesmo percurso no sentido inverso. Ninguém, a não ser
os cipaios e a população negra, chegou a saber. Só divulgou a aventura
depois de sair do quadro administrativo.

– Perguntaste-me pela minha mulher e os meus filhos – disse Amaral,


embora eu tivesse feito a pergunta logo no início da conversa.

Uma expressão ambígua passou-lhe pelo rosto. Era óbvio que me


queria dizer qualquer coisa, e disse:

– Sabes o que são cafecos? Rapariguinhas negras, virgens, com treze,


catorze anos. Seios tenros e firmes, atrevidotas quando desinibidas…
Um chefe de posto manda vir um cafeco e tira a barriga de misérias.
Quem diz um cafeco, diz dois – acrescentou, divertindo-se com a
sugestão.

Para espantar o tema sexual que irrompera na conversa, Amaral


apontou para o aparelho de comunicação rádio:

– Olha, tenho o meu P19, podes contactar-me com o que está lá na


sede. O pior é que avaria facilmente. Ah, e não podemos esquecer isto…
– Abriu um armário e retirou uma carabina nova. – Calibre 10,75. Com
isto, meu amigo, caçar passa a ser uma coisa séria. Os cipaios que
brinquem com as Kropatschek e dêem um tirinho de vez em quando
para matar uma cabra-de-leque. Eu, com esta, tenciono caçar o meu
primeiro elefante.
– Os elefantes que se cuidem – disse eu. – Oferece-me a cauda, para
eu fazer um chicote. Um chicote à cintura ia ficar-me a matar.

– Ou dou-te um dos marfins e mandas fazer um tabuleiro de xadrez. E


quando vieres cá visitar-me jogamos nesse tabuleiro.

– A Abertura do Tigre no Tabuleiro do Elefante. Faz sentido.

– Começo a enferrujar o meu xadrez, que tu levaste a triunfos nunca


sonhados – disse Amaral.

– Porque é que não ensinas a criançada da sanzala a jogar?

– Que ideia mais extravagante!

– O Capablanca aprendeu com quatro anos.

– Só tu para sugerires que em Cainde pode aparecer um Capablanca


negro… Admiro a tua capacidade de acreditar no impossível.

– Muito bem, acredito no impossível. E isso é bom ou mau?

Sem me responder, Amaral levantou a tampa de vidro do gira-discos.

– Às vezes penso que a música clássica foi composta para ser tocada
na selva. Abafa todos os sons do mato. Quando ali da sanzala chega o
barulho dos batuques e dos tantãs, abafo-o com Beethoven ou
Tchaikovsky.

Pôs a tocar a Nona, de Beethoven. Sentámo-nos nos degraus das


traseiras da casa, onde os cipaios tinham estado a limpar as espingardas.
As colunas do gira-discos, assentes no parapeito da janela, lançavam
para o mato vibrações épicas que abafavam os sons da sanzala escondida
pelas árvores. Imaginei as ondas sonoras a serem contrariadas por vagas
de homens que viriam do meio daquelas árvores para onde eu estava a
olhar. Abririam a veia jugular do chefe de posto num ápice. Fiz por
esquecer o devaneio macabro e tentei concentrar-me na música.

Uíge, 1961-1964

Uma coluna de dois mil homens vindos da Metrópole, com milhares


de toneladas de veículos e material, estendida ao longo de muitos
quilómetros de estrada, levou dois meses a dividir-se em colunas mais
pequenas, que se distribuíram por pontos estratégicos. Percorrendo
itinerários principais ou secundários, picadas conhecidas ou já
esquecidas, estacionaram forças num local ou procuraram o inimigo,
reforçaram guarnições distantes, resgataram populações entrincheiradas.
Encontravam cadáveres de brancos e negros mortos muitas semanas
antes. Chegaram a socorrer povoações em perigo de que tinham ouvido
falar ainda em Lisboa e que haviam resistido durante três meses. Pouco
depois, novo contingente chegou no Vera Cruz.

A reocupação do Norte deveria levar a ordem aos lugares, abrir


ligações amplas à fronteira, isolar redutos de rebeldes separados por
centenas de quilómetros e impedir o seu alastramento para sul.

O que estava reservado aos soldados da Metrópole era o mesmo que


as unidades do batalhão eventual tinham encontrado: fazendas arrasadas,
abatises a cobrir as estradas e exigindo horas para serem removidos,
pontões destruídos, valas dissimuladas com o requinte de se desenharem
sulcos na areia, dando a crer que por ali já tinham passado veículos.
Alguns caminhos refeitos tornavam a ser obstruídos pelos rebeldes
assim que a coluna passava. A engenharia militar reparava estradas,
desmatava regiões inteiras. Estes contingentes eram guiados por milícias
financiadas por empresas com interesses económicos na região.

Patrulhas de reconhecimento e comboios de abastecimento eram


atacados por centenas de indivíduos com catanas, canhangulos e
espingardas, aos gritos de «UPA, UPA! Mata branco!», que eram
abatidos pelas metralhadoras. Os feridos eram evacuados por via
terrestre até se encontrar uma pista improvisada onde aterrasse um
avião. A secção de socorro dos feridos era por vezes também atacada.

Havia que aprender técnicas de contraguerrilha, adaptar-se ao clima e


ao terreno. Capitães comandando cento e vinte homens tornavam-se
responsáveis por frentes de mais de cem quilómetros, em terreno de
selva, pântano ou capim, onde havia feras desconhecidas e se adoecia
com as picadas dos insectos. Emboscada após emboscada, acidente após
acidente, os homens sentiam-se mais curtidos pela dureza das condições
e já achavam que os mosquitos é que ficariam envenenados com o seu
sangue.

Ainda havia ataques a povoações quando, nas zonas libertadas pela


tropa, se recolhia o café, antes que recomeçasse a estação das chuvas. As
milícias faziam milhares de prisioneiros e entregavam-nos aos postos
administrativos e ao Exército. As prisões enchiam-se e esvaziavam-se ao
sabor de vagas de prisioneiros que desapareciam sem que as famílias
soubessem do seu paradeiro. Não eram presentes a um tribunal; havia
rumores de que eram executados e enterrados em fossas com a ajuda de
bulldozers.

Contavam-se histórias edificantes: a do cabo de cipaios deixado a


guardar um posto isolado que, quando os funcionários administrativos
regressaram com armas e munições, foi encontrado morto e agarrado à
bandeira portuguesa; a do velho negro que foi ter com uma coluna
militar, chegada ao fim de mais de dois meses de sublevação da área, e
que se apresentou como um veterano da guerra dos Dembos, no início
do século, mostrando a bandeira portuguesa despedaçada pelos rebeldes,
que ele reconstituíra, e que foi hasteada pelos militares comovidos; a do
criado que carregou ao colo duas crianças, filhas dos patrões, durante
dezenas de quilómetros até as pôr a salvo. Estas histórias imprimiam-se
nos jornais, formavam um ciclo de lendas.

À medida que desembarcavam tropas em Luanda, a ocupação do


território apertava como uma rede lançada para apanhar rebeldes. A
crença numa vitória rápida parecia concretizar-se. Contrariando essa
ideia, comandantes distritais de defesa civil percorriam as escolas e
ensinavam os alunos a usar um revólver. As empresas armavam-se de
acordo com a sua dimensão; as maiores adquiriam arsenais inteiros.

Se a tropa aprendia depressa, o mesmo acontecia com o inimigo. No


começo atacava em massa com canhangulos artesanais, brandindo
catanas, convencido de que as balas dos brancos eram água e de que os
feiticeiros o tinham tornado invisível, mas depressa se organizou
militarmente. Em dois meses, desapareceram as «hordas ululantes»,
nalguns lugares rechaçadas por um punhado de defensores obstinados, e
surgiu uma guerrilha hábil na táctica do bate-e-foge em terrenos
acidentados e a coberto da vegetação, usando espingardas de repetição,
metralhadoras automáticas, morteiros, canhões sem recuo, lança-
granadas e minas.

A diplomacia queria convencer os europeus e os americanos de que


Portugal deveria continuar em África: Salazar era o líder do mundo livre
em África, último representante da civilização ocidental, guarda
avançada do cristianismo, obstáculo ao comunismo naquela parte do
mundo. Ia-se mais longe: Salazar era o Ocidente. O melhor exército em
armas a sul do Sara despertaria o Ocidente do seu sono, dando-lhe a
primeira vitória contra o expansionismo comunista. Na África
Portuguesa começava a derrota do comunismo.

A tropa tinha ordens para derreter tudo, o que significava fazer chegar
o fogo e as explosões de granadas a todos os recantos onde os rebeldes
se escondessem. Varriam-se serras eriçadas de mata selvagem e
protegidas por escarpas e penhascos. Foram dadas instruções para se
cortarem cabeças e as expor à beira dos caminhos: jogava-se com a
crença de que o corpo decapitado não podia ressuscitar. Houve uma
ordem para se eliminar «todas as formas de vida acima do Negage». O
terrorismo combatia-se com terrorismo. Longe das vilas e cidades onde
se fazia a prosperidade da Colónia, o inimigo mantinha-se escondido nas
matas do Norte, de onde recuava para bases de apoio nos países
vizinhos.
2

Alguém aumentou o som de um rádio e Capelo ouviu pela primeira


vez o coro e a orquestra da Fundação Nacional para a Alegria no
Trabalho, que transformara num sucesso a marcha que exaltava o
renascer do espírito bélico na defesa da portuguesíssima Angola, já
muito cantada nas escolas e pelos escuteiros: falava do heroísmo
nacional e da necessidade de esmagar, destroçar, escorraçar e vencer os
traidores, em nome dos feitos dos antepassados. O estribilho era
«Angola é nossa».

Em Junho, dissolvido o batalhão eventual, a companhia de Capelo


apoiou o Batalhão de Caçadores 3 e só se deteve nas margens do rio
Zaire, onde se articulou com unidades da Marinha que patrulhavam a
fronteira fluvial. Aqui a floresta era densa, penetrava-se em túneis de
vegetação sobre esteiros de água barrenta, ramificados entre mangais e
ilhotas que ofereciam esconderijos. Marinheiros fanfarrões, com
tatuagens de guerra, nadavam no rio portentoso levando um cinto com
um punhal, para lutarem com os crocodilos, se necessário. Capelo julgou
estar num filme onde havia vários Tarzans loucos, indiferentes ao ruído
de caças e helicópteros que vigiavam do ar e às lanchas rápidas que
levantavam ondas.

O tempo acabara por dar a Capelo o moral e a confiança dos


veteranos. Agora tenente, comandava um pelotão em pontos nevrálgicos
do Uíge e contribuía para manter segura a «estrada do café», por onde se
escoavam os carregamentos em direcção a Luanda. De Nambuangongo,
os camiões faziam dois dias de viagem para a capital com escolta
militar.
Havia quinze dias que os seus homens andavam em operações no
mato, a dormir em tendas ou debaixo das viaturas, comendo só a ração
de combate. Avançavam nas picadas com cuidado e levantavam as
minas postas no caminho. Eram fustigados por tiros furtivos e
ameaçados por emboscadas. À noite, ficavam todos juntos, mas o
inimigo estava ali à volta, homens isolados no cimo de árvores que
gritavam:

– Filhos da puta! Voltem para a vossa terra ou ficam feitos em merda!

Não podiam disparar às cegas para essas árvores para não


denunciarem a própria posição. Enervava saber que os guerrilheiros, ali
tão perto, comunicavam uns com os outros imitando sons de pássaros.

Uma das patrulhas do pelotão foi um dia alvejada por tiros vindos de
um morro. O terreno era escarpado e coberto de capim com quase três
metros de altura. O sargento-ajudante sugeriu a Capelo que fizessem
uma queimada para encurralar os guerrilheiros. Perante um capim tão
denso desde o cimo do morro até à picada quase afogada, Capelo achou
que se poderia formar uma frente de fogo incontrolável que os faria cair
na própria armadilha. Não dominava as técnicas de contra-queimada ao
ponto de se sentir seguro de que poria a salvo as viaturas carregadas de
combustível e munições.

«Vamos cair na nossa própria fogueira», pensou o tenente. Mandou


avançar três secções, de pontos distintos, envolvendo o morro.
Recomendou aos homens que conservassem entre si intervalos inferiores
a três metros: não queria que caíssem numa situação em que vissem as
armas inimigas sem tempo de evitar um disparo à queima-roupa. A
guerra no capim era pior do que na selva. Era preciso usar o capim em
proveito próprio.

No assalto, houve grande tiroteio, mas quando o morro já estava


tomado tornaram a ouvir-se rajadas. Capelo viu os homens descerem
sem um único prisioneiro.

O sargento-ajudante vinha à frente.

– Que tiros foram estes, agora? – perguntou-lhe Capelo.

O outro olhou para ele em silêncio.

– Eu disse para trazerem os prisioneiros.

– Ninguém se rendeu, tenente – disse o sargento-ajudante, glacial.

– Ninguém se rendeu, pois… Executaram-nos.

– O tenente não estava lá, não viu.

Capelo pensou na melhor resposta a dar. Já percebera que comandar


homens, no pior momento do combate, consistia em dirigir a sua fúria,
livrando-se ele próprio de ser mordido, como um caçador que treina os
cães e os lança na perseguição da presa para realizarem o seu potencial
destrutivo. O sargento-ajudante levara a sua avante e, ao mesmo tempo,
salvara as aparências: o tenente não viu, podia assumir que não tinham
fuzilado os sobreviventes.

Era frequente os soldados executarem os prisioneiros para não terem


de fazer turnos de vigia à noite. Desculpavam-se: «Ele ia a fugir, meu
tenente.» Outros faziam-no por raiva. Depois de verem camaradas
morrer ao seu lado, os seus corpos desfeitos por granadas, depois de
receberem salpicos do sangue e de massa encefálica de amigos com
quem falavam um segundo antes, já era tarde para lhes exigir contenção.

Regressaram ao aquartelamento. Esta fora a pior saída que Capelo já


tinha conduzido. Quinze dias no mato, um desgaste constante, com
vários mortos, uns sem pernas, outros queimados. Um que parecia estar
a dormir, com um tiro na testa que nem sangue fez. Nem sempre a morte
é feita de gritos, pragas, explosão de vísceras e ossos. Um outro morreu
de uma maneira tão simples que parecia impossível: de um ferimento de
bala na perna que provocou uma hemorragia da veia femoral, em poucos
minutos.

Os que viam isto só pensavam em vingança. Avistaram três


guerrilheiros a atravessar um rio. Capelo ia mandar abrir fogo quando
alguns soldados africanos que comandava o aconselharam a esperar que
eles atingissem o meio do rio, para então disparar e dá-los como pasto
aos crocodilos. Ver aqueles homens morrer despertou em Capelo um
prazer que se transformou em angústia.

Chegaram a estar quatro horas flagelados por fogo intenso. Capelo


teve de passar por cima de cadáveres para ir para um abrigo. Quem os
safou foram os aviões. Não vieram os Fiat a jacto, que atacavam à zona
e sem grande precisão, pondo em risco todos os que estavam lá em
baixo, mas os T6, adaptados para receberem metralhadoras e lança-
foguetes. Se já eram pesados e lentos, pior ficavam com essa carga.
Alvos fáceis, voltavam para as bases com buracos de balas. Os pilotos
faziam manobras suicidas para conseguirem uma maior precisão de tiro.
Apanharam dias de chuvadas e trovoadas tão assombrosas que uma
pessoa podia pensar que o Universo estava a desmantelar-se. Dispostos
em círculo, cobriam-se com as capas, ou juntavam-nas para fazer uma
tenda suspensa em ramos de árvores. Depois, o céu e a terra serenavam e
verificava-se que o mundo continuava a existir.

Uma Berliet ia cheia de soldados. Nos bancos corridos, virados para


os lados da viatura, vários dormiam, a cabeça abanando a cada
solavanco, a arma entalada entre as pernas. Seriam alvos fáceis para os
tiros que viessem do mato. Nem uma folha se movia, não soprava a
menor brisa, não gritavam ou cantavam os pássaros. Tudo o que era
vivo, vegetal ou animal, colaborava com o adversário, oferecia a
camuflagem do silêncio. Quando havia um silêncio destes no mato, tão
total, era certo e sabido que estava prestes a rebentar um ataque. A mata
queria repelir estes soldados e abrigava os guerrilheiros. E então estalou
a emboscada. Cinco dos que iam a dormir, sentados, morreram e os
outros saltaram para o chão da picada. Os mortos foram colocados
noutra viatura e a coluna seguiu viagem. Caiu uma chuvada muito forte,
a água varreu o interior da viatura e projectou-se para fora em jorros
vermelhos com o sangue dos mortos. Capelo observou, pasmado: a água
entrava transparente e saía vermelha.

Se não chovia, o calor era tanto que suavam e vinham moscas colar-
se-lhes à pele e beber o suor. Para poderem comer, cobriam a cabeça
com um mosquiteiro.

As chuvadas atrasaram o fornecimento de comida. Passaram fome.


Beberam a água das cacimbas e colheram frutos silvestres. Lançaram
granadas para os rios, atordoando os peixes que apanharam à mão.
Caçaram porcos-bravos. Tinham ordens para levar à força a carne que os
nativos não quisessem vender, mas só encontraram mandioca de uma
lavra, que roubaram. Numa plantação de brancos, colheram laranjas.
Quando a dona veio dizer para não tirarem mais, um soldado metralhou
as laranjeiras.

Os homens mereciam o descanso. Outro pelotão sairia para o mato em


seu lugar. A rodagem não parava, o descanso era breve.

Atravessaram uma fazenda, autorizados pelo proprietário. Deste se


dizia que deixava reservas de sal à beira dos caminhos para fornecer os
guerrilheiros que actuavam na zona, para que eles, em troca, não
atacassem a fazenda. O sal era um bem de extrema necessidade para
quem vivia no mato. O mesmo fazendeiro facilitava a vida aos dois
lados da contenda.

Não faltavam coisas bizarras que davam que pensar. O Exército


trocava com a UPA avisos sobre movimentações do MPLA nas picadas.
Os dois movimentos emancipalistas não morriam de amores um pelo
outro e chegavam a combater entre si. Dividir para reinar sempre fora
uma medida eficaz no colonialismo, mas, chegando-se a esta guerra,
último império colonial em África, seria prudente ajudar um inimigo
contra outro?

Sentado no jipe conduzido por um soldado, a meio da coluna, Capelo


reflectia no que se tornara a sua vida. Tudo lhe parecia inverosímil.
Antes de ser mobilizado para o serviço militar, andava a arrastar os
estudos e passava o melhor do seu tempo a beber cervejas nos cafés da
Baixa de Lisboa e a ler os jornais desportivos. De repente, via-se em
picadas a milhares de quilómetros de casa, comandava homens,
ordenava ataques, abordava bases inimigas.

Uma rajada despertou-o destes devaneios. Partira de uma secção do


pelotão que seguia mais à frente. Capelo apressou-se a ir ao seu
encontro. A secção, comandada pelo furriel Diniz, estava toda de pé, à
beira da picada, a olhar para qualquer coisa no meio de capim rasteiro.
Capelo viu o cadáver de um negro sem cabeça. Mesmo ao lado, sobre
uma estaca, havia uma massa ensanguentada. Todos olhavam para
Capelo com expectativa, menos Diniz, o autor da proeza. O furriel era
um sujeito magro, com um bigodinho louro bem aparado, calças de
camuflado, boina posta de lado na cabeça, num toque irónico e garboso
que fazia parte do seu estilo.

O africano tinha-se atravessado à frente deles a correr, com uma


catana na mão. Diniz saltara da viatura, agarrara-o e cortara-lhe o
pescoço com a catana. Depois, decapitou-o, colocou a cabeça em cima
de uma estaca, que espetou no chão, e fez pontaria com a metralhadora.
Rebentou a cabeça com uma rajada curta.

– Porque é que fez isto? – interrogou Capelo, lembrando-se de que já


tivera de perguntar o mesmo em situações parecidas.

– Tenente, o preto passou aqui a correr com uma catana na mão.

– E depois? Se calhar ia para o trabalho dele, ia capinar o mato ou


alguma lavra.

– Se calhar sim, se calhar não… Para mim eles são todos iguais,
tenente.

– Se fosse um guerrilheiro não corria à vossa frente, ficava escondido.


Diniz ficou calado, desdenhoso. Aproveitara a oportunidade que se lhe
deparara e não estava arrependido. Capelo disse:

– Se suspeitava dele, trazia-o à minha presença. Vou participar de si.

Passados dois dias, Diniz cometeu nova façanha. Numa patrulha


próxima do aquartelamento da companhia, com mais três, passaram por
uma negra grávida que ia buscar água a um poço. O furriel amarrou-a a
uma árvore e enforcou-a. Estripou-a e retirou o feto. A um dos soldados
que lhe perguntou se achava bem ter feito aquilo, respondeu:

– É um a menos que vem aqui meter minas.

Os factos foram trazidos ao conhecimento dos oficiais. Capelo estava


presente quando o capitão foi informado. Este pareceu querer
contemporizar e limitar-se a chamar Diniz para o repreender. Capelo
disse que o furriel não podia receber apenas uma repreensão verbal. Era
um homem perigoso e tinha de ser travado.

– Você tem uma participação contra ele que vai mandar, não tem? –
perguntou o capitão. – Junte-lhe mais esta coisa da grávida e mostre-me.

– E até lá, ele vai continuar por aí como se nada fosse? Não é detido?

– Tenente – disse o capitão, evasivo –, eu já vi pior do que isto.

A tropa, em tempo de guerra, não vê um perigo especial num matador


arbitrário que continua livre e na posse das suas armas. O capitão, um
veterano que não queria ter mais chatices do que as que vinham de cima,
ignorando as que vinham de baixo, limitou-se a delegar em Capelo o
trabalho de acrescentar mais um parágrafo à participação.
Os psicopatas davam jeito. Eram os primeiros a avançar para a acção.
Se o objectivo era matar, não se faziam rogados. De vez em quando, lá
se punia alguém que cometera uma brutalidade gratuita, para se mostrar
que a guerra era justa e que os militares se devem reger por códigos de
conduta que apenas permitem o uso da força proporcional à ameaça.
Mas, se a tropa beneficiava do empenho ocasional de psicopatas, depois
tinha dificuldade em controlá-los e só se preocupava quando passavam a
ameaçar os próprios camaradas.

Enforcar e estripar uma negra grávida não era muito grave para o
capitão. A guerra vivia de contradições. Capelo recordou-se de uma vez
em que arrasaram uma aldeia inteira, porque se dizia que escondia
guerrilheiros, tendo sido mortas mulheres e crianças, e, no regresso,
ajudaram uma africana que morava nessa aldeia a dar à luz e todos
festejaram o parto bem-sucedido.

O passado de Diniz era conhecido. Tinha problemas disciplinares por


onde quer que passasse e transferiam-no para sítios piores, como
castigo, ou melhores, para se livrarem dele. Numa companhia anterior,
contraíra uma doença venérea e urinou sangue durante meses. Recusou-
se a participar numa operação no mato. O comandante ameaçou mandar
fuzilá-lo ali mesmo por insubordinação. Urinou sangue à vista de todos,
para que vissem que estava doente, mas obrigaram-no a ir. Passou a ter
raiva de tudo e de todos. Agrediu um sargento-ajudante que lhe atirou a
comida para o chão. Para completar a vingança, violou a negra com
quem o sargento andava para que ela contraísse a doença venérea.
Apanhou uma sentinela a dormir e deu-lhe um murro; a sentinela tentou
replicar e o furriel fez-lhe um corte profundo no pescoço com a faca de
mato. Abriu a cabeça a um africano que não lhe fez mal nenhum e que
foi levado para a enfermaria. Quando ele saiu de lá, tirou-lhe as
ligaduras e abriu-lhe a cabeça outra vez.

A participação de Capelo foi enviada e, enquanto se esperava pela


resposta, Diniz continuou nas suas funções, como se nada tivesse
acontecido.

Passados quinze dias chegou a decisão do quartel-general: trinta dias


de detenção, a serem cumpridos no aquartelamento. O capitão convocou
Diniz. Paternal, disse-lhe que o castigo começaria no dia seguinte e que
lhe dava as horas que faltavam até lá para se mentalizar e fazer um
exame de consciência.

Lá fora, na presença de alguns soldados, Diniz pegou numa faca,


espetou a boina numa árvore e disse aos que estavam mais próximos:

– Antes de cumprir o castigo, limpo-vos o sarampo a todos, um por


um.

Nessa mesma noite, desapareceu. Internou-se no mato, com armas e


muitas munições. Inspeccionaram o seu cacifo e verificaram que levara
tudo o que o pudesse ajudar a sobreviver: repelente de insectos, pastilhas
de cloro para desinfectar água, facas que se escondiam no cano das
botas. Deram ainda por falta de granadas de mão.

Começou a lenda. Alguns homens ficaram com medo da vingança


dele. Estaria a segui-los quando saíam para o mato? Seria o Diniz um
super-soldado, capaz de dar conta dos guerrilheiros e ao mesmo tempo
dos ex-camaradas? Depois de ouvir ecos destas histórias, Capelo
perguntou a um soldado porque é que tinham tanto medo do Diniz:

– Ele é furriel… e conhece estes matos bem. Ele conhece todos os


nossos passos.

– Têm mais medo do Diniz do que dos terroristas?

– Pois… sim… eu tenho.

Capelo queria perceber melhor. Insistiu:

– O Diniz não tem hipóteses de sobreviver no mato. Tem de se


entregar.

– O pessoal diz que ele passou para o outro lado – contou o soldado.

Pensavam que ele poderia ter-se juntado ao inimigo para sobreviver


no mato e atacar os antigos companheiros. Poderia tornar-se conselheiro
dos guerrilheiros daquela zona. Sempre fora meio louco. Evocaram-se
episódios que, vistos a uma nova luz, provavam essa loucura. A guerra
tornara-se uma coisa pessoal dele, tanto lhe fazia o lado em que estava.

Os homens pensavam que Diniz andava a espiá-los. Especulava-se


que uma emboscada, das que sofreram a seguir, trazia a marca dele. Para
Capelo, aquilo parecia superstição. O assunto só ficou encerrado quando
um elemento da Polícia do Exército contou que Diniz fora avistado perto
da fronteira da Rodésia do Norte. Devia ter atravessado a fronteira para
ir tentar a sorte como emigrante. Mas a lenda continuou. Os soldados
murmuravam que ele se oferecera como mercenário às tropas
rodesianas. Havia comentários dispersos:

– Os rodesianos precisam de gente para controlar os pretos que lá têm.

– O Diniz está agora na Rodésia a cortar cabeças.

– Lembram-se do Diniz? Aquilo é que era uma máquina de guerra.

Outro caso muito falado foi o do sniper que matava oficiais. A sua
lenda era conhecida de todos os combatentes, embora distorcida por
boatos. Dizia-se que era mestiço e fora o melhor atirador do Exército
português. Como prémio, recebera das mãos do próprio Salazar uma
espingarda perfeita, de mira certeira, infalível. Movido por ideais
nacionalistas, desertara da tropa e juntara-se aos guerrilheiros do MPLA,
passando a matar portugueses, sempre graduados. Andava bem
acompanhado, com guias que conheciam o terreno melhor do que
ninguém. Deixava bilhetinhos pelo caminho: quem lesse, ou aquele a
quem um soldado passasse o bilhete, devia ser o graduado, mesmo que
não tivesse divisas ou galões à vista, e esse era abatido. Ironia suprema:
o ditador ofereceu a melhor arma ao melhor atirador e este passou-se
para o lado inimigo. Dizia-se que a tropa espiava os pais, para ver se o
filho comunicava com eles.

As histórias que os soldados contavam, como a do Diniz e a do sniper,


obedeciam a um impulso narrativo tão antigo como as guerras.
Ajudavam os soldados a encontrarem um sentido em tudo aquilo.
Misturavam-se com as várias formas de enganar o tédio. A ameaça, o
alerta, a raiva por terem visto camaradas morrer, o cansaço emocional de
estar ali e de ali continuar, geravam cinismo e indiferença moral.

Comandar homens obrigava Capelo a lidar com pessoas que lhe eram
tão estranhas como o inimigo. Dois ou três anos mais novos do que ele,
eram, na sua maioria, filhos de camponeses que haviam trocado a
enxada pela G3. Alguns tinham-se voluntariado para aliviar as famílias e
comer algo mais do que uma sardinha no pão ou papas de milho. Era
surpreendente como, em pouco tempo, se transformavam em
guerrilheiros resistentes e astuciosos. Tinham nos bolsos imagens de
Nossa Senhora. De Lisboa só conheciam o cais de embarque; Luanda
era a maior cidade que já tinham visto. Parecia-lhes que Luanda é que
era a Metrópole e a terra deles a colónia.

Os bordéis, nas licenças em Luanda, eram um luxo. No mato, como


diziam, os rapazes recorriam às pretas. Alguns entravam sozinhos numa
cubata, diziam ao homem para sair, sob ameaça da arma, e faziam o que
queriam da mulher. Não era necessário ameaçar, tal o medo que
inspiravam. O comando estipulava que só podiam ter relações sexuais
com negras se elas consentissem. As violações eram punidas, regra que
conhecia muitas excepções.

Capelo tomou conhecimento daqueles seis soldados que, num fim de


tarde, decidiram ir refrescar-se junto de uma cascata. O terreno era em
declive e viram algumas lavadeiras. Começaram a correr e a gritar na
direcção delas. As lavadeiras tentaram fugir. Um deles, que contou o
episódio a Capelo, não queria violar ninguém e deixou-se atrasar. Os
outros agarraram, cada um, a sua presa. Só a mais velha, por não ser
capaz de correr, continuava no mesmo sítio. Os companheiros
começaram a fazer troça deste que estava relutante: «És maricas? Como
é que estás na tropa?» Ele não queria violar a velha; ela, por sua vez, não
podia fugir. Acabaram por se encontrar os dois: ele porque não queria,
ela porque não podia. Violou-a só para mostrar que era homem e calar a
chacota que os outros fariam.

Nem todos os militares tinham estofo para violar mulheres. Resolviam


o problema mantendo uma lavadeira que fizesse o serviço completo, que
consistia na complacência sexual para além de lavar a roupa.
Começavam por lhes perguntar se lavavam os pés, um código conhecido
de todos. Os que não estavam de serviço passavam a noite numa cubata
com a sua lavadeira privada. Capelo observava estas práticas e sentia
repulsa. A sexualidade dos outros causava-lhe tanta náusea como a
matança. «E no entanto», pensava, «parece que é natural. Não nasci para
isto. Se calhar não sei viver.»

Nem o sentido de humor dos soldados o ajudava a aproximar-se deles.


Um guerrilheiro que prenderam e obrigaram a dizer onde era o seu
acampamento guiou-os a vários locais, mas verificava-se que nunca era
o acampamento. Os prisioneiros, mesmo os que não tinham informações
para dar, faziam isto muitas vezes para escaparem à tortura. Andavam
em círculos. O prisioneiro recusou comer e morreu de inanição. Já
morto, puseram-lhe uma pedra debaixo da cabeça como a almofada de
um adormecido. A outro prisioneiro, que admitiu ser espião, vestiram-no
de branco, escreveram-lhe nas costas «James Bond» e fizeram dele um
guia do terreno.

6
Assim que chegavam, a todos os soldados eram mostradas as
fotografias dos massacres de 1961. Diziam-lhes que os guerrilheiros
eram terroristas sanguinários. Industriados numa raiva bíblica contra os
guerrilheiros, ficavam surpreendidos quando viam soldados negros no
seu pelotão. «Eu vim para aqui lutar contra os pretos e põem-me ao lado
de pretos?» Um, que tinha sido ferido, quando acordou no hospital
estranhou ver negros a serem tratados na mesma enfermaria. Outro,
quando estava a ser evacuado de helicóptero, teve um choque ao ver que
o homem que segurava o balão do soro ligado às suas veias era um
negro e preferiu voltar a desmaiar para não o ver.

Capelo não consentia que homens sob o seu comando praticassem


mutilações e exibissem os troféus daí resultantes. Noutro pelotão havia
um que se especializara em cortar orelhas a negros e fazia porta-chaves
com elas, que trocava por cervejas com os camaradas.

Quem tem uma arma nas mãos e está perturbado com o que já lhe
aconteceu ou viu acontecer, quer ser um vencedor para não morrer.
Capelo viu soldados escanzelados e nervosos, pesando quarenta quilos, a
ameaçar negros possantes que lhes poderiam desatarraxar a cabeça do
tronco.

Homens que nunca tinham praticado um acto violento participavam


em massacres de aldeias onde não se limitavam a executar inocentes,
mas faziam uma espécie de circo romano em que a forma de matar tinha
requintes lúdicos. Matar de maneira limpa e directa, como um pelotão de
fuzilamento, não chegava. Era preciso divertir-se no processo. Se não se
apanhasse um único guerrilheiro, podia cevar-se a raiva e o ódio em
velhos, doentes, mulheres, crianças, bebés de colo. «Paga o justo pelo
pecador», ouvia-se dizer.

Poder-se-ia combater sem esse ódio e essa raiva que canalizam as


forças do combatente? Sem essas emoções violentas, que agem como
uma droga, o combatente deporia as armas, recusar-se-ia a combater,
ficaria paralisado pelo medo ou pela empatia com o inimigo. Os
comandantes achavam que, no calor da refrega, quando a vida estava
ameaçada e se era salpicado pelo sangue dos companheiros, era útil que
a raiva se sobrepusesse ao pânico e ao horror e conduzisse ao
extermínio. O ideal seria destruir só os culpados, mas eles pensavam que
mais valia destruir ambos, culpados e inocentes, do que ninguém.

Para alguns, aquilo era como entrar num galinheiro e cortar as cabeças
às galinhas. Capelo conheceu um soldado que desenvolveu uma técnica
própria para matar bebés: enfiava-lhes dois dedos na boca, com a polpa
dos dedos a tocar o palato, levantava-os no ar e fazia-os embater com
força numa parede ou numa árvore. Viram-no fazer isso a um bebé que
tentava chupar a mama da mãe, morta.

Alguns aproveitavam as torturas a prisioneiros para quebrar a rotina.


Uma delas consistia em fazer o prisioneiro caminhar descalço sobre uma
tábua com pregos espetados. Uma roda de soldados empurrava-o; os
gritos de dor do torturado faziam eco com as gargalhadas dos
torturadores. Na roda dos soldados, Capelo viu alguns que evoluíram da
reserva inicial para a descontracção que facilitava o convívio com os
camaradas.

Em certas regiões não se apanhava ninguém de surpresa, porque a


população era muito dispersa e, através de um sistema de sentinelas,
avisava da aproximação da tropa. O pelotão de Capelo entrava em
sanzalas depois de uma razia feita pelas tropas especiais. Era preciso
completar o serviço: informações secretas garantiam que ali se
acoitavam guerrilheiros, o que nem sempre se confirmava. Capelo viu
mulheres, velhos, crianças e doentes fugirem das chamas no meio das
cabras e dos porcos. Estes que podiam fugir tinham sorte, porque as
ordens eram para disparar sobre tudo o que se mexesse. Abatiam gado e
criação, para que os guerrilheiros não os aproveitassem. Bois, cabras,
porcos e galinhas apodreciam nos estábulos ou eram queimados.
Queimavam cabanas com a colheita do ano inteiro e levavam o que lhes
pudesse interessar: dinheiro, roupa, rádios, víveres. Estas incursões
fustigavam mais os camponeses, que, ao contrário dos guerrilheiros, não
podiam retirar-se rapidamente para os países vizinhos.

Numa cubata foram enfiadas algumas pessoas. Dois soldados atiraram


granadas lá para dentro e atearam fogo à cobertura de palha. Ao ver as
chamas coroarem a cubata, Capelo só conseguiu pensar: «O fogo é tão
bonito.»

Pouco depois, encontraram uma mulher com os intestinos de fora, em


resultado de uma rajada de metralhadora. Ao seu lado estava um miúdo
a chorar. Um furriel pegou no miúdo e afastou-se dali. Cruzou-se com
um alferes que lhe perguntou, em tom desabrido:

– Não acabaste com a gaja?

O alferes aproximou-se da mulher e deu-lhe dois tiros, à vista da


criança que ia às cavalitas do furriel. No quartel sede, o miúdo recebeu
uma farda com divisas de cabo e tornou-se a mascote da companhia. Era
moda adoptar rapazinhos salvos de massacres como mascotes. Faziam-
nos comparecer às formaturas, ensinavam-lhes a fazer a continência,
eram bem tratados pelos militares, mesmo pelos que tinham a sua
colecção de orelhas. O alferes que matara a mãe deste rapazinho
confidenciou a Capelo:

– Não sei porque é que o puto se ri com todos menos comigo.

Alguns homens ficavam alterados; dizia-se que estavam cacimbados.


Pregavam partidas estúpidas aos camaradas, como despejar-lhes na cara
frascos de mercurocromo, que demorava a desaparecer da pele, ou
rebentar-lhes no rosto sacos com fezes. Outros, enervados com os dias
de espera em que nada acontecia, ansiavam por acção e queriam romper
as matas e ir apanhar os guerrilheiros todos. Descarregavam a tensão
disparando contra troncos de árvores ou alvejando macacos que
tentavam esconder-se nos ramos.

Saber que o inimigo se podia misturar com a população civil


aumentava a hostilidade contra os africanos em geral. No mato,
prendiam-se guerrilheiros que traziam nos bolsos bilhetes de cinema de
sessões a que os militares também tinham assistido.

O comando era condescendente com os massacres. Circulares do


Exército relembravam que os guerrilheiros, por não usarem um
uniforme e se misturarem com a população, eram assassinos, não
militares. Era impraticável exigir à tropa que parasse a cada momento
para distinguir os culpados e os inocentes. Dever-se-ia condenar aquele
que enfiara o máximo de pessoas, velhos, mulheres e crianças, dentro de
uma cubata e atirara lá para dentro uma granada, que matara todos de
modo económico? Dever-se-ia levantar um processo disciplinar ao
soldado que matara uma negra com um bebé ao colo, e com a mesma
bala, para ser poupado e rápido? A mulher era a mãe do terrorista e o
bebé era o futuro terrorista. Seria difícil, até contraproducente,
estabelecer graus intermédios de inimizade, desde o «nada inimigo» do
bebé de sanzala até ao «extremamente inimigo» do líder guerrilheiro.

Os massacres denunciados por missões religiosas chegavam às


páginas de jornais estrangeiros. A ONU pedia explicações ao governo
português. Este negava tudo, chegava a afirmar que as aldeias referidas
como massacradas não existiam, o que era verdade a partir do momento
em que a tropa lá voltava para esconder os vestígios e as apagava do
mapa. Se o massacre era inegável, dizia-se que fora obra dos
guerrilheiros para desprestigiar o Exército. A retórica chegava a mentir
com a verdade: «A nossa política é conquistar o coração das populações
nativas, seria contra os nossos interesses cometer atrocidades.»

«Esta guerra não é uma guerra, é uma doença», pensou Capelo. «Não
sou um combatente, sou um doente terminal.»

Terminada a sua primeira comissão, teve uma licença de férias em


Lisboa. O Uíge transportava centenas de soldados feridos. No porão
seguiam muitos caixões. Capelo viu soldados sem braços a serem
alimentados por camaradas. Ouviu dizer: «Matem-me, por favor. Dêem-
me um tiro, atirem-me ao mar. Não quero ir para casa assim.»

Capelo regressou ao seu quarto na casa dos pais. Visitou a irmã, mas
já não tinham grande coisa para dizer um ao outro. Caía em silêncios
soturnos. Olhava entorpecido para a capital do Império. «É isto que
estamos a defender? O direito destes carros eléctricos a circularem nas
ruas? O direito destas pessoas a comerem nas pastelarias, a consumirem
o açúcar de Angola?»

Comprometera-se a fazer duas visitas. A primeira era a um jovem


amigo da família, Cordeiro, que, quando embarcara para Angola como
soldado, lhe fora recomendado. Capelo ajudara-o a integrar-se e depois
perdera-o de vista. Sabia que ele concluíra a comissão e regressara a
casa.

Cordeiro recebeu-o com cordialidade. Os pais do rapaz olhavam com


expectativa ora para o visitante, ora para o filho, a quem lançaram um
último olhar preocupado, antes de saírem da sala. Pairava no ar alguma
coisa não dita, que causava tensão.

Capelo fitou Cordeiro. Parecia-lhe que este tentava vencer a inibição


por estar diante de um oficial. Mas não era isso. Capelo descortinou um
ressentimento no ex-soldado, e logo a seguir sentiu como se lhe fosse
dirigida a ele, Capelo, uma espécie de censura magoada. O rapaz pôs-se
a falar da guerra:

– O jipe em que eu seguia foi pelos ares por causa de uma mina.
Sobrevivemos eu e um furriel. Os outros cinco morreram, ficaram
desmembrados. O furriel fugiu. Transportei sozinho os bocados.
Nalguns casos só houve a cabeça para meter no caixão. Nunca tinha
visto mortos. Um deles era o meu melhor amigo. Sofri ao todo oito
emboscadas e por duas vezes tive de transportar pedaços de corpos. Às
tantas já não queria saber, era-me indiferente a morte, incluindo a minha.
Se já não tivesse carregado aquela quantidade de carne na primeira vez,
se calhar a reacção ao ver os onze mortos desmembrados da segunda
seria desmaiar, mas agora era canja. Depois fui ferido com estilhaços de
granada nos ligamentos do joelho. Era de noite, não me puderam
evacuar. Só no dia seguinte regressámos ao quartel e daí fui para
Luanda. No hospital, dava-me cabo dos nervos o barulho dos
helicópteros a trazerem mais feridos. Fui a uma junta médica e o médico
que presidia disse-me que tinha um filho a combater na minha zona e
que todos os que pudessem combater eram necessários. Acho que só
voltei para o combate porque ele tinha lá um filho e não facilitava a vida
a ninguém.

Capelo olhou para as pernas de Cordeiro, tentando perceber qual o


joelho que fora ferido.

– Ligamentos do joelho… – disse, receando dizer alguma banalidade.


– Já vi casos que…

– Mas o pior estava para acontecer – interrompeu Cordeiro. – No


quartel, em Silva Porto, havia dois negros cozinheiros por quem tinha
uma grande amizade. O capitão da companhia teve informações de que
aqueles dois andavam a trabalhar para o inimigo. Chamou-me de parte,
revelou-me os dados que tinha na mão e ordenou-me que arranjasse uma
maneira de os eliminar. Recorria a mim por causa da confiança que me
tinham. Eles não suspeitariam de nada se eu os convidasse para irmos
dar uma volta. Não queria acreditar no que o capitão me estava a pedir, e
foi mal acreditando que, com a ajuda de dois soldados, os executei nessa
mesma noite, atrás de um muro.

Cordeiro fez uma pausa, que Capelo aproveitou para dizer:

– Há quem julgue que estar numa guerra é ser assassino. Esse


capitão… Bom, não te deviam ter posto nessa situação.
Calou-se, porque percebeu que Cordeiro não o estava a ouvir.

– Uma vez – retomou Cordeiro, num tom frio, sem olhar para Capelo
– prendemos uns camponeses que traziam fardos de milho à cabeça.
Fugiam quando nos viam, mas prendemos uns quantos porque se dizia
que alimentavam os terroristas. Agarrei uma velha e obriguei-a a andar
quase cem quilómetros até ao nosso quartel. Ela estava doente, tinha
feridas nos pés. De vez em quando um de nós dava-lhe um pontapé e
gritava-lhe: «Anda, puta velha!» O pontapé era dado com a sola da bota,
uma patada, que fazia a velha cair. Gritávamos: «Levanta-te! Vais andar
até rebentar!» Também fiz e disse essas coisas, mais do que os outros,
para afirmar a minha posse do troféu. Fiquei todo contente quando a
entreguei ao comandante. A velha morreu no dia seguinte. Deram-me
uma medalha. Quem me deu a medalha foi ainda mais estúpido do que
eu.

Nova pausa. Capelo achou que se dissesse alguma coisa seria tão
estúpido como aqueles que tinham dado a medalha a Cordeiro. Este
parecia agora distante, demasiado distante para ser alcançado por
palavras. A voz de Cordeiro voltou, fria, desligada do próprio corpo de
onde brotava:

– Um cabo pediu-me que fosse soldar as urnas de dois cadáveres, um


soldado e um alferes de outra companhia, mortos três dias antes. Disse-
me que teria de lhes partir os braços e as pernas para poderem caber nas
urnas e esfaquear-lhes o tronco para que saíssem os gases. Já estavam
muito inchados, era necessário fazer diminuir o volume dos corpos.
Conduziu-me a uma casinha minúscula onde cabiam pouco mais do que
as duas urnas. Entrei sozinho. Estavam os dois corpos em cima das
urnas, de braços e pernas abertos. O soldado não me deu trabalho
nenhum: era pequeno, parti-lhe os membros sem dificuldade. Mas o
cadáver do alferes era enorme… Agarrei num raspador que estava ali e
perfurei o abdómen, à pressa, mas virei a cara para não ver. Os gases
começaram de imediato a sair, parecia o barulho do vento debaixo das
portas. Quando olhei de novo para o morto, vi que lhe tinha esfacelado a
cara. Estava com os olhos abertos, a olhar para mim. Fiquei zangado
com ele, ou comigo, e parti-lhe as pernas e os braços, cheio de pressa.
Só sei que ia ficando lá eu também. Saí com a ajuda do cabo, que estava
à minha espera do lado de fora com uma garrafa de brandy. Apanhei
uma bebedeira. Passei a beber todos os dias brandy e cerveja, sobretudo
brandy, porque faz efeito mais depressa. Ando a tentar livrar-me do
álcool. Só não me livro da cara do morto a olhar para mim.

Cordeiro contou que, no dia em que reentrou em casa, a família e a


vizinhança fizeram uma festa e deitaram foguetes. Aos primeiros
rebentamentos, atirou-se em pânico para o chão. Dias depois, foi à caça
com o irmão e um amigo. Os três separaram-se. Sozinho na mata, sentiu
o corpo a tremer, um calor no peito, a respiração oprimida, um estado de
alarme que não sabia o que era. Passou-lhe pela cabeça: «E se eu
matasse o meu irmão e o meu amigo? Estou maluco, portanto mato já
estes dois.» Tirou as munições da arma, guardou-as no bolso e andou
com a espingarda à bandoleira. Quando reencontrou o irmão e o amigo,
estes perguntaram: «Nem um tiro?» Respondeu: «Estou só a ambientar-
me.»

Cordeiro andava a pensar em matar-se. Procurava em cada objecto as


suas qualidades letais: uma caneta podia ser espetada na veia jugular;
podia atirar-se para a frente do comboio; foi trabalhar com o pai numa
obra, viu um cabo de alta tensão e pensou que seria fácil electrocutar-se
ali; olhou do alto dos andaimes e pensou em atirar-se, só custaria
enquanto fosse pelo ar, dois segundos apenas. Tinha sonhos em que
trocava tiros com o irmão. Adquiriu o hábito de se agachar no chão do
quintal dos pais, pegar numa pedrinha e pensar: «Tenho de encontrar
três iguais a esta, senão mato-me.» Só se levantava depois de reunir três
pedrinhas na palma da mão.

Capelo dirigiu-lhe palavras de consolação. Num momento em que


tornava a encorajá-lo a viver, Cordeiro levantou-se de um pulo,
derrubando a cadeira, deu um grito que parecia ao mesmo tempo um
pranto e um gemido, correu para a janela e ficou aí parado, de costas
para Capelo. Estava a sufocar os gritos e as lágrimas. O tenente ficou
estarrecido a olhar: violenta, aquela irrupção, e violenta a força que a
comprimia. Cordeiro obstinava-se em não olhar para o tenente, tinha o
corpo hirto, os olhos pregados na rua, lá fora, o punho da mão direita
esmagava os lábios, reprimindo alguma coisa que, se fosse expulsa, o
destruiria. Capelo tocou-lhe no ombro, tentou que esse toque fosse
significativo, mas duvidou de que o fosse. Tinha querido animar
Cordeiro com a sua visita, mas este encontrava-se para lá da
possibilidade de ser consolado. O ex-soldado recompôs-se e regressou a
um convívio trivial, só para facilitar a despedida.

Na segunda visita, Capelo foi dar as condolências aos pais do soldado


Setúbal, assim chamado por ser natural desta cidade. Lembrava-se da
história que o próprio soldado contava. Um ano antes de ser chamado
para a tropa, pedira à mãe lições de culinária, porque ouvira dizer que,
na guerra, os cozinheiros eram os que corriam menos riscos. Na
inspecção militar, um médico perguntou-lhe: «Minha grande besta,
consegues ver a parede atrás de mim?» Respondeu que sim. «Então
estás apto para a tropa», concluiu o médico, que carimbou a ficha. Foi
incorporado como cozinheiro e colocado numa messe de oficiais, em
Luanda. Não poderia desejar melhor. Um dia, querendo pôr um laxante
na comida de um camarada, para se vingar de uma afronta, enganou-se e
o laxante foi parar à sopa da mesa do coronel. Entre idas à latrina, o
coronel descobriu o culpado e mandou-o largar os tachos, pegar numa
arma e ir combater no mato.

O soldado Setúbal, mais ingénuo do que fanfarrão, falava com os


nativos nas sanzalas e dizia-lhes que não valia a pena haver guerra:

– Se os franceses, os ingleses, os belgas, largaram África, porque é


que nós haveríamos de largar? Vamos é ajudar os africanos, numa troca
do género: tu dás-me um e eu dou-te dois. Saímos daqui para isto ficar
entregue aos russos e aos chineses, que depois cercam a Europa? Ia a
Europa ficar isolada por mar. Ia criar um problema muito grave. Isto é o
que eu penso. E acho que não estou mal nestes meus pensares…

Um dia, desapareceu durante uma patrulha. Fizeram batidas à sua


procura. Em vão. Semanas mais tarde, encontraram o corpo pendurado
numa árvore com sinais de tortura. A acção necrófaga dos abutres e de
outros animais descarnara-o. Era pouco mais do que um esqueleto.
Capelo viu aquilo e estremeceu ao verificar, novamente, que no mato a
putrefacção é rápida, passa-se depressa da consciência humana à
decomposição e à dissolução na terra, cheia de odores fortes. Pedaços de
pele, seca como pergaminho, mostravam tatuagens que permitiram a
identificação. A família foi informada.

Capelo bateu à porta dos pais do soldado Setúbal. Não sabia bem o
que ia dizer, mas confiava nas fórmulas convencionais para estas
ocasiões. O pai abriu a porta. Capelo identificou-se como tenente da
companhia do soldado Setúbal.

– Sim, e o que deseja? – perguntou o homem.

– Venho expressar-lhes os meus sentimentos.

O homem abriu a boca para falar, mas não saía nenhum som. Disse
por fim:

– Os seus sentimentos? Porquê?

Nesse momento, aproximou-se a mãe. O homem esboçou um gesto de


fechar a porta, como se quisesse proteger a mulher.

– O que foi? – perguntou ela, com os olhos muito abertos.

– Vem expressar os seus sentimentos? – repetiu o homem,


endurecendo o rosto. – Quem é que lhe disse que o meu filho morreu? O
Estado-Maior já falou connosco. Os turras têm-no preso e vão negociar
a libertação. Não é a primeira vez que acontece.

A mulher tinha os olhos baixos, o rosto macerado. Capelo achou que


ela, que ensinara o filho a cozinhar para estar longe dos tiros, já
assumira o luto.

– Devia estar informado – continuou o homem. – Não devia vir aqui.


Capelo viu a imagem do soldado Setúbal pendurado na árvore,
desfigurado.

– Eu estive lá… – disse.

– Esteve lá, e depois? – cortou o homem. – A sua visita é oficial?

– Não. É pessoal.

– Então não tem que cá vir perturbar a minha mulher. O Estado-Maior


mantém-nos a par de tudo. Tenha um bom dia.

Enquanto a porta se fechava, Capelo viu a mulher sentar-se, com os


olhos vazios, talvez convicta da morte do filho mas fingindo alinhar na
loucura do marido.

Quanto mais se aproximava a data do regresso, mais intensos eram os


pesadelos em que Capelo se via perseguindo ou sendo perseguido.
Ouvia vozes: «Avancem, vamos a eles!» Queria tirar a cavilha da
granada e ela não saía. Pegava na arma, mas estava encravada. Já não
havia diferença entre Lisboa e o mato de Angola.

Finda a licença, Capelo observou o dispositivo de segurança que


rodeava o embarque das tropas, que da primeira vez lhe passara
despercebido. O regime dizia que a juventude combatia com nobreza de
carácter no Ultramar. No entanto, os cais e os navios de transporte das
tropas estavam cheios de polícias militares e agentes da PIDE, para
prevenirem fugas. Numa roda de oficiais, Capelo ficou a saber que a
percentagem anual de desertores era de quase vinte por cento e que os
mutilados de guerra que chegavam do Ultramar eram desembarcados à
noite e escondidos em anexos de hospitais.
9

As férias em Lisboa mudaram-te. Vês um quadro mais completo do


que alguns dos teus pares, mas não estás seguro de teres mais razão do
que eles.

Em Luanda, tentas aproveitar os dois dias que tens pela frente antes de
voltares ao Uíge. Assistes a um jogo do Benfica, em digressão pelo
Ultramar, contra o São Paulo de Luanda. A equipa do Benfica tem mais
negros do que o São Paulo. No intervalo, conversas com pessoas que
acham que a guerra está a ser mal conduzida. Os militares deviam já ter
exterminado os terroristas. A população branca, que festejou a chegada
dos primeiros contingentes a Luanda, agora pensa que a tropa perpetua a
guerra de propósito, para ganhar mais dinheiro. Respondes que se há
alguém que tem interesse em que a guerra seja rápida são os militares,
que arriscam a vida todos os dias. Contrapõem-te: os militares só sabem
levar uma vida de ócio e prazeres em Luanda, frequentam as prostitutas
do Bairro Operário, os bares americanos com alternadeiras, o Treme-
Treme do Largo do Baleizão, o arranha-céus cheio de apartamentos
alugados por prostitutas, dizendo-se que treme de alto a baixo quando
elas estão em função ao mesmo tempo. Respondes que Luanda é a base
de retaguarda, por isso os militares que são vistos nas esplanadas ou nos
entretenimentos não são os mesmos, estão sempre a rodar. Os colonos
vivem de generalizações apressadas: os pretos e os militares são todos
iguais. Estão convictos das suas razões e encaram todos os que não são
colonos como meros figurantes de um drama que sustenta e ameaça o
seu modo de vida. Mas o intervalo chega ao fim, o jogo recomeça e a
polémica tem de ser suspensa.
A guerra tem um ritmo brando, para sustentar uma contra-guerrilha
em três frentes, já que se abriram mais duas, em Moçambique e na
Guiné. O governo diz que retirar-se seria insultar as mães dos que
tombaram em defesa da pátria. Assim, a melhor maneira de honrar os
mortos é continuar a guerra. Não se divulga que o inimigo, que começou
com armas artesanais, já dispõe de mísseis terra-ar e abate aviões.

O prémio mais cobiçado são alguns dias em Luanda. Soldados em


gozo de licença fazem na rua a corte às mulheres brancas, sobretudo às
mais jovens, mais evoluídas do que as da sua terra. «Mulheres que
fumam», dizem. Em Luanda, fuzileiros que tinham sido expulsos da
pastelaria Versailles por fazerem um assédio insistente às clientes,
lançaram uma granada para o interior do estabelecimento. Pânico,
feridos, ambulâncias, ajuntamento de curiosos. Os fuzileiros foram
castigados com o envio imediato para zonas de combate.

Depois da euforia com que a tropa foi recebida, os militares observam


que a população os ignora e chega a virar a cara quando colunas de
soldados cruzam a cidade para irem para a guerra. Não querem ser
vitoriados em triunfo, mas ao menos um aceno, uma palavra de
incentivo. Dir-se-ia que, para os luandenses, a guerra não existe, tornou-
se uma coisa abstracta, distante.

O regime continua a falar no Portugal pluricontinental e multirracial,


mas não desapareceu o trabalho forçado de negros, ao ritmo de
chicotadas e coronhadas. O estatuto do indígena desapareceu da
legislação mas permaneceu nas mentalidades. Quando o Papa Paulo VI
recebeu os líderes dos movimentos emancipalistas das três colónias em
guerra, num encontro que o Vaticano encarou como recepção a simples
católicos e que estes interpretaram como um encorajamento da sua luta,
o ministro dos Negócios Estrangeiros convoca o núncio apostólico em
Lisboa e, entre outras coisas, diz-lhe:

– Portugal é um país católico, mas não se esqueça de uma coisa: temos


uma forte tradição anticlerical.

10

De volta à zona de guerra, tens de acampar no mato com outro oficial,


porque a zona está a ser flagelada com morteiros. O teu companheiro
adormece e não acorda nem por um momento, enquanto tu contas, até à
primeira luz da manhã, centenas de explosões. O outro, ao acordar, julga
que só se gastou um cunhete de seis munições, as que ouvira antes de
adormecer.

Um alferes comandava os seus homens e esquecia-se de se proteger a


si próprio. Movimentava os soldados no terreno, gritava-lhes ordens,
pragas, recomendações, mantinha-se de pé e chegava a subir para cima
de viaturas para ter uma perspectiva mais alargada, sem pensar que
ficava mais exposto. Apesar dos teus avisos, agia como se não
concebesse que pudesse ser atingido. Um dia uma bala acertou-lhe na
orelha e, de caminho, levou-lhe o pavilhão do ouvido interno.

Vais visitá-lo no Hospital Militar de Luanda. O alferes vai ser


transferido para um hospital na Alemanha, para ser operado.

– Eu devia dar-te um murro. Quantas vezes te disse para não te


expores tanto? Se a bala tivesse sido um centímetro ao lado, ias desta
para melhor.

O alferes, fixando em ti o olhar, responde, sem ponta de sarcasmo:

– Se a bala tivesse sido um centímetro ao lado não me acertava.

Vês militares que chegam a estar bêbados uma semana inteira. Em vez
de água há quem leve vinho no cantil.

A única coisa que farás questão de fazer sempre é tentar salvar a


própria pele e a daqueles que comandas, segundo o princípio de que se
vão os anéis, que são as munições e quem sabe as colónias, mas ficam
os dedos, a própria vida. Três guerrilheiros escondidos no mato
paralisam uma companhia inteira e fazem numa hora o percurso que a
companhia faz em oito. Contra grupos de guerrilha móveis na selva, a
artilharia de nada serve e a aviação só é útil nas savanas e para arrasar
aldeias-base dos guerrilheiros. Os comandantes mais experientes já nem
respondem a emboscadas em que meia dúzia de guerrilheiros, dispersos,
dispara de longe uns tiros que soam como castanhas dentro de uma
panela e que visam desmoralizar mais do que matar. Abrigar-se, sim,
mas responder é um desperdício de munições. Quando se responde, já o
inimigo está longe, a dormir nos seus abrigos. A solução é ir procurar os
trilhos por onde ele se move e tentar emboscá-lo de noite. O inimigo tem
a vantagem de defender a sua terra, tem essa ideia fixa, poderosa, que o
torna capaz de actos de grande coragem e sacrifício.

Até os bichos estão do lado dos guerrilheiros, que fazem emboscadas


com abelhas bravas. Põem bidões à beira das picadas, forrados com mel,
e as abelhas fazem ali os seus ninhos. Quando a coluna passa, é atingida
por tiros. O barulho, o cheiro da pólvora, o movimento, excitam as
abelhas. Alguns homens ficam desnorteados sob o seu ataque: pequenas
e agressivas, elas metem-se em todo o lado, até dentro do cano das
armas. Já tiraste cachos delas de cima do corpo. É preciso usar
mosquiteiros como cachecóis e cobrir com eles a cabeça quando se é
atacado pelas abelhas. Quando vais para o mato, levas a gola e as
mangas da camisa abotoadas. Ou queimas paus de fósforo para criar
uma cortina de fumo que oculta do adversário e afugenta as abelhas.

Também as formigas conspiram. As quissondes, formigas guerreiras,


mordem as pernas dos soldados; quando estes as puxam, os seus ferrões
ficam agarrados à carne. Uma caserna foi atacada por milhares.
Pareciam organizadas em companhias: via-se um capitão à cabeça de
cada companhia, secundado pelos seus alferes e sargentos. No mato, não
se combate um Exército regular; é nas próprias casernas que se enfrenta
um Exército, mas de formigas, que têm de ser rechaçadas com capas de
oleado ou varridas com jornais a que se pega fogo.

Dentro do aquartelamento, ouves:

– Tenente, é servido?

Quatro soldados, sentados à volta de uma mesa articulada, estão a


comer alguma coisa preparada por um deles, para desenfastiar da massa
e do arroz de todos os dias. Nunca alinhaste em petiscos e declinas o
convite.

– Veja lá… Isto vai sobrar.

Este que assim fala tinha ido caçar uma galinha-do-mato e pensou em
comê-la sozinho. Já sabia como prepará-la, ia regalar-se com a iguaria.
Mas lembrou-se: «Não posso comer isto sozinho. Fica mal. Vou
convidar Fulano. Mas também tenho de convidar Sicrano. E Beltrano.
Só estes três, e mais ninguém.» Convidou os três, e agora aqui estão os
quatro, que não conseguem dar conta da galinha-do-mato porque têm os
estômagos mirrados. A cada um que passa oferecem um bocado. Vai
sobrar, receia aquele que caçou a peça julgando que a comeria sozinho.
Escrúpulos de consciência tinham-no obrigado a ser altruísta. Partilhou a
iguaria, e no fim sobra, e é uma pena.

11

Admiras a calma e a ponderação de Fonseca, um alferes sapador. Na


picada, nenhuma mina lhe escapa. Conhece os itinerários como a palma
das mãos, literalmente, porque os examina palmo a palmo. É preciso ler
o chão, as marcas de quem por ali passou: folhas viradas, capim pisado,
terra de cor diferente, pegadas. Fonseca nunca usou as maneiras fáceis
de rebentar minas, como atirar-lhes uma granada ou atar-lhes um cordel
e puxar de longe. Há vantagem em não rebentar a mina: o barulho
denunciaria a posição da tropa, sobre a qual choveriam morteiros. Chega
a levantar minas dentro da lama, no meio de chuvadas fortes, sem ver
bem a espoleta ou se o engenho está ou não contra-armadilhado. Já
desmontou minas debaixo de fogo, para abrir caminho às colunas em
movimento. Enfrenta os sistemas de contra-levantamento, se os há.
Obriga-se a isso. Sempre se conduziu na vida fazendo o que se espera
dele mesmo quando deseja fazer o contrário, o que aumenta a tensão e
torna mais exigente o jogo que joga.

Nas fotografias que os militares tiram, Fonseca parece tão adaptado ao


ambiente como um animal; a tomar banho numa cascata ou a levantar
uma mina, é um elemento natural da paisagem. Seria um efeito de
camuflagem inconsciente? Quer andar no mato, a palmilhar o terreno.
Confidencia-te que procura estar em actividade para não sentir medo.

– O medo não é uma coisa que se compra numa loja – afirma. – Nasce
dentro de nós. Seca a boca. Eu faço um jogo com o medo: evito-o e
procuro-o, desminando sempre mais minas. Diminuo e aumento o medo.

– E o que é que sentes quando desarmas uma mina? – perguntas.

– Fico contente, porque penso: já ninguém vai morrer aqui. – E


acrescenta, com um olhar parado: – Mas também coloco minas. E
coloco minas em cadáveres.

– É a guerra… – hesitas, diante da expressão estranha no rosto dele.

– Não, não é isso – corta Fonseca. – Ninguém me pediu. Eu é que


quis.

Fonseca levou as coisas a um ponto de não retorno. Movido por um


sentimento de dever, enfeitiçado pelo jogo, foi ultrapassando escrúpulos
e limites. Naquela zona, os guerrilheiros deixam de resgatar os
cadáveres dos companheiros. Fonseca diz:

– Se eu puser na picada um monte de ouro, eles não vão lá.

Desconfias que, para Fonseca, levantar ou pôr uma mina é um desafio


intelectual, mais do que físico. É um jogador. Tem de preparar uma
jogada melhor. Já foi louvado pelo comandante do batalhão.
– Há melhores do que eu – diz Fonseca, quando elogiado. – Há tipos
que parece que cheiram as minas. Eu não pretendo ser melhor. Não sou
mais corajoso nem mais cobarde. Se reparares bem, não sou gordo nem
magro, nem alto nem baixo.

É estranha esta sua insistência na mediania. Será uma forma de


camuflar o seu carácter, para iludir o interlocutor em particular e o
inimigo em geral?

Planta bailarinas, minas que, quando accionadas, saltam do chão até


uma altura de dois metros e, quando parece que vão ficar suspensas no
ar, explodem, não deixando ileso quem esteja num raio de cinquenta
metros. Fonseca já não encontra minas artesanais de caixa de madeira e
tampa de alçapão, com uma carga de vidros e pregos, mas engenhos
sofisticados. Idealizou um método para detectar fios de tropeçar, que
espoletam granadas escondidas: na ponta de uma cana pendura um
pompom de lã que, ao encostar no fio de arame, mostra que este está ali
sem o empurrar o suficiente para desencadear o rebentamento. Fonseca
gosta do cálculo de velocidades, distâncias, cargas, potenciais de
destruição.

À frente de um pelotão, detectou uma mina. Não se dá a entender isso


ao inimigo, que pode estar escondido, à espera de que a mina rebente
para atacar a coluna. Duas patrulhas foram bater o mato, mas não
encontraram ninguém. Quando estava a tirar a areia que cobria a mina,
Fonseca pensou: «Esta vai ficar aqui. Estamos quase no Natal, vou dá-la
de presente.» Por baixo, enterrou uma granada, desenrolou o fio, pôs a
mina por cima e tirou a cavilha da granada. Quando os guerrilheiros ali
fossem para descobrir porque é que a mina não rebentara, encontrá-la-
iam intacta e pensariam: os tugas não tinham quem desminasse; ou
tiveram medo do sistema de contra-levantamento; ou não a rebentaram à
distância com uma granada para não denunciarem a sua presença no
local. Se quisessem recuperar a mina, espoletariam a granada escondida.
O pelotão seguiu na picada. Passados três quartos de hora, ouviram a
explosão. Retrocederam e encontraram dois guerrilheiros mortos.

Por cada mina que se desenterra, pelo menos outra é plantada,


prometida a uma breve e súbita floração de metal, terra e carne
retalhada. Quando a mina não mata e se limita a fazer desaparecer um pé
com a sua bota ou uma perna até ao joelho, fica à vista um osso branco e
limpo, com bocados de pele pendurados como farrapos das calças. Os
soldados que já viram isto dizem-te:

– Tenho vinte anos, meu tenente. Se eu perder uma perna, mato-me.

No entanto, já há milhares de mutilados e não há notícias de suicídios


por causa disso. A vida continua, chega-se aos vinte e um anos com uma
perna só.

12

No aquartelamento do mato, perto de Quipedro, continuas tão


desiludido com o curso da guerra como espantado com o que observas
nos homens.

Dormes mal. De noite ouvem-se os canhões, perto e longe. O chão


treme. Há que confiar nas sentinelas, revezadas de duas em duas horas,
desde que se soube de um aquartelamento atacado por guerrilheiros que
mataram as sentinelas adormecidas e invadiram o recinto sem
resistência. O círculo mais exterior é de arame farpado, seguindo-se-lhe
uma vala circular cheia de água. Há uma segunda vala em ziguezague
tapada com um entrançado de folhas de palmeira; esta cobertura e a
forma em ziguezague amortecem o impacto das granadas e limitam os
seus estragos. Sentinelas e holofotes perscrutam o mato.

É chocante a morte dos companheiros que estavam a falar no


momento em que uma bala os mata e tombam para cima do interlocutor.
No entanto, fazem-se caixões toscos, metem-se lá dentro os camaradas
mortos, à espera do próximo transporte que só virá daí a dias, e até lá os
que estão vivos bebem cervejas, comem, riem alto. Joga-se às cartas em
cima dos caixões, arrasta-se mais um para fazer a mesa mais alta.

Serão metidos em porões de navios que os descarregarão em Lisboa.


Daí serão enviados para diferentes partes do País, as famílias chorarão
ao seu lado e o padre da freguesia dirá algumas palavras. Mas até lá, são
embalagens que podem servir de mesa para jogar à bisca, carga de porão
manobrada por guindastes.

Se não é fácil o transporte dos caixões, os mortos são enterrados perto


dos acampamentos e das picadas. A pressa é tanta que alguns, desfeitos
por minas, vão embrulhados num dólman fornecido por alguém e
atirados para uma cova. Cavadores negros abrem as covas, orientados
pelo cabo de dia. Se o oficial de dia não compareceu, ou o sargento de
dia já se afastou dali, o cabo dá-se por satisfeito com uma cova
superficial, que não tem a altura regulamentar entre o cadáver e o topo.

Um alferes, um sargento e o cabo cozinheiro prepararam uma refeição


para todos. Dizem que é coelho bravo. No fim, o primeiro-sargento
anuncia:

– Sabem o que é que comeram?

Mostra três cabeças de macaco e um feto retirado da macaca que


estava prenhe, para horror dos comensais. No entanto, o único que se
digna vomitar é um capelão. Quem se ri mais é o sargento, e o seu riso é
tanto mais sinistro quanto se sabe que é empalhador de animais nas
horas vagas. Tem um estojo completo com materiais químicos e
cirúrgicos. Trazem-lhe peças de caça, como cabeças de antílopes, e ele
embalsama-as. Especializou-se naqueles mesmos macacos que deu a
comer: com a parte de cima do tronco e a cabeça empalhadas, faz
candeeiros de mesa, pondo lâmpadas de carros no lugar das órbitas
vazias dos bichos.

A tua companhia junta-se a várias outras para uma grande operação de


cerco a uma serra escarpada e defendida por vegetação muito densa, que
o inimigo anunciou ao mundo que estava sob seu domínio. É a guerra
dos noticiários radiofónicos. Um engodo para atrair a tropa e mantê-la
ali ocupada, negligenciando outros pontos vitais. Os generais querem
jogar como num tabuleiro de mesa, responder à fanfarronada do
adversário com uma fanfarronada maior. Mobilizaram meios aparatosos:
aviação, artilharia, pára-quedistas, comandos, pelotões de morteiro. Um
festim. Naquelas matas há árvores tão grossas que são necessários vários
homens para abraçar o tronco. Bombardear é inútil: as explosões são
abafadas, o fogo não se propaga. Se a bomba cair em cima da cabeça do
guerrilheiro, muito bem. Mas, se ele estiver do outro lado da árvore, não
lhe acontece nada. Num sítio daqueles, dez guerrilheiros dão conta de
um exército inteiro. Vai fazer-se muito barulho, uma demonstração de
força, um desperdício de toneladas de munições. Nos seus papéis, as
chefias hão-de dizer que a operação foi um sucesso. Não vão dizer que
enquanto estiveram ali empenhados com tantas forças e tantos homens,
o inimigo poderá ter movimentado material pesado, posto minas noutros
lugares da região, construído abrigos, instalado canhões sem recuo,
porque teve tempo para tudo isso.

As várias companhias estão perfiladas, em posição de sentido, quando


chega um helicóptero que traz o general. Costuma estar hospedado num
hotel em Luanda, com ar condicionado, mas hoje vem assistir um
bocadinho à guerra. Pavoneia-se diante destas centenas de homens,
alinhados por sua vontade. É manhã cedo, tudo está calmo, a voz do
general é bem audível quando tira o revólver do coldre e diz:

– Vou espicaçá-los.

Dá alguns passos em direcção às árvores e dispara três tiros que se


perdem na mata cerrada. Tu pensas: «Ridículo.»

13

A morte fabrica heróis, exemplos a seguir. Lêem-se elogios aos


mortos, que terminam da mesma maneira: em nome da pátria, ao serviço
da pátria. A pátria, é essa a palavra-chave. Por ela se tem de viver e
morrer. O morto, mesmo o que nada fez senão estar no caminho de uma
bala perdida, é um modelo de espírito de sacrifício, de sentido do dever,
de coragem, agora liberto de um corpo grosseiro, personagem de lenda,
exemplo edificante, merecedor de elogio público e emulação.
Transforma-se a sua morte, mesmo acidental ou indigna, num caso
inesquecível de virtude. No louvor publicado em ordem de serviço e lido
em voz alta diante da companhia inteira, não se diz que o morto, quando
ferido, chorou e chamou pela mãe; não se diz que aquele outro segurou
os próprios intestinos e tentou metê-los dentro do corpo, com as mãos
sujas de terra; não se refere que o pescoço de um outro, enquanto
agonizava, inchou até se lhe cravar na carne o fio com a chapa metálica
de identificação. Morrem em nome da pátria. Tudo pela pátria. Viva a
pátria.

Uma noite, no teu aquartelamento, ouve-se o barulho de morteiradas a


cair num aeródromo de manutenção da Força Aérea, a vinte
quilómetros. O aeródromo deve estar a ser atacado. Vários comunicados
via rádio, a pedir pormenores, ficam sem resposta. Diriges-te para lá
com o teu pelotão. Um alferes junta-se a ti, chamado à pressa quando
estava a dar assistência à mulher, grávida de oito meses. Quando falta
um quilómetro para chegar ao objectivo, uma rajada de metralhadora
passa por cima das vossas cabeças. Fazem o resto do percurso a rastejar.

Vêem uma sentinela que grita:

– Olha os terroristas! Acabam de chegar os terroristas!

No interior, os vinte e cinco homens que encontram estão bêbados.


Agora percebem porque é que os comunicados via rádio não tiveram
resposta. Encontram um furriel mecânico, sóbrio mas aterrorizado,
trancado no quarto.

O pessoal do aeródromo resolvera pregar uma partida a este furriel


recém-chegado. Levaram-no, a ele e a um outro, num voo cheio de
cambalhotas para os fazerem vomitar. Quem vomitasse teria de pagar
bazucas, as cervejas de um litro. Ele não vomitou; o colega, sim.
Embebedaram-se à conta deste. A ele, prepararam nova partida.
Deixaram-no deitar-se no quarto e simularam um ataque de morteiros ao
aeródromo. O primeiro morteiro foi para o exterior, mas os seguintes já
caíram dentro da base. O furriel, no seu quarto, acreditando que estavam
a ser atacados, trancou a porta e escondeu-se no armário. Os
guerrilheiros, se entrassem ali, poderiam não o chegar a ver. Ouviu
rajadas de G3, que ele, novato, não distinguia das Kalashnikovs dos
guerrilheiros, conhecidas como costureirinhas porque o seu barulho
lembra o de uma máquina de costura. Na guarita, o soldado de sentinela,
também bêbado, ao tentar travar a metralhadora, descarregou uma rajada
para o mato escuro. Foi essa rajada que obrigou o teu pelotão a rastejar
quase um quilómetro.

Quando regressam ao aquartelamento, em Quipedro, ficam a saber que


a mulher do alferes, o mesmo que correra a juntar-se a ti, abortara por
causa dos nervos e da corrida do marido para o perigo. Ao saber-se isto
no aeródromo, a brincadeira do falso ataque alcançou uma dimensão
sobre a qual já não se poderia contemporizar. Diante dos vinte e cinco
brincalhões bêbados, agora sóbrios e arrependidos, um oficial superior,
que viera da sede do batalhão por causa do escândalo, disse:

– Que haja quem enforque pretas grávidas e lhes arranque os bebés da


barriga, é uma coisa. Agora, que vocês façam a mulher de um alferes do
Exército abortar com o susto, isso, francamente, não me parece bem.

14

São cinco e meia da manhã quando guerrilheiros do MPLA fazem um


golpe de mão que apanha o aquartelamento de surpresa. Primeiro, a
companhia é alvoroçada por morteiradas que arrasam as casernas, onde
estava a dormir a maior parte dos soldados.

Estás numa edificação mais central. Corres desarmado para fora e vês
à tua volta incêndios e explosões. Soldados gritam e correm. Continuam
a cair projécteis. Na confusão, é impossível organizar uma reacção e
muitos já fogem para o mato. Diante de ti, um soldado foi atravessado
por uma granada. Um outro corre para a tenda para ir buscar a arma e
volta dentro da vala que circunda o acampamento, com água pelo peito.
Assim que levanta um pouco mais a cabeça, um tiro acerta-lhe na testa.
Afunda-se na água. Julgas ter visto a bala a entrar-lhe na cabeça, como
em velocidade retardada.

Outros enfiam-se nos abrigos, buracos de 3x2 metros escavados no


chão, mas os guerrilheiros que entraram no acampamento atiram
granadas lá para dentro. Espreitas para um abrigo; a visão de dois
soldados desfeitos faz-te recuar.

Entre fumo, chamas e rebentamentos, cruzas-te com guerrilheiros que


passam a correr e a disparar. «Estou desarmado… e ainda estou vivo»,
pensas.

Rebenta perto de ti uma granada. O soldado Cabral, à tua frente, leva


com o impacto em cheio. Caem juntos. Cabral, em cima de ti, está
morto. O sangue parece silvar e jorrar para cima de ti. Ferido, sentes o
teu próprio sangue quente a escorrer. Estou cego, estou surdo, não sinto
nada, alguém que me ajude a sair de baixo do Cabral. Escuridão. E se eu
me deixar ir? Seria fácil dormir, afundar-me neste charco de sangue.
Mas vejo, como um relâmpago, a cara da minha mãe reflectida no vidro
do armário da sala de jantar, vejo uma rua que conheço bem e onde
gosto de passar, é melhor lutar contra o abandono, tenho de me mexer.
Não perdi a visão, é sangue o que me cobre os olhos. Não estou surdo:
os meus ouvidos latejam, deve ter sido do rebentamento, os sons em
volta chegam-me abafados mas cada vez mais claros. Sinto uma
convulsão no peito, os meus pulmões querem respirar. Tenho pernas,
tenho braços, posso tocar-lhes com as mãos. Tenho de olhar, focar a
vista neste pedaço de céu por cima de mim e neste terreno que me cerca
e por onde correm soldados de um lado para o outro. Estou vivo, quero
viver. Não olhem para mim como se eu estivesse morto. Vejo nos
vossos olhos o horror perante um morto. Esperem… Metade deste
sangue não é meu, é do Cabral. Ele é que está morto, vê-se bem que está
morto. Eu não. Não me enfiem num saco de plástico. Não me metam na
casa mortuária, como o outro que estava apenas ferido e acordou no
meio dos mortos. Envio-vos sinais de que estou vivo e vocês julgam que
eu me debato nos estertores da agonia. Ajudem-me.

Os guerrilheiros já se foram embora, talvez avisados de que vinha aí a


aviação. Aparecem alguns Fiat, que lançam bombas de napalm à volta
do acampamento.

Tens vários estilhaços no corpo. Sangras muito, mas não perdes a


consciência. Os enfermeiros e os socorristas contaram dez mortos e já
reuniram dezassete feridos. É preciso esperar pelos helicópteros e alguns
morrerão na espera. Por sorte, aparece o avião que uma vez por semana
traz carne e peixe fresco e o correio.

Estás deitado ao comprido no chão do avião, ao lado de um que


perdeu as pernas e tem os intestinos de fora, e que olha à sua volta com
indignação, como se indagasse: «Vão deixar-me morrer?» O seu corpo
dá um sacão e todos dentro do pequeno avião fazem um gesto com a
cabeça, como que certificando o óbito.

15

És operado no Hospital Militar de Luanda. Ao fim de uma semana já


te sentes capaz de tomar banho sozinho. Diante de um espelho, contas
setenta e quatro buracos pequenos, uns sarados, outros ainda não:
dezanove na coxa da perna esquerda e o resto no dorso do lado
esquerdo, barriga e braço. Os fragmentos diminutos que ficaram dentro
do corpo hão-de sair ao longo do tempo. O corpo encarrega-se de os
expulsar. Recebes visitas, que te dizem:

– Todos pensámos que ia morrer. Não sei como é que tinha tanto
sangue para deixar lá: primeiro no capim, depois na avioneta. Eu punha
as mãos em cima das suas feridas, para o estancar, mas saíam grandes
golfadas sempre que respirava.

No quarto está outro oficial, um aviador que teve de saltar de um


avião avariado e cujo pára-quedas não abriu. Ficou pendurado numa
árvore. Está todo engessado, parece uma múmia com as pernas e os
braços levantados e imobilizados e aberturas no lugar dos olhos, boca e
nariz. Diz às visitas:

– Quando me tirarem este fato branco, vou dar conta deles todos.

Na posição em que está, ele vê-te sem que tu consigas ver-lhe os


olhos. Mete conversa contigo.
– Isto até parece que foi castigo. Sabe qual foi a minha última missão
antes do acidente? Estava a patrulhar a fronteira com a Zâmbia e há ali
uma parte em que o rio costuma estar coberto de vegetação. Sobrevoei a
fronteira sem me dar conta. Já estava em território zambiano julgando
que era angolano. E o que vejo eu? Uma aldeia que não se via nos
mapas, porque eu não estava onde julgava estar. Pensei que era um
acampamento de guerrilheiros e despejei metralhada e bomba que foi
um festival. Os tipos corriam para todos os lados e alguns entraram em
pirogas e tentaram cruzar o rio, para entrarem em Angola, embora eu
não soubesse que aquilo era a fronteira. Metralhei esses que iam nas
pirogas. Voltei para a base todo contente… e sabe o que me disseram?
Aquela aldeia em território zambiano foi edificada por vocês, Exército,
para espiar movimentações de guerrilheiros que costumam cruzar a
fronteira. Dei cabo do vosso arranjinho. Arrasei os espiões mascarados
de aldeãos.

E ri, um riso que não sacode a roupa de gesso, como se fosse um som
a pilhas saído de uma caixa de música ou de um boneco de feira.

– Já viu esta? – repete ele. – Vocês, do Exército, são uns gajos


porreiros, mas têm cada uma… Uma aldeia de espiões!

A imobilidade do piloto aviador, a sua prolixidade, o seu riso-


fantasma, enervam-te. Sais do quarto sempre que podes e deambulas
pelos corredores do hospital, que é gigantesco. Um dia queres dar uma
volta maior do que o habitual e perdes-te por corredores e escadarias.
Abres uma porta julgando que vai dar a um pátio, mas desembocas
numa sala pequena. No meio da sala está um monte de fardas rasgadas e
botas pretas. Reparas que há manchas nas botas que parecem sangue.
Olhas melhor e vês que dentro de cada bota está um pé cortado ou um
bocado de perna. É um depósito de amputações recentes.

16

No último ano da segunda comissão, integras os serviços de guerra


psicológica ou acção psicossocial, cujo nome vulgar é «a Psico».

Alguns acreditam que a reconquista do espaço não chega; é preciso


conquistar as almas das populações rurais, levá-las a ver com bons olhos
a autoridade legal, para não alinharem com a subversão. Há militares
convictos de que estão a corrigir os erros dos brancos, que não
investiram na educação dos nativos, mantendo-os ao serviço de
empresas em regime do tipo feudal, de escravidão encapotada. Os
militares ensinam a ler e a escrever, oferecem cuidados de saúde,
distribuem roupas, organizam espectáculos de música e dança,
esclarecem sobre os malefícios da ideologia dos rebeldes. Dizem que os
nativos lhes dedicam mais amizade do que aos colonos, os quais se
preocupam com o facto de a acção psicossocial esquecer o mais
importante: o castigo. Sem o castigo, única linguagem que o negro
entende, o branco parecerá fraco aos seus olhos.

Os nacionalistas africanos consideram a acção psicossocial uma forma


inaceitável de paternalismo. No mato, têm escolas onde ensinam
português às crianças. Há quem aponte isto como prova de que eles
querem ser portugueses. Como se não se pudesse sacudir o jugo colonial
e fazer a guerrilha recorrendo, entre outros instrumentos, à língua trazida
pelo colonizador. É possível libertarem-se de Portugal em português.
Num fim de tarde, o teu destacamento chega a uma sanzala perto da
Zala. A bandeira nacional é hasteada com as devidas honras. As armas
são arrumadas e dá-se início a um baile popular. Ao longo de algumas
horas, os militares usam diferentes talentos para entreterem os habitantes
da sanzala e se darem a conhecer; um deles faz truques de ilusionismo
com o material que traz numa caixa, um número de grande sucesso junto
das crianças, a quem são distribuídos rebuçados e bonecas. Depois do
jantar, o destacamento vai-se embora. No dia seguinte, dois nativos
alcançam a pequena coluna e dizem que a sanzala foi atacada durante a
noite e há muitos mortos. Retrocedem e descobrem que nenhum dos
habitantes foi poupado. Os militares vêem, um a um, os corpos das
mulheres e das crianças com quem dançaram e riram. Nos orifícios
provocados pelas balas os guerrilheiros colocaram rebuçados.
Escreveram um letreiro: «Nós também sabemos dar rebuçados.»

Ouves alguém comunicar por telefone ao comando do batalhão:

– Eles estão na zona de onde momentaneamente os expulsámos.

«Momentaneamente», pensas. Eis a palavra que precisavas de ouvir


nesse dia para agregar algo dentro de ti que não sabes o que é. Convém-
te a ideia de momentâneo, de transitório, para acreditares que o que estás
a viver passará. Precisas dessa palavra, que te dá a certeza de que aquilo
não é definitivo. Receias estar a viver algo de que não possas regressar.

17

Como última missão, antes de seres desmobilizado, dão-te o comando


de um destacamento para resgatar o alferes Fonseca e um primeiro-
sargento, que foram enviados para um aquartelamento no mato.

Um ano antes, por razões estratégicas, este aquartelamento fora


considerado inútil e a tropa saíra. Presumindo que o inimigo quereria
aproveitá-lo, o comandante da zona militar deu ordem para se
armadilharem todos os edifícios. Fonseca, o melhor oficial sapador, e o
primeiro-sargento, especialista em minas e armadilhas, demoraram
vários dias a estudar as características do terreno, cada árvore, cada tufo
de vegetação, cada canto de cada edifício. Colocaram detonadores de
pressão debaixo de degraus, detonadores de tracção nos puxadores das
portas, nas tábuas do soalho, nas gavetas, debaixo de tapetes de musgo,
fios de tropeçar no meio da relva e dos arbustos. Depois de montarem
todo um complexo de armadilhas, desenharam-no numa folha de papel.
Os pés e as mãos dos guerrilheiros, quando lá entrassem,
desencadeariam explosões em série, para atingir os camaradas que
tivessem sido mais cautelosos. Algumas das cargas estavam destinadas a
formar um círculo de fogo que encurralaria quem ali entrasse.

No entanto, nas altas esferas, os planos estratégicos mudaram e


tornou-se necessário reocupar aquele aquartelamento. Estava intacto.
Intactas estavam as minas e as armadilhas colocadas pelos especialistas,
excepto as que tinham sido detonadas por animais. O alferes Fonseca e o
sargento foram chamados, desta vez para desarmadilharem tudo.
Quando lá chegaram, a vegetação luxuriante da selva tinha envolvido o
aquartelamento e alterara todas as coordenadas e referências assinaladas
no mapa. O que encontraram já nada tinha a ver com o que desenharam.
Era uma vegetação prolífica e barroca, que sabotara a própria sabotagem
que ali tinham preparado, como se fosse o maior aliado dos guerrilheiros
e desafiasse os dois militares. Lançaram fogo à vegetação para espoletar
algumas cargas. Conseguiram-no com poucas. Desminaram mais
algumas, mas a maior parte, as piores armadilhas, permaneciam
invisíveis e intactas, esperando por eles. Tentaram recorrer à memória,
mas também esta estava cheia de armadilhas. A angústia crescia dentro
deles. Um sentido de missão e de sacrifício impedia-os de desistirem.
Eram militares, tinham de cumprir as ordens e resolver o problema,
custasse o que custasse. Convenceram-se de que iriam morrer ali. De
dia, um sol impiedoso esturricava os seus cérebros fatigados pelo terror.
De noite, sonhavam com a luta que travavam contra a vegetação
selvagem, contra a memória, contra o clima, e acordavam, ora um, ora
outro, com pesadelos e explosões imaginárias. O primeiro-sargento
propôs que se obrigasse os habitantes da aldeia nativa mais próxima a
avançarem pelo meio das armadilhas, para as accionarem. Podia-se e
devia-se recorrer ao sacrifício dessa gente; sabia-se lá se não ajudavam
os terroristas. Nessa noite, depois de fracos progressos no estudo do
local, Fonseca acordou avassalado por um pesadelo real: o sargento,
numa crise de sonambulismo provocada pela tensão nervosa que durava
há vários dias, avançara sozinho pelo perímetro do aquartelamento e, em
passos trôpegos e alucinados, levantara a muralha de fogo que, um ano
antes, tinham idealizado para aprisionar o inimigo. Ficou reduzido a
cinzas mas resolveu o problema.

Foi esse festival ruidoso e colorido como um fogo-de-artifício que


sobressaltou a noite e chamou a atenção da unidade militar mais
próxima, onde tu estavas. O teu destacamento dirige-se ao local e
encontra o alferes em estado de choque, balbuciando incoerências no
meio de crateras de explosões, paredes incendiadas, lianas e ramos
retorcidos como ruínas de uma cidade vegetal maldita.
Evacuado dali com o que resta do sargento, Fonseca demora a contar
tudo o que aconteceu. Sucumbe a um esgotamento nervoso e terá de
baixar à enfermaria psiquiátrica de um hospital de campanha. A
enfermaria é um barracão horrível, com várias camas alinhadas debaixo
de um telhado de zinco. Um dos doentes que lá está é um negro que não
pára de gritar. Pensas que, se tivesses de ficar ali, no lugar de Fonseca,
não aguentarias ouvir aqueles berros.

Gabela, 1964-1974

A companhia de Capelo, no regresso a Luanda, parou no Caxito. O


comandante tinha ficado indignado ao saber que alguns soldados
desenhavam os contornos de uma mulher no colchão e faziam um
buraco no meio, para se entreterem. Se tivessem violado mulheres não
ficaria tão chocado; mas um buraco num colchão era indigno de
homens. Numa sanzala próxima, mandou parar por meia hora para se
almoçar a ração de combate. A meia hora passou e o capitão teve
dificuldade em reunir os homens: em cada cubata da sanzala entrara um
soldado para se deitar com uma mulher.

Os altos comandos não queriam congestionar Luanda, essa nova


Babilónia, com tropas relaxadas ou traumatizadas. A companhia,
enquanto aguardava embarque para Lisboa, foi mandada para a Gabela,
a quatrocentos quilómetros a sul de Luanda, longe da guerra, para
descansar um mês.

Seguiram em coluna. Capelo vinha a conversar com Carvalho, um


alferes de quem se tornara próximo nas últimas semanas. O alferes,
muito alto, levemente curvado, era olhado por todos com alguma
desconfiança. Dizia-se que também ele estava cacimbado. No
aquartelamento, Capelo tinha partilhado o quarto com Carvalho, o qual,
muitas vezes, acordava aos gritos a meio da noite. Vira-o a montar uma
metralhadora sobre um tripé. A metralhadora apontava para a porta e
quase para a cama de Capelo.

– Se eles entrarem aqui, não me apanham vivo – justificara Carvalho.


– A mim ninguém me apanha vivo. Resistirei até à última bala.

– Tira daqui essa metralhadora – ordenou Capelo. – Ainda acordas aos


gritos outra vez, com as tuas maluqueiras, e me crivas com tiros.

Carvalho recusou desmontar a metralhadora:

– A mim ninguém me apanha vivo!

Capelo levou para o quarto uma caixa de madeira que continha trotil,
mas sem detonadores e, portanto, sem qualquer capacidade explosiva.
Colocou a caixa junto da sua cama, com o lado onde estava escrito
«Trotil» virado para Carvalho. Sabia que o alferes tinha medo de tudo o
que se relacionasse com explosivos. Negociaram: Capelo retiraria do
quarto a caixa do trotil se Carvalho desmontasse a metralhadora. Assim
fizeram.
Quando sóbrio, Carvalho falava pouco e era taciturno. Quando bebia,
fazia alusões aos seus tempos como Ranger. Toda a gente sabia que ele
nunca tinha estado nas tropas especiais. Só ele parecia não saber e agia
como se fosse verdade:

– Só quem lá esteve sabe o que aquilo é. Eu não me lembro nem da


metade das coisas que fiz. Devem ter-me dado uma injecção para
esquecer os segredos militares e as coisas terríveis que me obrigaram a
fazer.

A caminho da Gabela, ouviram um tiro e todos saltaram das viaturas e


se atiraram para o chão, antes mesmo de se lembrarem que aquela não
era uma zona de guerra. O capitão tinha avistado uma pacaça e
disparara, sem a atingir. Quando estavam todos a subir para as viaturas,
Carvalho, que trazia a espingarda-metralhadora destravada, bateu com a
coronha nalguma coisa e descarregou o cartucho inteiro de munições
sobre o depósito de gasolina de um dos camiões. As balas, em rajada,
passaram a escassos centímetros da barriga de Capelo. Estiveram várias
horas parados, para o camião ser reparado.

A companhia instalou-se no quartel da Gabela. Os recém-chegados


não demoraram a indagar o caminho para as sanzalas mais próximas e as
vias de acesso às mulheres negras. Capelo, enfastiado das conversas da
messe de oficiais, juntou-se a um pequeno grupo que foi conhecer a
cidade. Capelo e o alferes Carvalho iam lado a lado, em silêncio. Ambos
tinham descoberto que não estavam entusiasmados com a ideia de voltar
para Portugal. Capelo não tinha saudades do curso de Direito; Carvalho
não achava interessante o emprego de bancário que a mãe lhe sugerira.
Estavam a deixar para trás a guerra, mas sentiam que o regresso à vida
anterior ao Exército se iria concretizar apenas por inércia.

Gabela, em plena zona cafezeira do Cuanza Sul, estava a mil metros


de altitude e espreitava os vales onde se produzia uma das melhores
variedades de café do mundo. Do alto dos morros avistavam-se, em dias
limpos, as montanhas que Paulo Dias de Novais, no século XVI, julgava
que tinham minas de prata. Em cem fazendas, ricas e modelares, o café
em flor trepava as encostas, entre casas brancas e terreiros de secagem.
Daqui, de comboio, escoavam-se milhares de toneladas de mercadoria
para os navios em Porto Amboim. O mar estava a menos de cem
quilómetros.

Capelo, desde que entrara em roças de café no Uíge, devastadas na


sublevação de 1961, e testemunhara a sua recuperação, estava fascinado
pela vida produtiva e familiar que adivinhava desenrolar-se nesses
lugares. Gostava das cidades, mas também o cativava sair do asfalto,
pisar terra, expor-se aos elementos, sentir uma energia que brotava do
centro do planeta ou vinha do Sol para criar as montanhas, os rios, as
florestas. Os trabalhos agrícolas eram a forma de civilização mais em
harmonia com os ciclos cósmicos. Pela primeira vez, e sem partilhar este
sentimento com o taciturno Carvalho, imaginou que a manifestação de
algo que sempre estivera latente dentro de si poderia levá-lo a mudar de
rumo e a sua vida passaria a ser muito diferente do que fora até então.

Depois de contemplarem os horizontes em redor, regressaram ao


centro da cidade. Aproximaram-se da igreja de Santa Isabel, como de
um íman a que não pudessem resistir. E aí, observando o desenho
geométrico das avenidas que partiam da igreja, ou para ela confluíam,
ouvindo a campainha de uma escola próxima, o motor de uma carrinha
de mercadorias que dobrava uma esquina, avistando ao longe um marco
de correio, Capelo percebeu que a cidade era um maquinismo de relógio,
um conjunto artificial e engenhoso, e, no entanto, bem integrado no
ambiente dos vales e dos campos do café. Olhou a posição central do
edifício da igreja, situou-se a si próprio neste conjunto, tornou-se
consciente do que o ultrapassava e ao mesmo tempo lhe proporcionava
um lugar, e sentiu-se comovido como nunca antes lhe sucedera.
Afastou-se uns passos de Carvalho, para que este não visse a emoção
que lhe alterara a expressão do rosto. Não era crente, mas sentiu que a
igreja estava no lugar certo, e que tudo o que ouvira e vira uns
momentos antes, a campainha da escola, o marco do correio, a carrinha
de mercadorias, parecendo coisas dispersas, faziam parte da mesma
unidade. Afinal, estava tudo muito certo. Demorou-se sozinho a
considerar estas coisas, porque sabia que aquela impressão total era, por
isso mesmo, fugaz, e que teria de se reaproximar de Carvalho e trocar
com ele palavras banais.

Passaram por uma ponte sobre o rio Mazungue, que atravessava a


cidade. No rio, lavadeiras negras batiam a roupa contra as pedras
enormes das margens e estendiam-na em cima das pedras para secar.

Carvalho caminhava agora com indolência, mais curvado do que o


habitual. Capelo olhou para ele e achou-o cansado. Carvalho devolveu-
lhe o olhar e perguntou:

– Capelo, estamos vivos?

– Estamos vivos – disse Capelo, num tom neutro.

Mas Carvalho repetiu a pergunta, como se duvidasse da resposta dada:


– Estamos vivos?

O seu tom não era jocoso, nem angustiado. Parecia perplexo. Capelo
achou que agora tinha de ser mais enfático:

– Estamos vivos!

Carvalho venceu a perplexidade e fez um sorriso cansado.

Os passos, sem rumo aparente, levaram-nos até ao jardim municipal.


Contornaram um edifício envidraçado, em cuja porta se lia «Salão de
Chá Esmeralda». Estava fechado. Capelo reparou numa folha de papel
colada ao vidro da porta que anunciava: «TORNEIO DE XADREZ –
sábado e domingo à tarde – Entrada livre.» Espreitando para o interior
do salão, viu tabuleiros de xadrez sobre algumas mesas, com as peças
dispostas na posição de partida.

– Aqui joga-se xadrez – disse. – Sou capaz de cá vir. O que é que


achas?

– Também não me calhava mal – concordou Carvalho.

No salão de chá, no centro do jardim municipal da Gabela, Mateus


examinava a lista dos inscritos para o torneio de xadrez. Não havia
muitos nomes. A cidade era pequena, bastava fazer constar que estava
aberto o torneio para atrair os xadrezistas. Dispôs mais alguns tabuleiros
sobre as mesas.
Mateus chegara um ano antes à Gabela para ocupar a vaga de
funcionário do registo civil e notariado. Livrara-se da carreira do quadro
administrativo em que estava prestes a ser promovido a chefe de posto.
Ao fim de cinco anos em Moçâmedes, onde lhe tinham nascido três
filhos, fora transferido para Benguela quando já estava a estudar para o
exame de promoção, convicto de que não estava talhado para aquelas
funções: mandar bater, praticar o medo mais do que a justiça, fiscalizar
patrões e comerciantes que tinham como único critério gastar o mínimo
e ganhar o máximo com o trabalho forçado dos negros ou a venda das
coisas que lhes impingiam, impor multas que eram substituídas por
favores se o administrador fosse tão honesto como o multado, açular
cipaios como cães de fila, revirar sanzalas à procura de rebeldes, ter de ir
para o posto que lhe atribuíssem, que bem poderia ser longe de Beatriz e
dos filhos. Teve sorte. Houve uma cisão do quadro administrativo e
criou-se o quadro de secretaria, com categorias equiparadas, sendo a
primeira a de aspirante. Pediu transferência. O administrador desprezou
a sua opção, achando que o quadro que abandonava é que era importante
e nobre. Mateus sabia bem o que ele entendia por nobreza e importância;
o administrador recebia prendas dos comerciantes e dos fazendeiros, que
a mulher revendia: caixas com garrafas de uísque, sacos de açúcar,
provisões de carne. Quando ia a uma loja, escolhia o que queria e dizia
ao comerciante para lhe mandar a conta para casa, o que este não fazia
para se livrar de uma fiscalização apertada. Mateus não estava
interessado em nada disso e deixou para trás as incursões no mato, as
visitas às sanzalas, os rios atravessados numa jangada, o hábito de usar
farda branca e chapéu colonial. Não ia ter cipaios às suas ordens. Em
Benguela, como o seu gabinete ficava no edifício da Administração,
porque era parte orgânica desta, ouvia o som das palmatoadas vindo da
parada. Bem podia matraquear na máquina de escrever, para redigir um
ofício ou um poema. Mesmo que o som da máquina se sobrepusesse ao
dos castigos que aconteciam perto da sua janela, não podia apagar da
mente a imagem de homens adultos, em fila, à espera do correctivo
pedagógico, as mãos inchadas e a sangrar.

Já como segundo oficial do quadro de secretaria, foi transferido para


pequenas povoações, ao sabor das necessidades de serviço, decididas
pelo governador de distrito. Era seguido por Beatriz, que encontrava
colocação nas escolas locais. Num concurso para oficial do registo civil,
onde poderia ganhar mais e ser chefe de repartição, foi admitido e
colocado no Bocóio: meia dúzia de casas rodeadas de mato. Aí nasceu o
quinto filho. Mateus instalou a repartição num barracão alugado que
dividiu em gabinete e secretaria. Ocuparam a casa anexa à escola,
atribuída a Beatriz. Quando já tinha cinco filhos que precisariam de
escola em vários graus de ensino, Mateus ocupou a vaga na Gabela, sede
de concelho. A repartição do registo civil partilhava um edifício com o
tribunal. O administrador de concelho era o substituto legal do juiz e
Mateus o substituto do subdelegado do procurador da República, um
indiano sempre doente e de licença em Luanda. Até chegar um juiz de
carreira, instruiriam processos e fariam julgamentos com penas até três
anos, competência delegada pela comarca de Novo Redondo. O escrivão
era o único que percebia do assunto.

Como já tinha feito em todos os lugares por onde passara, tratou de


dinamizar o xadrez desafiando os amigos e colegas ou organizando
torneios abertos ao público. O salão de chá do jardim, que pertencia à
câmara municipal, estava desactivado; conseguiu-se que as instalações
fossem cedidas para se jogar xadrez. Era no xadrez que Mateus
sublimava os seus impulsos de conquista e agressividade. O
autodomínio era o traço fundamental da sua personalidade e pagou um
preço por isso: aos trinta e dois anos, rebentou-lhe uma úlcera no
duodeno de origem nervosa. Foi salvo por transfusões oferecidas por
dois funcionários do tribunal de faces rubicundas e sangue excelente.

Mateus viu um tenente e um alferes a franquearem a porta do salão de


chá. O tenente parecia abrir caminho entre as mesas, com passos firmes
e uma expressão resoluta, fitando Mateus já à distância; o alferes, muito
alto, com tendência para se encurvar como se estivesse a passar por uma
porta demasiado baixa, tinha um ar sombrio, a barba por fazer,
parecendo seguir com indolência o camarada.

– É aqui o torneio de xadrez? – perguntou o tenente.

– É – respondeu Mateus.

– Vai-se jogar agora?

– Sim, a qualquer momento. Vão chegar mais algumas pessoas.

– João Capelo – apresentou-se o tenente.

– Vítor Mateus. – Mateus apertou a mão que o militar lhe estendia.

Ambos se viraram para Carvalho, que permanecia silencioso, como se


procurasse ser a sombra de Capelo. Mas a sua estatura desmesurada, a
sua fisionomia grave e tensa, dificilmente passavam despercebidas. Teve
de ser Capelo a puxá-lo para o círculo da conversação:

– Este é o alferes Carvalho.


Mateus estendeu-lhe a mão. Carvalho ficou durante dois segundos a
olhar para ela, como se fosse o objecto mais bizarro alguma vez avistado
por olhos humanos, posto o que a apertou de acordo com as normas.

O anfitrião convidou-os a sentarem-se diante dos tabuleiros de xadrez.


Capelo sentou-se, Carvalho imitou-o ocupando a cadeira do outro lado
da mesa.

– Vai para outra mesa – sugeriu Capelo. – Estamos fartos de jogar um


com o outro.

Carvalho tornou a levantar-se e escolheu outra mesa. Movia o seu


corpo gigantesco de modo inábil.

– Estão aqui há quanto tempo? – perguntou Mateus.

– Há três dias – respondeu Capelo. – Temos um mês de descanso e


depois regressamos à Metrópole. Vimos o anúncio do torneio logo no
primeiro dia.

– Costumam jogar?

– Eu e este camarada, sim. No nosso velho tabuleiro de bolso.


Chamamos-lhe o tabuleiro de campanha. Já tinha saudades de um
tabuleiro a sério. – Capelo pôs-se a alinhar as peças do tabuleiro que
tinha à sua frente e os seus dedos depressa se familiarizaram com o
relevo; colocou os cavalos de perfil, em posição simétrica, num gesto
que Mateus reconheceu como típico de xadrezistas que, além de
conceberem lances abstractos, têm também uma relação táctil com as
peças. – Estas peças são Staunton, não são?
– São.

Perante a confirmação, Capelo sorriu satisfeito.

– Podem vir jogar sempre que quiserem – disse Mateus.

– Já tenho pena de só ficar um mês. Esta terra é muito bonita. Aqui, no


meio dos vales… Suponho que esta cidade viva à conta do café.

– Sim. E do óleo de palma.

– Gosto do clima – disse Capelo, olhando para a parede à sua frente,


como se estivesse a trespassá-la com o olhar para avaliar o clima lá fora.
– A altitude torna a temperatura amena.

– Temos o cacimbo – disse-lhe Mateus, que já não interpelava


Carvalho, o qual se limitava a ouvi-los com um ar grave. – As cortinas
de cacimbo chegam a molhar tudo, gotejam dos telhados. Às vezes os
raios solares não as dissolvem e temos de acender os faróis dos carros
em pleno dia.

– Não há dúvida, gosto disto aqui – repetiu Capelo.

Uma voz alta e zangada, junto à porta, anunciou mais alguém. Entrou
um indivíduo baixo e corpulento, barafustando com duas raparigas
gémeas, gordas, que o seguiam diligentemente. Era Inácio, a quem
davam a alcunha de Inácio-Cê-de-Cedilha porque escrevera Ináçio na
tabuleta da sua loja, e as suas filhas, de uns vinte anos, que eram débeis
mentais e a quem os gabelenses chamavam as Macacas, devido às suas
deformidades físicas. Ajudavam o pai na loja, mas não havia vez em que
não se enganassem nos trocos ou misturassem as coisas, o que suscitava
a ira renovada do pai. Inácio dissera uma vez a Mateus: «Os caralhos
dos genes da família da minha mulher é que são a causa de elas terem
nascido assim, chochas da cabeça.»

Inácio, ávido, dirigiu-se a Mateus:

– Aquilo não está esquecido.

– O quê? – perguntou Mateus.

– Afinal esqueceu-se… Mas eu não. Garanto-lhe que não está


esquecido.

– Mas o que é que não está esquecido?

– Aquilo – insistiu Inácio, com um gesto impaciente. – Pode ficar


descansado.

Mateus riu-se da solicitude do lojista: se já lhe mostrara não saber a


que se referia ele, de que valia ele dizer que o assunto não estava
esquecido ao mesmo tempo que reconhecia que Mateus se esquecera?
Inácio olhou para os dois oficiais, querendo que Mateus percebesse que
a presença destes obrigava à discrição. Aproximou-se mais de Mateus;
as filhas seguiram-no de modo automático. Inácio segredou a Mateus:

– Lolita…

Esta palavra esclareceu o mistério. Mateus já não se lembrava de ter


encomendado a Inácio um exemplar de Lolita, de Nabokov. Conhecedor
dos canais clandestinos de todo o tipo de comércio, apesar da fraca
cultura geral, e literária em particular, Inácio organizara uma prateleira
secreta da loja só para livros proibidos pelo regime. Também se dizia
leitor: uma vez, para impressionar Mateus, dissera-lhe que estava a ler
um livro de Balziac.

Inácio virou-se para as filhas:

– Vá, recuem, não estejam em cima de mim.

Elas, com os olhos arregalados, recuaram dois passos, mas a firmeza


dos seus corpos mostrava que estavam obstinadas em garantir a máxima
proximidade possível ao pai, porque fora ele quem as levara até ali e
elas seguiam sempre, com excesso de zelo, quem quer que as
conduzisse.

– Trouxe-as para o xadrez – anunciou Inácio. – Não acha que já


devem conseguir aprender?

Mateus achou que não, mas não o disse. As tentativas anteriores de


ensinar xadrez às gémeas tinham falhado todas. Inácio dizia reconhecer
o atraso mental das filhas, mas ao mesmo tempo queria dar-lhes
estímulos que estavam muito acima das suas possibilidades.

Depois de tornar a repelir as filhas para longe de si, Inácio apresentou-


se aos militares. Falava com avidez, com uma expressão insistente no
rosto. Até os seus olhos eram salientes, como se quisessem sair da cara
na pressa de alcançar os objectos. Muito competitivo, determinado a ter
razão em tudo, reagia às palavras dos interlocutores falando muito alto
para abafar qualquer réplica. Mateus, que o achava cansativo, viu como
Inácio era repelido pela taciturnidade de Carvalho e procurava
concentrar-se em Capelo, o qual deixava o comerciante falar ao mesmo
tempo que se empenhava em alinhar as peças do tabuleiro.

Inácio, com voz forte e gestos amplos, elogiou o esforço de guerra,


representado no salão de chá pelos dois militares, e enalteceu o
desenvolvimento económico dos últimos anos. O assunto pareceu captar
por instantes o interesse de Capelo, que no entanto se manteve mais
reservado do que antes de o comerciante chegar. Mateus sorriu ao
pensar que Inácio fugira para Angola depois de se envolver numa rede
de roubo de arte sacra nas igrejas da região de Braga: o negócio correra
mal e viera tentar a sorte no Ultramar.

A certa altura, entrou no salão um homem com uma barba grisalha,


espessa, e umas botas sujas, como se viesse de um lamaçal. Envergava
uma camisa de quatro bolsos, todos cheios de lápis e canetas ou com
maços de papel dobrado, avolumando-se, quase a rebentar pelas
costuras, o que contribuía para um aspecto geral desleixado. Vinha com
um adolescente mulato, de dezasseis anos, e um rapazinho branco, de
dez. Era Mourão, um dos fazendeiros mais ricos da região, e os filhos.
Apertou a mão a Mateus e fez um gesto para os dois rapazes o imitarem.
O filho mais velho, Alexandre, parecia que estava ali contrariado; o
outro, Xavier, mostrava-se contente por estar com o pai naquele
ambiente tão afastado de casa.

– Vamos ver que frutos colhe daquilo que semeou – disse Mourão,
indicando os filhos. – E desculpe-me a linguagem de fazendeiro.

– Ossos do ofício – afirmou Mateus, que, nem sempre sabendo o que


dizer às pessoas, gostava de recorrer a frases feitas quando estava em
sociedade, como forma de se fazer entender.
Mourão referia-se ao facto de Mateus ter ajudado Alexandre a
melhorar o seu nível xadrezístico. Trazia o filho aos torneios
organizados por Mateus, embora o jovem se mostrasse cada vez menos
entusiasmado.

Assim que ouviu as intenções do fazendeiro, Inácio apressou-se a


tentar ensinar os rudimentos do xadrez às filhas. Chamou-as com gestos
frenéticos, fê-las sentarem-se a uma mesa, colocou-lhes um tabuleiro à
frente e começou a exemplificar o movimento das peças. As gémeas
olhavam para a cara do pai, procurando entender o que ele pretendia
delas, e ignoravam o tabuleiro.

– Não olhem para mim, olhem para as peças, caralho – dizia ele, em
vão. – O bispo, como é que se move o bispo?

As gémeas, instadas pelo pai, tentavam adivinhar qual das peças era o
bispo. Uma delas esboçou o gesto de tocar num dos peões.

– Não é essa! – gritou Inácio. – Eu já vos ensinei isto.

Querendo abafar a própria voz, de costas para todos, para que


ninguém percebesse que ele estava a tentar que as filhas aprendessem de
modo instantâneo a jogar, Inácio conseguiu chamar ainda mais as
atenções sobre si. Perante aquele espectáculo, o fazendeiro Mourão
abanou a cabeça e levou os filhos para as mesas mais distantes de Inácio
e das Macacas. Já sentado, trocou cumprimentos com os militares.

Mateus, contando as folhas de registo das partidas, que iria distribuir


pelas mesas, olhou em volta e pensou: «Veja-se quem eu reuni aqui…»
A exuberância de Inácio com as filhas contrastava com a discrição de
Mourão com os filhos. Mateus atribuía um ar de viuvez ao fazendeiro
desde que este lhe dissera que era três vezes viúvo: morrera a mãe das
suas filhas mais velhas, depois a mãe de Alexandre, uma mulher que ele
trouxera da sanzala, e por fim a mãe de Xavier. «O último já não era
para ter nascido, é um filho-neto», dissera ele a Mateus.

– Somos nove – anunciou Mateus. – Enquanto oito jogam, um espera.

– Um momento, um momento! – gritou Inácio, voltando-se para os


circunstantes e tornando a oferecer-lhes as costas, para, em poucos
segundos, conseguir introduzir no cérebro das filhas o segredo daqueles
objectos incompreensíveis que elas julgavam ser simples peças de
decoração.

Mateus aguardou mais alguns minutos. Por fim, disse:

– Vamos começar. Você pode juntar-se a nós a seguir, Inácio.

Inácio reprimiu um gesto de raiva, e as filhas, com a boca descaída e


os olhos fixos, examinavam o rosto do pai e esqueciam-se de olhar para
as peças. Inácio bateu com uma peça sobre o tabuleiro.

– Chega! – gritou, como se elas é que estivessem a pressioná-lo e não


o contrário. – Vão-se embora. Vão para casa. Vão para a vossa mãe. Vá,
vá!

As gémeas levantaram os seus corpos moles das cadeiras e moveram-


se para o exterior.

3
No domingo, segundo dia do torneio, num sistema de todos contra
todos, formou-se o par de adversários Inácio-Xavier. O comerciante, que
até aí perdera três jogos e empatara um com o desmotivado Alexandre,
via chegada a oportunidade de ganhar: era impossível perder com um
miúdo de dez anos. Xavier, que desde o dia anterior assistira às efusões
daquele homem, estava aterrorizado. Olhava para ele, fazia apelos
mudos para que o pai o olhasse ou lhe desse uma palavra de incentivo,
mas Mourão estava absorto na sua partida. Xavier tentou o apoio moral
do irmão, mas Alexandre empenhava-se em ignorá-lo.

Durante uma partida de xadrez, Inácio ficava tenso, à beira da


explosão. Era para ele uma questão de vida ou de morte. Com os
cotovelos sobre a mesa, invadia parte do espaço do adversário. Não
pousava a peça jogada sobre o tabuleiro, batia com ela, fazendo todas as
peças estremecerem. Tudo isto enervava Xavier que, intimidado, não
conseguia pensar. A certa altura, começou a reagir aos ataques de Inácio
respondendo o mais depressa que podia com as suas próprias peças, para
abreviar o sofrimento e se livrar da situação.

Entraram duas mulheres no salão de chá: Mariana e Elisa, as filhas do


fazendeiro Mourão. O pai levantou a cabeça e olhou para elas com
orgulho. Mariana, a mais velha, era o seu grande apoio, prometia zelar
pelas fazendas e gostava das plantações de café tanto ou mais do que
ele; Elisa, não podendo competir com a irmã no desvelo com que esta se
dedicava às terras, tinha um tipo de beleza admirado por todos, a
começar pelo próprio pai.

Mariana cuidava de Xavier como se fosse ela a mãe. Aproximou-se


dele e deu-lhe uma garrafa de água.
– Está muito abafado aqui – disse, fazendo-lhe uma festa nos cabelos.
– Bebe um gole de água.

Xavier, aliviado por poder esquecer por um minuto a figura que tinha
diante de si, a emanar fúria competitiva e a amedrontá-lo, pegou na
garrafa e bebeu. Inácio, vendo o seu oponente a ser assistido, virou-se
para Mariana, de dedo em riste, e disse em tom desabrido:

– Ouça lá… Eu não tenho aqui a minha mãezinha para me dar água.

– É uma criança – respondeu Mariana.

– É uma criança que está a jogar com um adulto – rebateu Inácio.

Achando que não valia a pena argumentar, Mariana afastou-se.


Carvalho, a duas mesas de distância, olhou com expressão sombria para
Inácio. Este alcançou o que tanto queria: derrotou Xavier.

Houve um intervalo, que Mourão aproveitou para apresentar as filhas


a Capelo e a Carvalho. Havia já algum tempo que queria ver Mariana e
Elisa casadas. Sentia-se a envelhecer e começava a ter pressa de arrumar
o assunto, a questão patrimonial, como ele dizia. Homem de ideias
tradicionais, já dissera a Mariana que ela ia precisar de um homem ao
seu lado na direcção das terras. Quanto a Elisa, que o pai achava mais
fútil, muito cobiçada por ser bonita, teria de ser protegida por um
marido. Teria de partir dele, Mourão, a responsabilidade de encaminhar
as filhas para o casamento. «Quem sabe, um destes dois», pensou
Mourão ao longo de todo o torneio, avaliando Capelo e Carvalho, como
já avaliara outros que, por uma razão ou outra, não triunfavam na
conquista das filhas.
– O que é que fazia na sua vida civil? – perguntou Mourão a Capelo. –
Estudante de Direito? Ah, interessante… E vai voltar a isso?

– Gostava de um bom pretexto para não o fazer – disse Capelo.

– Ah, e o que seria para si um bom pretexto?

– A verdade é que não sei. Gostava de saber.

– Ainda vai descobrir que é em África que quer estar – sugeriu


Mariana, em perfeita sintonia com o pai.

– Já me passou pela cabeça – confirmou Capelo. – Quatro anos de


África é tempo suficiente para me familiarizar. Mas estou a um mês de
largar isto. – E, com a mão esquerda, pegou na manga direita da camisa
da farda.

– Gosta da Gabela? – perguntou Mariana, e sentiu que o pai aprovava


este rumo da conversa.

– Há três dias que ando a dizer a mim mesmo que é um sítio cheio de
atractivos.

– Do que é que gosta mais? – quis saber Mourão.

– Gosto das fazendas de café – esclareceu Capelo –, embora o meu


conhecimento seja superficial. Entrei nalgumas, mas como militar, e
nem sempre para ver o café propriamente dito…

– Então venha ver o café propriamente dito – disse Mariana, com


desenvoltura, e pressentiu que o pai estava orgulhoso dela. – Venha à
nossa fazenda. O que é que acha?
– Acho muito bem.

– E o convite é extensivo ao seu camarada – disse Mourão, indicando


Carvalho, que os ouvia em silêncio.

O fazendeiro, ao referir-se a Carvalho, abrangeu com um olhar este e a


outra filha, Elisa. Carvalho percebeu, e olhou para Elisa com uma
expressão séria. Ela respondeu-lhe com uma fisionomia irónica.
Mariana, por sua vez, incentivou a irmã com um sorriso. Ficaram os
cinco calados, durante uns segundos, porque os olhares diziam tudo.

Mariana e Elisa foram-se embora e começou a última ronda do


torneio. Um dos pares agora era Carvalho-Inácio. Era um jogo decisivo
para Inácio se tentar afastar dos últimos lugares. Carvalho examinava o
comerciante com a mesma expressão grave que lhe suscitara o incidente
da garrafa de água dada a Xavier. Sentiu que era seu dever derrotá-lo.

A meio da partida, armou uma frente de ataque em que um cavalo


tinha a posição central. Inácio disse:

– Se não estivesse aí esse cavalo…

Carvalho fingiu que não ouviu. Inácio voltou à carga:

– Eu até conseguia, mas esse cavalo de um caralho…

Passados minutos, à terceira vez que Inácio lamentou a presença do


cavalo, Carvalho ergueu-se, fez sombra sobre a mesa, pegou na peça e
arremessou-a contra a parede, ao mesmo tempo que gritava:

– Já não está aí o cavalo, agora jogue, porra!


Todos ficaram a olhar. Mateus teve de acalmar Carvalho e levá-lo a
aceitar a peça de volta. A única coisa que incomodou Inácio foi que o
cavalo tivesse regressado ao tabuleiro.

O comerciante perdeu o jogo. Correu para a rua e, no interior do salão,


todos ouviram o lamento quase bíblico que enviou aos céus:

– Oh, meu Deus, meu grande filho da puta, porque é que me


abandonaste?

O tenente Capelo estava encantado com a beleza dos vales, das roças
de café e dos palmares que, de manhã, os raios do sol libertavam da
cortina viscosa do cacimbo.

Desde que se tinham conhecido no torneio de xadrez, Mourão


procurou todas as ocasiões para convidar Capelo e Carvalho para a sua
fazenda. Depositava grandes esperanças em Capelo, achava-o um bom
partido para Mariana. Mas o militar teria de perceber que ela é que era
um grande partido para ele, e que lhe sairia a sorte grande casando-se
com ela. Mourão estava disposto a fazer de Capelo o seu sucessor. À
medida que eram trabalhados os laços entre Capelo e a filha mais velha
do fazendeiro, parecia ir crescendo um entendimento tácito entre o
alferes Carvalho e Elisa.

Todos os dias os dois amigos eram convidados para almoçar na casa


de Mourão. Mas enquanto Carvalho passeava com Elisa entre a Gabela e
as praias de Novo Redondo, Capelo preferia tirar partido da
hospitalidade que lhe era oferecida. Tanto Mourão como Mariana davam
a entender que precisavam de um homem vigoroso na casa, para que,
mais adiante, se fosse formalizada uma proposta de casamento, Capelo
já estivesse a par do que se esperava dele. Mourão disse:

– Os meus filhos rapazes precisam de um modelo. Eu já não posso ser.


Vêem-me como um avô, ou então sou eu que os vejo como netos.

Capelo via como Xavier, o mais pequeno, vivia na esfera de Mariana,


a irmã maternal. Alexandre, mais velho, gerado durante as visitas que o
pai fazia à sanzala e trazido para dentro da casa grande, parecia ouvir
tudo o que os adultos diziam, como se quisesse reunir indícios e
perceber todos os aspectos da sua própria origem.

Mariana mandou aparelhar dois cavalos, para levar Capelo a percorrer


a fazenda sede e as fazendas adjacentes.

– Há muito tempo que me preparo para isto – disse ela. – Quero


dedicar a minha vida a estas terras.

Capelo entendeu a mensagem: também ele teria de assumir como sua


essa missão. Já não tinha dúvidas: Mourão e Mariana examinavam-no
com argúcia empresarial, o que envolvia um cálculo matrimonial. Havia
muito que Mariana esperava por alguém como Capelo. Como nos contos
tradicionais em que os pretendentes ao casamento falham as provas
exigidas pela princesa, ela reprovara todos os candidatos que o pai lhe
apresentara. Em Capelo, via brio, disciplina, uma ambição sólida,
serena, que lhe inspirava confiança. O amor romântico e a empresa
familiar iriam, juntos, orientar a sua escolha. Quanto a Capelo, desde
que chegara a África, sobretudo desde que saíra de Luanda, elaborava o
sonho de se fazer colono; e ao sentir que Mariana o amava julgou ele
próprio amar, ao ponto de se tornar real este sentimento. Logo no
primeiro passeio a cavalo, os dois sentiram que já eram velhos
conhecidos, como se cada um materializasse a mais cara fantasia do
outro. A ideia de destino ajudou-os a decidir depressa que tinham de
viver juntos para sempre.

Desvendaram a Capelo o funcionamento das roças. Na fazenda sede, a


residência senhorial, de linhas simples, com varandins a toda a volta de
onde se podiam observar os vários sectores de actividade, dominava o
terreiro central, vasto e bem nivelado. À volta do terreiro alinhavam-se
habitações: do feitor, dos capatazes, dos empregados, escritórios,
armazéns, oficinas, garagens e uma pequena aldeia em cujas cubatas
viviam os trabalhadores negros.

O sino, que tocava às seis da manhã, excepto aos domingos,


mobilizava esta gente. Mourão dava directrizes gerais ao feitor, que
transmitia instruções aos capatazes, cada um dos quais orientava um
grupo de trabalhadores. Capelo estudou o plano de conjunto de Mourão,
no escritório, e seguiu um capataz nos viveiros do café. Observou a
relação entre os nutrientes do solo, a humidade do ar, a sombra das
árvores que protegia a planta do café dos ventos e das oscilações da
temperatura. Acompanhou a poda e a capina dos cafezais. Seguiu o fruto
vermelho da planta do café para o terreiro, onde tinha de secar ao sol
antes de ser armazenado.

Tudo lhe foi mostrado. As camionetas traziam o café acabado de


colher e os cachos amarelos de dendém cortados das palmeiras, e
levavam o café já tratado e o óleo de palma para a estação de comboio,
de onde seguiriam para os navios em Porto Amboim. O café colhia-se
entre Maio e Julho, no período mais intenso do cacimbo, que podia ser
cerrado e opressivo. Secava-se em Agosto, nos terreiros de terra batida
onde se depunham os grãos, virados regularmente para a secagem ser
uniforme. Tinha de estar seco antes das chuvas para não ficar vulnerável
às pragas. Nas instalações fabris, onde se descascava e se seleccionava o
café, havia prensas do óleo de palma, britadeiras que trituravam a
amêndoa do fruto da palmeira, moinhos que farinavam o milho para
alimento do pessoal. O trabalho exigia perícias diferentes. Uns
capinavam e a catana era a extensão natural do seu braço; outros
sachavam a terra com a enxada e cuidavam das hortas e dos jardins;
outros, ainda, carregavam sacos de café e faziam rolar tambores com
óleo, subiam e desciam encostas para encher as camionetas; outros,
seguros por cordas, trepavam os dez ou quinze metros das palmeiras e
cortavam os cachos de dendém; outros, por fim, ensacavam o café. E
ainda pedreiros, carpinteiros, mecânicos, motoristas, mulheres com
bebés às costas que separavam os grãos de café. Sobre todos os negros
impendia a ameaça das palmatoadas e do chicote.

Mariana pediu para ver todas as fotografias de Capelo. Quando estava


a juntá-las, Capelo deparou com a primeira que tinha tirado em Angola:
vestido de branco, como se viesse passar férias nos trópicos, com um
sorriso verdadeiro nos lábios e uns olhos brilhantes e receptivos a tudo.
Já não era aquele. Tinham-se interposto quatro anos de guerra. Perdera
algo para sempre. À noite, no seu quarto, sozinho, chorou. O choro era
convulsivo. Tapou o rosto com as mãos e pensou: «Estou perdido…
Estou perdido…» Esgotado com estas emoções, adormeceu e teve uma
noite de sono profundo. Quando acordou, qualquer coisa se perdera e
algo novo o empurrava para a frente. A perda da juventude, a pressão do
que sentia por Mariana, as expectativas empresariais de Mourão, diziam-
lhe que já não era o mesmo da fotografia.

Capelo e Carvalho obtiveram autorização para ficarem na Gabela. A


companhia regressou a Portugal sem eles. Já desmobilizado do Exército,
Capelo escreveu aos pais a dizer que se ia casar e que assumiria
responsabilidades na direcção das roças da família da mulher. A tropa
mandara-o para a guerra e dera-lhe como prémio Mariana e uma vida de
fazendeiro industrioso.

Na sala de actos do registo civil, Mateus casou Capelo e Mariana.


Carvalho era uma das testemunhas de Capelo. Depois de lido o assento
do casamento e recolhidas as assinaturas, trocaram-se os cumprimentos
entre todos. Mourão, que se orgulhava da filha e, nos últimos tempos, se
comovia facilmente, tinha os olhos brilhantes.

Ajudado por artifícios legais, Mourão anexara algumas terras,


espoliando, segundo se dizia, o proprietário africano. Esperava que
Capelo trabalhasse essas terras novas. Teria de provar ao sogro que não
era um oportunista desejoso de viver de rendimentos já alcançados. A
economia estava melhor do que nunca, as exportações do café cresciam
todos os anos, ele daria o seu contributo para a riqueza familiar. Mariana
estava contente. Conseguira o principal: trouxera um continuador válido
para dentro da família.

Capelo aprendeu tudo o que tinha a aprender com Mourão. Não lhe foi
escondido que Mourão estava ultrapassado. A sete quilómetros da
Gabela havia a C.A.D.A., a Companhia Agrícola de Angola, a maior do
país no sector do café e cuja sede era a vila da Boa Entrada, um
complexo imenso de que só se poderia ter uma imagem de conjunto
sobrevoando-o de avioneta. Mourão apresentou Capelo ao director da
C.A.D.A. Aqui havia acesso a métodos científicos e mais avançados do
cultivo do café.

Era preciso aumentar os cafezais e os palmares de Mourão. Era


urgente modernizar a maquinaria. Mourão usava caldeiras alimentadas a
lenha, devoradoras de florestas, com fugas explosivas de ar nos tubos
velhos. Os descascadores de café e os moinhos eram arcaicos. Capelo
mandou vir do Brasil motores a gasóleo, máquinas agrícolas novas,
balanças fiáveis. Tomou medidas que causaram assombro. Proibiu os
castigos corporais decididos pelo feitor e aplicados pelos capatazes. Um
destes, indignado, como se o tivessem privado das condições mais
elementares para exercer o seu trabalho, só se integrou no novo espírito
criado por Capelo quando descobriu outra função para o chicote: dava
com ele pancadinhas no dorso do cavalo. Capelo aumentou os salários
de todo o pessoal e, com uma rapidez que apanhou o sogro de surpresa,
melhorou as condições das tabancas dos trabalhadores, edificou um
posto sanitário e uma escola para as crianças negras. Para alimentação
dos trabalhadores, instalou uma vacaria de gado leiteiro. Criou porcos e
aves de capoeira. Comprou máquinas frigoríficas para conservar os
produtos derivados.

Mourão, alarmado, perguntou-lhe se isso não era comunismo. Capelo


reagiu com uma gargalhada tão salutar e convincente que o sogro não
tornou a levantar mais dúvidas.

Nos escritórios, a escrita tornou-se mais rigorosa. Os mapas semanais


que as várias fazendas enviavam para a sede registavam ao pormenor os
rendimentos, os gastos, o potencial de produção atribuído a cada
trabalhador, os prazos a cumprir. Quando nasceu o primeiro filho de
Capelo e Mariana, as roças estavam a produzir o dobro.

Capelo estava já longe do estudante lisboeta que jamais concluiria o


curso de Direito e do militar que conhecera o outro lado da vida
africana. Convertido em cafeicultor, pai de filhos, chefe de família,
entregava-se ao trabalho fundador da civilização, o cultivo consciente
que domina a Natureza selvagem, que impõe um calendário agrícola
racional aos ciclos de vida e de morte, de germinação e putrefacção, que
já o tinham impressionado na guerra do mato. Domada a agressividade
da Natureza, produzem-se artigos sofisticados que, numa atmosfera de
elegância moral, humanismo e justiça, serão colocados nas mesas das
casas de todos os continentes. Estes eram os ideais do fazendeiro
Capelo.

Esta visão era estragada por certas hesitações. Os seus trabalhadores


viviam um pouco melhor do que antes, mas ele continuava a tirar partido
da situação. Melhorara tanto as diversas fases do processo, desde a
recepção de uma nova leva de trabalhadores até ao embarque dos sacos
de café, que podia compartimentá-las, mantê-las separadas dentro da sua
cabeça e não ver que o café bebido em chávenas de porcelana tinha sido
uma planta semeada e cuidada por negros contratados à força.

Quando nasceu o seu segundo filho, os trabalhadores pediram


autorização para uma festa de batuque. À noite, fogueiras iluminaram o
terreiro, onde homens e mulheres cantaram e dançaram. A família
assistia do alto do varandim. Capelo viu o seu feitor a dizer qualquer
coisa aos trabalhadores e estes puseram-se a gritar vivas ao patrão, à
patroa e ao recém-nascido. A ideia da festa pertencia ao feitor, para dar a
Capelo uma imagem pitoresca da vida africana, boa para turistas, boa
também para confirmar uma posição de poder. Naquele momento é que
Capelo percebeu no que se tinha metido. Já era tarde para desistir.
Oleara a máquina, reforçara um complexo agrícola que agora o prendia
tanto como aos outros. Além disso, amava Mariana, para quem os
negros eram mão-de-obra barata e de quem ela se considerava
protectora, uma coisa natural que vinha com a herança paterna. Inspirada
pelo momento, Mariana ergueu no ar o bebé. A um sinal do feitor, a
multidão redobrou os gritos de saudação.

Angola, terra de arrojo e de grandeza, onde não havia impossíveis,


torturara-o com o pior do ser humano e rodeara-o de mortos; depois,
oferecera-lhe o amor de uma mulher e o acolhimento de uma família que
conhecia aquela terra havia gerações. Capelo supervisionava a planta do
café em terrenos que se estendiam por centenas de hectares, assistia ao
nascimento de filhos que renovavam as suas ilusões. Via Gabela a
crescer a olhos vistos, ao ritmo da folha do café. Mas o estado de alerta
continuava. Lembrava-se dos terreiros de fazendas coalhados com os
cadáveres dos proprietários, dos trabalhadores, das famílias. A catana
tinha servido para o trabalho e para a morte.

Agora, a guerra e a prosperidade sustentavam-se uma à outra. As


exportações batiam recordes. As pessoas diziam: «Tudo por causa da
guerra. Deviam erguer um monumento ao terrorismo.» Atraíam-se
investidores estrangeiros para envolver nações ocidentais que, na defesa
dos seus interesses na exploração de matérias-primas, se inibiriam de
protestar contra o último regime colonial em África. Eram os mesmos
países que se diziam favoráveis à independência dos povos, mas
vendiam armas a Portugal e fingiam acreditar que este, com as colónias,
tinha uma posição estratégica na defesa da Europa.

Persistia o equilíbrio entre guerra e paz, vida e morte, que Capelo


pressentia iria continuar por mais uns anos. Esses eram os dados do
jogo. Existiam estas coisas boas da sua vida actual porque houvera
aquela guerra. Existia Mariana porque tinha havido aquele africano que
atravessara a estrada a correr à frente da coluna e que o furriel Diniz
decapitara. Havia Mariana e os filhos porque tinha havido aquela
sanzala destruída pelos guerrilheiros que punham rebuçados nas feridas
dos mortos. Desta conjugação de opostos Capelo extraía uma sensação
de precariedade, que acabou por aceitar como parte do esquema. Angola
era generosa e terrível.

Um dia, recomeçaram os pesadelos que tivera pela primeira vez numa


licença na Metrópole. Via os camaradas mortos, mostrava-se espantado
por estarem vivos. Noutro sonho, tirava arame farpado de dentro da
boca, o fio de arame enchia-lhe a garganta e ele puxava-o pela boca, mas
nunca mais acabava e acordava com um grito. Era o próprio corpo que
lhe recordava a guerra. De vez em quando aflorava à superfície da pele
mais um fragmento mínimo do morteiro que matara o soldado Cabral;
sentia uma picada, verificava que era parecido com uma borbulha,
coçava com o dedo e aquilo desfazia-se como pólvora. Exsudava
pólvora. O momentâneo, o transitório, em que quisera acreditar quando
estava na guerra, revelava efeitos duradouros.

Receava ficar como Carvalho, que havia muito parecia prestes a ceder
a impulsos autodestrutivos. Carvalho encontrara algum equilíbrio ao
casar-se com Elisa, mas a filha mais nova de Mourão pensava que o
casamento seria o meio para escapar de uma vida que detestava e ir para
Luanda. Contudo, Carvalho retinha-a na Gabela: com a ajuda de Mourão
e de Capelo, tornara-se caçador profissional. Passava temporadas cada
vez mais longas no mato e quando regressava a casa discutia com Elisa
ou afundava-se em uísque.

Capelo afugentava as sombras dos sonhos, concentrava-se no trabalho


ou procurava o semblante amado de Mariana. Se ela e os filhos faziam
parte desta terra, como poderia ele emitir um lamento que fosse?
Quando as visões de terror o levavam a acordar aos gritos, Mariana
acalmava-o. Capelo dizia, esfregando os olhos e tentando afastar os
fantasmas: «É a guerra.» Isto tornou-se aceitável para ambos.

Tinham passado dez anos. Mourão declinava numa demência senil.


Capelo contemplava os frutos do seu trabalho e o declínio do sogro e
pensava que a vida era uma corrida de estafetas onde aquele que vai
morrer transmite o que sabe ao que o vai continuar. Tinha aumentado o
pequeno império agrícola que Mariana lhe entregara como dote. Para
além das roças de café, que já eram quinze, com nove milhões de pés
plantados, e dos palmares, estendera-se à criação de gado bovino e
ovelhas caracul. O número de trabalhadores bailundos ao seu serviço
ascendia a perto de mil. Abriu escritórios em Novo Redondo, de onde se
comunicava com as roças do interior por rádio e em cujo porto tinha
lanchas com o nome da família gravado. Na capital do distrito, abriu
lojas, investiu em prédios, bombas de gasolina, companhias de
navegação e seguros. Como todas as grandes empresas coloniais, passou
a ter a sede em Lisboa, num edifício da Baixa pombalina. Já recebera a
visita do governador-geral por duas vezes.

No entanto, subsistia um problema que nunca conseguira resolver:


Alexandre. Capelo orientava a educação do meio-irmão de Mariana.
Acabado o liceu, Alexandre não quisera estudar mais, preferindo
continuar a viver da mesada de estudante. Capelo, que geria a família e
os seus bens segundo uma lógica empresarial onde cada um, desde o
sogro senil ao moleque mais novato, era uma peça da grande
engrenagem que não cessava de produzir lucros, estabeleceu um plano
de trabalho para Alexandre. Teria primeiro de aprender tarefas básicas
para exercer depois a chefia. O cunhado ouvia as arengas de Capelo e
resistia a todos os seus estímulos. Capelo tentava despertar o seu
interesse pela planta do café, o gosto pela vida de fazendeiro, confiava-o
a capatazes e regentes agrícolas, mas Alexandre via as roças como
simples paisagem e incompatibilizava-se com os funcionários, dando-se
ares de herdeiro rico. O seu ideal eram as festas de sábado à noite na
Gabela e em Novo Redondo, no Lobito e em Nova Lisboa, os carros
desportivos, os grupos de jovens que o seguiam por causa do dinheiro.
Contava com a benevolência de Mariana, que contemporizava, o que
retirava força a Capelo.

Cansado de ver há tanto tempo as suas orientações fintadas, Capelo


decidiu que Alexandre, agora com vinte e cinco anos, tinha de ser
travado. Acordou com Mariana as medidas a tomar; tinham de estar os
dois juntos nisto, não fazia qualquer sentido continuar a sustentar um
estilo de vida que constituía um mau exemplo para Xavier e lesava a
imagem da família. Para que Alexandre percebesse que o obrigavam a
assumir responsabilidades, foi-lhe cortada a mesada.

Alexandre surpreendeu-os: tentou desembrulhar, em seu benefício, um


novelo jurídico, mas veio a ficar mais enredado nele. O pai, Mourão, o
velho fazendeiro, a pedido da filha e do genro, foi interditado pelo
Tribunal, por uma demência senil que o tornava incapaz de gerir a sua
pessoa e bens. Mariana foi nomeada sua curadora, embora delegasse
tudo em Capelo. Alexandre aproveitou para reclamar a sua parte da
herança e não se mostrou modesto nas pretensões. Capelo contra-atacou:
como ele era apenas filho de Mourão, e este não era o dono original das
propriedades, mas sim a sua primeira mulher, mãe de Mariana, não tinha
o direito a herdar nada. Capelo ainda esperava que Alexandre
capitulasse, que aceitasse ser integrado na estrutura rígida e próspera que
ele controlava em todos os seus aspectos.

Recusando vergar-se diante de Capelo, Alexandre mudou-se para


Novo Redondo, onde tinha amigos e conseguiu captar algum crédito da
parte daqueles que até aí o tinham considerado o herdeiro de uma
fortuna. Soube-se das suas façanhas: metera-se no proxenetismo e no
tráfico de liamba. Exibia dinheiro, comandava farras com prostitutas e
embarcadiços do porto do Lobito. O que motivou ser investigado foi a
sua ligação ao tráfico de armas, em negócios com os movimentos de
independência. O tribunal de Novo Redondo mandou-o para a prisão a
aguardar julgamento.

A população branca achava que a guerra, longe dos centros urbanos e


dos itinerários principais, era uma escaramuça distante que não lhe dizia
respeito. Eram os anos de ouro dos grandes certames, das festas e
inaugurações, onde faziam passear leopardos junto das senhoras e se
gastava o dinheiro em grande estilo. Havia quem se metesse num avião
para ir a Novo Redondo comer lagostas ou a Moçâmedes provar
caranguejos. A febre das corridas de carros, com o mesmo estatuto do
futebol e relatos vibrantes na rádio, atraía um público que esgotava os
hotéis em Luanda, Novo Redondo e Nova Lisboa. Ao mesmo tempo, era
sinistro ouvir a propaganda da guerrilha: «Portugal não tem a bênção das
outras nações. Os portugueses têm a morte marcada.»

O administrador de concelho organizou uma refeição volante no


Palácio, como era conhecida a casa que o Estado lhe atribuía, mais
imponente do que as outras. Do salão as pessoas passavam para o
jardim.

Compareceram as principais figuras da administração e serviços da


Gabela: chefes de repartições do Estado, os funcionários mais
categorizados, os empresários e comerciantes mais importantes. Pela
primeira vez, como sinal dos tempos, havia convidados negros: três
sobas e um escriturário do tribunal. O convite endereçado a este tinha
causado inveja ao escrivão, chefe da secretaria do tribunal, que não
percebia que o administrador precisava da presença do escriturário por
ser negro e instruído.

O administrador, Margão do Rosário, evoluía de um ponto para outro


do salão e do jardim, cumprimentando pessoas ou dando indicações aos
criados. Bem conservado nos seus cinquenta anos, sempre se preocupara
com a pose pública. Ali, como anfitrião, queria chegar a todos e dar um
vislumbre do seu dever institucional. A sua vaidade era conhecida.
Vestia um fato de bom corte, uma gravata volumosa de seda com um
alfinete de diamante, botoeiras de ouro, tinha o cabelo pintado e
perfumado. Costumava conduzir devagar o seu Cadillac preto pelas ruas
da Gabela, demorando-se a observar as mulheres mais elegantes, que
seguia com o olhar até o carro dobrar a esquina. Beatriz e algumas
colegas pediram uma audiência com o administrador para tratarem de
assuntos da escola. Um funcionário foi comunicar-lhe o pedido e,
passados uns minutos, voltou: «O senhor administrador não demora.
Está a arranjar o cabelo ao espelho. E perguntou-me: elas são novas, são
bonitas? Eu respondi: são novas, são bonitas… e são casadas, senhor
administrador. Quando eu ia a sair, ele avisou-me: não lhes diga que me
estou a pentear.»

Margão do Rosário vivia com a constante impressão de que troçavam


dele pelas costas. Numa ocasião solene, um orador referiu-se-lhe como
Rosão do Margário. A cara do administrador mudou de cor e houve
risos abafados na assistência. O orador pronunciou a seguir Rosão do
Marganário. A cara do administrador, no esforço de parecer impassível,
provocou mais risos. As variantes do nome passaram a ser muito
populares.

Mateus deslizou para o jardim. Viu o escriturário negro do tribunal,


Belarmino, que nesse momento pensava, olhando em volta: «Há pessoas
a olhar para mim. Nunca viram um preto numa recepção do
administrador. Há uma primeira vez para tudo. Eu também nunca vi e
aqui estou. Sou eu o preto.»

Mateus cumprimentou Belarmino, que lhe disse:


– Perguntam-me onde é a casa de banho. Pensam que sou um criado.
Queriam um africano evoluído, como dizem? Pois aqui me têm, para
compor o ramalhete da sociedade multicultural.

No jardim, Mateus foi ao encontro de Barbosa e Humberto.

Barbosa dedicava um olhar irónico a todos, sobretudo desde que tivera


de o usar para si mesmo, na altura do incidente com os diamantes.
Mateus conhecera-o em Moçâmedes, onde Barbosa era comerciante.
Com as economias de anos de trabalho, comprara diamantes no mercado
negro e preparava-se para regressar a Portugal. Isto não só era ilegal
como arriscado. Embarcou num navio no porto de Moçâmedes. Alguém
lhe disse que fora denunciado às autoridades. Já a bordo, quando viu
subirem dois agentes da Polícia Judiciária, Barbosa não se espantou.
Quando, no convés principal do navio, se aproximavam dele, tirou do
bolso do casaco um estojo com os diamantes e disse: «É isto que
querem?» E despejou no mar os diamantes. Como, segundo a lei, não
existia crime de tráfico se não aparecessem os diamantes, não o puderam
prender. Desceu antes da largada do navio. Mateus reencontrou-o na
Gabela, onde Barbosa dava aulas de Matemática. Sabia histórias dele
através de João, o filho, que fora seu aluno. Dizia nas aulas que andara
na guerra contra os independentistas e que um dia se salvara por pouco
de ser morto por um tigre na selva. Quando o tigre saltara para cima
dele, no último instante conseguira disparar e matá-lo. Aos olhos dos
alunos, seria sempre aquele que matara um tigre na selva, quando
andava na guerra.

Barbosa procurou novas oportunidades de negócio e enriqueceu com


uma indústria associada ao café: vendia as máquinas de descascar e
moer o grão. Inventou uma máquina melhor do que as anteriores e
planeava internacionalizar o negócio. Dizia que Angola era o país do
futuro. Gostava de contar o episódio dos diamantes lançados borda fora,
como uma lenda que o engrandecesse. Atribuía a esse acontecimento o
facto de ter enriquecido com as máquinas industriais. Vivia com a
mulher e a cunhada. Tinha uma filha, que alguns diziam ser da cunhada,
e não da mulher legítima. Ninguém vira a mulher grávida (nem a
cunhada), porque os três se ausentaram da terra no período em que a
gravidez seria visível a todos.

O doutor Humberto, um dos dois médicos da cidade, era alto e magro,


com óculos de lentes grossas. Tinha o hábito, que alguns atribuíam à má
visão, de olhar para as pessoas com uma espécie de incredulidade e
espanto severo. Mateus achava que era o resultado de uma arrogância
básica, por trás de uma aparência sociável. Quem o visse tão hirto e
rígido, com os olhos curiosos atrás das lentes grossas, não adivinharia a
sua desenvoltura de dançarino quando se improvisavam festas na
garagem de alguém e se punha a tocar um gira-discos. Mateus achava-o
um moralista. O doutor Humberto gostava de conduzir as conversas para
a política e rebatia tudo o que o interlocutor dizia para confirmar apenas
os seus próprios pontos de vista. Sabotava a argumentação alheia
dizendo: «Mas a questão aqui é de ordem moral.» Era hábil a fazer o
outro sentir-se em falta.

Nas consultas médicas, falava mais de política do que dos sintomas


que preocupavam os doentes. Alguns contavam que, no momento em
que encostava o estetoscópio às costas do doente, surpreendia com uma
pergunta, insinuante: «O que é que me diz do projecto do novo
aeroporto internacional?» Tinha sempre um tema que o obcecava
durante semanas ou meses. Usava este ou outro tema de alcance político
ou económico, estimulava o interlocutor a pronunciar-se para depois
desqualificar a resposta e apresentar ele próprio a análise definitiva, num
tom de dignidade moral ofendida. O novo aeroporto internacional, por
exemplo, seria uma ocasião para os empresários roubarem dinheiro
público. O doente, surpreendido com a pergunta, intimidado porque
sentia a campânula do estetoscópio colada às costas, como uma arma,
balbuciava algumas palavras que o médico rejeitava e que aproveitava
como pretexto para dizer o que já tinha intenção de dizer. O manuseio
do estetoscópio dava-lhe uma autoridade que não admitia réplica, como
se tivesse a capacidade de ouvir a verdade vinda das entranhas do doente
e que este próprio desconhecia. Sugeria possuir dados que o interlocutor
não tinha: «Ouve-se muita coisa no gabinete. Ao médico conta-se tudo,
e há o sigilo profissional.» O que significava: «Não posso provar a
minha posição para não trair o sigilo a que estou obrigado. Mas acredite
em mim.»

– O que é que me diz? – interrogou o doutor Humberto, apertando a


mão de Mateus e franzindo o sobrolho. Mateus estava decidido a não
cair na armadilha. – O que é que me diz da próxima visita do Marcello
Caetano a Angola? Vai adiantar alguma coisa?

Sem vontade de alimentar o assunto, Mateus mostrou-se céptico sobre


as capacidades do sucessor de Salazar em introduzir mudanças.

– O Marcello é o homem ideal para conduzir a nau – disse o doutor


Humberto. – Ele é que poderá conceder maior autonomia a Angola. Isto
não pode continuar a ser a roça rica dos que vivem na Metrópole. A
maior fatia tem de nos pertencer a nós.
– O Marcello não vai fazer nada – replicou Mateus. – Prometeu que ia
mudar as coisas, mas quando visitou as colónias viu muitos pretos a
acenarem-lhe com bandeiras portuguesas e achou que os africanos se
sentem bem como estão. A guerrilha não acabou, a balança de
pagamentos continua a ser-nos desfavorável. Tudo está na mesma.

– Sabemos de onde vêm os pretos que acenam com bandeirinhas –


disse Barbosa. – As autoridades metem-nos em camionetas e exibem-
nos em manifestações.

– Claro – juntou Mateus. – E se o Marcello se deixou enganar foi


porque lhe convinha, porque não tem estofo nem coragem para mudar as
coisas.

– O problema não é esse – disse o doutor Humberto, olhando com


indulgência para Mateus. – Ele é um gigante num país de anões. Está
rodeado de ultraconservadores. – E acrescentou, numa ligação arbitrária:
– Quer um exemplo de que estamos num país de anões? Você acha
moral que me continuem a chegar cadáveres no estado daquele que você
me entregou da última vez?

– Até parece que fui eu que matei o homem – disse Mateus.

O doutor Humberto, para disfarçar o ardor que pusera na pergunta e


ilibar Mateus de sofrer de nanismo moral, apressou-se a dizer:

– Vamos contar aqui ao amigo Barbosa. O Barbosa não sabe dessa.

Referia-se à última autópsia médico-legal que Mateus, como


subdelegado do procurador da República, notificara o médico para fazer.
Uma funcionária administrativa do tribunal viera anunciar a Mateus que
um homem aguardava lá fora para falar com ele e mandara dizer que era
da PIDE. Mateus sentiu um arrepio na espinha, recordando-se de todas
as torturas e histórias que se atribuíam à Polícia Política. O sujeito,
muito afável, apresentou-se como chefe da PIDE na Gabela e disse:
«Temos um terrorista morto. Íamos a transportá-lo, ele atirou-se para
fora com a carrinha em movimento e morreu.» Mateus disse que teria de
ser feita uma autópsia. O doutor Humberto verificou que a vítima, um
homem negro, tinha morrido moído de pancada. Estavam ambos
indecisos sobre o que poriam no relatório.

– Onde é que está a moral destes gajos, pá? – interrogava-se o médico.

A animosidade do doutor Humberto devia-se, em parte, ao facto de


não gostar de fazer autópsias. Na falta de um médico-legista, a lei
estipulava que qualquer médico poderia ser chamado a fazê-las. Quando
o oficial de diligências lhe batia à porta com uma notificação, a mulher
dizia que ele não estava. Mateus dera instruções ao oficial para esperar
escondido e entregar a notificação ao médico assim que o visse sair. A
partir daí, ele já não poderia ignorar o assunto. A superioridade moral
que se arrogava não era sólida ao ponto de lhe relembrar o dever
profissional.

– Qual é a moral destes gajos? – repetia o doutor Humberto, olhando


com desconfiança para Barbosa. – O que é que me diz a isto?

– As reformas são operações de cosmética – disse Barbosa. – Como


aqueles quatro que ali estão: três sobas e um funcionário negro do
tribunal, convidados do senhor administrador.

– O quê? Cosmética? – perguntou o doutor Humberto. – O meu amigo


está a dizer que não são pretos, mas brancos com a cara pintada de
preto?

– São pretos. Mas não passam de objectos decorativos, como as


travessas e os pratos feitos pela mulher do senhor administrador. Não
chega para mudar as mentalidades, nem as nossas nem as deles. Sabem
o que os africanos dizem das máquinas industriais, como as que eu
fabrico? Que funcionam com miolos de pretos.

– Bela metáfora do sistema colonial – disse Mateus.

– Enquanto houver este desfasamento cultural entre brancos e pretos,


tudo continuará na mesma – concluiu Barbosa. – Podemos fazer
mudanças para melhor. Esta é a terra dos nossos filhos.

– O governo deve-me uma medalha por contribuir com sete filhos para
o povoamento de Angola – disse Mateus.

O doutor Humberto perorou sobre as reformas que deviam ser feitas


para elevar o nível social e cultural da população nativa. Ouvindo-o,
Mateus lembrou-se de que ele era casado com uma proprietária de
fazendas de café e que tardava em providenciar transporte condigno aos
trabalhadores bailundos, apesar de haver normas que a isso obrigavam
(camionetas de caixa fechada, com bancos, e proibição de se viajar de
pé). Os movimentos de libertação, que denunciavam no estrangeiro estas
e outras situações, não veriam no doutor Humberto o modelo moral que
ele julgava ser.

– As reformas são lentas, ou não são postas em prática – disse Barbosa


–, porque aproximam Angola da independência. E o governo central
sabe isso.

– Há bocado falava das mentalidades. Os portugueses são católicos


fascistas – afirmou Mateus. – As reformas não alteram a estrutura
profunda que é o fascismo católico da nação. O expoente máximo foi o
Salazar.

– O Salazar fabricou fascistas católicos – disse o médico.

– Isso era o que eu julgava – disse Mateus. – O Salazar é que é


produto da mentalidade católica fascista hereditária do povo português.
É um precipitado genético e cultural, o resultado de mais de oitocentos
anos de História da nação. Os portugueses é que o criaram. É um dos
seus alter-egos.

– O outro alter-ego é a sardinha assada – acrescentou Barbosa.

As gargalhadas de Mateus atraíram a atenção do administrador que, a


alguns metros de distância, se virou e olhou para eles com curiosidade.

– Já repararam – tornou Barbosa – que quando alguém mostra uma


casa para vender ou alugar diz sempre: «Aqui está uma varanda boa para
assar sardinhas.» Se não é uma varanda, é um pátio ou um jardim.
Quando chegamos a casa de uma pessoa, ainda não passámos da porta e
já nos estão a convidar para uma sardinhada no fim-de-semana.

– Porque é que não damos o passo seguinte? – perguntou o doutor


Humberto. – O grande Camões já não é o símbolo da pátria e foi
substituído pela sardinha assada.

– Admira-me que não haja notas com a efígie da sardinha assada –


disse Barbosa. – Preferem pôr navegadores, poetas, santos… Ouçam
isto. O administrador tem uma licença para pilotar avionetas. Há dias
desbloqueou-me uns negócios e convidou-me para dar uma volta na
avioneta. Quando já tinha as mãos nos comandos, procurou o manual de
instruções do aparelho. Eu perguntei: «Agora é que vai ver as
instruções?» E ele: «Pois, esqueci-me.» Benzi-me na descolagem, benzi-
me lá em cima e benzi-me na aterragem.

Mateus tornou a rir. A certa altura, viu o administrador parado a olhar


para eles. Apesar de imóvel, pareceu querer interpelá-los, mas nesse
momento entrou o juiz Godinho, que se lhe dirigiu.

– Lá está o juiz – disse Barbosa. – Aquele tique não o larga.

– Ou ele não larga o tique – contrapôs o doutor Humberto.

O tique do juiz consistia em empurrar com a língua a dentadura


postiça, que emergia à vista de qualquer um, sendo puxada num
movimento rápido dos lábios, com um ruído de sorver. Lembrava uma
cobra que estica e recolhe a língua venenosa. O juiz fazia isto com mais
intensidade quando fazia perguntas tensas aos réus e arguidos ou quando
se preparava para ler sentenças duras.

– Algum caso interessante no tribunal? – perguntou Barbosa.

– Houve uma situação com um caso de diamantes traficados – contou


Mateus. – Na audiência, os diamantes estavam à vista de todos. O réu
estava muito calado a olhar e a certa altura disse: «Posso ver os meus
diamantes?» Foi-lhe permitido. O escrivão pegou na garrafa com os
diamantes e despejou-os em cima da mesa. O homem apalpou-os,
revirou-os entre os dedos e disse: «Estes diamantes não são os meus. Os
meus eram bons. Estes são industriais.» O juiz Godinho mandou que
trouxessem um martelo para se fazer a prova disso. O escrivão deu uma
martelada nos diamantes e esmigalhou-os.

– Eram falsos.

– Eram. Alguém da Polícia trocou os verdadeiros por falsos.

– E o juiz?

– Bom, o juiz ficou com o tique paralisado no momento em que a


dentadura estava fora da boca e ele ainda não a tinha recolhido.

Os três, já desinibidos pelas gargalhadas dadas antes, entregaram-se a


um novo surto. Pouco depois, achando-se Mateus mais próximo do
administrador, este deu dois passos na sua direcção e perguntou-lhe,
sorridente:

– Ouvi-os rir. Partilhe comigo o motivo da vossa boa disposição.

Mateus sabia que a susceptibilidade do administrador, que desconfiava


de que a cidade inteira troçava dele, devia inquietá-lo. O assunto das
sardinhas assadas não seria do seu agrado, pois venerava os verdadeiros
símbolos da nação e não aprovaria sarcasmos a esse respeito. Quanto à
aflição de Barbosa como passageiro da sua avioneta, não seria boa ideia
dar-lhe a conhecer o que já circulava a esse respeito. Sobrava o tique
paralisado do juiz em plena audiência do tribunal, o que, envolvendo a
mais alta figura da justiça executiva do concelho, deveria ofender o
apego do administrador à dignidade das instituições. Mateus foi salvo
pelo incidente que estava a acontecer, naquele preciso instante, com um
dos sobas.

O chefe dos Correios, um gozão incorrigível, tinha convencido um dos


sobas de que um determinado doce com frutas, numa taça, não se comia
com colher e prato, mas à mão. Dissera, num tom convincente:

– Sirva-se dali, soba. Ali não precisa de colher ou de prato.

Induziu o soba a mergulhar a mão na terrina e, no gesto de levar o


doce à boca, este lambuzou a cara e sujou a roupa. O chefe dos Correios,
fazendo gestos frenéticos para quem estava mais próximo, ria-se com a
partida. Várias pessoas foram atraídas pelo acontecimento, olhando para
o chefe dos Correios, que levava as mãos à barriga e era sacudido pelas
próprias gargalhadas, ou para o soba que, confuso e embaraçado, fitava
o casaco sujo e os dedos, de onde pingava o doce. Várias pessoas riram-
se à socapa e outras optaram por fingir que nada tinham visto. O
administrador fez um sorriso ligeiro, deu instruções a um criado para
levar guardanapos ao soba e chamou o chefe dos Correios, a quem disse,
com ar grave:

– Não devia ter feito isso. Ele é meu convidado.

A recepção aproximava-se do fim quando entrou Capelo. Precisava de


falar com Mateus sobre Alexandre. Mateus viu-o vir na sua direcção.
Ignorando o ambiente festivo, avançava com determinação, como se
soubesse muito bem o que queria.

– Preciso de um favor seu – disse. – Lembra-se do processo do irmão


da minha mulher, o Alexandre? Ele está preso em Novo Redondo.
Andou metido em negócios de armas com os guerrilheiros. Diz-se que
poderá ser enviado para o Campo de São Nicolau. Como subdelegado
do procurador da República, pode fazer alguma coisa para impedir a
transferência? Aquilo está cheio de guerrilheiros e terroristas, aplicam-se
torturas aos presos.

– Eu sei. Vivi em Moçâmedes durante seis anos. Estava no quadro


administrativo e recebi prisioneiros em trânsito para o Campo de São
Nicolau.

– O Alexandre não é boa rês – disse Capelo. – Mas é meio-irmão da


minha mulher e eu fui um segundo pai para ele. No Campo de São
Nicolau pode cair nas mãos de algum torcionário da PIDE. Um último
escrúpulo de consciência leva-me a tentar evitar que isso aconteça.

– Sim, eu faria o mesmo no seu lugar.

– Passar pelo Campo de São Nicolau é algo que pesará demasiado no


futuro dele. Achamos que a regeneração será mais fácil se ele não tiver o
rótulo de ex-recluso de São Nicolau.

– Ele meteu-se naquilo que a PIDE mais persegue: contactos com


guerrilheiros, venda de armas…

– Ele não quer saber da independência para nada – disse Capelo. –


Queria fazer dinheiro. Agora anda a fingir que é prisioneiro político,
lutador anticolonialista. O meu sogro não tem a noção do veneno que
trouxe para o interior da família…

«O germe do mal e da autodestruição», reflectiu Mateus. Alexandre, o


filho trazido da sanzala, era uma emanação do velho chefe de família, o
construtor do império familiar, que deixara um problema ao seu sucessor
e se evadira para uma demência senil.

Um rebentamento fê-los virarem-se: a rolha de uma garrafa de


champanhe bateu no tecto. Capelo estremeceu e viu passar-lhe à frente
uma sucessão de imagens: ele próprio, treze anos mais novo, a gritar
com uma metralhadora na mão, a estremecer quando, ao seu lado, o
fazendeiro Fraga caía fulminado por um tiro de canhangulo no exacto
momento em que dizia que aquela casa que estavam a ver era a sua, e de
repente reviu a casa de Fraga, a mulher e os filhos cortados em postas.
«Ainda bem que o Fraga não viu isto», pensou Capelo, olhando para a
rolha do champanhe aos seus pés, a mesma frase que tinham pensado e
dito uns para os outros, os que seguiam na coluna militar, essa frase
actualíssima, como se no lugar da rolha que saltitara e se imobilizara no
chão visse a família chacinada do fazendeiro, que os tinha guiado à
fazenda atacada pelos rebeldes.

«Cada família transporta o germe da sua destruição», pensou Mateus.

«O inimigo que matou o Fraga deu-lhe, sem saber, o golpe da


misericórdia, poupou-o à visão da mulher e dos filhos mortos», pensou
Capelo.

Escurecera. As luzes eléctricas tinham sido ligadas. Um jogo de


iluminação submarina, de várias cores, transformara a água da piscina
num espectáculo visual. Era uma surpresa que o administrador guardava
para os convidados. A contemplação das luzes de muitas cores fez
esmorecer as conversas.

Depois de tomar várias diligências, Mateus disse a Capelo que se tinha


conseguido que Alexandre fosse trabalhar para uma secretaria do Campo
de São Nicolau, onde seria poupado ao trabalho braçal violento e aos
interrogatórios.

Uma guerra subversiva não se ganha militarmente; a solução tem de


ser política. Toda a gente o sabe. Os militares previam que aconteceria
como nos territórios da Índia: o ditador pusera neles as culpas, depois de
os mandar morrer até ao último homem. Os políticos prolongavam o
impasse em Angola e em Moçambique e empurravam os militares para
uma derrota na Guiné. Ao fim de treze anos de guerra, restava a estes
derrubar o regime.

Os autores do golpe militar em Lisboa prometiam respeitar a unidade


pluricontinental da pátria e procurar uma solução para a guerrilha. Isto
agradou a uns e desagradou a outros. A junta militar reconheceu o
direito das províncias ultramarinas à independência. Havia novas
palavras de ordem: «O teu filho já não vai para a guerra», «Nem mais
um soldado para as colónias.»

Os novos governantes diziam que era preciso pôr fim à mais longa
guerra de África e entregar a terra aos africanos. Desconfiavam dos
brancos ultramarinos. Estes respondiam que se ia cometer o crime do
entreguismo, que geraria um vácuo.

Em todo o Ultramar, o dia-a-dia não sofreu alterações. Apenas se


discutiam ideias políticas e se conjecturava sobre o destino das colónias.
No salão de chá do jardim municipal da Gabela, alguns jogadores de
xadrez reuniram-se, mas os tabuleiros do jogo estavam esquecidos sobre
as mesas.

– Não vai ser tão mau assim – garantia Barbosa. – Os movimentos de


independência sabem que só com a ajuda da minoria branca Angola
poderá manter os limites territoriais e a identidade.

– Eles não vão largar as armas até terem a garantia de que as suas
pretensões são ouvidas – disse Capelo. – E eu, que os combati, vejo-me
obrigado a pensar que isso faz todo o sentido.

– Eu também os combati – juntou Barbosa. – Andei na


contraguerrilha. Mas agora a história é outra. Vamos criar um país novo.
E eles vão ter de contar connosco.

– Haverá muitas tensões – disse Capelo, descrente. – As feridas não


serão fáceis de fechar.

Inácio, que estava atento ao pessimismo dos outros para os ultrapassar


com um pessimismo maior, gritou, apopléctico, a coisa que julgava
definitiva e que deveria silenciar os circunstantes:

– Os pretos vão provocar o caos para nos pôr em debandada daqui


para fora! E vão cortar o pescoço aos caralhos que teimarem em ficar!

Barbosa olhou para ele alarmado, mas Capelo ignorou-o e continuou:

– Estamos aqui a falar, mas neste momento há guerrilha e


contraguerrilha nas matas do Norte. Ainda não foi assinado um cessar-
fogo. Já houve mortos, de um lado e do outro, depois dessa Revolução
dos Cravos de Lisboa.
– Mas vai haver um cessar-fogo em breve – rebateu Barbosa. – Já foi
anunciado como condição básica e necessária. A Metrópole exige o fim
imediato da guerra.

– Temos de ter muito cuidado com isso! – avisou Inácio, olhando com
avidez para Capelo, para o contrariar. – Muito cuidado com o cessar-
fogo.

O doutor Humberto, com a testa franzida por pensamentos severos,


levantou a mão, como um polícia sinaleiro que põe ordem ao que está a
acontecer à sua volta, e impôs as suas palavras:

– Lisboa já reconheceu o direito dos povos nativos à


autodeterminação, mas defende, e isto é que é importante, a
continuidade de um Portugal pluricontinental e multirracial.

– E você acha que essas duas coisas são compatíveis? – perguntou


Capelo. – Como é que vai continuar a haver um Portugal
pluricontinental se os povos nativos acederem à autodeterminação? Não
vê que essa é a linguagem ambígua tão ao gosto nacional, que parece
dizer muito mas não se compromete com nada, não decide nada, não
muda nada?

– É compatível, claro – disse o doutor Humberto, franzindo,


espantado, os olhos por trás das lentes dos óculos. – Será a federação de
que fala o general Spínola há tantos anos.

– Diz bem – tornou Capelo –, ele fala disso há muitos anos. Teria
resultado no passado, mas não resultará agora, depois de treze anos de
guerra. Quem se armou para a guerra, para se libertar do nosso domínio,
não se vai desarmar para entendimentos políticos que mantenham tudo
na mesma. Na perspectiva dos emancipalistas, eles ganharam a guerra. E
a consequência de ganhar a guerra é ter independência total, não um
Portugal pluricontinental.

Mateus observou Capelo. Falava no tom resoluto que sempre lhe


conhecera, sem euforias ou receios de última hora. Parecia que já tinha
previsto o que se estava a passar e que reagia, com paciência e firmeza, à
ingenuidade dos outros. «Paciência e firmeza, eis Capelo», pensou
Mateus.

– Vamos lá a ver uma coisa – disse o doutor Humberto, disposto a ser


condescendente. – Os emancipalistas, como você lhes chama
generosamente, vão ser desarmados, claro que vão. Não ouviu na rádio?
Lisboa já disse que eles serão autorizados a instalar delegações nas
nossas cidades e a discutir ideias e propostas políticas, desde que
venham desarmados. E foi dito que, se assim não fosse, seria uma
traição aos soldados portugueses que combateram durante treze anos no
mato.

– Isso é igual ao que dizia o regime anterior – disse Capelo –, que


seria preciso continuar a guerra para honrar os que já tinham tombado
em combate. Onde é que está a diferença? Nada mudou nas
mentalidades. A Revolução dos Cravos não revolucionou coisa
nenhuma. É uma revolução que não revoluciona.

– E ainda bem – aproveitou o doutor Humberto. – Não queremos cá a


revolução deles. Nas últimas décadas, Angola tem sido o quarto
produtor mundial de café. Este ano promete ser igualmente produtivo.
Desde que a guerra começou, desde 1961, tem havido um crescimento
económico sem precedentes. Não podemos permitir que isso acabe.
Portanto, os senhores emancipalistas só podem sair do mato se vierem
desarmados.

– Não podem sair do mato! – contrapôs Inácio, projectando os seus


olhos salientes para o médico, mas esbarrou nas lentes impenetráveis
deste.

– Estejam descansados – disse Barbosa. – Vai haver lugar para todos


num país novo, nesta terra que só conhece a prosperidade económica e é
um exemplo para toda a África. Estamos na vanguarda dos estados do
continente. Esta terra será para todos os que queiram trabalhar e viver
nela em paz. Não agitemos os fantasmas do passado, colonialismo,
exploração, escravatura… Não deixemos que isso perturbe o convívio
entre uns e outros. Para quê estar agora a perder tempo com os
antecedentes, quando temos um tão belo futuro à nossa frente?

– Antecedentes… – repetiu Capelo. – Use os eufemismos que quiser.

– Como é que é o provérbio? – perguntou Barbosa. – As águas do


passado…

– Águas passadas não movem moinhos – disse Mateus, que


encontrava apoio nos provérbios.

– Isso – concordou Barbosa. – E Angola tem grandes e caudalosos rios


para fazer mover os moinhos do progresso, da prosperidade, da cultura,
da educação para todos, da distribuição dos bens, sobretudo porque
vamos deixar de ter a Metrópole a sugar-nos os lucros. Houve
exploração? Houve. Houve abusos e violências? Sim. Houve fraudes e
roubos? Sem dúvida. Mas também não pode haver dúvidas de que a
maior parte dos brancos é gente séria que trabalha no duro para gerar
riqueza para si e para outros que saibam acompanhá-los. Exigirem a
nossa expulsão, ou criarem condições tão difíceis que nos levem a tomar
a decisão de ir embora, seria um fim triste para a nossa história de amor
por Angola.

Como Barbosa olhasse para Capelo, este disse:

– Não é a mim que tem de convencer, é aos guerrilheiros e à


população nativa. Mas não julgue que eles vão lá com declarações de
amor.

– Em Luanda está de pé a estátua do Paulo Dias de Novais, o fundador


da cidade. E como esquecer que foi em 1482… faltam apenas oito anos
para fazer quinhentos anos… que Diogo Cão alcançou a foz do rio
Congo?

– Bom – disse Mateus –, talvez não seja boa ideia falar nessas coisas,
porque vão dizer que são símbolos do colonialismo e da opressão.

– Falemos então de quem nos vai governar – disse Barbosa. – Bem


podem ser negros. Nós, portugueses, não somos racistas. Vejam como
nos misturámos com toda a gente, em toda a parte. O nosso império
sempre foi um império sexual, um império do afecto entre pais brancos e
filhos de muitas cores.

– Vai dizer-me que só os outros é que são racistas – observou Capelo.

– Sim – tornou Barbosa –, os ingleses, por exemplo, ou os franceses.


Não tem comparação.
– Se não houver lugar para nós aqui – disse o doutor Humberto,
mirando ora Capelo, ora Mateus –, imagine-se o que será. Somos
centenas de milhares, mais de meio milhão, muitos de nós nunca
conheceram outra terra, já nasceram aqui, outros estão cá há muitos
anos, completamente enraizados.

– Somos assim – reforçou Barbosa –, enraizamo-nos nas colónias.


Mas, atenção, já não queremos saber de colónias, somos pela liberdade e
autodeterminação dos povos. Se tivermos de escolher entre sermos
portugueses e angolanos, escolhemos ser angolanos. Se não ficarmos
aqui, vamos para onde? Para Portugal? O que tem a maioria de nós a ver
com o velho rectangulozinho europeu? Angola é uma dessas terras do
futuro com que sonham os audazes e os que têm a cabeça limpa de teias
de aranha. Para quê essa obsessão de alguns com o que correu mal no
passado, com o que se fez e não se devia ter feito? Para quê matar a
cabeça a pensar nisso? O passado não se altera, mas o futuro é nosso e
dos nossos filhos, o futuro podemos nós criar. No fundo, somos todos
vítimas do anterior regime e todos beneficiaremos com o seu fim.

– Aí já não o acompanho – disse o doutor Humberto. –


Beneficiaremos todos, mas não de maneira igual. Eu quero manter o que
é meu, mas o negro vai querer o que é meu. Temos que estar atentos,
muito atentos, às manobras da Metrópole. Vão entregar isto tudo ao
negro. Não pode ser. Temos de ser nós a ter nas nossas mãos os meios
de produção, o controlo da economia. O negro não está maduro para
tomar o nosso lugar. Atenção, muita atenção a isso.

– Digo-vos uma coisa… – disse Inácio, mas ninguém lhe ligou.

– Pensamento positivo e novo, é do que precisamos para honrar esta


terra que só inspira coisas positivas e novas – afirmou Barbosa,
satisfeito consigo próprio. – O vulgar bom senso prevalecerá e será
suficiente para manter Angola no rumo do sucesso e do
desenvolvimento, agora com todos, brancos e negros, em pé de
igualdade.

Como Capelo se desinteressara da conversa, e Mateus estivesse a


arrumar os tabuleiros de xadrez, Barbosa, o doutor Humberto e Inácio
foram-se embora.

– Enraizados… – disse Capelo, como se pensasse em voz alta. – Eles


dizem-se enraizados aqui. Eu sei como é que os que estão do outro lado
da barricada os vêem: como um mal que é preciso arrancar pela raiz. Eu
tenho terras, multipliquei o património da minha mulher, nasceram-me
aqui três filhos, mas não tenho verdadeiras raízes, nem aqui nem em
lado nenhum.

Mateus meditou sobre esta confidência. Ele e Capelo davam-se bem,


mas não havia entre eles verdadeira intimidade. Observou como Capelo,
em silêncio, se deixou absorver pelos próprios pensamentos, olhando
para um ponto abstracto.

– Conhece a história do fundador da Gabela? – perguntou Capelo,


animado.

– Não.

– Você chegou aqui antes de mim, foi a primeira pessoa que conheci,
quando eu julgava estar em trânsito para a Metrópole, mas afinal sou eu
que conheço a lenda do nosso herói fundador. Há umas semanas vi uma
cruz de pedra, quase arruinada, no ponto mais alto da serra. Contaram-
me a história do Ernesto da Silva Melo. Era um açoriano que no final do
século XIX emigrou para aqui. Abasteceu-se em Novo Redondo e
avançou para o interior. Estabeleceu-se no lugar chamado Capir. Foi o
primeiro europeu a ver estas serras, estes vales. Os nativos eram
guerreiros insubmissos. No início do século XX, a tropa da fortaleza de
Benguela Velha, que mais tarde seria Porto Amboim, veio ocupar esta
zona, e o Ernesto Melo, que tinha aprendido os caminhos com os
nativos, recomendou o local para construir um fortim, o monte Capir, o
pico mais elevado. A tropa foi assentar arraiais no lugar de N’Guebela,
que veio a ser Gabela. Veio a revolta do Amboim, em 1914, e o Ernesto
Melo caiu prisioneiro do soba da região, o malvado Cassússua, dono de
muitas terras e de muitos escravos. Durante anos julgaram-no morto.
Sobreviveu como servo do soba: carregava-lhe a liteira, trepava às
palmeiras para recolher cachos de dendém para a refeição do seu senhor.
A partir deste ponto, a lenda ganha asas. O Ernesto Melo é amarrado
para ser morto e cozinhado, talvez temperado com o próprio dendém
que foi obrigado a colher. Todo o povo da libata do Cassússua estava
reunido para assistir à festa da sua morte e, quem sabe, lançar mão a
algum bocado dele. No entanto, quando ele se estabelecera na terra do
Capir, tornara-se amigo de um outro soba, que lhe ofereceu para esposa
uma das suas filhas. Esta foi avisada do perigo que impendia sobre o
noivo. Trouxe algumas ancoretas de aguardente, deu-as aos rebeldes
comandados pelo soba mau e conseguiu que eles se embriagassem até à
apatia. Cortou as cordas que manietavam o bom do Ernesto e fugiram
para Benguela Velha. Mas ele voltou à montanha para recuperar o
património. O soba que o quis matar foi subjugado pelas autoridades de
Novo Redondo. O Amboim foi pacificado, a região atraiu cada vez mais
europeus e africanos para as culturas do café, da palmeira e das madeiras
preciosas. O Ernesto, claro, prosperou, fornecia o litoral, dava-se bem
com os nativos, tinha uma inumerável descendência mestiça. Em 1917,
sobreviveu, gravemente ferido, à revolta de Seles e Amboim, quando
duzentos colonos foram massacrados. E ainda voltou ao Amboim,
depois de reprimida a revolta, para ser outra vez um proprietário
importante, com grandes plantações de café, casas, armazéns. Morreu
em 1933. A cruz que eu vi assinala a cova onde foi enterrado, na
montanha que ele foi o primeiro branco a pisar.

Quando Capelo se calou, Mateus riu-se:

– É o seu modelo? Você é que é fazendeiro, como o Ernesto Melo.

– Foi assim que a cidade começou. E acho que vamos ver o fim.

Capelo regressou a um silêncio pesado. Parecia distante de Mateus,


que o ouviu dizer, talvez na sequência da lenda do fundador:

– Não, nunca tive ilusões…

– Só tem ilusões quem quer – afirmou Mateus. – Quando eu estava no


quadro administrativo, vi que bastasse. A nossa função era manter os
negros com rédea curta. Vi filas de negros à espera das palmatoadas.
Ficavam com as mãos inchadas, a sangrar. O que vão fazer agora esses
homens? E os filhos deles, a quem devem ter contado essas coisas?

– E fala-nos o Barbosa de um país multirracial, do convívio entre uns


e outros… – disse Capelo, olhando para a cadeira onde o empresário
estivera sentado.
– Lançámos um bumerangue, que agora volta e pode acertar-nos em
cheio na cara. Veja, Capelo… Você esteve na guerra, eu no quadro
administrativo. Se eles quiserem saber quem fez o quê, ainda vêm atrás
de nós.

– Todos temos um passado – disse Capelo.

Sílvia, a segunda filha de Mateus e de Beatriz, tinha catorze anos e


ouvia as conversas dos adultos. Despertara para as ideias políticas e
julgava saber o que era o socialismo, o comunismo, a democracia, a
autodeterminação dos povos. Estava impaciente por chegar à idade de
Célia, que terminara o liceu e tinha liberdade para fazer o que lhe
apetecia. Observava a irmã e as amigas: pintavam-se, vestiam mini-
saias, fechavam-se no quarto a fumar e a falar de rapazes. Sílvia
frequentava o quarto da irmã, na ausência desta; experimentava os
vestidos, abria as gavetas, espreitava para dentro dos armários, folheava
os livros, usava os estojos de beleza e os truques de maquilhagem. Célia
ofereceu-lhe um estojo, mas não fazia dela a confidente das suas
experiências adultas.

A lealdade antiga de Sílvia à mãe distinguia-a das irmãs: de Célia,


porque já era adulta, e de Ana, dois anos mais nova, porque era rebelde
por natureza. Mas já não queria ser a menina que tudo fazia para lhe
agradar. Liderou os irmãos, João e Ana, na ida à sanzala. Às vezes
ouviam-se batuques durante três dias seguidos, por ocasião de festas e
funerais. Essas batucadas atraíam-nos. Sílvia convenceu o moleque
Sebastião a guiá-los. Ao entrarem na sanzala, os três sentiam-se
excitados com todas as novidades e com o medo de virem a ser
descobertos. Entre outras novidades, viram soldados portugueses,
bêbados, a dançarem com negras de seios descobertos, ao som de uma
música vinda de um rádio a pilhas pendurado numa árvore.

A sanzala era um território proibido por Beatriz: tudo o que era usado
ou feito pelos negros era impróprio para as crianças brancas. Ao ver as
negras transportarem os bebés às costas, entalados em dobras de lenços,
Sílvia passou a fazer o mesmo com os irmãos mais pequenos em casa.
Quando disse que era assim que as negras faziam, a mãe, como se de
súbito compreendesse o que até aí lhe escapara, proibiu-a de o fazer.
Não queria que imitassem os costumes africanos. Sílvia e Ana tinham
sido castigadas quando Beatriz as surpreendera, no quintal, a comer com
duas lavadeiras um peixe acompanhado de um caldo de farinha de
mandioca. Comer comida africana, na companhia das lavadeiras, era
indesculpável.

A incursão na sanzala remoía a consciência de Sílvia. Era provável


que fossem descobertos; a mãe sabia tudo. Sílvia tinha de fazer qualquer
coisa para compensar a mãe, pelo menos aos seus próprios olhos. Entrou
na cozinha, aproximou-se de Julieta, a criada, e confeccionou os
biscoitos que aprendera a fazer. Mostrou-os à mãe. Beatriz aprovou com
um olhar, mas perante a insistência de Sílvia disse que os biscoitos
tinham demasiado açúcar e estavam muito duros. Era difícil alcançar os
padrões da mãe.

Sílvia tinha uma solução para salvar os biscoitos: oferecê-los ao pai,


que não podia ter muito tempo o estômago vazio e recorria a um sortido
de bolos secos numa gaveta na repartição do registo civil. O pai não
dizia mal dos seus biscoitos e dava-lhe algumas moedas por eles e o
direito de estar por ali, a vê-lo trabalhar, sem incomodar ninguém.
Meteu os biscoitos numa caixa e dirigiu-se ao edifício do tribunal, que
ficava na outra ponta da cidade.

Parou na loja de Inácio-Cê-de-Cedilha e comprou um chocolate.


Sempre que lá ia, Sílvia espreitava para o quintal das traseiras onde ela e
Ana tinham visto a mulher do senhor Inácio a bater com um cinto num
negro amarrado a uma árvore. Contaram ao pai, que disse que era
provável que ele devesse dinheiro à loja e que essa era a maneira que
alguns comerciantes tinham de lidar com os negros.

O edifício do tribunal, cor-de-rosa, ficava na estrada de terra batida


perto da saída para Quibala. A repartição do registo civil era no rés-do-
chão. Já toda a gente ali conhecia Sílvia. Entrava à vontade no gabinete
do pai. Subia as escadas para o andar superior, o tribunal, onde ele
também trabalhava. Mateus estava no rés-do-chão. Para o pai ela não era
um estorvo. Aceitou a caixa dos biscoitos, que poisou sobre os papéis da
secretária, e deu-lhe algumas moedas.

Mateus abriu a caixa e trincou um biscoito. Fez força com os dentes


para vencer a resistência, mas com tanta naturalidade que não punha em
causa a qualidade do que estava a trincar. Sílvia sorriu, satisfeita. O pai
era a única pessoa que não a decepcionava.

Sílvia nunca esquecera o prisioneiro que trouxeram ao gabinete do pai.


Como substituto do subdelegado do procurador da República (expressão
que Sílvia não sabia reproduzir sem se enganar; cumprindo a sua
reputação de corruptora de nomes, dizia subdelegado do substituto da
República, ou substituto do subprocurador delegado da República),
Mateus recebia polícias e outras autoridades relacionadas com casos de
tribunal. Um dia, entretida a subir e a descer escadas, espreitando para
gabinetes que sabia vazios, Sílvia viu dois polícias que traziam um
homem negro com sangue na cara, a roupa desfeita e arranhões no
tronco seminu. Fizeram-no entrar na sala onde estava o pai. Ouviu dizer
que o preso fora apanhado a roubar galinhas. O pai disse aos polícias
para o soltarem e saírem, o que eles fizeram. Depois, disse ao preso para
se sentar.

Sílvia não teria dado nenhum significado a isto se um dos polícias,


retrocedendo alguns passos para espreitar, não tivesse dito ao colega:

– Ele disse ao preto para se sentar.

– Ele faz sempre isso – respondeu o outro.

Mais tarde, perguntou ao pai porque é que tinha tratado bem o homem
e ele, que apreciava os provérbios, respondeu:

– Faz o bem sem olhar a quem. Além disso, devemos ajudar toda a
gente. Nunca sabemos quando voltamos a encontrar as pessoas e são
elas que nos ajudam.

10

Quando chegaram ao fim do liceu, Célia e os colegas organizaram


uma festa de garagem. Um gira-discos começou a emitir o tipo de
música com que os jovens tencionavam demolir o mundo dos pais.
Garrafas de Coca-Cola eram trazidas dentro de barris com pedaços de
gelo. Alguém pendurou um cartaz do Jim Morrison à vista de todos,
como uma efígie oficiando o ritual.

As amigas de Célia iam para a Universidade em Sá da Bandeira. Célia


queria dar aulas ali mesmo, na Gabela, durante um ano ou dois, antes de
seguir o mesmo caminho.

A festa estava a ficar aborrecida quando chegou um carro desportivo,


que travou com ruído diante da garagem e do qual saiu Alexandre. Célia
ouvira falar muito dele. As respectivas famílias eram amigas. Através do
pai, sabia que o cunhado de Capelo estivera preso por tráfico de armas,
ligado de um modo obscuro ao MPLA. Libertado logo após o 25 de
Abril, Alexandre reaparecera na Gabela com uma aura de herói e lutador
antifascista. Havia muita coisa nele que cativava Célia: já tinha vinte e
seis anos, era mulato, fora expulso de casa por Capelo, tinha estado
preso e conduzia um carro que era um acessório de luxo da sua
personalidade irresistível.

Alexandre viera dar boleia a Xavier. O irmão é que era finalista do


liceu. Mas a festa de garagem já não podia passar sem ele: trazia liamba,
abundante e de boa qualidade. Dançando e fumando, todos
reverenciavam o ídolo pendurado na parede e o seu melhor delegado no
terreno, Alexandre, o amante das coisas boas da vida, o ex-prisioneiro
político, apontado como modelo negativo pelas famílias mas de quem os
jovens gostavam.

O que Célia e os amigos não sabiam é que Alexandre, que nunca


estivera motivado por ideais independentistas, aprendera a disfarçar-se
de lutador antifascista no campo correccional de S. Nicolau, perto de
Moçâmedes, onde contactara com verdadeiros prisioneiros políticos.
Quando o campo foi libertado, com grande euforia e aparato jornalístico,
Alexandre aderiu ao MPLA, voltou à Gabela, reentrou na fazenda do pai
e encontrou-o senil, incapaz de o reconhecer. Disse à irmã que se
transformara: agora era um homem, modificado pela experiência terrível
do campo de S. Nicolau, já não era o estroina irresponsável que ela vira
pela última vez um ano e meio antes. Mariana acreditou, mas Capelo
não. Alexandre percebeu que não conseguira enganar o cunhado quando
este lhe disse que ele voltava para as propriedades do pai com um
discurso politizado apenas para não trabalhar nas fazendas, como Capelo
e Mariana lhe tinham proposto no passado. Tornou a apresentar-lhe as
suas condições: não teria direito a mesada de herdeiro rico, teria de
colaborar na empresa familiar. Desta vez, Alexandre disfarçou melhor a
sua raiva. Instalou-se no centro da cidade com a ajuda de outros
membros do partido que acreditavam no seu passado antifascista, e
começou a pensar em vingar-se de Capelo.

Célia ignorou Xavier, o seu colega de escola, e seguiu Alexandre com


o olhar. Espiava o modo como ele acendia o cigarro, como fazia cair a
cinza no cinzeiro e lançava baforadas para o ar, com expressão
arrogante. Gostou dessa arrogância. Aos seus olhos, Alexandre
personificava um ideal: pela beleza física, pelos traços de desafio e pelos
crimes de que era acusado. Célia decidiu que não faria julgamentos
morais. Vivia-se um tempo de transição, a velha moralidade tinha de ser
abandonada para se construir algo novo.

Não passou despercebida a Alexandre a atenção que Célia lhe


dedicava. Atraiu-a para um canto mais reservado da garagem.

– O teu pai ensinou-me a jogar xadrez – disse-lhe, acendendo um


cigarro. – Conheci uns tipos bem estranhos à conta disso.
– O xadrez é incrível, não é? – sugeriu Célia.

– Não gosto – respondeu Alexandre.

– Eu também não – apressou-se Célia a concordar.

– O meu xadrez agora é outro. Depois de passar pelo campo de S.


Nicolau, uma pessoa percebe que há um xadrez a sério a ser jogado no
mundo inteiro.

A imagem não era nova, mas Célia achou-a maravilhosa.

– E tal como no jogo, ou se come ou se é comido – continuou


Alexandre. – Ou se mata ou se é morto. Foi o que eu aprendi lá.

– O meu pai trabalhou no quadro administrativo, quando vivíamos em


Moçâmedes. Viu muitos presos a serem levados para S. Nicolau.

– O teu pai tem de ter muito cuidadinho agora. Virão atrás dos que
pertenceram ao quadro administrativo, porque, basicamente, o que eles
faziam era mandar bater nos pretos.

Célia pensou em dizer que o pai nunca o fizera, mas lembrou-se de


que, para estar à altura de Alexandre, não podia nutrir sentimentos
filiais. Tinha de dizer coisas politicamente fortes.

– Não se pode agora fingir que nada aconteceu – disse ela. – Quem foi
responsável tem de ser chamado.

– Isto ainda mal começou – afirmou Alexandre. – Isto vai levar uma
grande volta.
– Foste torturado em S. Nicolau? – perguntou Célia, sem saber que o
seu próprio pai, a pedido de Capelo, conseguira que Alexandre
permanecesse numa secretaria da prisão.

Alexandre desviou os olhos para mentir melhor. Sabia que causava


mais efeito ser enigmático. Fitou o cigarro que segurava na mão e disse:

– Não te passa pela cabeça as coisas que aconteciam lá em baixo. Já


ouviste falar nas geleiras de S. Nicolau? Era o nome que davam a umas
celas individuais. Celas disciplinares, diziam eles. Menos de um metro
quadrado. Uma sanita ao meio. Um chuveiro no tecto. Só entrava o ar
por uma portinhola. Lá dentro, só se conseguia estar dobrado. À noite,
no deserto do Namibe, as temperaturas descem brutalmente. Nenhum
agasalho era dado ao preso. O chuveiro pingava sem parar. Para beber,
apenas a água da sanita, que tinha uma torneira no interior. Houve quem
saísse das geleiras pele e osso. E houve quem de lá saísse dentro de um
caixão.

Alexandre resolveu introduzir neste momento uma pausa dramática e


olhar para os que dançavam.

– Não pensei que pudesse ainda estar num sítio destes, a ouvir música,
a ver gente bonita a dançar. E tu? – Olhou Célia nos olhos. – Também
vais para a Universidade?

– Não – respondeu Célia, contente por poder dizer algo diferente da


maioria dos colegas. – Não quero estar dependente dos meus pais. Vou
dar aulas.

– Aulas de quê?
– Inglês e Francês.

– Não me queres dar aulas a mim?

– Claro.

– Fizeste bem em não ir para a Universidade. Seria uma cara bonita a


menos aqui na nossa terra…

Célia sentiu uma presença estranha perto deles: era Xavier que, a
alguns metros de distância, os observava.

– Ouve lá – disse Célia –, não achas que o teu irmão anda estranho?
Não fala com ninguém. No último ano do liceu afastou-se de toda a
gente.

– O Xavier? Não ligues, ele sempre foi esquisito. Nem sequer queria
vir hoje. Eu é que o arrastei. Sabia que ia encontrar gente bonita. –
Alexandre demorou o olhar em Célia, para mostrar que se estava a
referir a ela.

Xavier aproximou-se do cartaz do Jim Morrison. Trocava olhares


intensos com a figura que o fitava da parede. Então, estendeu os braços
para chegar ao rosto do ídolo e, com uma tesoura, recortou os seus
olhos, deixando dois buracos redondos. Amachucou os pedaços de papel
e ficou a olhar para os próprios dedos, que continuavam a mover-se
sozinhos, a amarrotar alguma coisa invisível. Algumas pessoas riram-se
e bateram palmas, interpretando o gesto como subversivo, com um
simbolismo que o próprio Jim Morrison aprovaria. Xavier pareceu não
reparar na reacção dos outros.
– Viste o que ele fez? – perguntou Célia. – Recortou os olhos do Jim
Morrison.

– São coisas à Xavier… – disse Alexandre, negligente. – Não


imaginas as coisas que ele já me contou. Ouve vozes, diz que alguém o
manda alterar a política e criar uma religião nova.

– Alguém? Quem?

– Sei lá eu… Vozes, mensagens por telepatia, coisas desse género.


Disse-me que há coisas profetizadas desde a infância dele. E que as
letras das músicas são mensagens que lhe mandam.

– Já contaste isso ao resto da família? Têm de o ajudar.

– Eu, contar? Não conto nada àquela gente. Sou a ovelha negra da
família. Mas não estou aqui para falar do meu irmão. Anda cá. Fala-me
de ti.

Passados uns dias, Célia e Alexandre já eram namorados.

11

O padre Emanuel estava havia vinte anos na região e dirigia uma


missão religiosa de instrução escolar para nativos. Agregara à missão
um infantário, um lar de idosos e um jornal. Para este tinha convidado
Mateus a fim de que organizasse uma meia página sobre xadrez. Por
intermédio do pai, Sílvia, atraída pelo sonho de ser jornalista, tornou-se
colaboradora do jornal. Tinha um enorme respeito pelo padre Emanuel,
professor de Latim e reitor do liceu, o qual, apesar das instituições e
obras que o ligavam à comunidade, era uma figura distante e grave.

O padre Emanuel tinha um ascendente sobre o padre Joaquim. Não


podia haver maior contraste entre os dois, e não apenas pela diferença de
idades. O padre Joaquim tinha uma barba arruivada, olhos vivos e
brincalhões, que ora se fixavam nalguma coisa ou em alguém mais do
que parecia razoável, ora se punham a perseguir no espaço coisas
abstractas. Sílvia já o conhecia das aulas de Português no liceu e gostava
de ser tratada por «colega» nos assuntos do jornal, para o qual o padre
Emanuel o nomeara editor. Corpulento, o padre Joaquim tinha o hábito
de falar alto, como se não pudesse evitar que a caixa torácica fizesse
ressonância da sua voz cheia. Ria muito e às gargalhadas, era
desorganizado e emotivo. Quando alguma coisa não lhe corria como
esperava, procurava a superfície lisa de uma parede e ia aí bater com a
cabeça várias vezes.

As crises de hipocondria faziam parte da sua emotividade ruidosa. Os


pais moravam em Luanda e mandavam dinheiro, que ele gastava em
inutilidades. Quando recebia na Gabela a visita deles, parecia um garoto
apanhado em falta; sabia que a mãe vinha visitá-lo para o controlar.
Com as alunas do liceu, folheava os catálogos de roupa feminina e fazia
comentários sobre peças de lingerie.

Sílvia via como o padre Emanuel falava com o padre Joaquim num
tom ríspido e como este reagia amuado e sorumbático. Agora andava
preocupado com doenças, mais do que o habitual. O sentimentalismo, a
nostalgia, as carências emocionais, tudo isso devia alimentar-lhe a
hipocondria. No meio das tarefas do jornal, diante de uma Sílvia aflita,
queixava-se de palpitações, tonturas ou falta de ar. Auscultava o próprio
corpo, numa atenção que amplificava os sinais e prenunciava uma
catástrofe que nunca vinha. Bebia um copo de água com açúcar e tudo
passava. O padre Emanuel nunca tivera paciência para as doenças reais
ou imaginárias do padre Joaquim. Era seco, directo, prático, enquanto o
padre Joaquim era folgazão, angustiado e hesitante.

Na redacção do jornal, num anexo da igreja, o padre Joaquim recebia


muitas vezes a visita de Teresa, a mulher de Barbosa, professora de
Francês. Quando ela chegava, Joaquim dava a Sílvia qualquer coisa para
fazer e ia com a professora para outra sala, trancando a porta à chave.
Sílvia começava a esboçar uma ideia do que se passaria atrás daquela
porta.

Semanas depois, uma colega contou a descoberta sensacional. Ao


abrir a porta de uma arrecadação do liceu, surpreendeu a professora
Teresa e o padre Joaquim, abraçados. Percebeu tudo num segundo: o
abraço desfeito assim que abriu a porta, a precipitação com que a
professora Teresa compôs o casaco amarrotado, o rubor do padre
Joaquim. Todo o liceu veio a tomar conhecimento do caso.

Sílvia contou aos pais. Mateus e a Beatriz não lhe deram a saber o que
pensavam: a professora Teresa era a mulher de Barbosa, velho amigo da
família, e o escândalo já vinha de longe. Não se dizia que Barbosa
mantinha um casamento de fachada com Teresa e tinha uma relação com
Rebeca, a irmã desta?

Teresa era insegura e os alunos faziam troça disso. Quando


deturpavam as palavras francesas, ela gritava, colérica: Assassins!
Assassins du Français! Só para a verem neste estado, empenhavam-se
em falar mal. Sílvia estava na sala da professora Teresa quando esta
disse:

– Já devem ter visto escrito nas janelas dos comboios: Ne pas se


pencher sur la fenêtre. Quem sabe o que isto quer dizer?

– O comboio não espera – respondeu um aluno.

A turma riu e animou-se muito, e mais ainda quando a professora


gritou:

– Taisez-vous! Taisez-vous! Assassins du Français!

Como ninguém lhe ligasse, abriu uma gaveta e retirou um daqueles


revólveres que os serviços da defesa civil tinham distribuído em 1961,
no início da guerra. Apontou o revólver para a turma, sempre aos berros:

– Misérables! Taisez-vous!

Houve pânico. Nas últimas filas, alguns alunos fugiam de gatas. A


sala esvaziou-se em poucos segundos. Lá dentro, ficou apenas a
professora Teresa. De vez em quando, um aluno espreitava pela porta
entreaberta e vinha dizer que ela estava sentada à secretária, com as
mãos a cobrir o rosto. A pistola estava pousada à sua frente.

O burburinho cessou à passagem do reitor. Não olhou para ninguém.


Entrou na sala e fechou a porta atrás de si. Pouco depois, saiu com a
professora Teresa.

12

O reitor chegou ao liceu. Os alunos com quem se cruzou perceberam


que não vinha bem-disposto. Estava com uma expressão carregada,
olhava para o chão, caminhava com passos enérgicos e não respondeu
aos cumprimentos.

Passou o portão e ouviu uma correria de passos que conhecia bem.


Virou-se e, nesse momento, pararam, especadas a olhar para ele, as
filhas de Inácio, as gémeas Macacas, seguidoras zelosas e fanáticas,
campeãs do beatismo na Gabela. Tinham farejado alguma novidade e
por isso ousaram seguir o padre até ali, apesar de ele as ter proibido de
entrarem no liceu. Era suficiente aturá-las como voluntárias do centro
comunitário.

– Vão-se embora! – rugiu o padre Emanuel, apontando para a rua. –


Embora daqui, já! Não têm nada que fazer aqui!

As gémeas seguiam-no para todo o lado. Uma delas tinha uma fixação
obsessiva pelo padre. A outra preparara o noivado com um rapaz de
quem se dizia que era também débil mental, que aparecera na Gabela;
contou a toda a gente os preparativos, depois ele fugiu e desapareceu
para sempre.

Perante os gritos do padre Emanuel, as duas irmãs debandaram. O


padre retomou a marcha. Daí a poucos minutos ia receber a visita dos
pais do padre Joaquim, vindos de Luanda. Tentava lembrar-se de todos
os pormenores da conversa que tivera com Joaquim, quando este lhe
telefonou de Benguela, para onde fugira com a professora Teresa. Ao
telefone, o padre Emanuel reagira com uma explosão de raiva: como
ousava ele abandonar as suas tarefas no liceu, na igreja e no centro
comunitário para ir atrás de uma mulher? Cada palavra sua valeu como
uma estalada na cara do colega, que ele podia imaginar aterrado e
trémulo, a ouvir tudo e incapaz de desligar o telefone.

O que mais irritava o padre Emanuel era que o padre Joaquim


conseguira romper com a disciplina que ele lhe impunha há tantos anos.
Rebelara-se também contra o controlo que os pais lhe faziam à distância.

Estes entraram no gabinete do reitor. Vestidos de um modo antiquado,


pareciam habitar dentro de uma bolha que os isolava dos hábitos
quotidianos, do ambiente, do clima. O pai, senhor Monteiro, trazia uma
ruga profunda entre as sobrancelhas, para significar indignação pelos
actos do filho, e um cachimbo de marfim na boca, apagado, que, no
meio das bochechas descaídas, adquiria o ar de um dente de elefante. A
senhora Monteiro tinha um rosto inexpressivo quando o marido falava,
mas que se animava muito quando era ela a falar. O seu cabelo, com
uma cor artificial, estava penteado de um modo aparatoso.

– In-qua-li-fi-cá-vel! – dizia o senhor Monteiro, e as suas bochechas


tremiam a cada sílaba. – O que ele fez é in-qua-li-fi-cá-vel!

O padre Emanuel ponderou esta palavra com gravidade e reconheceu


o senhor Monteiro como um seu igual: também ele era dado à ira.

– Ele não tinha nada que ir para Benguela – disse o senhor Monteiro,
com a cara vermelha, ameaçando uma explosão. – Ele não tinha nada
que virar as costas ao liceu, a si, o seu mentor. Que falta de ponderação,
de siso, de senso…

O padre Emanuel, que estava de pé, foi sentar-se do outro lado da


secretária, entregando-se ao gozo de ouvir palavras tão formais, ele que,
no contacto com as massas populares a que o centro comunitário o
obrigava, sentia por vezes necessidade de uma linguagem mais
sofisticada. «Como é bom falar com pessoas educadas», pensava,
encarando o velho casal, «mesmo se o assunto é aborrecido».

– Nós queremos ir a Benguela procurá-lo – disse a senhora Monteiro,


com uma expressão viva no rosto. – Mas antes queríamos falar consigo.

– Ele não tinha nada que ir para Benguela – repetiu o marido, como se
o problema fosse essa cidade.

– Tencionam convencê-lo a voltar para aqui? – perguntou o padre.

– O senhor não conseguiu?

– Não. E receio que os senhores também não consigam. Ele está muito
ligado à professora Teresa.

– Ele pediu-nos dinheiro emprestado.

– Será por pouco tempo – disse o padre Emanuel. – Já contactei o


reitor do liceu de Benguela. Ele terá uma colocação lá.

– Ele não tinha que ir para Benguela – disse o senhor Monteiro pela
terceira vez e que, no esforço de segurar o cachimbo entre os dentes,
pareceu grunhir. – E a posição dele na Igreja?

– O caso é levado à hierarquia. Deixará de ser padre – disse o padre


Emanuel. E juntou, com irritação: – Aliás, já não o é.

– O que é que vamos fazer em Benguela? Devíamos voltar já para


Luanda – disse o senhor Monteiro.
– Vamos lá mostrar que estamos estupefactos – disse a senhora
Monteiro.

Houve um silêncio, que mostrava que tinham feito tudo por aquele
filho e que se ele era tão original a culpa não era deles.

– E logo agora, que isto vai tudo levar uma volta – disse o senhor
Monteiro. – Será que o 25 de Abril influenciou as atitudes do meu filho?
Anda tudo doido.

– Duvido – considerou o padre Emanuel. – Isto já estava dentro dele.

– Em Portugal reina a rebaldaria. E em Luanda as coisas vão de mal a


pior. Todos os dias há tumultos. Aquilo é obra de agentes infiltrados que
trazem ideias e práticas estranhas ao povo angolano. O quê, acha que
não? – perguntou o senhor Monteiro, embora o padre não tivesse dito
nada. – Ah, mas não tenha dúvidas. E o governo central está obcecado,
quer acelerar a descolonização. Entregam isto a guerrilheiros que fazem
a guerra há mais de dez anos. Vão libertar ódios recalcados, fúrias
descontroladas.

– Em Luanda as coisas vão assim tão mal? – perguntou o padre.

Habitantes do centro de Luanda, os Monteiros contaram que a tensão


racial já devastava os musseques e avançava para o asfalto. Nos
musseques havia trocas de tiros entre brancos e negros. A tropa
patrulhava os subúrbios como num cenário de guerra. Grupos de brancos
manifestavam-se diante do Palácio do Governo e exigiam mais
segurança, o que significava punir a população dos musseques. Negros
eram sovados e insultados na cidade de asfalto quando se dirigiam para
os empregos. Num ataque a um autocarro, alguns passageiros negros
foram mortos a tiro. O motorista, debaixo de fogo, levou o veículo para
o Hospital de São Paulo. Africanos invadiram a morgue do hospital e
retiraram três cadáveres, que levaram em cima de macas com rodas
numa marcha de quatro quilómetros até ao Palácio do Governo. Polícia
e Exército barraram o caminho e recuperaram os cadáveres. Esquadrões
da morte entravam nos musseques para incendiar e matar. Em resposta,
foram incendiadas mais lojas e casas de comerciantes. Cada parte
acusava a outra de ser a provocadora. Depressa se chegou a centenas de
negros mortos nos subúrbios. Os hospitais estavam em situação de
ruptura e lançavam um apelo a dadores de sangue. Ao mesmo tempo, os
autotanques dos bombeiros lavavam o sangue no chão de asfalto.
Alguma ordem foi estabelecida quando se decretou o recolher
obrigatório.

– E o Almirante Vermelho não ajuda nada – reforçou a senhora


Monteiro.

O padre Emanuel já ouvira falar do alto-comissário que viera


substituir o governador-geral, um almirante que diziam ser comunista.

– Não apoio esse almirante – disse o padre, sentindo de imediato que a


sua aprovação ou reprovação interessavam a poucas pessoas.

– Ele assina com tinta vermelha – tornou a senhora Monteiro – desde


que lhe puseram esse nome. O assassino oficial de Angola.

Os Monteiro destilaram o seu ódio ao almirante, a quem punham as


culpas de tudo. Proibiu as forças armadas de reprimirem os movimentos,
que tinham nas suas fileiras muitos marginais que procuravam a
impunidade da farda militar para praticarem roubos, assassinatos,
violações, no centro e nos subúrbios da capital. Os soldados portugueses
viam mas não intervinham; diziam que o almirante não deixava. Para
substituir os agentes da Polícia, surgiram patrulhas de guerrilheiros que
a população branca não distinguia dos bandoleiros. Negociava-se o
cessar da guerrilha, que ainda prosseguia no mato com feridos e mortos
dos dois lados.

– Lisboa quer salvar o mito da descolonização pacífica e do diálogo


aberto com os três movimentos – disse o senhor Monteiro, com as
bochechas a tremer de cólera. – Para isso fecha os olhos a todos os
crimes. E o almirante está mandatado para fazer acontecer o pior aos
brancos.

– Como, o pior aos brancos? – perguntou o padre Emanuel.

– Que os brancos sejam roubados, chacinados, cortados às postas


como carne do talho. Quanto mais morrerem, menos estorvam a
descolonização.

Perante o ar de alarme do padre Emanuel, o senhor Monteiro reforçou:

– O que se passa em Luanda vai repetir-se em toda a parte. Quando


lhe levam queixas sobre assaltos, violações e mortes, o almirante
responde que são boatos. Uma mulher levou ao colo a filha morta para a
frente do Palácio do Governo e queria que o almirante confirmasse se a
sua morte era boato ou não. Foi imposto o recolher obrigatório às nove
da noite. Na primeira noite, a população branca formou filas de
automóveis e buzinou até ao raiar do sol.
– Tu estiveste lá, a buzinar também – interrompeu a senhora Monteiro.

– Pois estive, e com muito gosto. O almirante ordenou aos civis que
entregassem as armas. Há uma barreira, que eles chamam de segurança,
entre a cidade e os subúrbios. Revistam os carros para confiscar armas.
Já me mandaram parar três vezes a caminho do aeroporto. Depois, o
almirante quis desarmar a Polícia, que já manda menos do que os
guerrilheiros. Sabe o que aconteceu? Um grupo de camionistas e
comerciantes entrou no Palácio do Governo e encurralou o almirante
num gabinete. O Palácio é agora guardado por fuzileiros. Estão nos
corredores e nos telhados.

– Eu digo que são os violinos no telhado – disse a senhora Monteiro,


passando do rosto inexpressivo a uma súbita animação.

O padre Emanuel surpreendeu-se ao descobrir no rosto daquela


senhora da alta burguesia colonial a expressão que costumava ver no
padre Joaquim: uma garridice infantil sujeita a amuos, mas que nela
emergia apenas durante segundos, enquanto no filho era a marca de uma
incompatibilidade radical com o mundo.

– Assassino oficial de Angola, enviado de Lisboa – disse a senhora


Monteiro.

– Ora, ele não tinha nada que ir para Benguela – disse o senhor
Monteiro, julgando que ela se referia ao filho.

13

A chegada de Carvalho, numa carrinha de tracção às quatro rodas,


trazia sempre animação às ruas por onde passava. As crianças corriam
atrás dele. Carvalho estacionava à porta de casa. Diante dos animais
mortos e as peles amontoadas na caixa aberta da carrinha, explicava às
crianças como lhes dera caça. Exibia um leão, um corpo inerte, sem o
rugido e a juba eriçada que a imaginação do seu público lhe atribuía em
todas as circunstâncias; ou chamava a atenção para o que descrevia
como sendo um pneu sobressalente da carrinha, mas era uma cobra,
viva, enrolada sobre si própria.

Carvalho começava por assustar as crianças que seguiam a carrinha,


porque era muito alto, com um rosto que parecia antipático, o que era
logo desmentido pela amabilidade que mostrava. Tinha uma filha
pequena, mas nunca o viam com ela. A filha era sempre vista com a
mãe, Elisa.

Apesar de as mulheres de Carvalho e Capelo serem irmãs, os dois


antigos camaradas conviviam pouco. Elisa não gostava da vida familiar
convencional a que Mariana se dedicava. Era raro visitar a fazenda sede,
sobretudo desde que o pai adoecera. Carvalho passava o máximo de
tempo no mato, a caçar animais para jardins zoológicos ou
coleccionadores particulares. Quando voltava para casa, bebia,
afundava-se num humor soturno. Os vizinhos ouviam discussões
violentas entre ele e a mulher. Nem um nem outro frequentavam a
sociedade gabelense.

Tinha de ser Capelo a tomar a iniciativa se queria ver o amigo. Veio


da fazenda para o visitar. Sabia que Carvalho regressara, na véspera, de
uma ausência de duas semanas no mato. Elisa abriu a porta. Como
noutras ocasiões, Capelo observou uma expressão irónica e sobranceira
no seu rosto bonito. A filha, de cinco anos, seguia a mãe. Elisa, sem uma
palavra, apontou o quintal e afastou-se com a filha.

O quintal era a única parte da casa onde Carvalho se sentia bem.


Estava cheio da quinquilharia de caçador: gaiolas, redes, espingardas,
caixas de munições, troféus. Capelo encontrou-o sentado a uma mesa
articulada, a reparar os tubos metálicos da estrutura de uma tenda.

– O que é isto? – perguntou, apontando para um espelho, uma bacia de


porcelana e uma lâmina de barbear. – A tua higiene é feita ao ar livre?

– Hábitos do mato – disse Carvalho, sombrio.

Capelo achou que Carvalho, enquadrado na vegetação do quintal e tão


próximo daqueles artefactos, já só se sentia bem no mato.

– Vieste a tempo – disse Carvalho, erguendo a sua estatura enorme.

– Porquê?

– Ia buscar uísque.

Entrou na cozinha, cuja porta dava para o quintal, e regressou com


duas garrafas que colocou sobre a mesa. Com a manápula gigantesca
indicou a cadeira articulada do outro lado da mesa, para Capelo.

– Ninguém te põe a vista em cima – disse este. – Selvagem como


sempre.

– Vocês não me vêem porque ando camuflado – respondeu Carvalho,


mostrando as calças da tropa que trazia.
Sorriu de modo grotesco. Capelo reparou que os olhos não
acompanhavam aquele arrepanhar da face que pretendia ser um sorriso:
olhavam com uma certa malignidade, contando talvez com o simulacro
do sorriso para desviar a atenção do interlocutor. Isto traía uma
duplicidade que era nova nele. O ex-alferes não costumava ocultar-lhe
nada, era simples e directo. Capelo estava a pensar em que altura deixara
de estar a par do que acontecia ao amigo.

Só quando iam no segundo copo é que Capelo reparou num saco-cama


estendido em cima de algumas camadas de papelão, ao lado de um
mosquiteiro. No lugar da banquinha de cabeceira, dois livros e uma
lanterna. Carvalho andava a dormir ali.

– Fizeste do quintal a tua casa. Deve estar a passar-se alguma coisa


entre ti e a Elisa.

Carvalho não reagiu. Dantes, esse costumava ser o seu modo de anuir.
Capelo resolveu não insistir. O amigo sabia que ele não evitara o
assunto, competia a Carvalho silenciá-lo ou não.

– Casaste-te com a irmã certa – disse Carvalho. – Eu casei-me com a


irmã errada.

– Sim, eu sou feliz com a Mariana. Parece-me óbvio que as coisas não
correram tão bem convosco.

– Pois não – tornou Carvalho. – A questão é que tu e a Mariana estão


talhados para o casamento. Eu e a Elisa, não. Foi um erro, casarmo-nos.
Como também o seria se o tivéssemos feito com qualquer outra pessoa.

Estabeleceu-se um silêncio demorado. Carvalho serviu-se de mais


uísque, Capelo preferiu não encher o copo de imediato. Enquanto
estavam calados, Carvalho pegou numa faca de mato e pôs-se a afiar
uma cana que faria parte de uma armadilha; Capelo leu o rótulo da
garrafa de uísque. Era um silêncio que não os constrangia, mas quando
Carvalho o quebrou foi para retomar o tema que parecia ter morrido:

– A única coisa boa deste casamento é a minha filha.

Capelo pensou o que dizer. O tom de Carvalho era lacónico, mas o


afecto que exprimia parecia autêntico e profundo.

– Quanto a isso não tenho dúvidas – afirmou Capelo. – Toda a gente


acha a tua filha encantadora.

– A mãe quer atingir-me através dela – disse Carvalho. – Já me disse


que se nos separarmos nunca mais a verei. Ela sabe que a única coisa de
que eu gosto nesta casa é a minha filha.

Capelo teve um vago arrepio ao aperceber-se de uma frieza no tom de


Carvalho, uma espécie de rancor deliberado.

– E eu sei – continuou ele – que ela estragará a Carolina. Vai querer


que a minha filha seja igual a ela. Age como se a criança não tivesse pai,
como se fosse uma coisa privada dela. Só precisou de mim para
engravidar. Tudo isto estava previsto por ela.

Ao mesmo tempo que falava, Carvalho afiava a cana com a faca de


mato em gestos cadenciados, sem alteração.

– Eu não vou consentir que ela desapareça com a Carolina – disse


Carvalho, pousando a cana e a faca sobre o colo e não olhando para
Capelo, como que sugerindo que não se colocava sob a influência deste.
– Ela vai dar cabo de mim. Sobrevivi à guerrilha, mas não vou
sobreviver à Elisa.

Capelo pressentiu a hostilidade fria de Carvalho, mas nada disse.


Carvalho esvaziou a primeira garrafa de uísque. Aguentava a bebida
como nenhuma outra pessoa. Só se notava que estava bêbado quando se
levantava. Se estivesse sentado, mantinha-se imóvel, mesmo depois de
ingerir grandes doses, quando outros já teriam rolado para debaixo da
mesa. Prevenindo o momento de ter de se levantar, pedia uma garrafa de
água mineral e a partir daí sentia-se confiante para sair do local pelo
próprio pé. Por mais que bebesse, nunca perdia a compostura.

Quando Capelo ainda pensava em dizer alguma coisa sobre a situação


conjugal de Carvalho, este perguntou-lhe:

– Têm-te chateado para aderires a algum partido?

– Alguns delegados já me abordaram – disse Capelo, com negligência.


– Vários cães para um osso. Todos querem os brancos do seu lado.

– Ouço-os discursar diante de brancos e negros – disse Carvalho. –


Em português falam de uma Angola plurirracial e os brancos batem
palmas. Nas línguas nativas prometem a expulsão dos brancos, e os
negros aplaudem. Esquecem-se de que há tipos como eu que percebem
os dois discursos.

– E tu, já foste abordado?

– Andam a farejar – disse Carvalho, tornando a usar a faca para afiar a


cana.
– Onde?

– No mato.

– E fazem o quê?

– Abordaram os meus pisteiros. Fazem-lhes perguntas sobre mim.


Devem estar a preparar alguma. Mas tu sabes como eu sou. Não me vão
pôr entre a espada e a parede.

– A que é que te referes?

– Ouvi falar de civis brancos que foram atacados por guerrilheiros.


Agora é no mato, mas há-de ser nas cidades.

– Se isto der para o torto vais-te embora? – perguntou Capelo.

– Para onde? Portugal não me diz nada.

– Mas se a situação se tornar intolerável?

– O que é que me pode acontecer? Morrer, ser morto? Então morrerei,


serei morto.

Mais do que nunca, Capelo achou que havia em Carvalho um não se


importar, uma descrença.

– Nunca mais jogaste xadrez comigo e com o Mateus – disse, para ver
como ele reagia a este tópico.

– Ainda aí tenho a taça do torneio provincial – respondeu Carvalho, no


único momento em que pareceu animar-se.
Referia-se ao torneio de xadrez de funcionários públicos e de
particulares, não federados, que abrangera toda a Angola e que ocorrera
dois anos antes. Cada cidade fornecera uma equipa de quatro jogadores;
a da Gabela era formada por Mateus, Capelo, Carvalho e Barbosa.
Segundo o que o sorteio ditava, os quatro deslocavam-se à cidade da
equipa adversária ou eram visitados por esta. Chegaram à final, contra
Luanda, que tivera lugar na capital, e venceram. Já em casa, fizeram um
minitorneio entre os quatro para saber quem ficava com a taça e
Carvalho ganhou.

– Fomos campeões de Angola – disse Carvalho, com o mesmo ar


sisudo com que falava de coisas negativas.

– E tu ficaste com a taça.

– Mas agora não sinto vontade de jogar. Ia ficar muito enervado.

Capelo deu por si a dizer uma coisa que parecia sugerida pelas
emoções latentes que intuíra em Carvalho nos minutos precedentes:

– O xadrez é um jogo para homens que têm uma violência reprimida.


– Arrependeu-se de o ter dito, mas acrescentou: – Isto deve aplicar-se
até a mim e a ti.

Carvalho fitou Capelo e assentiu com a cabeça:

– Sei lá eu as coisas que fiz quando estive nos Rangers…

Falar sobre os Rangers denunciava que Carvalho bebera demasiado.


Convencido de que combatera como Ranger, coisa que os que o
conheciam sabiam não ser verdade, dizia que só quem esteve nessa tropa
sabia o que aquilo era.

– Ouve, Carvalho, se quiseres vem passar uns tempos connosco na


fazenda. Para desanuviares. Ia fazer-te bem. Seria melhor para todos.

Carvalho nada disse. Quando Capelo anunciou que se ia embora,


Carvalho, evitando o gesto que poria em risco o seu equilíbrio, que seria
levantar-se da cadeira, pediu-lhe que trouxesse da cozinha uma garrafa
de água mineral. Pousou-a à sua frente e disse:

– Obrigado. Daqui a pouco vou precisar dela.

14

Anunciava-se aos gabelenses um baile de passagem de ano. Uns


queriam desembaraçar-se do que ficara para trás, pensando no regime
deposto; outros despediam-se apreensivos de 1974.

Era preciso enterrar os últimos meses de violência que irradiavam de


Luanda, onde atiradores furtivos semeavam o pânico e barricadas
populares travavam a passagem a quem lhes apetecesse. Os bombeiros
eram impedidos de chegar aos incêndios dos musseques por brancos em
fúria. Ambulâncias eram atacadas com garrafas de gasolina. As morgues
enchiam-se de cadáveres e aos hospitais não paravam de chegar feridos,
na sua maioria negros. O caos e a desordem favoreciam a pilhagem. Era
comum os bandidos intitularem-se do MPLA ou da FNLA para
actuarem à vontade. Os movimentos negavam responsabilidades e
condenavam o banditismo. No início de Outubro tinham rebentado duas
bombas no cinema Tivoli, pondo a plateia em pânico. No dia seguinte,
houve disparos de morteiro para a Feira Popular, onde já se tinha
descoberto um carro com granadas de bazuca. À noite, foguetes
disparados por lança-granadas caíram sobre a pista do aeroporto; um
Boeing 747 cheio de passageiros escapou porque o piloto, ao primeiro
foguete, apagou as luzes e pôs-se em movimento para descolar pouco
antes de ser atingida uma das escadas de acesso que servia o avião.

Os guerrilheiros aceitaram o cessar-fogo com as forças armadas. O


Exército desconjuntava-se: os soldados da Metrópole queriam regressar
a casa; os elementos negros exigiam a desmobilização. A tropa
desactivava quartéis e postos, mas as populações sentiam-se vulneráveis
às actividades militares, que não cessavam, do MPLA e da FNLA.

A organização do baile competia à Associação Recreativa do


Amboim. Os empresários, que queriam colaborar em tudo o que se fazia
de notável para não serem ostracizados por quem assumisse a liderança
no seu lugar, abriram os cordões à bolsa e conseguiram contratar aqueles
que eram conhecidos como os Beatles africanos, o Quinteto Carapinha,
de Luanda. Estes artistas, que já tinham editado três álbuns, despertavam
paixões nas raparigas. Um ano antes, em digressão, tinham passado pela
Gabela e todos os seus passos foram acompanhados de perto por Célia.
Quando o grupo prosseguiu em triunfo por outras cidades, Célia quis ir
atrás deles e só a proibição veemente dos pais a deteve. Mas soube-se
que trocava cartas com o vocalista do grupo.

Escandaloso, para Beatriz, foi o facto de Célia ter dado ao músico um


anel que ela lhe oferecera.

– Como pudeste dar o anel a esse indivíduo? – disse Beatriz.


– E se eu te disser que ele pode ser o John Lennon angolano?

– Desprezaste uma prenda com significado que te dei.

– O objecto e a pessoa a quem o dei são importantes para mim.

– Tu não estás capaz de saber o que é importante para ti. E para mim
era importante que tu tivesses conservado o anel.

Não passaria pela cabeça de Beatriz ir àquela festa de passagem de


ano, apesar de ter recebido um convite. Mas, quando soube que ia ser
abrilhantada pelo Quinteto Carapinha, disse a Mateus:

– Vamos ter de ir. A Célia vai de certeza.

Célia estava a namorar com Alexandre, mas Beatriz, que não sabia
disto, receava que a filha aprofundasse os laços com o músico do
Quinteto e fugisse com ele no fim da festa, na primeira madrugada do
novo ano. Célia adivinhou as intenções da mãe e pensou em descansá-la
dando-lhe a saber que já tinha um namorado, mas decidiu fazer a
revelação na própria festa.

A instalação das delegações dos movimentos de libertação e dos


quartéis de guerrilheiros mudara a Gabela. A população negra estava
mais confiante, enquanto a população branca observava com
expectativa. Isto traduzia-se em certas expressões que os brancos
trocavam entre si: «Há agora aí um ambiente alargado…» Já não havia
clubes exclusivos. Para este baile de fim de ano, onde a participação
alargada aos negros era a nota dominante, muitos brancos sentiam-se
coagidos a comparecer, com medo de passarem por reaccionários se não
o fizessem. Muitos outros acharam que não tinham de ir, porque sempre
se tinham feito festas em casas particulares e porque os brancos da
cidade e arredores, mais de dez mil, não caberiam no recinto.

Mateus e Beatriz verificaram que havia ali poucas pessoas das suas
relações. O administrador estava presente, com a mulher. O doutor
Humberto também, para confirmar a sua fama de bom dançarino. Havia
dezenas de mesas no salão. Beatriz disse mal de tudo o que viu: as
toalhas das mesas, a disposição dos talheres, os enfeites pendurados do
tecto. Mateus vinha disposto a fruir o momento da melhor maneira.

Havia um estrado com instrumentos musicais e um microfone de pé


alto. O apresentador tomou conta do microfone. Era um negro muito
alto, com um fato branco e gravata vermelha. Deu as boas-vindas e
resumiu o programa. O Quinteto Carapinha só actuaria depois da meia-
noite. Até lá, a música estaria a cargo de uma banda local que tocaria um
repertório mais convencional.

Célia apareceu com Alexandre, o qual, desde que Beatriz e Mateus o


tinham conhecido adolescente, passara por muitas metamorfoses:
traficante, prisioneiro, lutador antifascista e, o pior de tudo, namorado de
Célia. No entanto, ele era de uma família amiga e não podiam recusar
que se sentasse à sua mesa. Alexandre cumprimentou-os com uma pose
estudada. Queria mostrar que não era apenas o irmão de Mariana ou o
cunhado de Capelo, mas um homem já com experiências complexas.
Esta era a fantasia que ele queria encenar ali, diante deles, e parecia
divertido a observar como Mateus e Beatriz lidavam com isso. Beatriz
teve a certeza de que a filha escolhera aquele namorado só para a
aborrecer.

Perto da meia-noite, chegaram os elementos do Quinteto, que se


sentaram numa mesa junto ao palco. Célia disse que ia cumprimentar o
vocalista. Beatriz manteve-a no seu campo de visão enquanto ela
cruzava o salão e era recebida pelos músicos com demonstrações de
familiaridade.

Quando faltavam dois minutos para a meia-noite, o apresentador


tornou a apossar-se do microfone. As garrafas de champanhe foram
abertas. Beatriz continuava a observar Célia à distância e viu-a receber
uma taça de champanhe das mãos de Alexandre. A contagem
decrescente começou. Beatriz, fitando a filha, envolvida por Alexandre e
pelos músicos do Quinteto, pensava: «Ela podia ao menos vir para o pé
de nós durante o brinde…»

– … sete, seis, cinco…

«Por aqui se vê quais são as prioridades dela», pensava Beatriz. No


entanto, quando o apresentador ia no número «três», Célia, como se
adivinhasse que a mãe tinha os olhos cravados nas suas costas, virou-se
e, num gesto elegante, levantou a taça na direcção da mãe, e Beatriz,
levando dois segundos a reagir, levantou a sua taça no momento em que
o apresentador gritava «Zero!» A sala retumbou, e pareceu a Beatriz
que, por um instante, os olhares das duas se sustentaram um ao outro,
resistindo ao fragor geral como duas rochas diante das vagas do mar.
Aliviada, Beatriz levou a taça aos lábios.

O Quinteto Carapinha subiu ao palco e Célia e Alexandre regressaram


à mesa.

Quando já tinha passado uma hora do Ano Novo, o negro do fato


branco veio ao microfone para dizer, com afável solenidade:
– Já estamos no Ano Novo. E nova será a Angola em que vamos
viver. – E, após uma pequena pausa, acrescentou: – Mas não vai ser
como o Brasil, como alguns dizem por aí. No Brasil os brancos é que
ficaram a mandar.

À medida que o tempo ia passando, anunciou o objectivo de que todos


os casais presentes dançassem. Apontava para diversas mesas:

– Aquele casal ainda não dançou! E aquele também não!

– Há-de chegar a nossa vez… – disse Beatriz, que não queria divertir-
se.

– Aquele casal ainda não dançou!

Algumas pessoas viraram-se para a mesa de Mateus e de Beatriz,


julgando que eles iam dançar, e abriram alas para lhes darem espaço.

– Nós não queremos dançar – disse-lhes Beatriz.

– Só falta dançar aquele casal! – tornou o apresentador.

– Nós não vamos dançar – disse Beatriz mais alto.

Lá de longe, o homem ao microfone insistia:

– Toda a gente tem de dançar.

– Vamos dançar e depois vou-me embora – disse Beatriz a Mateus. –


Tu ficas aqui com a Célia. Isto ao ritmo e a mando deles não me agrada
nada.
Quando acabaram de dançar, Mateus levou Beatriz para casa. Voltou
ao baile, onde Célia dava mostras de seguir Alexandre para onde quer
que este fosse.

Gabela e Luanda, 1975

O governo de transição integrou membros dos três movimentos


independentistas e forças militares mistas. Haveria eleições para uma
Assembleia Constituinte e só concorreriam os movimentos que tinham
lutado contra o poder colonial. A independência foi marcada para o dia
11 de Novembro.

Acabara o tempo das inaugurações presididas por governadores, as


visitas de altas individualidades civis e militares enquadradas por
multidões de africanos que agitavam bandeirinhas. Era um tempo em
que se proclamava a concórdia entre os angolanos de todas as cores. A
minoria branca iria depender das boas relações com a etnia dominante.

Ainda se falava de um golpe contra-independentista para manter a


supremacia branca. Organizações extremistas aliciavam pessoas com
garantias de que idêntica revolta eclodiria em Lisboa. Já teriam uma
tropa de colonos instruídos por militares portugueses e agentes sul-
africanos, em campos de treino no Sul e no Centro. Contariam com
mercenários franceses, alemães, sul-africanos e rodesianos, em defesa
dos monopólios estrangeiros. Esta conjura, que planeava acções armadas
em Luanda e noutras cidades para interromper a descolonização, fora
desmantelada e os cabecilhas presos.

Mateus instruiu um processo em que um negro acusou um fazendeiro


de lhe ter roubado as terras muitos anos antes. A maioria dos negros
pedia a intervenção dos movimentos de independência para resolver
questões judiciais, mas este queixoso recorrera aos serviços
competentes, que costumavam tomar o partido dos brancos. Devia
dinheiro ao branco, que o obrigara a dar as terras. A dívida já era
resultado de um roubo, pois tinham-lhe sido vendidos artigos por um
valor abusivo. Mateus disse-lhe que o juiz iria decidir que as terras lhe
seriam devolvidas, porque se provara o roubo. O homem, em lágrimas,
abraçou-o, julgando que Mateus estava tão emocionado como ele
próprio.

Um segundo processo baseava-se na acusação de tráfico de diamantes


a um comerciante branco que passara por cima das normas e temperara
os crimes empresariais com donativos filantrópicos. O impensável
aconteceu: o homem foi chamado à justiça e seria preso mais tarde ou
mais cedo.

Uns meses antes, estes dois casos nem sequer seriam casos, porque se
resolveriam a contento dos europeus. Agora, a única coisa que impediria
a execução da justiça seria uma escalada de violência, uma guerra civil,
que obrigasse à debandada geral. Os que agora eram levados a tribunal
podiam esperar que a pena que lhes ia caber não chegaria a ser
cumprida, e os que eram ressarcidos pelos crimes de que tinham sido
vítimas podiam pensar nunca vir a receber o que lhes fora atribuído. O
que se decide hoje, que validade terá amanhã? Estariam ainda ali todos
no dia seguinte, o juiz, o criminoso, o subdelegado do procurador da
República, o escrivão do tribunal, o chefe da cadeia?

As contradições manifestavam-se nos actos do dia-a-dia, como em


filas no supermercado ou nas repartições públicas. Antes, a situação era
clara: o cliente branco era atendido primeiro. Agora, tudo era relativo.

Beatriz levou ao hospital um filho doente. Depois da consulta, pôs-se


no fim da fila para receber a receita médica carimbada. Havia quatro
mulheres negras à sua frente. A funcionária, assim que a viu, carimbou a
receita e disse a um contínuo negro que estava a passar nesse momento:

– Entrega isto à senhora que está ali à espera.

O contínuo pegou no papel e dirigiu-se a uma das mulheres negras da


fila, que disse que não era dela. A funcionária repetiu, olhando para o
contínuo:

– Eu disse-te para dares isso à senhora que está aí à espera.

O contínuo, atrapalhado, dirigiu-se a outra mulher negra da fila, que


respondeu também que aquilo não era para ela. A funcionária elevou a
voz:

– Rapaz… Entrega isso à única senhora que está aí à espera.

O contínuo compreendeu que era para Beatriz.


Nas aulas de Beatriz com alunos negros, em horário nocturno, falava-
se da independência e da transferência de poderes. Um aluno disse:

– Eu vou matar o Mourão.

Beatriz tentou imaginar o que teria feito o pai de Mariana e sogro de


Capelo.

– Algumas terras que ele tem deviam ser minhas. Sabe como é que o
Mourão roubou as terras do meu avô? Enterrou-o no chão, só com a
cabeça e o braço de fora, para ele assinar um documento.

Depois de um aluno começar, os outros apresentaram novos casos.


Beatriz concordava com algumas posições e repudiava outras em nome
do bem comum: a escalada de violência traria a destruição do país e
afectaria toda a gente. Os alunos disseram:

– Não se preocupe, professora. Nós a si não lhe faremos mal.

– Vocês não me fazem mal – respondeu Beatriz –, mas outros que não
estão nesta sala podem fazer-me o mal que entenderem.

Os novos tempos, de uma tão aclamada liberdade, faziam uma


exigência ética que, para Beatriz, nem brancos nem negros estariam à
altura de cumprir. Se não gostava da proximidade dos chamados «pretos
de pé descalço», também achava que os «brancos de baixa extracção»,
como lhes chamava, estavam a fazer o que lhes apetecia a coberto do
fim da opressão e da ditadura. Alguém contara a história daquela
peixeira branca do Mercado dos Lusíadas, em Luanda, que, vendendo
um peixe a uma cliente, lho entregou sem estar embrulhado num saco. A
cliente disse: «Vai dar-me o peixe sem estar embrulhado?» A peixeira
ripostou: «Embrulhe-o nas suas cuecas.» A cliente protestou: «Que
direito tem de me dizer uma coisa dessas?» A peixeira respondeu:
«Estamos ou não estamos em democracia?» Era isto a democracia, pelo
menos à maneira portuguesa, pensava Beatriz.

O abandono do quartel militar da Gabela pela companhia do Exército


que costumava estar ali sediada foi o sinal de que havia uma nova
ordem. A tropa já fazia a contagem decrescente para o dia da
independência, para todos poderem voltar para casa. Até lá, diminuíam
os efectivos. Um dia passou uma companhia de comandos na Gabela
para se abastecer de gasolina. Iam reprimir os soldados de uma outra,
que se amotinara: tinham prendido o capitão e exigido seguir para
Luanda e daí para Lisboa, porque havia destacamentos que tinham
chegado a Angola mais tarde do que eles e já estavam autorizados a
regressar, passando-lhes à frente. Alguns gabelenses reflectiram que esta
pressa dos militares em voltar para casa ia deixar os civis vulneráveis.
Diziam: «O dia da independência vai ser festejado com uma grande
matança de brancos.»

O inimigo de ontem instalava-se hoje nas cidades: os três movimentos


de independência estavam autorizados a abrir delegações. Os delegados
políticos só tinham declarações sensatas e moderadas. Preconizavam a
paz para todos. Trouxeram centenas de homens armados, que diziam ser
seguranças. Os guerrilheiros circulavam pelas ruas, vendo e dando-se a
ver. Em treze anos de guerra, nunca tinham conseguido sair do mato e as
populações urbanas não chegaram a ouvir um tiro. Agora aí estavam, à
vista de todos, como vizinhos e concidadãos, aqueles mesmos a quem o
extinto regime chamara terroristas. Os brancos sentiam-se nervosos por
verem os guerrilheiros armados por toda a parte; não sabiam quando
iriam apontar-lhes as armas e disparar.

Enquanto cada movimento oleava a sua máquina de guerra, falava-se


na criação de uma frente comum para receber os poderes soberanos.
Formavam-se multidões eufóricas. Desconfiados, como sempre, dos
impulsos das massas negras, os brancos interrogavam-se: «Se hoje
vibram com alegria, o que será se um dia reagirem com ódio e sede de
matança?» Difundiu-se a ideia de que só fugiriam de Angola os que
praticaram crimes e extorsões durante o colonialismo, e que os bons
ficariam.

Mateus participou em reuniões entre as autoridades administrativas,


encabeçadas pelo administrador Margão do Rosário, máxima autoridade
civil do concelho, e os delegados políticos e comandantes militares dos
movimentos de libertação, para a resolução dos problemas complexos
que a transferência do poder envolvia. Estas reuniões estavam previstas
pelo governo de transição. Tudo o que fosse decidido deveria ser do
conhecimento de ambos os poderes em presença: os cessantes e os
emergentes. Debatia-se a permanência dos brancos, o que fazer a
proprietários de terras acusados de explorar os negros, quem tomaria o
controlo de quê.

No edifício da Administração, Margão do Rosário recebia, na sala de


actos oficiais, pessoas que uns meses antes não se atreveriam a
franquear a porta do edifício. Ali estavam os comandantes militares dos
três movimentos de libertação, que tinham guerreado o poder que ele,
administrador de concelho, representava na Gabela. Ali estavam também
os delegados políticos, achando-se no direito de falar tanto ou mais do
que ele. Sentavam-se com todo o à-vontade, fumavam, bebiam da água
que ele mandara servir. Não vinham como convidados, mas como os
futuros donos da terra, deixando transparecer que sempre o tinham sido
e que o que se estava a fazer ali era apenas a correcção de uma injustiça
que durara séculos. Tudo neles aludia a isso, e o administrador Margão
do Rosário, cioso das suas prerrogativas hierárquicas, não se sentia nada
confortável.

Adoptara uma aparência solene e grave, que agora, mais do que


nunca, lhe ia ser útil. Tudo poderia vir a ser como eles queriam, como
Lisboa e Luanda iam determinar, mas ele teria de salvar ao menos as
aparências. Teria de manter o seu perfil e as suas prerrogativas, insígnias
de um poder prestes a extinguir-se, que devia ser respeitado até ao
último segundo. Há maneiras oficiais de fazer isto, pensava, enquanto
ouvia ou fingia ouvir a conversa que se desenrolava à sua frente e sob a
sua direcção; havia maneiras administrativas de tratar assuntos como
aquele, que era a cessação previsível das suas funções, ao nível de
concelho, mas inscrita na cessação mais vasta do fim do último Império
colonial do mundo. A vida colocara-o, logo a ele, naquela situação, filho
de um alto funcionário da Administração colonial e neto de um general
que fizera toda a carreira na África Portuguesa. Filho e neto de varões
que tinham servido o Império, ali estava ele, a transferir poderes,
assinalando o fim de um estilo de vida a que a sua família estivera
associada ao longo de três gerações. Num momento que queria rodear de
solenidade, para se defender dos olhares dos delegados e dos
comandantes militares que tinham sido, até há bem pouco tempo, o
inimigo, vinham-lhe à mente as imagens do pai e do avô, os seus retratos
oficiais que chegaram a estar pendurados em salas nobres de repartições
públicas e de quartéis, em vários locais de Angola. Pensava nessas
efígies e que, se a situação se tornasse insustentável e ele tivesse de ir
para Portugal, levaria esses retratos na bagagem, como coisas valiosas
acima de todas. «E para quê preservar os retratos do meu pai e do meu
avô?», dizia para si mesmo. «E as condecorações do meu pai, e a espada
do meu avô? Um filho ou um neto, quando eu morrer, vende aquilo na
Feira da Ladra, em Lisboa. O chão da Feira da Ladra, eis aonde tudo
isso irá parar. E alguém os comprará só por causa da moldura. Trabalha-
se, batalha-se tanto, em prol da dignidade dos nossos actos e das nossas
vidas, e depois um neto vende tudo na Feira da Ladra. Que se dane. Já
estarei morto nessa altura…»

– O que é que lhe parece, senhor administrador?

A pergunta do chefe da Polícia, Veloso, apanhou-o distraído. Ocultou


a sua atrapalhação; não podia dar a saber que não estivera a ouvir, olhou
bem para a cara do chefe da Polícia como se pudesse ler nela a questão
que vinha sendo debatida. Todos esperavam a resposta do administrador,
que se endireitou na cadeira e disse, com solenidade:

– Essa… essa é uma questão delicada.

– Pois é – concordou o delegado da UNITA. – Ou acabamos com os


postos de controlo, ou formamos forças mistas dos três movimentos de
independência em cada posto. O que é que o senhor administrador acha?

Margão do Rosário pôs um ar autoconfiante, de quem sabia muito


bem o que achava mas que entendia devolver, para já, a pergunta à
mesa:
– Ora o que nos diz acerca disto o senhor delegado da FNLA?

O interpelado reagiu:

– O que eu sei é que não se pode continuar a tolerar o que está a


acontecer nas ruas da Gabela: os soldados de cada movimento
improvisam postos à revelia dos comandantes, para fiscalizar armas
escondidas, mas que mais não são do que um pretexto para chantagear
os civis e lhes sacar dinheiro e valores. Há muitas queixas da população.

– O melhor será cada movimento ter a sua zona de influência – disse o


representante do MPLA. – Vejamos: é impossível manter dentro dos
quartéis os soldados, homens habituados à acção, há que dar-lhes campo
para actuarem, para exercitarem a sua ânsia de actividade. Cada
movimento deve manter-se na sua zona de influência para evitar
choques ou conflitos entre os três movimentos que, bem vistas as coisas,
querem todos o mesmo, uma Angola livre, pela qual se bateram e
lutaram.

– Está aqui um mapa da Gabela – disse o chefe da Polícia,


desdobrando um cartaz sobre a mesa. – O que é que acha, senhor
administrador, de desenharmos as três zonas de influência?

O chefe da Polícia era um funcionário zeloso, que não regateava


demonstrações de respeito em intenção do administrador, mas, naquele
momento, este odiou-o por se ver novamente interpelado. Pigarreou,
como se fosse dar a resposta que esperavam dele, que mostrasse o que
pensava, quer concordasse, quer discordasse, mas em vez disso desviou
uma vez mais a pergunta, agora para Mateus:
– Ora bem, Mateus, o que é que diz disto? Desenhamos… hã… as três
zonas de influência?

Mateus ficou surpreendido: o administrador garantira-lhe que o


convocava para aquelas reuniões por mera formalidade, para fazer
número. Recuperado da surpresa, disse o que achava:

– Dividir a Gabela em três parece-me um exagero. Fala-se numa


balcanização de Angola, se os movimentos não se entenderem. Mas do
que se está a tratar aqui é de uma coisa mais ridícula, a balcanização de
uma pequena cidade.

Encorajado por estas palavras, o delegado da UNITA quis ser


cáustico:

– Três campos de recreio, para os soldados poderem brincar, porque


dentro dos quartéis aborrecem-se muito.

– No fundo vamos legitimar a prepotência – juntou Mateus –, não pôr-


lhe um fim.

Todos olharam para o administrador, uns com ar de desafio, outros de


deferência. Pressionado outra vez pelos olhares e pelos silêncios, o
administrador, tão preocupado em ser solene que se esqueceu de franzir
o sobrolho, coisa que planeara fazer, disse:

– Balcanização, ora bem, aí é que bate o ponto.

Percebia que a sua postura protocolar não causava o efeito desejado,


que era inibir os homens dos movimentos. Levavam a água ao seu
moinho e acabavam por obter o que já tinham decidido antes de
entrarem na sala. Receando perder o respeito se propusesse soluções que
depois seriam mal sucedidas, caindo sobre ele o opróbrio do falhanço,
decidira não ter a última palavra sobre nada, mas tentar um consenso
entre as partes comprometendo-as a elas mais do que a si mesmo.
Quando a questão discutida pedia uma posição da sua parte, o
administrador, dando a entender que sabia mais do que todos e que
estava prestes a demonstrá-lo, devolvia a pergunta na forma de uma
dúvida ou de algo tão vago como «Sim, essa é que é a questão», ou
«Mas aí mesmo é que bate o ponto», conseguindo gerar uma nova
rodada de opiniões, acabando por surgir mais uma ideia que salvava a
situação sem ter ele precisado de dizer a coisa definitiva. Evitava assim
comprometer o seu nome e a sua pessoa na determinação final. Queria
ter margem de manobra para, caso as coisas corressem mal, poder dizer:
«Meus senhores, eu bem avisei.»

Nas semanas seguintes, os três movimentos rivais veriam agravadas as


discórdias. As reuniões com as autoridades administrativas deixaram de
se fazer. A situação descarrilou e os acontecimentos precipitaram-se.

As delegações dos movimentos de independência começaram por não


hostilizar os brancos, que pensavam que o governo de transição
asseguraria a ordem. Cada vez mais africanos recorriam aos movimentos
e faziam queixas contra brancos que lhes tinham roubado terras ou lhes
pagavam mal. Na Gabela, alguns proprietários foram interrogados; eram
acusados de serem colonialistas e exploradores, podiam ouvir frases
como: «Vai perder as suas terras… Vai ter de pagar mais…»
Ao longo dos meses, Alexandre foi estabelecendo alianças no interior
do MPLA. Intitulava-se vítima do fascismo, condenado ao degredo do
Campo de São Nicolau pelos colonialistas. Sabia persuadir: muitos
correligionários já o viam com um largo futuro. Ascendeu dentro do
partido, chamou antigos companheiros de farras e foi visto a fazer
rondas pela Gabela, acompanhado por homens armados.

O que não contou a ninguém, nem mesmo a Célia, foi o seu plano de
desalojar Capelo das fazendas de café. Se ele, Alexandre, era favorecido
pelas voltas da fortuna, Capelo, que fizera a trajectória oposta, de militar
colonial a fazendeiro opulento, tinha de cair. Alexandre recusara
integrar-se na estrutura de trabalho proposta por Capelo, fora humilhado,
mas tinha cada vez mais poder para derrubar o cunhado e se apoderar
das propriedades do pai. Alguns militantes do MPLA já estavam a
apropriar-se de empresas em nome do povo angolano e Alexandre
queria fazer o mesmo.

Para apalpar terreno, foi visitar o pai outra vez. Levou os homens
armados que o seguiam para todo o lado e que apresentava como seus
guarda-costas. Estes ficaram à porta e ele entrou.

Mariana mostrou-se contente por vê-lo, o que se devia mais à


recordação que tinha do irmão, criado debaixo do mesmo tecto, do que
ao dirigente político que dava ares de regressar à casa de família como
um conquistador arrogante. Levaram-no a ver Mourão. Apático,
confinado a um escritório onde queria estar sempre mas onde não fazia
nada, este reagiu com um sorriso vago. Alexandre julgou que ele o
reconhecera, mas Mariana disse que tinha o mesmo olhar e o mesmo
sorriso em todas as situações.
– Sabes que o teu pai já não conduz os negócios há muito tempo –
disse Capelo quando regressaram à sala. – Nós é que temos a
responsabilidade por tudo. Quais são as tuas intenções?

– Intenções? – Alexandre simulou surpresa: – Ainda não me sentei e


já me perguntas quais são as minhas intenções? Até parece que não sou
da família.

– Sei que vens aqui com um propósito. O que é que tu queres,


Alexandre? Julgas que te cabe uma parte da herança?

– Falas das minhas intenções, do meu propósito, tens a


responsabilidade do teu lado… Eu é que pergunto: o que é que tu
queres?

– Convém que sejas homem para falares claramente – disse Capelo. –


Andas com guerrilheiros, fazes rondas pela Gabela, embora nunca
sozinho, exibes as insígnias do teu partido. Quem vem visitar a família
não traz guarda-costas. Sê frontal e directo. O que é que vens aqui
farejar?

Capelo e Mariana olhavam para ele. Alexandre forjou uma expressão


de indiferença e disse:

– Falas em heranças e em leis, mas já nada disso conta. Acabaram as


leis colonialistas. Aviso-vos de que o MPLA vai tomar conta da Gabela
e vai nacionalizar as empresas e as fazendas. Haverá saneamentos.

– Vieste avisar-nos? Estás preocupado connosco?

– Não sei se irão procurar o apoio da FNLA. Aviso-vos que é inútil.


– Obrigado por esses avisos. Mas acho que estamos a ver mais do que
tu julgas. Queres ficar com tudo, não é?

– As nacionalizações…

– Quero lá saber das nacionalizações! – cortou Capelo. – Estás ansioso


por lançar mão a tudo o que o teu pai construiu e eu continuei. Eu
contava contigo, mas não quiseste, lembras-te? Querias farra e diversão.
Agora vens com patranhas políticas para conseguires de uma assentada
o que nunca conseguirias de outra forma.

– Vocês pensam como colonialistas e eu estou muitos anos à vossa


frente.

– Aprendeste isso na prisão, onde estiveste por proxenetismo?

Alexandre cerrou os dentes com raiva. Orgulhava-se de ter sido


traficante de armas, porque transformara isso em luta antifascista, mas
não tinha justificação tão fácil para a acusação de proxenetismo. Elevou
a voz:

– Vou ajustar contas com os reaccionários e exploradores


colonialistas.

– Não somos sangue do mesmo sangue? – perguntou Mariana.

– Ah, agora somos sangue do mesmo sangue! – disse Alexandre. –


Dantes éramos só meios-irmãos. Havia sempre alguém que fazia questão
de o lembrar.

– Eu não – tornou Mariana. – Devia importar-te o que eu dizia.


– Éramos sangue do mesmo sangue quando me deixaram prender?

– Tu é que te portaste mal – respondeu Mariana. – Tentámos proteger-


te. O que é que nos faltou fazer? Subornar os juízes, o governador-geral?

– Sim, faltou isso mesmo. Agora não vou ter de depender de vocês.
Isto vai tudo parar-me às mãos e hei-de ver-vos presos, como me viram
a mim. – Virou-se para Capelo e acrescentou: – Hei-de ver-vos a
rastejar.

– Então, isto vai ser nacionalizado ou vai ser teu? – perguntou Capelo,
de chofre.

– É a mesma coisa – disse Alexandre, com cólera fria. – Vocês


expulsaram-me daqui. Quiseram eliminar-me para ficarem com tudo.

– Para te vingares de nós – disse Capelo, ignorando o que ele acabara


de dizer – queres passar por herói da revolução e nacionalizar tudo, ou
seja, os nossos bens particulares, porque se seguisses a lei não te caberia
nada. Aproveitas as mudanças políticas para resolveres uma questão
pessoal.

– E tu? – reagiu Alexandre. – Não aproveitaste bem? Vieste para


Angola armado, com muito mais armas do que eu tenho agora, mataste
pretos na guerrilha, violaste ou viste violar pretas, incendiaste aldeias,
ganhavas um salário para fazeres isso tudo, para manteres a exploração
dos africanos, depois foste desmobilizado e conheceste aqui uma
herdeira apetitosa e continuaste a explorar o preto contratado, pouco
mais do que um escravo, para ficares rico à custa dele. Foste oportunista
ou não? Aproveitaste bem, hã, meu querido cunhado?
Capelo cerrou os punhos e avançou para Alexandre.

– Tu não sabes o que é que eu fiz na guerra. Não sabes como é que me
comportei. Se tornas a aludir a isso, vou dar-te boas razões para te
arrependeres de teres cá vindo.

Alexandre decidiu que não ia aludir à guerra. Para não parecer que
tinha medo do cunhado, gritou:

– Eu sou mais oportunista do que vocês são? Do que o meu pai foi?

– Vê se entendes uma coisa, idiota – disse Capelo. – O oportunismo


do teu pai foi o que te permitiu vir a este mundo. Não existirias se ele
não tivesse tido a vida que teve. É parte da tua história. É massa do teu
sangue, e devias ao menos respeitar a memória dele. Mas enfim… és
uma maçã podre.

– Sou uma maçã podre porquê? Por ser mulato?

– Ser mulato não tem sido uma desvantagem para ti. Apoiaste-te na
tua metade branca para cavalgares a onda colonialista, agora apoias-te
na tua metade negra para cavalgares a onda independentista. É assim,
não é?

– Pois, pois é – disse Alexandre.

– Vês, Mariana? Conhecemos bem a peça. Vieste aqui ameaçar-nos?


Não temos medo de um pobre coitado como tu.

– Eu vou mostrar-vos quem é o pobre coitado. Não falta muito.

– Os tempos são favoráveis para cobardes como tu. Não queres saber
das nacionalizações, dos saneamentos, da justiça para todos. O que tu
queres é ajustar contas pessoais. Se o MPLA ganhar, não tenho dúvidas
de que vais ser um figurão neste país. Nas revoluções há sempre umas
criaturinhas como tu que ascendem aos mais altos cargos. Agora
desanda daqui.

– Ainda não acabámos.

– Eu é que decido isso. E já decidi que acabámos. Desanda.

Como Alexandre não se mexesse, Capelo avançou para ele e


empurrou-o. Alexandre resistiu e Capelo deu-lhe um empurrão mais
forte. Mariana gritou.

– Vais sair agora – disse Capelo, obrigando-o a recuar. – Só há uma


maneira de não desandares já daqui, é dizeres aos teus guarda-costas
para me darem um tiro. Porque, se não o fizeres, vais desaparecer já.
Pelo teu próprio pé, ou eu corro-te a pontapé.

Incapaz de subjugar Capelo, Alexandre saiu para que os guarda-costas


não o vissem a ser escorraçado. Não estava seguro da sua posição no
MPLA para consumar a vingança. Mas jurou que iria dar o máximo de
si para ascender no partido e destruir Capelo.

A casa de Mateus e Beatriz, na periferia da cidade, ficava a cinquenta


metros da delegação da FNLA. Era frequente os guerrilheiros passarem
em formação militar, animados por cânticos guerreiros. Uma vez,
quando Beatriz ia a caminho da escola, para uma aula nocturna, viu no
escuro um pelotão de trinta guerrilheiros grandalhões a subir a rua, na
direcção oposta à sua, num tropel bélico, gritando palavras de ordem
assustadoras. Pensou em encostar-se à sebe, mas decidiu voltar para trás,
tendo de correr vários metros à frente deles e reentrando em casa a
correr. Os filhos mais velhos riram-se muito com o sucedido.

Esta vizinhança com a FNLA gerava vários incidentes. Ana, então


com onze anos, sempre que ouvia a aproximação desses pelotões em
exercício que faziam estremecer os vidros das janelas, corria para a sua
bicicleta e ia posicionar-se num ponto estratégico, de onde os via passar,
e gritava-lhes:

– Viva a UNITA! Viva o MPLA!

Alguém da FNLA faz chegar a Beatriz um recado pela criada Julieta:

– Senhora, cuidado com a menina Ana… Quando ela vê passar os


homens da FNLA diz: «Viva a UNITA! Viva o MPLA!»

Depois, foi um dos guerrilheiros que, cruzando-se com Beatriz, lhe


disse:

– Cuidado com a sua menina. Eu não lhe vou fazer mal, mas um dos
meus colegas pode dar-lhe um tiro.

Beatriz proibiu Ana de ir para a rua gritar vivas aos movimentos. As


crianças sujeitavam-se aos mesmos perigos dos adultos. Vieram dizer a
Beatriz que três crianças, por cuja falta se dera na escola, estavam
retidas na delegação da FNLA, porque tinham estado a espreitar lá para
dentro e a fazer troça. Beatriz foi à delegação decidida a resgatar as
crianças. Encontrou-as sentadas na sala de entrada, como se estivessem
de castigo. A um delegado que veio ao seu encontro, disse:

– Eu vou levar estas crianças, o lugar delas não é aqui.

– Elas estão de castigo.

– Eu ponho-as de castigo na escola. São crianças, não devem estar


aqui.

– Tenho ordens para vigiar estas crianças…

– Se quiser, faça queixa de mim. Mas eu vou levá-las para a escola.

Um outro delegado espreitou por uma porta interior e disse ao colega:

– Deixa estar, deixa-as ir.

Viam-se homens amarrados a serem levados para dentro da delegação


da FNLA, ou metidos dentro de carros. Ana e João disseram que tinham
passado diante da porta aberta da delegação e viram pessoas a serem
torturadas lá dentro. Ana ultrapassou o irmão na precisão do seu
testemunho e descreveu um negro pendurado do tecto por cordas e uma
poça de sangue no chão. Sílvia viu um jipe a arrastar pela estrada um
negro atado à parte traseira do veículo.

Amigos da família vieram contar a Beatriz que tinham visto uma


camioneta diante da delegação da FNLA a descarregar negros
amarrados, em resultado de rusgas que o movimento fazia nas sanzalas
para recrutar soldados à força. Célia estava à porta a fumar e a lançar
baforadas de fumo para o ar. Interpretaram essas baforadas de fumo
como insolência e cumplicidade.
Black, o pastor alemão de Mateus, ladrava aos elementos da FNLA
que se aproximassem do portão. Um dos elementos da delegação
interpelou Mateus. Perguntou, de chofre:

– Porque é que o seu cão está sempre a ladrar para nós?

– Ele ladra a qualquer desconhecido – disse Mateus, afagando Black,


que viera saltar-lhe às pernas.

– Parece que ele não gosta de nós…

– É inofensivo – garantiu Mateus.

O homem suavizou o tom e perguntou de que raça era o cão e teceu


algumas considerações gerais sobre cães. À despedida disse:

– Tem de ter cuidado com esse cão.

Julieta, em quem Beatriz depositava confiança total, escorraçava os


guerrilheiros da FNLA quando eles batiam no portão e pediam água.
Gritava:

– Aqui não há água para vocês, vão-se embora!

E os homens obedeciam, espantados com a firmeza daquela negra


grande e de voz estrondosa.

Em toda a Gabela e arredores se soube. Elisa, a mulher de Carvalho,


fora assassinada pelo marido. Mateus, como subdelegado do procurador
da República, foi informado pela Polícia de manhã cedo. De madrugada,
Carvalho telefonara para a esquadra:

– Matei a minha mulher. A minha filha está a dormir no quarto ao


lado. Tranquei à chave a porta do quarto da minha mulher para que a
criança não entre lá quando acordar. A chave está em cima da moldura
da porta.

A Polícia entrou na casa e abriu a porta do quarto. O cadáver estava


deitado na cama, com uma faca de mato espetada no coração. Podia
presumir-se que a morte ocorrera durante o sono. Levaram dali a
pequena Carolina; ficaria com os polícias, aguardando a chegada de
familiares.

Foram interrogados alguns vizinhos, que alegaram ser frequente a


entrada de homens na casa durante as ausências do marido.

Os vizinhos também contaram que os guerrilheiros de um dos


movimentos tinham entrado em casa de Carvalho, a quem acusaram de
fazer sair património angolano para fora do país; apreenderam todas as
armas de fogo que encontraram e levaram vários troféus de caça. Nas
últimas semanas, despojado dos seus utensílios de trabalho, impedido de
ir para o mato, Carvalho andava agitado e bebia mais.

O doutor Humberto, notificado por Mateus para fazer a autópsia,


disse:

– O gajo soube fazer a coisa. Um único golpe certeiro, no coração.

Ninguém sabia onde estava Carvalho.


Mariana veio das suas fazendas para reconhecer o cadáver da irmã. E
depois, ao levar para sua casa a sobrinha, julgou reconhecer em Carolina
a beleza fria da mãe.

Capelo também viera e, ao encarar a morta, não pensou nesta, mas no


seu próprio passado com Carvalho. Tomado por um sentido fatalista,
achou que tudo o que testemunhara sobre Carvalho conduzia àquela
mulher deitada na cama com uma faca espetada no peito. Lembrou-se de
que quando a companhia se dirigia para a Gabela, para aí descansar um
mês, Carvalho descarregara por acidente um cartucho da metralhadora
que quase atingira Capelo. Nunca os dois tinham pensado estabelecer-se
em Angola.

Mateus teve de instruir um processo, que, de seguida, enviou para


Novo Redondo, já que o caso ultrapassava as competências de um
julgado municipal.

Passados dois dias, a carrinha de Carvalho foi vista junto à ponte da


cascata, na estrada para Novo Redondo, no sítio onde os crocodilos
apanhavam banhos de sol. Trazidos pela corrente para as margens,
viram-se restos despedaçados de um corpo humano e roupas, que foram
atribuídos a Carvalho. Presumiu-se que entrara no rio para se afogar ou
ser devorado pelos crocodilos.

Capelo, a quem Mateus contou estes achados, viu neles um impulso


expressivo: o caçador entregara-se à sucessão de actos de devoração
mútua que compõem a Natureza. Onde alguns só viam horror, ele
reconhecia a decência com que Carvalho vivera. Uma ou outra voz
levantou-se para dizer que o assassino era um bicho-do-mato, um
caçador sanguinário, um homem violento, um ex-combatente com
traumas de guerra, um bêbado. Capelo achava que ele tinha sido uma
das pessoas com melhor carácter que conhecera. A prova disso era que
não se alterava mesmo quando embriagado, tendo apenas um pouco
mais de dificuldade em levantar-se da mesa. A mesma decência básica
que o levara a matar da maneira como o fizera, uma facada no coração
da vítima, sem a acordar sequer, e a poupar a filha à visão do cadáver da
mãe. O mesmo carácter robusto e fiável que o levara a entregar o corpo
à Natureza selvagem que ele conhecia tão bem. Mas os outros só viam
loucura e tragédia. E agora, quando se vivia em convulsão política e
social e não se sabia o dia de amanhã, Carvalho estava morto.

O enterro de Elisa foi o último funeral de um branco realizado na


Gabela.

Nos intervalos do seu namoro com Célia, Alexandre tentava dar aos
camaradas do partido a impressão de poder reivindicar muitas coisas e
fazer muito barulho, agora que o ruído e a retórica política se
confundiam. A sua meta era um dia entrar na fazenda do próprio pai, à
cabeça de uma coluna de guerrilheiros, e expulsar de lá Capelo. No
entanto, ainda não estava ao seu alcance mobilizar guerrilheiros. Só o
deixavam fazer propaganda política, quando o que Alexandre queria era
ter poder para meter medo e fazer o que quisesse. A sua ascensão estava
a ser mais lenta do que previra, por causa do comandante Inabalável,
apontado pelo MPLA como herói da luta de libertação, que liderava a
secção militar do partido. O passado de lutador antifascista e de vítima
do colonialismo, que Alexandre forjara para si próprio, não despertara o
mínimo interesse por parte do comandante. Diante deste, e tendo de
enfrentar a sua expressão impenetrável, que enervava um bocado porque
ninguém sabia o que é que ele estava a pensar, Alexandre sentia-se
desmascarado. O comandante parecia já o ter avaliado e não contar com
ele para grandes voos. Enquanto não conquistasse a sua estima pessoal,
não conseguiria fazer nada do que ambicionava.

Alguns quadros do partido, a coberto da luta política, mobilizavam


guerrilheiros, tidos como seus guarda-costas, para praticar extorsões e
alcançar benefícios pessoais. Alexandre tentava agora associar-se a eles.
Desta forma, amedrontavam indivíduos, acusando-os de serem
exploradores dos negros, apenas para os afugentarem da Gabela e
ficarem com as suas casas e todo o recheio. À medida que mais brancos
se iam embora, os delegados políticos faziam uma corrida para ocupar
as melhores casas e Alexandre queria fazer o mesmo.

Um amigo, vendo-o tão bem sucedido nestas acções, pediu a sua


ajuda. Queria vingar-se de uma antiga namorada que o rejeitara. Desta
vez, Alexandre pediu emprestados alguns guerrilheiros e, juntando-se ao
amigo, pararam diante da porta da vítima. Irromperam pela casa e
prenderam toda a família, menos a vítima principal, que foi deixada
sozinha. A acusação baseava-se no facto de o pai dela, um ferroviário
reformado, ter recrutado negros à força, muitos anos antes, sendo por
isso um explorador dos africanos que tinha de ser interrogado. Por que
razão levavam presos o marido e a mãe, eis o que a rapariga só
compreendeu quando os guerrilheiros se foram embora com eles e, de
um carro estacionado na rua, saiu o ex-namorado que ela rejeitara tantos
anos antes. Na rua, Alexandre e dois guarda-costas aguardaram.
O homem trancou-se lá dentro. Ela compreendeu o ajuste de contas
que ele vinha fazer. De nada lhe valeu dizer que estava grávida. Quando
acabou de a violar, o amigo de Alexandre entregou-a aos apetites dos
guarda-costas e foi esperar no carro, recebendo um cigarro das mãos de
Alexandre.

Os vizinhos espreitaram pelas frinchas das janelas e adivinharam o


que estava a acontecer. Assistiram à partida dos homens e foram
averiguar o que se passara dentro de casa. A mulher estava desmaiada,
com as roupas rasgadas, a sangrar. No hospital, abortou o feto.

Soube-se do caso em toda a Gabela e as pessoas diziam que isto era só


o começo do que iria acontecer em todas as casas. Repetiram-se as
expressões já consagradas: «selvajaria», «vão matar todos os homens e
violar todas as mulheres», «não vão deixar pedra sobre pedra».

Os pais e o marido da vítima, entretanto soltos, apresentaram uma


queixa na delegação do MPLA. Os delegados lastimaram o sucedido e
concluíram: «O caso foi mau, mas aos pretos fizeram-se essas coisas e
outras muito piores.»

O comandante Inabalável chamou Alexandre. Retirou-lhe o apoio de


todos os camaradas, que não ousariam contrariar uma ordem sua.
Declarou que a acção de Alexandre lesava os interesses do MPLA e
expulsou-o do movimento. Isto aumentou a fama do comandante entre
os gabelenses. Era voz corrente que se podia falar com ele, mas não se
podia abusar da sua paciência. Talvez nunca explodisse, mas a
impressão de que a explosão era iminente infundia respeito.

Alexandre, sem a solidariedade de ninguém, teve de se afastar. Não


podia abdicar do sonho de ter poder na região onde nascera, de ser o
cacique da terra e consumar a vingança sobre Capelo. Só lhe restava
uma hipótese: investir no maior rival do MPLA. Ofereceu os seus
serviços aos homens da FNLA e convenceu-os de que tinha informações
sobre as intenções e as ligações secretas do MPLA.

Tinha de se justificar diante de Célia. Omitiu alguns factos, exagerou


outros, avisou-a para não acreditar nas calúnias que pessoas invejosas
andavam a contar sobre ele.

– Aborreci-me com o MPLA – disse. – É um movimento inexpressivo,


se tivermos em conta a grande massa popular angolana.

– Mas disseste que estavas lá de pedra e cal – objectou Célia.

– Percebi que aquilo é um partido de intelectuais aportuguesados. A


FNLA está com as massas populares, tem uma grande disseminação fora
dos meios urbanos. O Holden Roberto é que foi o grande adversário do
colonialismo, desde o primeiro minuto. Eu tenho de estar onde está a
verdade do povo. E digo-te mais, Célia… Gostava que te juntasses a
mim na FNLA.

– Como?

– Já lhes falei de ti. Podes ser delegada política. Não queres estar
comigo e com o movimento que mais fez pela libertação do nosso povo?

– Sim – disse Célia, como uma noiva comovida num casamento.

– A tua mãe já não gosta de mim, imagina quando souber que te levei
para a FNLA.
Célia riu-se:

– A minha mãe não gosta da FNLA, mas de ti gosta ainda menos.

Alexandre guardou para si mesmo o desejo de uma guerra entre o


MPLA e a FNLA na Gabela, apostando tudo na vitória da FNLA. Já não
seriam as nacionalizações e os saneamentos que lhe dariam o controlo
de bens e propriedades, mas uma guerra que queimasse tudo e lhe
permitisse assenhorear-se das ruínas.

Célia acordou bem-disposta, como sempre. Tinha de se despachar para


não chegar atrasada à escola. Pouco depois de dar os primeiros passos
no quarto, a porta abriu-se e entrou Sílvia, que devia ter estado à espera
no corredor. Célia sentiu um ligeiro enfado. Andava absorvida por
coisas mais interessantes do que ser o modelo de imitação da irmã.
Sílvia não descansou enquanto não lhe disse que tinha um namorado e
vinha fazer-lhe novas confidências, pedir conselhos.

– Olha – disse Sílvia, em voz baixa, o que não era necessário mas
reforçava o ambiente de segredo que buscava –, já demos o primeiro
beijo.

Célia arrumava a cama, mas olhou para ela. Tinha de ser paciente com
a irmã, dedicar-lhe alguns minutos, apesar de tudo.

– E que tal? – perguntou.

– Não sabia o que fazer com as mãos – disse Sílvia.


Célia tornou a olhar para ela e pressentiu algo mais do que a
puerilidade do primeiro namoro. Havia qualquer coisa de fundamental
naquele embaraço de Sílvia. Disse:

– Esse é o problema de todas nós… Ninguém sabe onde pôr as mãos.

Célia abriu o guarda-fatos e Sílvia, atrás dela, espreitou, embora


conhecesse bem o seu interior. Célia sentou-se diante do espelho e
apalpou as coisas em cima da mesa, sem encontrar o que queria.

– Onde é que está o meu bâton carmim? Andas a mexer nas coisas.

– Aqui – disse Sílvia, retirando-o do meio de outros objectos.

Assistir à maquilhagem de Célia, saber melhor do que ela onde


estavam as suas coisas, aproximava-a da irmã mais velha e afastava-a
das birras com a irmã mais nova.

– Vais usar missangas? – perguntou Sílvia.

Arrastou a cadeira para se sentar ao lado de Célia e pôs-se a mexer na


caixa que continha pulseiras e fios de missangas.

Célia preferia poder arranjar-se sozinha, pela manhã, diante do seu


espelho, sem a assistência bajuladora de Sílvia.

– Deixa-me escolher – disse Sílvia. – Olha, usa estes.

– Está bem, dá cá…

– Emprestas-me a cassete do Roberto Carlos? Tu já quase não a ouves.


Num passado não muito distante, Célia ouvia tanto aquela música,
com o som tão alto, que um dia Beatriz, exasperada, depois de muito lhe
dizer para baixar o som, atirara o leitor de cassetes pela janela e ele
espatifara-se no chão do quintal. No meio dos bocados de plástico e
metal, continuara a ouvir-se, sem alterações, uma voz imortal:

Só quero que você

Me aqueça nesse Inverno

E que tudo o mais vá pro Inferno…

E agora que o seu interesse por Roberto Carlos esmorecera, eis que
ascendia o interesse de Sílvia, desejosa de a imitar. Sílvia que ficasse
com a música romântica e com tudo o que ela representava. Célia tinha
conquistado outras coisas, entre as quais se destacavam a política e a sua
recente filiação na FNLA.

Os alunos de Francês do liceu receberam-na com curiosidade, porque


vinha substituir a professora Teresa, que lhes apontara um revólver e
fugira com o padre Joaquim. Célia, que sempre triunfara nas provas da
sociabilidade, tinha-se adaptado bem. Ora aparecia com roupas
europeias, ora usava panos africanos, merecendo a alcunha de Lady
Africa que os alunos lhe puseram. Roupas «difíceis», dissera um aluno
negro. O ambiente nas escolas era de euforia política. Os professores
mais novos associavam-se ao entusiasmo da juventude estudantil, que
fervilhava com ideias progressistas e se insurgia contra o programa
escolar. Era absurdo ensinar as quatro estações da região temperada,
quando em África havia apenas a estação seca e a estação das chuvas;
decorar a rede ferroviária e os rios e afluentes da Metrópole; repisar as
dinastias portuguesas e os feitos dos navegadores que conduziram ao
colonialismo. Célia e os colegas achavam que se deveria ensinar a
História de Angola numa perspectiva africana, que contaria a violência
da opressão colonial e os actos de resistência dos nativos ao longo dos
séculos. Era preciso resgatar os heróis angolanos. Pensaram em
entrevistar velhos nas sanzalas.

A adesão de Célia à FNLA era um sinal de que já pensava pela própria


cabeça e podia fazer coisas afastadas da mentalidade dos pais. Beatriz
acusava-a de se ter filiado na FNLA só para se lhe opor, por conhecer a
sua aversão a este movimento. Célia defendia-se dizendo que nem tudo
o que fazia era para se opor à mãe. Tornou-se mandatária para a
juventude na Gabela: angariava novos membros, falava para os jovens
nos comícios, organizava programas para a juventude.

Para além de Alexandre, havia outra razão para Célia não se


arrepender de se ter filiado na FNLA: a atracção que sentia pela figura
do seu líder histórico, Holden Roberto, o seu aspecto físico, os traços de
carácter, a lenda que o rodeava. Teria dificuldade em explicar à mãe que
o que mais a atraía em Holden Roberto não eram os ideais políticos, mas
sim a sua figura: aquele rosto que parecia esculpido em ébano por um
artesão africano, aquele ar misterioso, de máscara, aqueles óculos
escuros que ele usava sempre ao ponto de não se saber se seria cego.
Célia estava disposta a atribuir-lhe poderes de hipnotizador. Não podia
negar, para si mesma, outras coisas que o tornavam atraente: o facto de
ter estado envolvido numa acção tão violenta, os ataques de 1961 no
Norte, e o ascetismo que lhe atribuíam. Os delegados da FNLA diziam
que Holden Roberto, que recebera uma educação moralista, ficara
traumatizado com a dimensão dos massacres e se transformara. A
estatura moral do líder ganhou, aos olhos de Célia, um vulto ainda
maior. Este contraste entre brutalidade e ascetismo era irresistível.

A mãe falava-lhe do mandante sanguinário dos massacres de 1961, um


tribalista feroz e sem escrúpulos, sequioso de sangue e de poder, que só
seria feliz quando fosse o chefe máximo de um regime de terror.

– Se o teu pai estivesse no Norte, em 1961, quando estava no quadro


administrativo, eu, ele, tu e a Sílvia, que era bebé, podíamos ter sido
mortos.

– Mas isso não aconteceu. A vida decorreu de outra maneira.

– Admiras aquele que podia ter sido o assassino da tua família.

– Mas não foi.

– A FNLA é a UPA travestida – insistia Beatriz. – Tu andas com gente


que matou famílias inteiras à catanada. Eras criança quando aqueles
massacres aconteceram, mas agora já tens idade para perceber.

– A mim interessa-me o que a FNLA é hoje e vai ser amanhã.

– Queres passar uma borracha sobre a História, é isso?

– Não quero passar uma borracha, quero é viver a História de hoje.

Noutra ocasião, tentando convencer a mãe de que a FNLA já nada


tinha a ver com a UPA, Célia falou da faceta ascética do líder. Beatriz,
com um enfado que desqualificava as mais caras convicções da filha,
disse:
– Isso não passa de propaganda para limparem o nome dele. Não
acredito no ascetismo desse homem. Acredito que não seja um canibal,
mas asceta é que ele não é.

– Como é que podes ter a certeza? Não o conheces.

– Não preciso conhecer para saber de que estofo é feito.

– Eu preferia conhecê-lo pessoalmente para saber como é.

– Mas tu és tu, e eu sou eu.

Era o remate perfeito à conversa e, de certa forma, autorizava Célia a


ter as opiniões que tinha. Continuaria a indignar-se com o facto de a mãe
formular juízos definitivos sobre as pessoas sem as conhecer. A mãe
continuaria a fazer-lhe a crítica correspondente: a de aceitar tudo o que
lhe contavam. Esta luta não tinha fim.

Célia sabia que a mãe simpatizava com o MPLA. Achava a mãe


progressista nas ideias e conservadora na personalidade. Beatriz dizia-
lhe:

– Quem tiver o poder vai perseguir os outros. O maior inimigo do


preto…

– … é o próprio preto – completou Célia. – Eu sei que tu costumas


dizer isso. E o branco? O maior inimigo do branco não é o próprio
branco?

– É diferente.

– Quantas guerras já houve na Europa? Guerras mundiais, até. Mas


como há brancos em toda a parte, as guerras dos brancos têm de se
alastrar para o mundo inteiro. Os pretos só saíram daqui como escravos.
Não se metem com ninguém.

– Para ti os africanos são todos bons. Julgas que és africana.

– Eu sou africana. Portugal já não vai mandar aqui.

– Se a FNLA ganhasse, poderias ser africana. Mas quem vai ganhar é


o MPLA. Ao menos escolhesses um partido capaz de ganhar.

– Como é que podes ter tanta certeza da vitória do MPLA?

– É o partido com melhor organização, com quadros superiores, com


intelectuais, tem apoios internacionais importantes.

– Eu sei que tu preferes o MPLA.

– Não interessa se prefiro ou não. Sê sensata. Não sejas radical. Tens


mais a perder do que a ganhar sendo radical.

– Posso perder, mas vou para o meio da rua e ofereço o peito às balas.

– Não digas disparates, filha, no meio é que está a virtude.

– Não, mãe, no meio está a mediocridade.

– Eu conheço a mentalidade do preto há mais tempo do que tu.

– Mas estamos a falar dos pretos em geral ou do Holden em


particular?

– Estamos a falar que tu escolheste o partido errado e vais ter de vir


connosco se tivermos de sair daqui. A guerra há-de ser deles, não nossa.
Eu e o teu pai não nos metemos em partidos. Nenhum partido será bom
para nós.

– Eu já não estou incluída nesse nós.

– Estás, quer queiras quer não. Agora vai chamar os teus irmãos para a
mesa. São horas de almoço.

Beatriz tinha uma capacidade, que não podia ser combatida, de pôr
fim às conversas ou de mudar o assunto no sentido que desejasse.

Mais tarde, Célia pensou que quando a mãe lhe dissera para ir chamar
os irmãos poderia ter entendido que os irmãos, agora, eram os da FNLA
(era por irmãos que se tratavam os seus membros) e a grande massa
anónima das sanzalas, para quem ia ser construída uma sociedade nova.
A mãe ia ver que ela iria agir e fazer coisas decisivas.

Em tudo via os sinais da criação de algo novo e belo. Não


compreendia o receio dos pais: o medo dos negros. Como se poderia
ignorar que os africanos são gente boa e de paz, ao contrário dos
brancos?

Uma vez, quando a viu vestida com panos africanos, Beatriz disse:

– Queres ser mais africana do que os africanos, mas não passarás de


uma caricatura.

A mãe é que lhe parecia uma caricatura do colonialismo, dava nomes


portugueses aos criados, dizia «o maior inimigo do preto é o próprio
preto» e exemplificava com as diferenças étnicas e as tribos diferentes.
Em tantos anos de África, não aprendera uma única expressão africana.
Mas os naturais da terra já não se iam rebaixar. Os africanos iam dar
uma lição a todos. O mundo ia saber o que estava a fazer-se aqui, a nova
Angola que começava a esboçar-se. A primeira pessoa a receber essa
lição ia ser a mãe.

Célia aspirou o ar morno, sentiu a energia de tudo à sua volta. A vida


sorria-lhe. A luz forte do dia e os cheiros da terra trazidos pela brisa
levaram-na a pensar: «Cheira a tempo, a calor, a futuro.»

Tinha acabado de sair da escola para ir trabalhar para a delegação da


FNLA. A única coisa que receava era que os seus irmãos da FNLA a
olhassem com desconfiança por ser branca. Os panos africanos que
usava, as palavras que tentava aprender e usar com naturalidade, como
se as soubesse desde sempre, não disfarçavam a cor da pele. O empenho
na actividade política servia para mostrar que não era como as pessoas
da geração dos pais. Todos os dias se esforçava por se aproximar da
meta, que era unir-se ao povo ancestral e autóctone de África e acreditar
que o fazia com naturalidade.

Os primeiros meses na delegação tinham sido difíceis, por causa do


comandante Fera. Na guerrilha, o comandante ganhara fama de ser feroz
com os seus próprios homens e de viver no mato como um animal
selvagem, a melhor forma de sobreviver nas condições mais duras.
Quando tinha dez anos, trabalhara com os homens da sua aldeia,
recrutados à força para as roças de café, perto de Quitexe. Chegara a
adulto e tudo o que sabia fazer era cortar capim com uma catana, abrir
buracos para as sementes dos cafezeiros, ensacar o café, carregar os
sacos às costas vencendo o desnível das encostas, ao ritmo do chicote do
capataz. Um dia, vergastado por não ter enchido o camião com o
número suficiente de sacos, agarrou o chicote no ar e enfrentou-o. O
capataz atirou-o ao chão e chicoteou-o até se cansar. As cicatrizes
ficariam para sempre, mas o castigo continuou: foi incorporado no
Exército. Na recruta, quando disparava na carreira de tiro, sonhava virar
a arma contra os graduados. Meteram-no num navio e foi mandado para
a Índia. Enjoou durante toda a viagem. Odiava os brancos, odiava o mar,
odiava aquele grande navio de ferro. Na fortaleza portuguesa de Diu, a
milhares de quilómetros de casa, não podia pensar em rebelar-se.
Enquanto cumpria o serviço militar, tinha apenas uma certeza: não
voltaria para os trabalhos forçados nas roças. Um dia falou em quicongo.
Um cabo disse-lhe: «Não quero que fales o teu dialecto, tens de falar
português.» Fera respondeu: «Eu não sou português, estou debaixo dos
pés dos portugueses.» O cabo contou isto ao oficial de dia, que
determinou uma punição e Fera recebeu palmatoadas nas mãos e nos
pés, ficando dois dias na enfermaria. Apareciam ali por perto indianos
que, embora desarmados e não mandatados pela União Indiana, diziam
que vinham reconquistar os territórios portugueses. O governador,
preocupado com o factor subversivo que constituíam, mandou que
eliminassem uns quantos. A tropa mandou-os encostar a um muro, para
se tirar uma fotografia. Em vez disso, abateu-os com rajadas de
metralhadora. Fera participou na abertura da vala comum. Ao manobrar
a enxada, sonhava usá-la para quebrar a cabeça dos brancos. Foi
chamado ao gabinete de um major, que lhe disse: «Vieste para aqui por
castigo. O teu tempo acabou. Vejo na tua ficha que só foste punido uma
vez, por falares um dialecto. Agora vais regressar à tua terra. Espero que
te tenhas emendado, rapaz.» Como remate desta conversa, o major até
lhe apertou a mão.

Fera regressou a Angola em 1960. Fugiu para o Congo Belga, a tempo


de assistir à independência e de integrar a UPA. Foi para a China, onde
fez um curso de guerrilha. Quando voltou, preparavam-se os grandes
massacres de 15 de Março. O futuro comandante Fera fez questão de
actuar na fazenda do capataz que lhe marcara o corpo com as chicotadas.
Naquela manhã, escondido no mato com os seus homens, esperou a hora
da formatura dos trabalhadores. Desfez o corpo do capataz à catanada e
decapitou-o. Quando entrou na casa, alguns dos seus homens estavam a
deparar-se com dificuldades: a mulher do capataz, grávida, sobrevivia às
catanadas que já lhe tinham dado, não gemia nem gritava. Sentada no
chão, embotada pela gravidez avançada, o seu corpo parecia almofadado
e os golpes das catanas eram superficiais. Numa voz calma, disse ao
comandante Fera: «Não me matem, que eu estou grávida e tenho dois
filhos pequenos.» Os homens achavam que matar uma grávida era mais
difícil porque tinha dois espíritos. A mulher disse: «Leva-me para o
mato. Eu serei a tua mulher. Mas não me mates nem faças mal aos meus
filhos.» O comandante Fera lançou um olhar de desprezo aos
subalternos, foi buscar uma picareta e trespassou com ela a cabeça da
mulher, diante dos filhos, que nem sequer reagiram. Depois, levantou o
filho do capataz no ar, pelas pernas, e este, que devia ter uns quatro
anos, tentou agarrar-se-lhe aos ombros. Talvez algum criado costumasse
brincar com ele pondo-o às cavalitas. O comandante repeliu o gesto da
criança e, fazendo-a rodopiar no ar, esmagou-lhe a cabeça contra uma
parede. Agarrou da mesma forma a irmã, que teria um ou dois anos a
menos. Ela só teve tempo de emitir um grito curto e agudo. Partiu-lhe a
espinha contra a mesma parede.
Andou os treze anos seguintes no mato, de esconderijo em
esconderijo, de acampamento em acampamento. Participou em centenas
de emboscadas, houve ocasiões em que escapou por sorte. O mato era a
sua casa. Esqueceu-se de muitas palavras, em português ou em
quicongo. Na guerrilha, o vocabulário de que precisava era directo:
«mata», «queima», «corta», «atira». Palavras simples, eficazes, cada
uma era um tijolo com que se ia edificar a nação livre de Angola, e
sempre que gritava uma delas o edifício crescia mais.

Foi este homem que entrou na Gabela como comandante militar da


FNLA. Teve de reaprender coisas de que durante muito tempo não
precisou, que constituíam um estorvo para o predador que desfere um
golpe fatal e regressa ao esconderijo, camuflado nas pedras, nas folhas,
nos rios e pântanos, na própria terra chã e lisa onde se espalmava como
um lagarto. Agora falava-se muito. Queriam fazer crer que o tempo dos
guerrilheiros passara e que chegara o tempo dos oradores, dos políticos
finos e persuasivos. Queriam desarmar os movimentos, como se os
discursos e os folhetos da propaganda política fossem as novas armas.
Para o comandante Fera isso era inadmissível. Não confiava numa luta
que só se faz com trocas de palavras. Esta luta estava longe de estar
terminada e ia precisar de todo o arsenal bélico a que pudesse lançar
mão, desde a catana aos mísseis antiaéreos. Isso era ponto assente para o
comandante Fera.

Desconfiava dos brancos, desconfiava dos outros movimentos


independentistas, que falavam em nome de Angola e do povo angolano
mas em quem não reconhecia direitos sobre o país e o povo. O
comandante Fera não ia deixar de estar alerta e preparado. A sua faca de
mato estava dentro do cano da bota direita. Era o seu último recurso,
quando já não servissem as armas de fogo de que se fazia acompanhar
em qualquer ocasião. Andava de camuflado, para dar a ver a toda a
gente o seu estado de prontidão militar. Desprezava o comandante
Inabalável, do MPLA, e a sua farda elegante, limpa, bem passada, de
militar de salão.

Diante de Célia não conseguia disfarçar algum embaraço. Não sabia


como lidar com aquela menina mimada, de família branca. Contava
continuar só na companhia de guerrilheiros, e de preferência todos
negros. O movimento de independência sob cuja bandeira combatera
estava a tornar-se um partido político com delegações abertas ao
público, a aliciar as pessoas para se fazerem membros. Ali trabalhavam
brancos, até meninas de família, como Célia, filhas de homens que ele
combatera durante treze anos.

Célia demorara a habituar-se à sua figura. Sempre que o via tinha de


convocar um bestiário inteiro à procura do animal que melhor o
descreveria, sugestionada pela alcunha do homem. O rosto chupado do
comandante acentuava o tamanho de dois olhos protuberantes, como se
estivesse dotado da capacidade de paralisar pelo terror, como as cobras.
A sua pele era áspera. O seu riso, que punha a descoberto vários dentes
partidos por acidentes de guerra, era agudo, angustiante. Assustava os
interlocutores quando, desabituado dos artifícios da linguagem,
arregalava os olhos à procura de palavras ou tentava perceber as dos
outros e se punha em bicos de pés erguendo os calcanhares do chão para
adquirir maior estatura. A cidade enjaulava-o, obrigava-o a andar de um
lado para o outro, sem sentido.

O comandante Fera executava uma justiça inexorável. Os soldados


que montassem postos de controlo nas estradas apenas para roubarem
dinheiro e jóias aos condutores eram castigados: punha-os deitados no
chão de barriga para baixo, com uma corda que atava o pescoço às
pernas flectidas, para que a distensão das pernas provocasse a sufocação.

Na sala ao lado, Célia não conseguia trabalhar ouvindo os gemidos


dos torturados. Arranjou coragem para enfrentar o comandante. Aquilo
não se podia fazer na delegação política. Disse-lhe:

– Aqui é a parte política, separada da parte militar. Faça isso no


quartel. Temos uma porta aberta ao público para as pessoas virem cá
ouvir os gritos?

O comandante Fera, que se dava bem com Célia noutros assuntos


profissionais, acatou. As sessões de tortura continuaram, mas no quartel.

Célia protegia os soldados. Alguns chamavam-lhe Mamã Célia,


embora tivessem a sua idade. Faziam-lhe queixas do comandante Fera,
contavam que fingiam ser controladores de posse de armas só para
roubarem os civis. Tinham estado muito tempo na guerrilha. Diziam-lhe:

– Onde está a guerra? Nós queremos a guerra, Mamã Célia. Isto assim
não é nada. Manda-nos para a guerra, Mamã.

Na delegação, Célia atendia negros que vinham apresentar queixas


contra brancos, esperando ajuda para os seus ajustes de contas pessoais.
Alguns diziam-lhe que um determinado branco lhes tinha roubado as
terras, a eles ou aos seus pais. Verificando-se que os espoliadores já
tinham morrido, Célia dizia-lhes:

– Esse indivíduo já morreu.


– Está aí o filho dele – respondia o queixoso.

– O filho está a habitar as terras que eram da sua família?

– Não. Agora está lá uma escola.

– E o que é que quer que a gente faça ao filho?

– O filho que me dê alguma coisa pelo valor das minhas terras.

– Mas o filho não tem nada a ver com o que o pai fez. E o pai já
morreu.

O duelo verbal entre Célia e a mãe não esmorecia. Para Beatriz, nada
podia ser mais contrário aos desígnios que tinha para a filha do que vê-la
namorar com Alexandre e filiar-se na FNLA. Receava que Célia
esquecesse a família e o seu próprio futuro para seguir Alexandre. Era
preciso afastá-la da Gabela e pôr em prática um projecto antigo: mandá-
la para a Inglaterra aperfeiçoar o inglês. Célia, antecipando a jogada da
mãe, empenhava-se ainda mais nas funções de delegada política para
mostrar que esse projecto já não era possível. Na sua fantasia, acreditava
que, sendo oriunda de uma situação de privilégio no regime colonial,
fazia bem em aliar-se ao lutador antifascista mulato para acabarem de
sepultar a sociedade colonial. Tinha de contrariar a mãe, tentar a
libertação e a autonomia que, se não chegassem, confirmariam o triunfo
dela. Tudo menos ter de ouvir de Beatriz aquela frase tão sua: «Eu não
te disse? Bem te avisei.»
Um amigo de Célia, do MPLA, confidenciou-lhe que este preparava
um grande ataque à cidade. Contava-lhe isto, mesmo estando em
partidos rivais, para ela avisar os pais e mais ninguém. Célia contou aos
pais e a outras pessoas. Depois, não vendo alterações no dia-a-dia, não
pensou mais no assunto.

Alexandre tinha ocupado uma casa de uma família branca expulsa de


Angola. Beatriz dissera a Célia que Alexandre tinha ameaçado essa
família para se instalar na casa. Célia achava que a mãe falhava em
perceber que a força do processo histórico era irresistível e estava acima
de apreciações moralistas e obsoletas. Fortalecida pelo seu amor a
Alexandre e pelas suas convicções políticas, foi morar com ele nessa
casa. Beatriz depôs as suas armas: Célia já tinha 19 anos, era professora,
delegada de um partido político, e, tomada pelo entusiasmo
revolucionário, substituíra a família de origem por uma família política.
Beatriz tinha mais seis filhos para quem dirigir as suas preocupações e a
sua vigilância.

Uma noite, Célia ouviu bater à porta com violência. Alexandre,


envolto num lençol, foi abrir. Entraram cinco homens armados com
Kalashnikovs. Alexandre pensou que viessem por sua causa, mas
ignoraram-no e intimaram Célia a acompanhá-los ao quartel do MPLA.

– Que vem a ser isto? – Alexandre colocou-se entre Célia e os


intrusos. – Nós somos delegados da FNLA. Vejam lá como falam
connosco. As vossas credenciais?

Os cinco guerrilheiros olhavam para ele sem expressão. Vinham


cumprir uma ordem e nada os impediria de a executar. Alexandre tomou
o seu silêncio como hesitação e voltou à carga:
– Quero ver essas credenciais. Célia, não te aproximes desses
indivíduos.

Alexandre sentia-se a dominá-los. Os guerrilheiros olhavam para ele


em silêncio.

– Essas credenciais, já! – ordenou Alexandre, e ao mesmo tempo


pensou que um dia iria contar este episódio como um exemplo da sua
coragem física.

Um dos guerrilheiros aproximou a coronha da sua Kalashnikov da


cara de Alexandre e disse, calmamente:

– Se você torna a pedir-nos as credenciais, parto-lhe os dentes à


coronhada. – Voltou-se para Célia: – O comandante Inabalável exige a
sua presença, agora.

Alexandre, preocupado em manter os seus dentes intactos, pensava


numa forma airosa de sair daquela situação. Célia percebeu que tinha de
fazer alguma coisa e disse:

– Eu vou. Quero saber o que é que o comandante Inabalável quer de


mim. Já volto, Alexandre.

– Vai lá e depois vem dizer-me o que é que ele te quer! – disse


Alexandre, como se a ideia tivesse sido dele e decidisse impor a sua
vontade.

Assim que Célia entrou no quartel para onde a levaram, uma das
primeiras pessoas que viu foi o amigo que a avisara do ataque do
MPLA. Estava com uma cara pouco amistosa, como se a censurasse pela
inconfidência que ela cometera. Célia percebeu que não deveria falar do
que ele lhe contara.

Levaram Célia à presença do comandante Inabalável e deixaram-nos


sozinhos num gabinete, sentados frente a frente.

Célia já tinha ouvido falar muito do comandante. Alto, de compleição


forte e sólida, usava uma farda impecável. Contava-se que sobrevivera a
vários atentados na guerrilha e permanecera sólido como uma rocha. Os
seus modos eram brandos mas firmes, falava pouco, nunca gesticulava e
a expressão do rosto era impassível. Parecia olhar para muito longe,
como se mirasse a pessoa que tinha à sua frente e, ao mesmo tempo,
muito para além dela. Havia quem dissesse que ele tinha a cabeça vazia,
que só sabia agir como um autómato militar. De qualquer modo,
persistia a dúvida.

Célia sentiu e pensou todas estas coisas, enquanto durava o silêncio


inicial e o comandante Inabalável a observava com aquele seu olhar de
estátua. Nunca supusera ver-se nesta situação, sozinha numa sala de
interrogatório com ele. O comandante disse, numa voz lenta que parecia
preguiçosa:

– Onde é que foste buscar a ideia de que o MPLA ia atacar a Gabela?

Célia demorou mais tempo a responder do que desejaria, porque


estava a avaliar o impacto daquela voz, até que disse:

– Não sei de nada disso.

Ele fitava-a em silêncio. Por mais que tentasse parecer segura, Célia
estava convencida de que ele lhe lia os pensamentos. Mas tinha de levar
o seu papel até ao fim. Ali não era ela, era uma delegada de um partido
político rival.

– Não nos vês aqui, há vários meses, integrados na vida desta cidade?
– perguntou o comandante Inabalável.

– Sim, claro – disse Célia.

– Porquê essa ideia de um ataque da nossa parte?

– Não sei a que ataque se refere.

Célia sentia-se desguarnecida perante o olhar dele. Era um jogo do


gato e do rato.

– Respeito as tuas convicções políticas, mas és muito jovem. É preciso


ter mais formação política para saber o que se está a fazer, para evitar
arrebatamentos juvenis.

A serenidade do comandante Inabalável dava-lhe a pressentir que ele


ia ser condescendente com ela.

– A juventude tem de escolher entre ser reaccionária ou progressista –


disse o comandante. – Os reaccionários querem que tudo continue na
mesma, com o povo inculto e espezinhado, como no colonialismo. Os
progressistas querem dar o poder ao povo, para Angola evoluir e ser
uma sociedade mais justa. A juventude tem uma grande
responsabilidade, porque é o futuro de Angola. A juventude é arrebatada
por ideias mal digeridas, impulsos de momento, que levam ao engano.
Mas nós sabemos que a juventude erra por imaturidade e vai sempre a
tempo de aprender. Espero que tenhas aprendido alguma coisa. O que
aconteceu não foi danoso para nenhuma das partes, mas poderia ter sido.

Célia ia a dizer: «Refere-se a quê? Do que é que me acusa?», para


sustentar o seu papel, mas a serenidade do comandante desarmou-a.

– Por consideração pela tua juventude, e por consideração pelo teu pai,
vou dar este assunto por encerrado – concluiu ele. – Podes ir.

Em casa, Célia encontrou Alexandre a fumar nervosamente. Assim


que a viu, perguntou, agitado:

– Como é que foi? Falaste com o comandante Inabalável? O que é que


ele te queria? Tocaram-te com um dedo que fosse? Diz-me, porque se te
tocaram eu vou lá, encosto o tipo à parede, vou…

– Não aconteceu nada de mal – disse Célia, tão calma que deixou o
namorado confuso.

– O que é que aconteceu, então?

– Falou da juventude, da diferença entre ser reaccionário ou ser


progressista, essas coisas.

– Só isso? E que mais?

– Não gostou de saber que eu falei de um possível ataque do MPLA à


Gabela. Pregou-me um sermão e mandou-me embora.

– Eu vou falar com ele, de homem para homem – disse Alexandre,


acendendo mais um charro. – Mete-se com a minha namorada… Sabes,
ele fez isto de propósito só para me atingir. Não gostou que eu tivesse
saído do MPLA. Tem essa atravessada na garganta. Nada disto foi por
tua causa. Ele quer é atingir-me a mim. Mas vai ver de que fibra eu sou
feito. Eu vou reunir uns rapazes e vou lá, ou faço-o parar na rua.

– Estás maluco? Não podes enfrentar o comandante Inabalável.

– Não posso? Vais ver. Ainda não me conheces bem, Célia. Não sabes
do que eu sou capaz.

Célia conhecia Alexandre o suficiente para perceber que ele não faria
o que estava a dizer. E já conhecia alguns factos da vida que lhe davam
a saber que era preciso fingir que acreditava na sua coragem para
preservar o narcisismo do homem que tinha ao seu lado.

10

A descolonização ia trazer ruína e sorte. Ruína para os que tinham


feito fortuna; sorte para os que tinham dívidas ou eram alvo de
processos judiciais.

O governo enviou uma circular aos funcionários públicos: poderiam


ingressar num quadro geral de adidos em Portugal. Deveriam acomodar
os seus pertences em caixotes e fazê-los chegar a um porto de mar.
Quem quisesse sair teria a ajuda das autoridades; quem ficasse depois da
data da independência estaria por sua própria conta e risco.

Mateus e Capelo foram convidados a participar numa sessão de


esclarecimento organizada pelo MPLA e dirigida a chefes de repartição,
funcionários, comerciantes e proprietários abastados. O encontro ia
realizar-se no cinema Amboim. Assunto principal: a garantia de
segurança para os brancos permanecerem na cidade.
À porta do edifício, Mateus e Capelo conversavam. Tinham
descoberto um elo incómodo entre os dois, o namoro de Célia e
Alexandre, o que, no entanto, reforçava a sua amizade.

– O Alexandre já nos ameaçou – disse Capelo, num tom contido. –


Anunciou-nos que ia tomar posse das fazendas em nome do MPLA. Mas
veja só… Ele nem sequer é competente para se vingar de nós: foi
expulso do MPLA, como você sabe.

– Pode ser que agora tenha mais sorte na FNLA – considerou Mateus.

– Não me parece. Ele não consegue ser decente entre gente decente,
nem bandido entre bandidos. É incompetente nas duas áreas. A Mariana
ainda tem a esperança de o ver regenerado, mas eu acho que conheço o
Alexandre melhor do que ela.

– Eu e a Beatriz achamos que a Célia seguirá o Alexandre, mesmo que


tenha de deixar tudo para trás. Enquanto a situação política não se
resolver, eles também não vão assentar.

Os dois amigos viam-se reduzidos a assistir ao que Célia e Alexandre


decidissem fazer, protagonistas de uma história que os excluía. Esta já
não é a nossa Angola, diziam mudamente, mas a Angola nova e
explosiva de Célia e Alexandre.

Apareceu Barbosa, que lhes perguntou, muito animado:

– Também vão falar lá dentro? Eu vou.

– Em nome de quem? – perguntou Capelo.


– Represento os empresários e os industriais. Não venho aqui só para
ser esclarecido, também venho esclarecer.

– Foi escolhido para isso?

– Os empresários confiam em mim – disse Barbosa.

Entraram. Havia uma mesa, junto à tela do cinema, onde se sentavam


os delegados do MPLA. Na primeira fila da plateia encontravam-se
alguns guerrilheiros do movimento. Os representantes da população
estavam espalhados pelo resto da plateia. Mateus e Capelo sentaram-se
na fila mais recuada. Afastando-se deles, Barbosa lançou-lhes um
sorriso confiante, que mostrava que não viera ali para ser discreto e
passar despercebido, e foi sentar-se na segunda fila.

Os delegados políticos, os primeiros a falar, foram unânimes em


garantir a paz. Afirmaram que nada fariam que pusesse em causa a
concórdia geral e a segurança da população. Não seriam atacados os
bens e as propriedades, muito menos as pessoas. A meta tão aguardada,
e agora à vista, a independência, não deveria lesar aqueles que tinham
boa vontade para viver numa Angola segura e próspera. Era do interesse
de todos que os brancos pudessem continuar a viver e a trabalhar no
país. Só os brancos que tivessem cometido crimes contra os africanos
teriam problemas. Ninguém perguntou como se iriam apurar essas
culpas nem o que iria acontecer aos culpados. Os delegados
manifestaram que os soldados do movimento estavam bem disciplinados
pelos comandantes e acrescentaram que não se vingariam de tantos anos
de opressão, que os brancos poderiam estar descansados porque eles,
delegados e guerrilheiros do MPLA, embora dispondo de um arsenal
bélico temível, não estavam dispostos a usá-lo por uma razão muito
simples: sensatez e amor à paz. Alguns brancos presentes na plateia
sentiram que estas afirmações continham uma ameaça velada e uma
censura moralista dirigida aos brancos.

Destacando-se pela sua corpulência dos outros guerrilheiros, na


primeira fila, o comandante Inabalável estava impassível, olhando para a
mesa dos delegados como se não os visse, mas para além deles. Estaria a
ver o que mais ninguém conseguia? Ou não estava a pensar em nada de
especial?

Foi dada a palavra ao comandante Inabalável, que ergueu da cadeira o


seu corpanzil, caminhou em direcção à mesa dos delegados e foi sentar-
se junto destes. Fez-se silêncio, na expectativa do que ia dizer. Com
gestos comedidos e lentos, retirou umas folhas de um bolso do casaco da
farda e desdobrou-as sobre o tampo da mesa. Levantou a cabeça para a
plateia, olhando por sobre todas as cabeças, como se visasse um ponto
acima delas. E, numa voz pausada e constante, leu:

– Muitos camaradas e não camaradas me têm perguntado porque escolhi ser


colocado na Gabela, nesta fase da nossa acção político-militar. Afinal, a
Gabela é a terceira região económica mais rica de Angola e tinham-me sido
oferecidas colocações nas duas regiões mais ricas. Antes de esclarecer este
ponto, permitam-me uma pequena digressão autobiográfica. Nasci em
Malange, filho de um pastor protestante, e fui educado na missão religiosa
alemã que já tinha formado o meu pai. Os meus pais pertenciam àquela
burguesia negra que era admitida no convívio com os brancos, como prova de
que não existia racismo, mas que era desapossada dos bens e ameaçada de
ruína por leis que visavam atrair brancos para o Ultramar, onde não teriam de
temer a concorrência de negros com mais habilitações e património do que
eles. Estas famílias negras, impedidas de crescer, rejeitadas da competição
com a população europeia, recusaram diluir-se na população tribal a que não
pertenciam havia várias gerações; os seus filhos juntaram-se aos movimentos
de independência sediados em Brazaville e Leopoldville. Penso que, sob a
influência dos meus pais, desenvolvi um sentido de dever, modos cordatos e
uma disponibilidade sem preconceitos. Mas fui recrutado pelo Exército
português. Como soldado colonial, observei, analisei e estudei tudo o que me
foi dado presenciar. Havia muito tempo que eu reparara nas filas de
contratados das plantações, de operários e aprendizes, à espera do castigo da
palmatória de onde vinham com as mãos e os pés a sangrar, nos sobas a
serem humilhados, nos proprietários africanos expropriados das suas terras e
obrigados a procurarem outras mais dentro do mato. Aprovava a luta de
libertação que, como soldado colonial, combatia. A luta armada era o único
meio de libertar um povo violentado há vários séculos, que fornecera milhões
de escravos levados em porões de navios para o Brasil e continuava sujeito a
um trabalho forçado que o colonizador dizia ser um meio de o civilizar e
elevar moralmente. Eu sabia que o dorso do preto era o principal meio de
transporte de mercadorias de toda a Colónia. Ouvi dizer que um trabalhador
negro morrera por cada sessenta centímetros de via-férrea, e assim o
Caminho-de-Ferro de Benguela, orgulho do regime, com mil trezentos e
cinquenta quilómetros, fizera-se à custa de mais de duzentos mil mortos. Não
sei se este cálculo está correcto ou não, sei que é significativo o simples facto
de alguém o propor. O meu pai tinha-me explicado que a história do
colonialismo em Angola significava pilhagem e genocídio: depois de
transplantar comunidades brancas pobres do seu país de origem, o governo
português liquidou as actividades tradicionais de comércio e manufactura dos
africanos, tornando-os assalariados dependentes dos colonos; as leis
protegiam os brancos e provocavam mortandade e êxodo das populações
nativas. A prisão do meu pai no Campo de São Nicolau, acusado de pregar
ideais de libertação junto das populações, e a sua morte voluntária por
inanição, apressaram a minha decisão: evadi-me do Exército e juntei-me aos
guerrilheiros do MPLA. Quando o meu pai, na sua posição de pastor,
defendia uma sociedade mais justa para os negros, eu, o seu filho mais velho,
julgava que a sociedade poderia mudar nesse sentido. O meu pai tinha razão
mas não tinha a força da maioria. Era preciso pegar em armas. Os homens só
se modificam com as coisas rudes, como a guerra. Como não era sacerdote,
nada me obrigava a dedicar-me a cultivar os bons sentimentos dos outros. Ia
tentar derrotá-los pelas armas, ou pelo menos resistir-lhes o tempo suficiente
para forçar uma solução política. O meu irmão mais novo, que a PIDE já
vigiava por ser filho de quem era, imitou-me. Deixámos sozinhas a minha
mãe e a minha irmã mais velha, prometemos voltar sãos e salvos quando
Angola já fosse livre, num dia que não iria tardar. A minha mãe não tinha
forças para contrariar dois adultos decididos. Lembrar-me-ia mais tarde de a
ter achado muito frágil, já não a mulher enérgica e audaciosa que nos criara.
Fui para a Argélia receber treino de guerrilha. De regresso, conheci o mato na
perspectiva dos guerrilheiros, depois de o ter conhecido pelo Exército
colonial. Deslocávamo-nos em pequenos grupos, móveis e bem armados, e
alcançávamos muitos sucessos em emboscadas. Cada combatente dispunha
de uma lata de sardinhas por dia. Juntávamo-nos aos pares: um partilhava a
lata de manhã e o outro à noite. Participei em muitos ataques a
aquartelamentos inimigos, com uso de morteiros, canhões sem recuo e armas
ligeiras. Ascendi à posição de comandante. Absorvi a doutrina política e
empenhei-me em despertar nos meus comandados o amor pela causa do
povo. Era preciso transformar o MPLA numa verdadeira organização de
massas que chegasse a todo o território angolano. Estive no bureau político
do MPLA, em Kinshasa e em Brazzaville. Fui um dos responsáveis
operacionais por novas frentes de guerrilha, em Cabinda e no Leste. Às vezes
interrogava-me sobre quando seria contada a história dos guerrilheiros que
traziam material de guerra oferecido pelos países socialistas, desembarcado
em Dar-es-Salam. Tinham de fazer três mil quilómetros em pistas
impraticáveis onde os camiões se atolavam ou avariavam, atravessar rios em
barcaças, até à fronteira zambiana, e enganar as patrulhas portuguesas. O meu
irmão morreu numa acção de combate e vieram contar-me o tratamento dado
ao cadáver, que envolveu a exposição da cabeça na ponta de um chuço. O
inimigo queria atingir-me porque eu já era conhecido, já circulavam histórias
sobre mim. Depois da morte do meu pai e do meu irmão, achei que teria de
sobreviver para mostrar à minha mãe e à minha irmã que havia um sentido
para tudo aquilo. Todos éramos combatentes. O meu pai, preso pela PIDE; o
meu irmão, decapitado pelo inimigo; a minha mãe e a minha irmã, esperando.
Morríamos e esperávamos pela liberdade, uma miragem no deserto. Após o
cessar-fogo com os portugueses, fui ter com a minha mãe e a minha irmã para
lhes dizer que a guerra acabara, que Angola ia ser livre e que o sacrifício do
meu pai e do meu irmão não tinha sido inútil. A minha mãe morrera três dias
antes e já tinha sido sepultada. A minha irmã desaparecera.

O comandante Inabalável fez uma pausa para passar as folhas que


segurava nas mãos. O silêncio breve agravou uma inquietação nos
brancos presentes na sala: «Porque está a ele a contar-nos isto? Como
devemos reagir?» O comandante retomou a leitura:

– A minha irmã desaparecera, e é aqui que se chega à Gabela. Muitos


que estão aqui presentes devem lembrar-se de Maria Preta. Quando
apareceu na Gabela, vinda não se sabia de onde, devia ter perto de
cinquenta anos. Lembram-se dela? Era alta e magra, vestia roupas
coloridas de bom tecido que se tornaram farrapos. Ninguém conhecia o
seu nome, chamavam-lhe Maria Preta. Começou por trabalhar em casas
de famílias brancas, mas bebia e passou a prostituir-se. O álcool
arrastou-a para a decadência física e mental. Envelhecida, saía da sua
choupana à entrada da cidade e punha-se a deambular, comia restos de
comida que catava do lixo. Juntava qualquer moeda que lhe dessem para
beber. Antigos clientes dos seus serviços sexuais pagavam-lhe um copo
se ela lhes mostrasse os seios. E ela não só mostrava como ainda
levantava as saias, para desenfado dos espectadores que a
recompensavam com mais uma ou duas moedas. Este hábito transferiu-
se para os rapazes aqui da Gabela, que se dirigiam em grupo para a
choupana da Maria Preta. Quando ela vinha à porta, os rapazes
propunham-lhe o mesmo que os adultos. No fim, esquecida por todos,
esquecida de si mesma, era um destroço que se mantinha por inércia.
Saía cada vez menos do seu casebre e era apenas visitada por algumas
criadas que lhe levavam comida. Eu disse há pouco que foi escolha
minha ser transferido para aqui. A primeira coisa que fiz ao chegar à
Gabela foi bater à porta do casebre da Maria Preta. Encontrei uma
moribunda naquele corpo desengonçado que estava estirado na enxerga
e tinha um olhar vazio. Lembrava-me do tempo em que a minha irmã
era uma mulher alta, bonita, cheia de energia e determinação, vestida
com tecidos coloridos. Agora era este destroço sujo que jazia na
escuridão. Havia um abismo a separar-nos e já não poderíamos trocar
um olhar que fizesse sentido ou uma palavra que demonstrasse
compreensão humana. Mas talvez ela tenha reconhecido o irmão, porque
morreu no dia seguinte, como se esperasse por alguém que desse
significado à sua morte. Talvez a minha visita fosse a oportunidade por
que esperava para morrer em paz. Desde o dia em que voltara a
Malange, para saber que a minha mãe morrera e que a minha irmã tinha
desaparecido, eu procurara o seu rasto e localizara-a na Gabela. Soube
dos pormenores da sua decadência e sepultei-a no cemitério. Foi então
que os homens que eu comando julgaram que ia iniciar uma cruzada
vingativa contra os brancos, causadores directos e indirectos da
destruição da minha família. Os meus soldados imaginavam-me a ir
atrás de todos aqueles que deram uma moeda à Maria Preta a troco de
mostrar as mamas e levantar as saias. Alguns brancos aqui presentes,
que agora sabem do meu parentesco com a Maria Preta, poderão pensar
o mesmo. Mas como eu disse há pouco, todos fomos combatentes, o
meu pai, a minha mãe, o meu irmão, a minha irmã. Já dei um sentido a
esse combate. Agora, o MPLA tem os olhos postos no futuro. Vinganças
pessoais não nos movem. Move-nos a construção de um país finalmente
livre, que precisa da colaboração e da união de todos.

Aproveitando nova pausa do discurso, alguns brancos entreolharam-


se, procurando ver uns nos outros a preocupação por saberem do
parentesco do comandante Inabalável com a Maria Preta ou o alívio por
ele se declarar avesso a vinganças. Outros acharam que o relato do
comandante continha as mesmas ameaças veladas e a mesma arrogância
moralista das declarações precedentes. O comandante ainda não tinha
acabado:

– Todos nós queremos paz e segurança. Melhor assim, porque o nosso


inimigo comum está activo. O colonialismo, agora o neocolonialismo,
não depôs as armas, portanto nós não podemos depor já as nossas e
devemos formar uma frente unida. O neocolonialismo disfarçado quer
manter-nos divididos para nos enfraquecer, tal como nos primórdios da
ocupação colonial. Cria organizações artificiais, fomenta alianças e
divisões, o que asfixia o povo e a nação que não pode chegar a nascer.
Temos de nos unir para combatermos estas formas subtis de opressão e
exploração. Temos o dever sagrado de o fazer, em nome da nossa
dignidade, em nome dos nossos pais e avós que foram oprimidos e
iniciaram esta luta. Unamo-nos, seja qual for a ideologia política de cada
um, a raça ou a etnia, o local de nascimento, a religião ou a
nacionalidade dos nossos antepassados. A verdadeira nacionalidade
angolana só se desenvolverá quando derrotarmos o neocolonialismo. Só
então seremos cidadãos angolanos de pleno direito e teremos dignidade
para nos relacionarmos com os outros povos do mundo. Será necessária
uma frente unida formada por todos os que lutaram e lutam pela
independência, que se batem por uma Angola livre, democrática e
africana. Aniquila-se o colonialismo e o neocolonialismo vibrando
golpes duros e repetidos nos pontos fracos do inimigo, e para isso
continua a ser necessária a guerra popular como o principal instrumento
para a libertação nacional, para varrer o colonialismo de vez da nossa
pátria. Foi a luta armada revolucionária e a guerra popular em Angola e
nas outras colónias portuguesas que transformaram Portugal, que
levaram ao 25 de Abril na Metrópole, que conquistaram direitos básicos
como educação, cultura e saúde para os africanos, e por isso temos de
continuar armados e prontos para aniquilar soluções neocolonialistas e
imperialistas com que o antigo colonizador nos queira enganar. Mas
temos de combater uma ameaça interna, não menos perigosa, que é o
oportunismo de quem tem ambições de poder e se aproveita do racismo
e do tribalismo. Esta ameaça interna é culpa nossa e destruirá as
possibilidades de uma verdadeira união nacional e popular. Esses que
são movidos por ambições pessoais usam palavras como democracia,
justiça e igualdade, fazem promessas ao povo, mas têm todo o interesse
em manter a tirania, a opressão, a calúnia, a divisão e o terror. Ameaçam
desagregar a nação à nascença e deitar a perder a luta de libertação.
Falta-lhes patriotismo, embora declarem amor à pátria para esconderem
os seus intentos. Eu conheço o nosso povo e sei que há quem tenha uma
consciência patriótica sólida, patriotas vigilantes e decididos, em
resultado de séculos de resistência ao colonialismo e de treze anos de
luta armada de libertação. É com essas sentinelas, que vivem no seio do
nosso povo, que temos de reaprender todos os dias a manter o rumo,
firme e implacável, em direcção à unidade nacional, acima de diferenças
tribalistas e regionais que só interessam a tiranetes ambiciosos e sem
escrúpulos.

O comandante Inabalável terminou. Os delegados políticos, ao seu


lado, começaram a bater palmas, num frenesim que exigia que toda a
sala os imitasse. E a sala assim fez. Mateus e Capelo também
aplaudiram, mas num ritmo mais brando. Barbosa, lá à frente, deixou-se
contagiar pelo entusiasmo que as palavras do comandante tinham
produzido e só cessou os aplausos quando viu os delegados da mesa
cessarem os seus.

De seguida, a plateia poderia colocar questões. Barbosa, ansioso por


intervir, levantou-se e pediu a palavra. Era o primeiro branco a falar. Era
importante que causasse boa impressão, embora os brancos não tivessem
escolhido um porta-voz. Os delegados do movimento esperavam por
uma pergunta, mas Barbosa, como dissera a Mateus e a Capelo, não
viera à sessão de esclarecimento só para ser esclarecido. E começou:

– Meus senhores, é bom ver que queremos todos o mesmo, a paz e a


segurança para os filhos desta terra. Somos gente de trabalho. O Acordo
de Alvor, que Lisboa e os vossos líderes máximos assinaram, estipula
que se deve defender as pessoas e os bens dos portugueses residentes em
Angola, e é com essa ideia orientadora…

Neste momento, frases gritadas interromperam-no:

– O Acordo de Alvor não nos diz nada! A independência não se


recebe, conquista-se pela força das armas! A luta tem de continuar!

Barbosa levantou as mãos bem alto no ar, exageradamente, como se


intimado por um polícia ou um ladrão. Conseguiu reatar o seu discurso:

– Meus senhores! Só queremos continuar a trabalhar e a viver nesta


terra que também é nossa. Há muitos brancos aqui nascidos, filhos de
pais aqui nascidos. Todos nós amamos Angola, o que for bom para
vocês é bom para nós, e o que for bom para nós é bom para vocês.
Estamos condenados a entender-nos. Esta terra dá para todos.

Quem, nesse momento, olhasse para os delegados veria um sorriso


irónico nas suas caras, como se desprezassem o esforço de Barbosa e
pensassem: «Isto dá para todos? Só chegaram a essa conclusão quando
viram a vossa posição de brancos dominadores em risco. Quando
podiam partilhar connosco as riquezas, sem revoluções em Lisboa nem
guerra civil aqui, não o fizeram. Agora até parecem muito
magnânimos.»

– Como sabem – disse Barbosa –, eu sou vendedor de máquinas


industriais. Toda a minha vida tenho lutado contra aquela crença de
alguns nativos que dizem que as máquinas dos brancos são movidas com
miolos dos negros. Vejam! Não poderia haver metáfora mais sinistra e
eloquente do que foi o colonialismo.
– Ah, sacana – disse Mateus em voz baixa, para Capelo ouvir. – Fui eu
quem lhe disse isso.

– Porque é que eu falo disto, meus senhores? – prosseguiu Barbosa. –


Porque Lisboa não nos deixava fazer o que nós achávamos melhor para
esta terra. Nós todos, que aqui estávamos, é que sabíamos o que era
melhor para os angolanos de todas as cores. Mas o Terreiro do Paço não
deixava. Indivíduos a milhares de quilómetros daqui tomavam todas as
decisões. Quem só queria trabalhar, como nós, quem só queria contribuir
para o progresso desta terra e alimentar os filhos, estava muito
condicionado e não podia fazer mais do que o que fez. Portanto, as
máquinas dos brancos eram, de facto, movidas com miolos, mas eram os
miolos dos negros e dos brancos de Angola, para benefício do Terreiro
do Paço. Agora vamos ser livres, todos os angolanos. Agora há
condições para que todos nós, que em breve não teremos de prestar
contas a Lisboa, construamos o grande país que Angola está destinada a
ser. Faremos disto um novo Brasil, o país irmão do outro lado do
Atlântico…

Aqui foi interrompido com protestos violentos vindos de vários pontos


da sala, mas sobretudo da mesa dos dirigentes políticos:

– No Brasil quem manda são os brancos! Quem vai mandar em


Angola são os negros! Querem-nos a jogar futebol e a dançar o samba,
não é? Pois não vai ser assim.

– Um Brasil sem os problemas do Brasil – insistiu Barbosa – e que…

Gerou-se um burburinho que não cessaria tão depressa. Um dirigente


fez sinal a Barbosa para se sentar, como se dele não se esperasse mais do
que aquilo que já dissera.

A reunião não trouxe mais novidades. Se o objectivo dos brancos era


certificarem-se da segurança da sua posição, numa terra onde eles já não
iriam ser a parte dominante, ficaram tranquilizados pelos discursos. Mas
manteriam motivos de inquietação se atentassem nas declarações
espontâneas, que reflectiam melhor a realidade do que os discursos bem
cozinhados.

À saída da sala, os gabelenses abriram alas para deixar passar o


comandante Inabalável, escoltado por homens da sua confiança. O
comandante passou sem fitar ninguém, com aquele seu olhar que parecia
dirigido para longe.

Barbosa desabafou com Mateus e Capelo o seu ressentimento:

– Viram como eles reagiram quando eu falei do Acordo de Alvor? A


verdade é apenas esta: conceder a independência a Angola através de um
documento assinado numa mesa de negociações, num hotel de luxo,
longe daqui, é coisa que nenhum preto entende. Isso é que eu lhes devia
ter dito na cara. Têm uma mentalidade tribal. As diferentes tribos nem
sequer sabem o que é pertencer a uma pátria comum. Isto vai tudo dar
para o torto.

Barbosa já se via a perder pela segunda vez o que juntara. Com a


fortuna reconstruída, uma derrocada política ia reduzi-lo à pobreza.

– Sabem uma coisa? – tornou ele, detendo os dois amigos quando se


aproximavam dos carros. – Eu não vou perder a minha indústria para os
comunistas. Piro-me daqui antes. A coisa piora para o meu lado se
descobrem que estive no Exército e combati a guerrilha. Estou em
contacto com uma filial no Brasil e vou transferir tudo o que tenho antes
que estes gajos lancem mão ao que é meu. – E concluiu, esquecido de
que costumava dizer o mesmo sobre Angola: – O Brasil é o país do
futuro.

11

Depois da ruptura com Alexandre, Capelo canalizou para Xavier a sua


intenção de formar um sucessor. Era preciso encontrar a pessoa que um
dia deveria dirigir as fazendas, como Mourão fizera com ele. Era isto
que estava certo, mesmo que, entretanto, se operassem grandes
mudanças no ambiente e o futuro político fosse imprevisível. O
ambiente podia mudar radicalmente, a Colónia ia ser independente, mas
uma verdade permaneceria eterna para Capelo: fazer o que achava
correcto. Só isto lhe dava segurança; sempre se conduzira desta maneira,
tanto na guerra como no trabalho das fazendas.

Iria instruir Xavier, para ver se ele tomava gosto na vida de


fazendeiro. O filho mais novo de Mourão já não era o rapazinho que
Capelo, ao ser introduzido na família, vira muito próximo de Mariana, a
irmã maternal. Transformara-se num jovem calado e gostava de se isolar
no quarto. A última vez que o tinham visto sair de casa fora quando
Alexandre o levara à festa de garagem dos finalistas do liceu. O seu
rendimento escolar caíra a pique e fora com dificuldade que terminara os
estudos.

Capelo reentrou em casa. Estivera reunido toda a manhã com os


capatazes e discutira com eles o modo de compensar o vazio deixado
pela deserção dos trabalhadores. Nos últimos meses, os bailundos
desapareciam das fazendas em número cada vez maior, fosse de modo
voluntário, fosse porque os movimentos de independência os incitavam
a fazer greve para reivindicar aumentos salariais. A próxima colheita
prometia ser abundante, Capelo esperava um ano tão bom ou melhor do
que o anterior, mas a falta de braços punha em risco o cumprimento das
remessas a que se comprometera. Era a primeira vez que isso acontecia,
e tudo por causa da onda revolucionária que se propagava entre os
empregados. Capelo vinha ainda a pensar no assunto, massajando a testa
com a ponta dos dedos para desfazer a ruga que as preocupações aí
tinham cavado. Preparava-se para almoçar e se distrair por um momento
quando Mariana lhe apresentou um problema novo. Veio ao seu
encontro e disse-lhe, numa voz que se esforçava por ser calma:

– Temos de falar sobre o Xavier.

– Porquê?

– Ele não está bem. Esteve a conversar comigo, contou coisas


estranhas. Não percebi nada. Eu disse-lhe que o tornaria a chamar para
ele falar na tua presença.

Xavier foi chamado. Capelo e Mariana esperavam, sentados, quando


ele apareceu junto à porta, sem que lhe tivessem ouvido os passos.
Pareceu hesitante em entrar na sala.

– Vem, Xavier – incentivou Mariana. – Senta-te aqui.

Xavier sentou-se e olhou para Capelo com um ar assustado. Capelo


nunca lhe vira aquela expressão.
– Repete lá o que me disseste hoje de manhã, Xavier.

Xavier olhou para a irmã, com intensidade, mas não dizia nada.
Mariana teve de insistir. Por fim, olhando para Capelo, Xavier dirigiu-se
à irmã:

– Posso confiar nele?

– Claro que podes. Conta-nos aquilo que me disseste de manhã, sobre


a política.

Xavier refugiava-se no silêncio. Parecia angustiado com qualquer


coisa muito grave. Capelo sentiu como se o jovem duvidasse de que ele
pudesse ter capacidade para entender o que estava prestes a ser revelado.
E foi num tom solene, que disfarçava a angústia, que Xavier disse:

– Puseram a minha cabeça a prémio. Querem eliminar-me.

Calou-se. Respirava pesadamente, com a cabeça baixa, e olhava para


as palmas das mãos. Mariana trocou um breve olhar com Capelo,
comunicando-lhe que devia esperar por coisas inauditas, e continuou a
incentivar Xavier:

– Diz-nos lá quem é que te quer eliminar.

Xavier levantou a cabeça, mas os seus olhos evitavam fitar os


interlocutores. Parecia cansado, como estivesse farto de lutar em vão e já
conformado com uma grande fatalidade.

– Eu sei o que se passa na política. Tanto a extrema-direita como a


extrema-esquerda tem interferido na minha vida. Eles precisam de mim
para as suas políticas. E querem matar-me. Cada grupo, cada partido,
cada associação, tira proveitos dos meus pensamentos, mas como sabem
que os outros também tiram, cada um terá de tentar eliminar-me para eu
não ser útil aos adversários.

– Não estou a perceber – disse Capelo. – Quem é que, em concreto, te


vai querer matar?

– As polícias secretas dos partidos, mas também a PIDE e a CIA. A


CIA comunica comigo através de letras de canções americanas.
Descobri isso quando estava a ouvir os Doors. A rádio e os jornais
também andam a falar de mim.

– Porque é que falam de ti? – insistiu Capelo, sentindo necessidade de


perguntar, mas pressentindo que era inútil. – E como é que tens a certeza
disso?

– Pelo que eles dizem. Repetem os meus pensamentos na rádio.


Vigiam cada um dos meus passos. Quando leio o jornal, vejo lá frases
que eu tinha pensado um dia ou dois antes, tal e qual.

O tom de voz de Xavier era cada vez mais monótono e cansado.


Agora era visível que devia andar a dormir pouco. De vez em quando,
uma expressão assustada modificava o seu olhar.

– Isto começou quando houve o 25 de Abril. Sou eu que tenho de ir


segurando as pontas, para não acontecer uma desgraça. Eles estão a
sobrecarregar-me com exigências… exigências daqui e dali… uns e
outros… começam a fazer a contra-informação e a lançar-me
armadilhas…
– Como é que sabes isso? – perguntou Capelo, para ver até onde
chegava o raciocínio do cunhado.

– Eu sei, simplesmente.

– Mas como? Que provas é que tens?

– Não interessa como, é uma coisa que se sabe. Eu sei… sei dentro de
mim que é assim. Ouvi a voz do almirante dizer: «Ele tem de ser
eliminado, têm de o eliminar!»

– Qual almirante? – Capelo sentia-se ridículo a cada pergunta que


fazia.

– É o alto-comissário que estava em Luanda – esclareceu Mariana.

– Como é que ouviste a voz dele, se ele está tão longe daqui?

– Ouvi… Sei que ouvi – sustentou Xavier.

– Mostra as tuas mãos – disse Mariana.

Xavier virou as palmas das mãos para cima, para que Capelo visse o
que já tinha sido mostrado a Mariana: em cada palma havia uma ferida
recente, não cicatrizada.

– Ele disse-me que fez aquilo com um prego – disse Mariana. – Foi
porquê, Xavier?

– Para os políticos me deixarem em paz.

– Repete o que me disseste. Que feridas são essas?


– São as chagas de Cristo. Se eles virem isto, deixam-me em paz. A
religião deve estar acima da política.

– Ele feriu-se com um prego? – Capelo estava incrédulo.

– Já vi que não está infectado – afirmou Mariana.

Xavier dava mostras de não entender nada das palavras que Capelo e
Mariana trocavam.

– Xavier – disse Capelo, que não queria ouvir mais –, percebes que o
que dizes é… irreal?

– Não é irreal – respondeu Xavier, com uma expressão triste,


compadecida, diante do facto de Capelo não poder perceber.

– É uma doença – disse Capelo, pondo-se de pé, como se tivesse


tomado uma resolução. – Estás doente, tens de te tratar. Hoje mesmo
falarei com o doutor Humberto.

12

Xavier tinha dificuldade em conciliar, dentro de si, os verdadeiros pais


com estes pais substitutos que eram a sua irmã e o seu cunhado. Mourão,
que já não o reconhecia, e a mãe, que morrera, tinham sido muito
severos com ele, e agora Mariana e Capelo eram benévolos e
compassivos. Com o seu irmão Alexandre ocorria o contrário: Mourão
costumava perdoar-lhe tudo, mas agora Capelo era intransigente com
ele. Xavier queria compreender estas coisas e não conseguia.
Quando tinha oito anos, a mãe, estando a falar com senhoras amigas
junto a um dos terreiros de secagem do café, dissera-lhe para ir a casa
preparar uma sanduíche e levar-lha. Xavier preparou a sanduíche e
embrulhou-a num guardanapo; como tinha pressa de ir brincar, pediu a
um moleque que a fosse levar à mãe. A mãe recebeu a sanduíche e disse
ao moleque para ir chamar o filho. Xavier apresentou-se, assustado. A
mãe puxou-o para si e pô-lo numa posição em que as senhoras amigas
pudessem ver tudo. Desembrulhou a sanduíche e, enquanto a esfregava
na cara de Xavier, disse, num tom de voz frio, cadenciado, regular:

– Tens de perceber… que eu não como… o pão… preparado… pelas


mãos suadas… de um preto. Agora pega nisso e põe no lixo.

Xavier não esboçou o mínimo gesto de defesa. Não podia proteger-se


com as mãos quando a mãe lhe batia; se o fizesse, ela bater-lhe-ia mais.
Também não podia chorar, tinha de aguentar quieto e calado.

Anos mais tarde, Mourão adquiriu o hábito de lhe dar estaladas na


cara, fortes, daquelas que atordoam, e dizia:

– Agora vai fazer queixa ao teu pai.

Isto dava que pensar. Não era Mourão o seu próprio pai? E não era
também o pai de Alexandre, o filho trazido da sanzala? Poderia ter-se
dado uma inversão e ser ele próprio, Xavier, oriundo de algum outro
lugar? Na escola, fora um bom aluno e tinha gosto por estudar e
conhecer mais coisas, mas os pais, com a sua severidade, colocavam-lhe
enigmas insolúveis.

Xavier não estava seguro de ter conseguido explicar a Capelo e a


Mariana que se encontrava na posse de segredos políticos que iam
determinar o curso da revolução, a independência das colónias, a difusão
do comunismo. Da política e da religião extraía significados que teriam
um grande impacto no mundo.

Havia já quase um ano que, isolado no seu quarto, Xavier lia e relia o
Evangelho de São João. Elaborava ideias que associavam política e
religiões profético-salvíficas africanas. Nos últimos tempos, falava-se
mais dos tocoístas, seguidores de Simão Toco, o profeta de um Cristo
negro que viria para libertar Angola e que fora preso e vigiado pelas
autoridades coloniais. Fiéis de cultos messiânicos visitavam as sanzalas
e diziam que Jesus Cristo fora morto pelos portugueses, mas que agora
ia renascer negro para não ser reconhecido. Xavier, articulando
informações que apanhava na rádio e em jornais, achou que essas
profecias teriam alguma coisa a ver com ele.

Veio a saber pela voz do próprio Deus, um dia depois de ter revelado
tudo à irmã e ao cunhado. Trancado na casa de banho, único lugar onde
conseguia escapar à vigilância da família, viu uma luz a um canto e
ouviu uma voz que se lhe apresentou como a do Pai do Céu:

– Já uma vez desceste à Terra, meu filho, e deste uma luz nova à
humanidade. Em todas as Páscoas se repete a tua Paixão, a tua
Crucificação e a tua Ressurreição. Mas de vez em quando é preciso fazer
algo mais. O meu filho tem de descer à terra em carne e osso. A
humanidade tem de reviver tudo, não apenas em festas e cerimónias
marcadas no calendário. Foste o escolhido desta vez, Xavier.

– O que devo fazer?


– Cristo reencarnou em ti. Um Cristo negro, para levares a minha
palavra às sanzalas. Isto não pode ser só política, tem de ser também
religião. Ninguém te poderá desviar do teu destino religioso. Salvarás a
religião cristã, para ser mais forte do que as políticas. O Cristo negro
reinará durante mil anos.

– Mas eu sou branco.

– Transformar-te-ás.

– E os brancos, o que vai ser deles?

– É pelos negros que deves começar – respondeu Deus. – Eles vão ser
os donos desta terra e são muito numerosos. Noventa e dois por cento da
população é negra.

– Esse número está no anuário de geografia e turismo de Angola.

– Eu li esse anuário – disse Deus. – Um Cristo negro terá muito mais


impacto do que todas as missões apostólicas que se fazem em África há
séculos. Irás às sanzalas. Falarás às massas. As massas negras estão
ávidas de te ouvir. Tu és aguardado há muitos anos. Tu és o profetizado.
Vou dotar-te do poder de curar os doentes e ressuscitar os mortos pela
imposição das mãos. Multidões virão de todo o continente para te adorar
e seguir. Os doentes sairão dos hospitais e os operários deixarão os
patrões e formarão cortejos de peregrinos para te ouvirem falar. Darás à
Gabela o nome de Nova Jerusalém. Num momento decisivo, far-te-ei
levitar sobre a multidão, que vai ficar apavorada e ajoelhar-se. Serás
venerado e obedecido. Os vivos trarão os mortos para que os ressuscites.
Depois, a boa-nova chegará à cidade dos brancos. E difundir-se-á da
Gabela para o resto de Angola. E de Angola para toda a África. Salvarás
África, meu filho, e o poder passará dos brancos para os negros.

– E Portugal?

– A boa-nova das sanzalas chegará a Portugal e o povo vai demolir o


comunismo. As políticas ateias serão esmagadas.

Assim instruído, Xavier dirigiu-se pela primeira vez à sanzala.

Antes de sair de casa, certificou-se diante do espelho da casa de banho


de que já estava transformado. Bem via agora que a sua pele estava
negra, os cabelos encarapinhados, o rosto com traços africanos. Deus
sabia o que estava a fazer.

Teve motivos para elogiar a sabedoria infinita do seu Pai do Céu,


porque ninguém lhe saltou ao caminho ao entrar na sanzala. Caminhava
sereno, confiante, olhava em frente com um vago sorriso nos lábios.
Apenas algumas crianças pareceram reparar nele e o seguiram,
dirigindo-lhe palavras trocistas. Avistou centenas de pessoas reunidas
em assembleia, que ouviam um orador discursar numa língua nativa. «O
meu Pai sabe bem o que faz», pensou Xavier. «Já reuniu aqui esta gente
para me ouvir.»

Aproximou-se da última fila e esperou. O orador estava a falar de


política. Xavier não reparou no efeito que a sua presença causou nos
guerrilheiros armados que estavam junto do orador. Fizeram sinais uns
aos outros e alguns vieram ter com Xavier. Agarraram-no e puxaram-no
com maus modos. Mal os ouvia, mas diziam:

– O que é que estás aqui a fazer? Quem és tu? Desaparece.


Xavier, com o vago sorriso de bondade que lhe brotara no rosto assim
que saíra de casa, olhava para as caras deles, via as expressões de fúria,
mas continuava a não os ouvir. Os empurrões e as fisionomias zangadas
deram-lhe a perceber que tinham um papel a cumprir. Repetiam o guião
dos soldados romanos que maltrataram Cristo. «O meu Pai sabe o que
faz», pensou.

O orador terminou a prelecção. Antes que as pessoas dispersassem,


Xavier aproveitou para avançar. O movimento de se internar no meio da
assembleia surpreendeu os guerrilheiros, que tinham julgado poder
amedrontá-lo. Xavier parou ao lado do orador político. A assembleia,
pasmada, olhava para ele. Os guerrilheiros, sugestionados pela
expectativa geral, estacaram. Xavier rodou a cabeça, abrangendo com o
olhar a assistência de uma ponta à outra, sorrindo sempre. Ergueu as
mãos abertas até à altura da cabeça e disse em voz alta, para ser ouvido
até lá ao fundo:

– Trago-vos a boa-nova. O meu Pai mandou-me vir ter convosco. Já


não sou aquele que está no altar das igrejas, feito de madeira ou de
pedra. Sou de carne e osso, para vos falar e vos salvar. O meu Pai não
quer um Cristo crucificado e mandou-me descer da cruz e fazer-me
carne e palavras vivas.

Ouviram-se risadas e vozes pouco amistosas. Xavier permaneceu


indiferente e só achou estranho quando ouviu: «Vai-te embora, branco!»
Pensou: «O demónio não os deixa ver que eu agora sou negro. Estão
endemoninhados.»

– Vinde, ó benditos, ó preferidos do meu Pai, e tomai o reino que vos


está prometido desde que o mundo foi criado. Ditosos e benditos,
preferidos do meu Pai, segui-me, porque eu vos levarei ao reino que é
vosso, onde não sereis hóspedes, nem estrangeiros, nem criados, nem
escravos, mas senhores, donos e proprietários.

Algumas pessoas, apanhando palavras soltas, disseram umas às outras:

– O que é que ele disse? Vamos ser proprietários? Vamos ouvi-lo…

– Trago-vos a liberdade e a igualdade, trago-vos a imortalidade e o


Reino de Deus – continuava Xavier. – Vinde a mim os cansados e os
oprimidos, os escravizados, vós, os vilipendiados, vós, os humilhados,
vós, os ofendidos, vós, os que não têm voz, vós cuja voz é calada desde
os avós, os bisavós, os trisavós, os tetravós… – Atrapalhado pela
assonância de «vós» e «voz», hesitou e prosseguiu: – Vinde a mim os
tribalistas e os destribalizados. Vinde a mim os proletários. Os que
padecem de doenças. Eu vos curarei e livrarei de todos os males, nesta
Nova Jerusalém. Os que padecem de desamparo, porque eu vos
ampararei. Os que procuram a libertação, porque eu vos libertarei. O
meu Pai que está no Céu falou-me de todas estas coisas. Ele revelou-me
os segredos do Apocalipse. Sei como vos podereis salvar. Vinde a mim
os que querem ser salvos. Eu sou o profetizado. Olhai e reconhecei-me.

Sentia-se feliz porque a sua voz era o veículo de Deus. Mas o pouco
interesse que chegara a despertar na audiência esmorecera. Cresceram as
risadas e os insultos. Havia quem tivesse pena dele. O orador, que até aí
se mantivera na expectativa, fez menção de se afastar, o que retirou a
Xavier o último ponto de apoio. A assembleia começou a dispersar e os
guerrilheiros reaproximaram-se de Xavier.

«Faz-me levitar, Pai, como prometeste», pensou. «Eles verão e


compreenderão.» Mas não levitou. Por alguma razão, Deus não queria
que isso acontecesse já.

Os guerrilheiros agarraram-no. Não sabiam bem o que lhe fazer,


porque não esperavam que permanecesse imperturbável. Um deles
acabou por puxá-lo pela gola da camisa, com violência, e gritou-lhe:

– Corre! Corre daqui para fora. É melhor para ti. E se voltares mato-te.

Largou-o, para lhe dar a oportunidade de se ir embora. Mas Xavier


ficou parado, a olhar para eles com compaixão, o que fez alguns
virarem-lhe as costas, desinteressados, e aumentou a fúria de outros que
preparavam novas agressões. Um grupo de velhas resolveu intervir.
Envolveram o jovem branco e levaram-no para trás de uma cubata.
Chamaram um velho, respeitado pelos mais novos, que o escoltou para
fora da sanzala.

13

O doutor Humberto recomendou a Capelo que levasse Xavier a uma


consulta psiquiátrica em Luanda. Lidando com este assunto, Capelo
tentou que o seu rosto não traísse nenhuma emoção, que fosse
inexpressivo, como costumava fazer quando estivera na guerra, e
chamou Xavier, a quem disse o que iam fazer. Para sua surpresa, o rapaz
aceitou sem resistência.

Quando entrou no carro de Capelo, trazia a cara pintada em tons de


vermelho, verde e amarelo. Capelo viu também que Xavier agia com
naturalidade, e só ao fim de alguns quilómetros de estrada é que
perguntou a razão daquela camuflagem. Xavier explicou que tinha
ouvido na rádio que a independência das colónias seria o fim de
Portugal, então pintara a cara com as cores da bandeira nacional para
impedir que algo de terrível acontecesse.

Xavier ficou internado no Hospital Maria Pia e Capelo alojou-se num


hotel. Visitava o cunhado todos os dias. Luanda, a cidade aonde tinha
regressado tantas vezes, recordou-lhe a guerra. Mirou a mão e o braço
esquerdos, acariciou-os com a ponta dos dedos, à procura de uma
daquelas minúsculas erupções negras, pequeníssimos estilhaços que o
seu corpo de vez em quando ainda expulsava. Das entranhas do seu
corpo reemergiam estes vestígios concretos, não apenas do fundo do seu
sono agitado.

Fora das horas da visita, Capelo procurava distrair-se o mais que


podia. Lia jornais nos cafés, ia ao cinema, frequentava diversões
nocturnas. Gostava de Luanda. Quinze anos antes, quando viera iniciar
aqui um serviço militar que tudo indicava iria ser breve e sem história, a
cidade começara por o impressionar como se fosse um turista: os
monumentos, como a fortaleza de São Miguel, de muralhas brancas,
feita no século XVI para combater piratas e invasores, tinham qualquer
coisa de familiar. Naquela altura, o comércio e a indústria
concentravam-se numa faixa ao longo da baía. Na parte alta estavam os
bairros residenciais europeus. Nunca visitara os bairros de lata africanos.
Na baía, a Ilha era a praia da moda, com restaurantes, cafés e um porto
de pesca. Lembrava-se de ter ido mais longe e conhecer o percurso entre
Luanda e a barra do rio Dande, repleto de vistas deslumbrantes da costa.
À noite, milhares de luzes da Avenida Marginal reflectiam-se na água.
No hotel, as pessoas com quem Capelo falava diziam-lhe que, aqui e
ali, o lixo andava a ser recolhido com irregularidade e já ninguém tapava
os buracos na calçada ou no asfalto. Havia montras de lojas cobertas por
cartazes políticos, onde se lia: «Vitória ou morte» e «Holden, o Cristo
do século XX». A política de destruir para reconstruir, de arrasar os bens
dos brancos para devolver a terra aos seus verdadeiros donos, era uma
opção difundida nos dialectos nativos. Repetia-se: «A liberdade
conquista-se, não se recebe num papel assinado a uma mesa de
negociações num hotel em Portugal.»

Os incidentes entre o MPLA e a FNLA aconteciam perante a


indiferença da tropa e potenciavam a violência por parte dos marginais e
cidadãos até aí cumpridores da lei. Todos os dias havia mortes,
sequestros, assaltos, violações. Os luandenses brancos que, catorze anos
antes, tinham passado por um período de terror diante de uma ameaça
que parecia estar a chegar, viviam agora paredes-meias com a violência,
que ditava o tom da vida citadina.

Depois dos incêndios e dos saques, os jornais deram conta da nova


moda: os raptos e as prisões ordenados pelos movimentos. Publicavam-
se anúncios sobre desaparecidos. Os prisioneiros brancos eram acusados
de crimes contra negros ou de pertencerem a organizações que
sabotavam a independência. Em muitos casos era o pretexto para
vinganças partidárias ou roubo de bens. Os prisioneiros eram levados
para quartéis e locais adaptados a prisões. Podiam ficar vários dias em
celas com trinta pessoas, sem visitas, mal alimentados, sujeitos a
espancamentos e torturas. Tudo isto acontecia quando ainda vigoravam
as leis portuguesas. Os presos que não desapareciam para sempre
podiam ser entregues ao Exército a troco de armas.
14

Xavier fora conduzido por Capelo até ao hospital e aceitara tudo o que
lhe tinham dito: que iria descansar, recuperar o sono. Mas não dormia
tanto quanto esperavam dele. Receava que andassem a hipnotizá-lo para
lhe arrancarem as ideias políticas. Talvez a segunda injecção que lhe
haviam dado não fosse para a terapia do sono, mas o soro da verdade.

Capelo voltou para a Gabela, dizendo que regressaria na semana


seguinte. Novas suspeitas germinaram no espírito de Xavier: parecia-lhe
evidente que os médicos e os enfermeiros eram manipulados pela PIDE,
que desde o 25 de Abril continuava a prender e a torturar pessoas, agora
na clandestinidade. Xavier deambulou por um corredor, à procura de
uma sala que sabia haver ali, o centro de espionagem da polícia política.
Os enfermeiros afastaram-no dali; reprimiam as suas pesquisas, o que só
confirmava que tinham medo do que pudesse descobrir. Verificou, no
espelho, que o rosto perdera os traços africanos e que a pele voltara a ser
branca.

Ouvia as conversas dos outros doentes e do pessoal do hospital.


Parecia que, a cada dia, a situação lá fora piorava. Ouviu um enfermeiro
dizer a outro, quando chegou atrasado para o seu turno, que tinha medo
de andar nas ruas e que o período do recolher obrigatório podia agora
durar das nove da noite às seis da manhã. À noite, o enfermeiro de
serviço costumava ter o rádio ligado. Xavier aproximava-se para escutar
as vozes que saíam do aparelho e que, tantas vezes, lhe roubavam os
próprios pensamentos. Cada frase emitida pelo rádio repetia-se dentro da
sua cabeça, mas era uma repetição de uma repetição, porque um
microssegundo antes de ouvir a frase vinda de fora já ele a tinha pensado
e produzido dentro da sua cabeça. Havia interferência das ondas
magnéticas e cerebrais, com que tentavam manipular-lhe a mente,
arrancando-lhe as ideias ou, então, induzindo-o a pensar nas soluções
que os políticos depois aproveitariam:

– Por toda a Luanda os comerciantes encerram os estabelecimentos…


Por toda a Luanda os comerciantes encerram os estabelecimentos… Já
não se fazem importações, e a insegurança e as greves sucessivas
impedem a circulação dos transportes de longa distância para Luanda…
Já não se fazem importações, e a insegurança e as greves sucessivas
impedem a circulação dos transportes de longa distância para Luanda…

Tudo vinha repetido duas vezes, embora eles quisessem fazer-lhe crer
que a frase dita pelo jornalista vinha primeiro e o eco dentro da sua
cabeça vinha a seguir, quando na verdade se passava o contrário: Xavier
pensava primeiro, o jornalista limitava-se a repetir o que ele pensara.

– O abastecimento das cidades estanca… O abastecimento das cidades


estanca… As famílias, não encontrando alimentos nas lojas e mercados,
enchem a despensa a pensar nas privações futuras… As famílias, não
encontrando alimentos nas lojas e mercados, enchem a despensa a
pensar nas privações futuras…

Uma noite, quando um novo boletim noticioso interferia com a sua


mente, houve um corte de electricidade. Xavier ficou às escuras no
corredor. Sabia que, nos dias anteriores, já tinham acontecido muitos
cortes de água e electricidade em diferentes pontos da cidade, porque
ouvira Capelo falar sobre isso com o pessoal médico. Agora acontecia
pela primeira vez no hospital.
No escuro, Xavier avistou uma luz fraca vinda do exterior, de um
pátio onde alguém acendera uma lanterna. Aproximou-se da janela, que
estava trancada por razões de segurança. A luz da lanterna que vacilava
lá em baixo chegava muito fraca. Encostando a cara ao vidro da janela,
não conseguia ver o pátio. A luz vaga pareceu-lhe Deus. O Pai do Céu
enviava-lhe um novo sinal. Apontava-lhe o caminho. Tinha de sair dali e
ir resolver os problemas que estavam a perturbar a cidade.

15

Chegava à cidade de asfalto o estrondo das batalhas entre os


guerrilheiros do MPLA e da FNLA, que usavam armas ligeiras,
granadas de mão, morteiros e bazucas.

Crescia o número de pessoas que iam para Lisboa. Já ninguém achava


estranho chegar ao local de trabalho e ver mais uma cadeira vazia ou
telefonar para casa de um amigo e ninguém atender.

As greves pararam as indústrias. Os navios nos portos esperavam


meses para descarregar. Os custos da mão-de-obra subiam todos os dias.
Não se podendo planificar construções ou elaborar orçamentos, as obras
públicas paravam. As estradas eram inseguras e os mercados não eram
abastecidos. Escasseavam os produtos, os preços disparavam e florescia
o mercado negro.

Os líderes dos movimentos declaravam que a sua luta era contra o


sistema colonial, e não contra os brancos; estes começavam a acreditar
que havia uma acção concertada para criar pânico colectivo e que seriam
vítimas de um genocídio se não saíssem de Angola antes da
independência. Eram maiores as filas dos que queriam sair do território
por avião ou navio. Havia uma corrida à moeda estrangeira. Bens
convertíveis, como ouro e jóias, não eram trocados por escudos
angolanos.

A exploração dos diamantes degenerou em tráfico ilegal. Na região da


Lunda, devastada pelo garimpo selvagem, maltrapilhos esfomeados, de
enxada e pá na mão, abriam covas e fugiam para debaixo das árvores
quando um avião do governo os sobrevoava. Gente vinda de toda a parte
tentava converter a fortuna e as economias de uma vida em diamantes,
porque o dinheiro angolano não valeria nada no exterior. Para evitar
ciladas, convinha ter conhecimentos na rede, entre o garimpeiro, o
traficante, o lapidador e o comprador particular. Estas redes estavam
instaladas nas maiores cidades e tinham ligações com bancos
estrangeiros e o corpo diplomático. Ninguém controlava o fluxo de
refugiados de outros países que engrossava as hordas esfarrapadas de
garimpeiros.

Havia fogo de armas ligeiras e pesadas em Luanda. Os movimentos


emancipalistas erguiam barreiras em avenidas e ruas importantes para
exigirem a identificação dos condutores; assim detectavam os militantes
rivais e faziam ajustes de contas. Bandos de delinquentes faziam surtidas
nos bairros brancos, roubavam casas, escolas, repartições públicas. Sem
obedecer aos seus chefes, grupos de guerrilheiros agiam por conta
própria e espalhavam o terror. O alto-comissário decretou o recolher
obrigatório. À noite Luanda ficava às escuras. Em três dias, contaram-se
quinhentos mortos nos musseques, de onde milhares fugiram para o
interior do país. A guerrilha entre os movimentos chegara ao asfalto, os
brancos recuavam para um espaço cada vez mais reduzido.
Na cidade já convulsionada por um ambiente de guerra, Xavier
encaminhou-se para o Palácio do Governo. Tinha ouvido falar no novo
alto-comissário, um general do Exército que substituíra o tão odiado
almirante. Ia falar com ele, convertê-lo à religião cristã e afastá-lo do
comunismo. Se começasse a sua pregação no Palácio, a partir desse
centro influenciaria Luanda inteira e depois toda a Angola.

Foi indagando o caminho aos transeuntes. Calçava umas botas


roubadas ao doente com quem partilhava o quarto do hospital e tinha o
pijama tapado por um casaco comprido. Quando chegou ao Palácio do
Governo, viu muita gente que parecia acampada diante do edifício. Eram
famílias inteiras de brancos que se diziam desalojadas ou em perigo e
que reclamavam transporte para Portugal. Havia cartazes com frases de
aflição e pedidos de socorro, para o alto-comissário ler e perceber que
tinha de agir depressa para os ajudar. Xavier achou que calhava bem. Já
tinha um público para começar a doutrinar, um público que o ouviria
com reverência, assombro e adoração. Só precisava de um bom local e
avistou uma varanda na fachada principal e dirigiu-se para lá. Destacou-
se da multidão dos acampados e aproximou-se da porta principal. Foi
barrado por um militar português:

– Não pode passar.

– O alto-comissário, por favor – disse Xavier, com naturalidade.

– Não há alto-comissário para ninguém – replicou o militar, como se


já tivesse ouvido muita gente antes a pedir audiências com o general.

– Não é aqui o comissariado? – perguntou Xavier.


– Ah, ah… O comissariado…

Aproximou-se outro militar:

– O que é que ele disse?

– Perguntou se é aqui o comissariado.

– Venho falar com o alto-comissário – disse Xavier, esperando a


qualquer momento que eles lhe dessem espaço para avançar para a
porta.

– Não pode passar, já disse. Não há alto-comissário para si.

Agora os dois militares olhavam para a sua roupa, como se notassem


alguma coisa estranha. Xavier ficou em silêncio. Examinou-os também.
Tinham barba e cabelo compridos. Ele próprio, Xavier, andava a deixar
crescer a barba e o cabelo, por isso disse, com naturalidade:

– Vocês também têm a barba e o cabelo crescidos.

– E depois? – reagiu um dos militares, dispondo-se a alimentar uma


conversa estranha para se distrair do tédio.

– Somos revolucionários – disse o outro, rindo-se.

Quando deixaram de se rir, olharam para Xavier com seriedade, como


se não admitissem que ele pusesse em dúvida que eles eram
revolucionários. Xavier continuou a olhar para o cabelo e a barba deles.
Os dois militares, por sua vez, examinaram a atenção com que ele os
examinava. Um murmurou para o outro:
– Este está cacimbado…

Como Xavier esperasse uma resposta, o primeiro militar repetiu, em


tom definitivo:

– Não pode passar.

16

Alexandre ainda não tinha encontrado o seu lugar. Dentro da FNLA,


recomeçou a mesma trajectória que, no MPLA, lhe tinha dado a ilusão
de vir a merecer a confiança das mais altas cúpulas. Não queria repetir
os mesmos erros, mas, por outro lado, se queria ascender rapidamente,
como achava que era o que se esperaria de uma pessoa com os seus
talentos, não poderia conformar-se em ser discreto. Envolveu-se no
tráfico de diamantes e viu-se metido num conflito entre duas facções de
«irmãos» do partido que competiam pelo controlo de uma rede. Não
hesitou em empreender lances arriscados que, se corressem bem, lhe
dariam o poder material que há tanto tempo procurava. Mas tudo correu
mal. A sua facção saiu derrotada. Houve represálias e execuções
sumárias.

Alexandre fugiu para Nova Lisboa. Célia julgou que também estaria
em perigo, mas os outros delegados políticos e o comandante militar
garantiram-lhe que não. Antes de fugir, Alexandre pediu-lhe que se
mantivesse na FNLA para lhe ir dando conta das intenções que tivessem
contra ele.

No exílio, Alexandre não tardou a conceber um plano para regressar:


só filiando-se na UNITA estaria seguro. Era o movimento que lhe
faltava integrar e o único que, agora, lhe poderia garantir alguma
protecção contra os outros dois. Seria mais difícil ser atacado se
estivesse dentro de uma estrutura política e militar. Recorreu à sua
capacidade de persuasão, afagou o narcisismo de uma instituição que
queria crescer aceitando os dissidentes que tudo sabiam, ou diziam
saber, dos rivais, e foi aceite. Assim pôde voltar para casa, escoltado por
guarda-costas da UNITA, e partilhou com Célia o seu entusiamo e os
seus novos horizontes:

– A UNITA é o único movimento que vê Angola no seu todo e pode


garantir a unidade nacional. O Jonas Savimbi é um génio. Tal como eu,
ele pertenceu ao MPLA, mas, tal como eu, percebeu que aquilo não
prestava e saiu a tempo.

A bem ou a mal, alguma parte das riquezas de Angola iria pertencer à


UNITA, e Alexandre contava saber jogar para ganhar alguma coisa. Se a
UNITA triunfasse, através de eleições livres ou pela guerra, ele também
triunfaria e tomaria o controlo das propriedades da irmã e do cunhado.

No entanto, não teve muito tempo para trabalhar o seu novo plano. As
coisas continuaram a correr-lhe mal. Chegou a casa excitado, como se
viesse a correr, e sobressaltou Célia:

– A partir de agora não abras a porta a ninguém.

– O que é que se passa?

– Faz a tua vida normal. Eu estarei aqui em casa. Não posso fazer
ondas. Tenho de passar despercebido.
– Houve algum problema com a UNITA?

Alexandre olhou para ela e preparou-se para dar uma dimensão


grandiosa aos seus infortúnios:

– De todo o lado me expulsam, e sabes porquê? Porque me temem.


Têm medo de mim, sabem que eu posso subir na hierarquia, até ao topo,
então tratam de me eliminar.

– Diz-me o que aconteceu.

– O que aconteceu? – repetiu ele, andando de um lado para o outro. –


Aconteceu que a UNITA está dominada por uma corrente tribalista.
Disseram-me: «O branco vai-se embora de barco, mas o mulato vai a
nado.» Já me deram a entender que nunca serei ninguém na UNITA. E
que me podem fazer a folha a qualquer momento.

– E agora? Vais voltar para a FNLA?

– Não posso! – disse Alexandre, com um esgar de medo, que se


apressou a disfarçar. – Não posso, porque lá também me temem. Sou
uma ameaça para todos.

Célia ficou a observá-lo uns momentos. Lembrou-se:

– A tua melhor hipótese agora é a tropa portuguesa.

– O quê? Esses colonialistas fascistas?

– Já não são colonialistas fascistas, pelo menos os que ainda estão


aqui. Estão a transferir a soberania, ainda são respeitados. Vais ter com a
tropa e dizes que estás a ser perseguido pelos movimentos de
independência. Dizes-lhes também que já tinhas sido perseguido pelo
regime colonialista. Isso vai soar-lhes bem. Eles querem dar a entender
que protegem as vítimas do fascismo.

Alexandre aproximou-se de Célia:

– Sabes que isso é capaz de ser uma boa ideia? Ainda vou ser alguém,
nalgum gabinete político. O Movimento das Forças Armadas, talvez…
Eles vão gostar de ter lá alguém que foi torturado no Campo de S.
Nicolau.

– Tens de tirar partido do teu passado.

– Minha querida, apontaste-me um caminho interessante…

Nos dias seguintes, o entusiasmo de Alexandre esmoreceu. Não tinha


a certeza de chegar a ser influente junto da tropa ou do MFA, que se
encontravam a prazo em Angola. E não o podia tentar na Gabela, onde
já estava queimado; teria de ir para uma cidade e recomeçar dificilmente
do zero. Já se via a juntar-se a muitos outros numa fila de inscrição nas
listas de espera para apanhar um avião para Portugal. Estava reduzido a
declarar que era vítima de todos e juntar-se aos desalojados. Tinha raiva
de si mesmo por ter falhado. O abrigo ia ter de ser a antiga Metrópole,
que recebia qualquer um que fosse admitido num avião.

Um acontecimento veio dar uma vida nova a Alexandre. Um amigo


desafiou-o a irem para o Cafunfo, um lugarejo no Nordeste, na zona
diamantífera, onde se estava a fazer prospecção formal e informal de
depósitos aluviais descobertos havia pouco. Só se podia chegar por
avião e a pista de aterragem fora terminada no ano anterior. Alexandre e
o amigo seriam prospectores por conta própria. Ali, no meio de tantos
desconhecidos e aventureiros internacionais, podia recomeçar-se e,
quem sabe, ser ajudado pela sorte, que não vê caras nem investiga o
passado de ninguém.

Alexandre descreveu a Célia as oportunidades maravilhosas que o


aguardavam no garimpo clandestino. Não a podia levar consigo
enquanto não garantisse uma base por onde começar a prosperar.
Explicou-lhe:

– Aquilo é muito perigoso. Eu vou lá abrir o meu caminho à


cotovelada, ao murro e ao pontapé, ou, possivelmente, ao tiro. Nem
sequer me convinha ter uma mulher comigo. Mas garanto-te… Assim
que eu puder, e vou poder, mando alguém chamar-te para te ires juntar a
mim.

Alexandre partiu e, desde esse instante, Célia começou a contar as


horas e os dias, à espera da chamada dele.

17

Em Março, nas férias grandes do ano lectivo, aborrecendo-se com a


ausência de Alexandre, Célia decidiu passar sozinha as primeiras férias
profissionais da sua vida em Novo Redondo. Pediu ao pai que a levasse
e Mateus deixou-a à porta do Praia Hotel, frente ao mar. Deixara recado
na escola para a contactarem se Alexandre a chamasse.

Célia passava os dias a mergulhar e a ler romances deitada na toalha.


Saboreava a sensação de ser tratada por «senhora» na recepção do
mesmo hotel onde tantas vezes estivera em criança e adolescente. Tudo
isto era o direito de ingressar na vida adulta, pago com o seu ordenado
de professora. Mas sentia a mãe, ali. Deitada, quando via uma sombra a
aproximar-se ou ouvia passos sobre a areia, entre as barraquinhas
coloridas, julgava que era a mãe e olhava para cima para constatar que
era outra pessoa qualquer. A mãe não iria supervisionar as suas férias,
vigiá-la como o nadador salva-vidas, do seu posto elevado, vigiava os
banhistas. Beatriz ressuscitara o projecto de ela ir para Inglaterra e Célia
achava que isso tinha o objectivo de a afastar de Alexandre. Quando é
que a mãe descobriria que ela já era uma adulta? Quando acabassem as
férias do Verão e o ano lectivo recomeçasse, Célia ia aprofundar a
actividade política.

Uma semana depois de chegar a Novo Redondo, deparou, na entrada


do hotel, com uma delegação da FNLA que vinha de Sá da Bandeira.
Usavam roupas com as cores do partido, vermelho, branco e amarelo.
Deu-se a conhecer como militante. O chefe da delegação, a quem os
outros tratavam por «comissário Tobias», disse-lhe que iam hospedar-se
uma noite no Praia Hotel. Estavam a caminho de Luanda, onde
apanhariam um avião para Kinshasa, para participarem num congresso
do partido que contaria com a presidência de Holden Roberto e que teria
como momento máximo a comemoração do décimo quarto aniversário
dos massacres de 15 de Março de 1961, o início da luta de libertação.
Célia pensou: «Vou com eles. É a minha oportunidade de conhecer
Holden Roberto. Se o Alexandre pode ir para o Cafunfo, à aventura, eu
posso ir a Kinshasa.» Inibiu-se de manifestar o seu desejo ao comissário
Tobias, que acabara de lhe dar a novidade. Esperaria umas horas para
lhe propor o que para si já era uma certeza: acabavam ali mesmo as suas
férias e juntava-se à delegação, a caminho de Luanda, a caminho do
Zaire, a caminho do líder máximo, e, pela calendarização que o
comissário lhe apresentara, voltaria a tempo do recomeço do ano lectivo
na Gabela, em finais de Março.

Jantou com os elementos da delegação, que contava dez pessoas.


Disse ao comissário Tobias que queria ir com eles no dia seguinte.

– Ir connosco? Para Luanda? – espantou-se ele.

– E para Kinshasa. Posso levar para o congresso a minha experiência


na Gabela. Além disso, quero conhecer o Holden Roberto.

– Porquê? Não tardará que ele volte a Angola, quando a FNLA


triunfar.

– Se posso conhecê-lo agora, por que hei-de esperar?

– Somos dez num Citroën, um Boca de Sapo – disse o comissário.

Seria triste, pensou Célia, que a oportunidade de conhecer o líder fosse


impossibilitada por não ter lugar no carro.

– Eu pago a alguém – disse, olhando para os outros nove elementos da


delegação – que fique aqui no meu lugar. Hospeda-se às minhas custas e
eu tomo o lugar no carro.

– Gosto desta nova Angola – disse o comissário Tobias. – Uma destas


meninas, vinda da sanzala, toma o lugar da menina branca e protegida
pelos papás. Vê lá se trocam mesmo de lugar e tu vais ter de ir morar
para a sanzala.

– Não será necessário – disse Célia, com presença de espírito, sem


prejudicar a boa disposição do comissário. – E não sou uma menina
protegida.

– Não és? – retorquiu o comissário, divertido. – Há bocado, sem que


eu perguntasse, falaste uma vez no teu pai e três vezes na tua mãe.

Após um minuto de silêncio, que lhe pareceu infinito, Célia ouviu com
alívio:

– Muito bem. Vens connosco. Não tem de ficar ninguém aqui no teu
lugar. Com boa vontade cabe sempre mais um no carro. Não tens de
pedir autorização aos papás?

– Não – disse Célia, como se essa fosse a ideia mais disparatada do


mundo. – Eu vou mandar-lhes um recado através de pessoas amigas que
estão aqui no hotel. Já sou maior.

18

Se a mãe a visse ali, única branca entre onze pessoas dentro de um


carro, na estrada para Luanda… A mãe costumava dizer que não valia a
pena os filhos esconderem-lhe nada, que tudo ia ter com ela, mesmo
quando nada fazia por isso.

Luanda, de que Célia só sabia o que lhe tinham contado, era maior do
que imaginara, com avenidas bem traçadas, edifícios altos, bairros
arborizados com vivendas e jardins. Atravessaram a cidade para irem
para o aeroporto, onde se juntariam a outros delegados. Faltavam
algumas horas para o voo. O Boca de Sapo, conduzido por Tobias,
integrou-se no tráfego e cruzou-se com patrulhas da tropa portuguesa.
Perto do aeroporto, foram barrados por militares. O espaço aéreo fora
encerrado. Pela primeira vez, Célia viu o comissário Tobias sem saber o
que dizer. Havia «confusão», esta palavra que agora servia para designar
todos os momentos de conflito, perseguição, ameaça. Disputado pelos
movimentos de independência, o aeroporto fora encerrado devido à
proximidade de forças beligerantes que já tinham trocado tiros de
artilharia pesada e ameaçavam a segurança dos aviões que descolassem
ou aterrassem.

O comissário Tobias fez inversão de marcha e seguiram para a


delegação principal da FNLA, na Avenida do Brasil. Ao aproximarem-
se, viram que a delegação estava a ser atacada a tiro, a partir do prédio
fronteiro.

– Baixem-se! – gritou o comissário.

Todos lhe obedeceram, menos Célia, que ia ao seu lado. Achando que
o comissário não deveria ser o único a correr riscos, não se baixou.
Tobias fez o carro galgar a calçada e parar entre duas colunas, diante da
delegação. Saíram todos a rastejar, com balas a passar por cima. Célia
esboçou o movimento de os imitar, mas, sem acreditar que pudesse ser
atingida, voltou atrás. Sem se agachar nem rastejar, fechou as duas
portas do carro deixadas abertas do seu lado, contornou o carro, foi
fechar as duas outras portas, sem pressas, e por fim, de cabeça erguida,
entrou na delegação.

Dentro da delegação, um prédio de oito andares, o espaço estava


apinhado de pessoas, deitadas ou sentadas no chão. Célia sentou-se perto
de uma mesa. A angústia das pessoas era palpável, mas Célia estava
calma, o que a surpreendeu a si própria.
Os tiros abrandavam e, quando se pensava que tinham acabado,
recomeçavam com intensidade redobrada. Mesmo ao lado de Célia, num
dos intervalos da saraivada de balas, um indivíduo estava de pé a
telefonar para o gabinete do alto-comissário. Dizia:

– Estou a dizer-lhe que estamos a ser atacados. Impossível como?

Os tiros recomeçaram e o homem que telefonava gritou:

– Ouça os tiros! Está a ouvir os tiros? – estendeu o telefone em


direcção às janelas. – Não nos responsabilizamos pelas consequências.

Célia, vendo-o de pé a correr um risco evidente, puxou-o para baixo


no instante em que uma rajada de tiros de metralhadora veio cravar-se na
parede atrás deles. O homem largou o telefone e olhou para ela,
espantado.

O ataque cessou. Começaram a sair para a rua. A fachada da


delegação estava esburacada e o interior cheio de cacos de vidro e
buracos de balas. Ouviam-se declarações de indignação, promessas de
vingança. O comissário Tobias não estava à vista e, por mais que o
procurasse no meio de tanta gente, Célia não o encontrou. Abriu-se uma
clareira e alguns homens, civis e militares, prepararam um canhão sem
recuo apontado para o edifício em frente, de onde se supunha que os
tiros tinham partido.

– Vamos matá-los! – gritavam. – Vamos arrasar o prédio!

Célia virou costas àquela cena e deixou-se convencer por alguns


companheiros do Boca de Sapo a ir, com outras sete mulheres, refugiar-
se no musseque Cazenga, um labirinto de milhares de pequenas casas de
telhado de zinco, onde as crianças brincavam no meio de porcos e
galinhas. As sete mulheres foram distribuídas por vários casebres e Célia
ficou sozinha com um casal idoso.

No dia seguinte, circulando muitos boatos de que os movimentos de


independência iam fazer mais perseguições aos rivais, os dois velhos
perguntaram-lhe a que movimento pertencia.

– Sou da FNLA. E vocês?

– Nós somos do MPLA. Agora a sanzala inteira vai saber que temos
aqui uma pessoa da FNLA. Gente do MPLA pode vir aqui à sua procura
e nós levamos por tabela.

– Então não posso ficar aqui convosco?

– Pode ficar, mas arranje outra solução melhor para si e para nós…

Por cada dia naquela habitação, Célia sentia crescer o incómodo dos
seus anfitriões. Percebia o embaraço em que os colocava. Contaram-lhe
histórias de vinganças e de raptos, em que cada partido acusava os
outros de terem iniciado o conflito. Ao terceiro dia, o casal chamou uma
patrulha da tropa portuguesa e Célia foi evacuada da sanzala dentro de
um tanque militar.

19

O tiroteio em Luanda demonstrava que a guerra civil já era um facto,


primeiro nos musseques, depois avançando para o asfalto. Já se usavam
armas pesadas e havia danos em edifícios de grande porte. O alto-
comissário afirmava ser imparcial e tentar uma conciliação entre as
várias facções.

O bom entendimento entre os elementos do governo de transição só


tinha durado o primeiro mês e sucumbiu a intrigas, antagonismos e
conflitos ideológicos. A Polícia, acusada de participar nas chacinas de
negros em Julho do ano anterior, fora substituída pelo Exército. Este,
minguando a olhos vistos, retirando-se para a Metrópole, deixava um
vazio de autoridade que os três movimentos preenchiam, impondo à sua
maneira a ordem pública apesar de não se entenderem entre si. Tornara-
se comum chamar os guerrilheiros para resolver desacatos de bêbados
ou acidentes rodoviários. Os movimentos faziam prisões, buscas
domiciliárias, sentenças judiciais, apesar dos comunicados do governo
sobre a ilegalidade desses actos.

A seu pedido, a tropa pôs Célia em contacto com a FNLA.


Reencontrou o comissário Tobias e a sua gente.

– Não andes por aí a dar nas vistas – disse-lhe o comissário. – Nós


vamos ficar mais uns dias, até regressarmos a Sá da Bandeira.

– Espero pela vossa boleia – respondeu Célia.

– De caminho ficas na Gabela. Olha… desculpa ter-te trazido para


aqui, para esta confusão.

– Eu é que quis vir. Não tem que me pedir desculpas.

– Tens dinheiro? – perguntou o comissário.

– Comigo não. Mas posso ir a um banco.


– Faz isso. Eu vou levar-te para um hotel. Ficas lá até nos irmos
embora.

O comissário levou-a para o Hotel Universal, na Avenida dos


Combatentes da Grande Guerra. Célia levava a bagagem que fora
pensada para umas férias de praia em Novo Redondo. Logo na entrada
do hotel viram um branco a levantar-se de uma poltrona e fazer uma
vénia. Célia registou-se na recepção e quando se voltaram viram o
mesmo homem a fazer nova vénia ao comissário Tobias.

– Quem é aquele indivíduo? – perguntou o comissário ao


recepcionista.

– Desde que começou a confusão que faz vénias a todos os…


africanos.

– A todos os africanos? – repetiu o comissário. – Porquê?

O recepcionista, muito sério, fez com o indicador o gesto circular


junto à testa.

No primeiro dia no hotel, ao chegar à sala de refeições para jantar,


Célia encontrou todas as mesas ocupadas. O empregado pediu licença às
três pessoas que estavam sentadas numa das mesas e para lá encaminhou
Célia.

Quem presidia à mesa era uma senhora vestida como se tivesse parado
no tempo há quarenta anos. Pela voz trémula, embora educada, e pelas
mãos muito enrugadas, Célia percebeu que tinha uma idade avançada.
Mas era ela quem, cheia de iniciativa, sustentava a conversa. Os outros
dois eram um sujeito que devia ser seu marido, com o cabelo grisalho e
um bigode preto bem aparado, e um homem muito mais novo. Pela
conversa, Célia percebeu que a senhora era a mãe daquele que parecia
seu marido. O outro, a quem tratavam por professor, era um amigo da
família. Mãe e filho estavam em trânsito para Portugal. Viviam perto de
uma vila do interior, nos Dembos, onde um dos movimentos de
independência lhes ocupara a fazenda de café e acusara o homem do
bigode, que para além de fazendeiro era chefe da Polícia reformado, de
ter explorado os trabalhadores negros. Ameaçados de morte todos os
dias, achando que a situação em Angola só iria piorar, tinham decidido
ir para Lisboa. Já tinham os seus pertences encaixotados e à espera de
embarque no porto de Luanda.

– Agora imagine – disse a velha, percebendo que Célia meditava sobre


o que lhe acabavam de contar –, eu nasci em Angola, há noventa e cinco
anos, os meus filhos aqui nasceram, e vamos para uma terra que nunca
considerámos nossa. Ali o senhor professor, que nasceu lá, é que
tenciona ficar por aqui.

– Pelo menos por enquanto – disse o visado, com ar contrito.

– E têm alguém para vos receber? – perguntou Célia.

– Uma das minhas filhas, que foi para lá há muitos anos. Claro que
não pode acolher-nos por muito tempo. A tralha que levamos enchia um
casarão, não vai caber num apartamento como o dela. Só troféus de
caça… Este menino era caçador nas horas vagas.

Perante estas palavras, o filho pôs um ar mais carrancudo.

– Foi desarmado pelos guerrilheiros – acrescentou ela, inclinando-se


para Célia. – E a menina, vem de onde?

– Gabela, mas nasci em Portugal – disse Célia.

– Os senhores seus pais vieram estabelecer-se na Gabela, foi isso?

– Primeiro foram para Moçâmedes. O meu pai…

– Moçâmedes! – exclamou a velha. – Não diga mais nada. A Huíla…


Foi aí que começou a minha vida. Nasci em Ganguelas e Amboelas, em
1888… não… ora bem…

– 1885 – disse o filho.

– Qual 1885! 1890… não, não…

– 1880 – disse o professor, em tom definitivo.

– Vês? – disse a velha ao filho. – Estás velho.

O chefe da Polícia reformado empertigou-se, contrariado. A mãe


prosseguiu:

– O meu pai era brasileiro. Veio naquelas colónias de agricultores. A


província da Huíla ia ser o celeiro de Angola. Um irmão da minha mãe
foi um dos primeiros governadores do Lubango, que depois passou a
chamar-se Sá da Bandeira e agora vai de certeza tornar a chamar-se
Lubango. Já morreram todos os que eu conheci lá em baixo. Casei-me
aos dezasseis com um alferes. Fomos para o posto de Cuangar, substituir
um oficial que já lá estava há quatro anos, cheio de paludismo. Precisava
de quinino e dos ares saudáveis do litoral. A nós cabia-nos a vez de ir
para aquele posto, comandar os soldados da companhia indígena. Quatro
anos estivemos lá, tomando quinino e de vez em quando atacados pelas
febres e pelo paludismo, em terras onde não havia médico. Ali nasceu
este que aqui está. O rio Cubango, do lado de cá era português, do lado
de lá era alemão. Acompanhei o meu marido durante trinta e seis anos,
quase sempre por terras aonde só se ia obrigado, longe da minha mãe.
Dei à luz os meus filhos sozinha, tendo ao lado apenas o grande militar
que soube fazer de mim um soldado também. À noite lia-se à luz das
estrelas e só tínhamos dois livros, uma Bíblia e A Medicina em Sua
Casa. Andei por terras lindas, de vegetação farta, mas também apanhei a
má vida dessas terras por desbravar, onde nem tínhamos sabão para
lavar a roupa e comíamos o grão, o feijão e o arroz com gorgulho e
outros bichos. Quem sabe se não foram esses bichos que me forneceram
a proteína para chegar a esta idade? Havia muitas carências no mato.
Tínhamos dinheiro, mas não havia o que comprar. Não faltava carne de
caça, que ofereciam ao meu tenente, mas não havia as outras coisas que
fazem falta aos homens brancos e às suas mulheres. Passei por muito.
Mereço ou não a pensão de velho soldado, desde que enviuvei?

Fitava Célia como se esperasse uma resposta, mas Célia apenas sorriu.

– Passei muito com os altos e baixos que a vida me tem dado, nos
longos anos que já levo e durante a minha vida militar, em que houve a
Grande Guerra de 14-18, que chamou a fome, a peste e a seca. A minha
mãe teve de deixar a fazenda da Huíla por causa da seca e vir para Sá da
Bandeira, onde estávamos nessa altura. Havia carência de tudo, açúcar,
leite… só a mim não faltou porque aos militares nada faltava. Porque
tem uma velha como eu de se ir embora da sua terra? Uma só vez fui à
Metrópole, há mais de setenta anos, porque o meu marido quis ir visitar
os pais e mostrar-lhes os netos. A caminho de Moçâmedes, para
apanharmos o navio, atravessámos um rio às costas de pretos. O meu
capitão disparou tiros para a água, para afugentar os crocodilos.
Passámos o rio, um a um, primeiro eu, depois cada um dos meus três
filhos já nascidos, finalmente o pai. Tu, por seres o mais velho, foste o
primeiro.

Aqui ela virou-se para o filho, que, tendo acendido o cachimbo, puxou
com mais força o fumo, fingindo não se interessar.

– Passei por tantas coisas e agora pregam-me esta partida que é ter de
fazer as malas aos noventa e cinco anos para ir para a tal Metrópole.
Agora está tudo virado do avesso e aparecem estas hordas negras. De
onde vêm? Para onde vão? O que querem? E nunca se viram tantos de
uma só vez. Bandos e bandos deles… Os pretos gostam muito de andar
em bandos.

Esta era uma afirmação que Célia esperaria ouvir da sua própria mãe,
por isso não resistiu a perguntar:

– Mais do que nós?

– Diz, filha? – A velha pareceu não ter percebido a pergunta.

– Os pretos gostam mais de andar em bando do que nós?

– Sim, é uma característica deles. E olhe que eu não sou racista. Tenho
uma neta mulata, de uma preta que este meu filho arranjou quando
andou na tropa. Era uma dessas mulheres de que os homens precisam
quando estão nas guerras.

O filho pôs-se a sugar o cachimbo com mais força, como se quisesse


esconder-se atrás de uma cortina de fumo.

– Mas este foi um militar muito diferente do pai. Não tinha a garra, a
fibra do pai. Saiu do Exército para ser chefe da Polícia.

O filho, reprimindo a vontade de reagir, levantou-se para ir buscar um


cinzeiro. A mãe aproveitou a sua ausência e disse em voz mais baixa:

– Está a ficar velho. Sabe uma coisa… ele pinta o bigode.

Perante esta inconfidência, que vinha ao encontro das suas suspeitas,


Célia não conseguiu deixar de rir. A velha teve uma risada cúmplice.
Quando o filho regressou com o cinzeiro, a velha prosseguiu:

– E repare-se naquele chefe ou comandante, ou lá o que ele é, que faz


discursos e comícios e manda matar os da sua raça. Não há quem lhe dê
um tiro? Pobres crianças e mulheres que morrem quando a guerra nem é
delas. Cheias de fome… e porquê? É a luta pelo poder e nada mais.
Também o negro do Zaire, o Mobutu, se revela ferozmente, com aquele
barrete de pele de onça que significa apenas a força da luta pelo poder.
Que belo tiro ele merece e ninguém lho dá!

Aqui o chefe da Polícia reformado olhou para ela, como se


respondesse a uma chamada, como se lhe competisse cometer um
assassinato político, por ordem da mãe.

– Como o outro antes dele… o outro… como é que ele se chamava,


que acabou numa poça de sangue no meio do asfalto?

– Lumumba – disse o filho, lúgubre.


– Tudo acaba… Eu cá me vou acabando sem me preocupar.

– É preciso deixar correr o marfim – disse o filho, resignado.

– O marfim? Mesmo isso é hoje uma matança sem dó nem piedade.


Chacinam os pobres elefantes que vivem nas selvas, nos seus territórios,
sem afrontar os homens que só sabem é ser ambiciosos.

– Mãe, não é isso… É preciso deixar correr o marfim. É o provérbio.

– De provérbios percebo eu, não tu.

O filho quis explicar-se melhor, mas ela fez um gesto de impaciência e


disse, virando-se para Célia:

– Está a ficar velho.

Depois, encarando o filho:

– Eras um bebé lindo, palrador, amoroso. Tornaste-te um homem


forte, cheio de garbo. Tinhas o cabelo aparado, o bigode perfumado. Um
autêntico galo, com as galinhas atrás de ti. Eu via-te da janela, quando
saías de casa. Distribuías galanteios à esquerda e à direita, as mulheres
ficavam a ver-te passar. Agora olha para ti: gordo e careca, meio xexé.
Quem diria que eu ia ter anos de vida para assistir à tua senilidade…

20

Depois do jantar, a velha senhora, apoiada numa bengala com castão


de prata maciça e as iniciais do seu nome gravadas, anunciou que ia
deitar-se.
O chefe da Polícia e o professor convidaram Célia a acompanhá-los ao
bar do hotel. O professor, que durante o jantar mal abrira a boca,
chamou a atenção de Célia com um ar de secretismo, como se
preparasse algo especial. Abriu uma pasta e passou-lhe para as mãos o
que parecia um pequeno jornal amador, quatro ou cinco folhas mal
tipografadas. Célia pensou que era propaganda política clandestina.

– Pode ficar com essa cópia – disse o professor.

– Isto é o quê? – perguntou Célia.

– Um opúsculo, chamemos-lhe assim. O décimo que já fiz imprimir e


distribuir, no âmbito das comemorações da fundação da cidade de
Luanda. Para o ano, fará 400 anos que Paulo Dias de Novais fundou a
primeira cidade europeia da África Negra.

– Já cá não estaremos para a festa! – exclamou o chefe da Polícia


reformado, que tornara a encher o cachimbo e, na ausência da mãe,
parecia fumar mais relaxado.

O professor olhou para ele e respondeu, com altivez:

– O facto de estar a acontecer o que está à vista de todos só torna mais


urgente a existência do comité para a comemoração dos 400 anos da
cidade.

– Existe um comité? – perguntou Célia, só para se mostrar interessada.

– Existe e tenho a honra de ser o presidente. Temos deparado com


dificuldades quase intransponíveis. O governo de transição mostra-se
insensível às nossas petições. Mas queremos acreditar que a data que se
aproxima não possa ser passada em branco.

– Porque é que insiste em dizer «nós», se está sozinho nessa


empreitada? – tornou o chefe da Polícia.

– Sozinho? – devolveu o professor. – Não estou sozinho.

– Disse-me que faz tudo sozinho. É o presidente do comité, é o autor


destes opúsculos, assina os textos com diferentes pseudónimos, é o
tipógrafo e distribuidor…

– Digo e repito que não estou sozinho. Represento uma nação das
mais antigas da Europa e que inaugurou a Idade Moderna no mundo ao
enviar navios para todos os mares. Represento milhares de homens vivos
e mortos que levaram o nome de Portugal a todos os continentes e o
nome de Cristo a todas as raças. O homem do leme está sozinho, mas é
ele quem conduz a nau onde os outros seguem.

Célia, que de vez em quando olhava para as folhas que ele lhe dera,
reparou que o texto da primeira página estava assinado «Homem do
Leme».

– A data da independência já está marcada para 11 de Novembro –


disse. – Quando chegarmos ao próximo ano, o governo já será outro.

– E, se este não quer saber dos 400 anos – juntou o chefe da Polícia –,
o próximo ainda menos. Vai-se falar do ano zero de Angola, não dos
400 anos de Luanda.

– É contra esses progressistas de última hora que eu me bato com a


minha caneta – disse o professor –, esses que dizem que Angola será um
país novo e fingem não saber que este país começou a ser construído
com a chegada de Diogo Cão, em 1482. Piores do que os progressistas
daqui são os da Metrópole, que vão entregar Angola numa bandeja aos
terroristas, que já tinham perdido a guerrilha e agora dizimam as
populações africanas que viviam sob a nossa protecção. Desde o 25 de
Abril que tudo tem sido uma traição, incluindo o Acordo de Alvor e a
formação do governo de transição. Uma infâmia, um crime perpetrado
pelos comunistas da Metrópole, conluiados com os russos e chineses,
que nos querem expulsar, a nós que somos os defensores dos negros. Os
negros vão ser escravos de Moscovo e de Pequim.

– Lisboa quer é livrar-se disto – disse o chefe da Polícia, com


repugnância.

– Os vendilhões da pátria vão entregar tudo ao comunismo


internacional. Enganam os negros com essa história dos nacionalismos
para os açularem contra nós e ficarem depois à mercê de quem vier para
o nosso lugar. As populações nativas não querem separar-se da pátria-
mãe e estão com medo. O que vem aí? Guerra, caos, anarquia. Os
vendilhões da pátria vão destruir Portugal, num desrespeito pelo que
gerações de santos e de heróis fizeram para erguer a bandeira latina
cristã naquele pedaço da Península Ibérica e nos outros continentes.
Mais de oito séculos de História destruídos em poucos meses por
arrivistas de quarta categoria.

– E o que é que pode o Homem do Leme fazer perante isto? –


perguntou o chefe da Polícia, com um sorriso deformado pelo cachimbo.

– Você parece satisfeito – disse o professor. – Contente por se ir


embora e me deixar aqui, a mim e a outros como eu que não desistiram
desta terra.

– Não estou contente, homem. Não se esqueça de que nasci aqui.


Como posso estar contente sabendo que a minha fazenda, que alguns
fantoches fingem tratar, vai ficar afogada no capim e se vai perder a
próxima colheita do café, que vale milhares de contos? Estou é
descrente do futuro e demasiado velho para me iludir. Os brancos são
insultados, agredidos, como me fizeram a mim e à minha mãe. Angola
acabou para nós.

– Pois eu tenciono ficar aqui por mais algum tempo, pelo menos até ao
ano que vem. O ano do quarto centenário da cidade. Podemos salvar isto
das garras dos comunistas. A FNLA é a única força capaz de os derrotar.

Célia teve o impulso de se declarar filiada na FNLA, mas sabia-se tão


distante das posições do professor que teve vergonha de o fazer.

– De nada vale tomar partido – descreu o chefe da Polícia reformado.


– Vai associar-se a um assassino para o defender de outros dois? Quer
confiar na FNLA? Olhe que o MPLA ainda o prende por causa disso.
Ouça isto, que serve de instrução aqui à Célia… Um rapaz da minha
idade, que pertenceu ao quadro administrativo, passou diante da
delegação do MPLA. Azar o dele: cinquenta militares mandaram-no
parar. Tiraram-no do carro à coronhada. Foi preso. Acusação: quando
estava num posto administrativo do Cuanza Norte mandou matar muitos
pretos. A coisa mais simpática que lhe chamaram foi «porco branco».
Cobriram-no de escarros e obrigaram-no a lamber os escarros. Urinaram
em cima dele. Encostaram-lhe facas ao pescoço. Com as facas,
gravaram-lhe nas costas as letras «MPLA». Disseram-lhe que sabiam
onde é que ele morava, que iam buscar a mulher e os filhos. Aos filhos,
assavam-nos e obrigavam-no a comer. A mulher, iam violá-la ali
mesmo, diante dele. Depois é que o matariam. Disseram uns para os
outros que poderiam começar já a torturá-lo. Trouxeram cordas. Ele
ouviu-os combinar onde é que o amarrariam, e como, para o terem
imóvel. Ouviu um a dizer: «Depressa, que o comandante chega às
onze.» O comandante chegou mais cedo e pôs fim à festa quando já
começavam a arrancar-lhe as roupas e a amarrá-lo. Ficaram-lhe com o
carro, as chaves de casa, dinheiro. Foi à sede do MPLA. Mostrou as
costas marcadas com golpes de faca. Dois altos dirigentes disseram-lhe:
«A PIDE a nós fez-nos muito pior.» A seguir, foi apresentar queixa à
tropa portuguesa. Sabe o que é que lhe disseram? «Se o MPLA fez isso,
vá queixar-se à FNLA.» Não podia haver melhor exemplo da famosa
neutralidade da tropa.

– A tropa portuguesa… – disse o professor, acentuando o desprezo na


voz. – Foram buscar um indivíduo a casa às onze da noite. Levaram-no
para o Palácio do Governo e puseram-no diante desses militares
progressistas que Lisboa mandou para aqui, com grandes cabelos e
barbas compridas. Acusaram-no de pertencer a um partido de direita,
formado por brancos. Submeteram-no a interrogatórios sobre oficiais
dos comandos, saudosistas da guerra, pilotos da Força Aérea e até
membros portugueses do governo de transição. Isto é de bradar aos céus.
Militares portugueses prendem portugueses e conduzem interrogatórios
sobre outros portugueses das tropas especiais e do governo. Acusaram-
no também de ter uma fazenda no Uíge que dava apoio à FNLA. Ele
disse que a fazenda estava, isso sim, ocupada por guerrilheiros.
Disseram-lhe: «Se refila vai daqui para os musseques e o Poder Popular
trata-lhe da saúde.» Já viu esta ignomínia? Entregam compatriotas ao
inimigo? Dali levaram-no para a Casa de Reclusão e depois para a antiga
prisão da PIDE. Esteve três semanas numa cela nojenta. Dormiu no
chão, até se lembrarem de lhe dar uma cama de campanha. Mais
interrogatórios, mais ameaças, antes de o libertarem.

– É a isto que chamam as convulsões naturais do nascimento de uma


nova nação – concluiu o chefe da Polícia.

Célia leu alguns trechos do folheto. O tom triunfal contrastava com a


má qualidade tipográfica. Leu: Portugal é a potência colonial europeia
que mais património espalhou pelo mundo, na América do Sul, na
África, na Ásia. São fortalezas, muralhas, igrejas, pórticos, cidades.
Poucos conseguem ter uma visão de conjunto de todo esse património
material valiosíssimo. A cidade de São Paulo de Luanda é uma das
pérolas mais brilhantes desse colar que a brava gente lusitana
pendurou à volta do mundo, uma fiada de locais notáveis que enfeitam o
pescoço da Terra. Se tivéssemos construído na Metrópole o que
deixámos pelo mundo, Lisboa seria a capital mais monumental da
Europa. Somos um grande povo e só um ignorante põe isso em dúvida.
Em Moçambique, a barragem de Cahora Bassa, uma das maiores do
mundo, com cimento e pedra transportados por território flagelado pelo
inimigo, relembra outras gestas, como a construção das fortalezas do
Oeste do Brasil, nos séculos XVI e XVII, com pedras transportadas
através da rede fluvial da Amazónia.

Noutra página, leu: Nos séculos XV e XVI, derrotámos turcos, árabes


e hindus, para que hordas anticristãs não se espalhassem pela costa
oriental africana. Recuperando o espírito sagrado das Cruzadas,
dobrámos o Cabo da Boa Esperança e impedimos que ele fosse dobrado
no sentido oposto por navios árabes, indianos e chineses, que
bombardeariam Lisboa, Londres e Roma depois de, pelo caminho,
asiatificarem a África. Inspirados pelo génio do Infante Dom Henrique,
na sua visão de baptizar todas as raças, conquistámos África para o
Ocidente. Não nos movia a cobiça, mas a missão transcendental de
assegurar o futuro da Europa e conferir à civilização cristã o sentido de
ela ser ocidental. E somos outra vez nós, o país mais ocidental da
Europa, chamados a salvar África para o Ocidente, estancando a
expansão de nova febre anticristã: o comunismo, que quer cercar a
Europa pelo Sul. Sozinho, Portugal está a evitar a Terceira Guerra
Mundial.

Mais adiante: Depois de civilizar a África, a América e a Ásia,


Portugal vai civilizar a Europa, cabeça senil que deixou o corpo, a
Ásia, degenerar no comunismo. Noutro ponto, Célia reconheceu o estilo
do autor do texto, que era bem aquele homem sentado diante de si:
Sangue, suor e lágrimas de Portugal regam o solo angolano há
quinhentos anos. Mas uma traição vil e indigna está a envenenar a
nação: a esquerda radical, triunfando no festim bárbaro do 25 de Abril,
tem negado à juventude os valores pátrios, herança dos seus austeros e
egrégios antepassados. É contra estas forças negras e malignas que
temos de insistir, resistir, perseverar e continuar a obra sagrada do
Infante.

Quase tudo era neste tom. Na última página Célia viu a imagem de um
velho soldado, com longas barbas brancas e armadura medieval, numa
mão uma espada e na outra a bandeira da Ordem de Cristo, com ar altivo
e firme apesar de estar a ser apedrejado, sendo que cada pedra tinha uma
palavra escrita: terrorismo, ONU, Estados Unidos, União Soviética, 25
de Abril. Por baixo, a legenda: Resiste a tudo. Simbolizava, claro,
Portugal. Mas o que mais fez sorrir Célia foi outra caricatura: o mapa da
Europa a ser rasgado por um urso, de um lado, e por um gorila, do outro.
Em baixo a legenda: O urso moscovita e o gorila africano despedaçam
a Europa.

– O preto é uma criança grande, se não for mandado perde-se – estava


o chefe da Polícia a dizer. – Vão destruir-se uns aos outros. Não vai ficar
pedra sobre pedra. Eles é que são racistas, entre eles. Adoram matar-se
uns aos outros, sempre foi assim. Sacudiram um ninho de marimbondos.

– Não lamento apenas o que nos possa acontecer a nós – disse o


professor. – Lamento o que possa acontecer aos povos nativos que
viviam felizes com a nossa protecção, na civilização luso-tropical que
criámos, um exemplo de elevação moral no mundo e um caso de sucesso
genético. E é isto o direito dos povos à autodeterminação? A febre das
independências e dos nacionalismos é uma invenção para se destruir um
estado de coisas que provou ser bom e se criarem novos poderes, novas
clientelas e negociatas que se provarão não ser boas, a não ser para os
que vão encher os bolsos de dinheiro e saciar a sua sede de poder.

– Não poderia estar mais de acordo – disse o chefe da Polícia


reformado, verificando no relógio que a hora já ia adiantada.

Quando se despediam, à saída do bar do hotel, o professor disse a


Célia, apontando para o jornal amador que lhe dera:

– Não se esqueça de ler…

21
No dia seguinte, o comissário Tobias, sempre dinâmico, atribuiu a
Célia um guarda-costas. Veio ao hotel para lho apresentar. Era um
indivíduo com péssimo aspecto, a cara desfigurada por cicatrizes, os
braços cheios de marcas e tatuagens. Tinha um ar aterrador e usava um
cinto cheio de punhais. Era conhecido por Veneno do Diabo. Contaram a
Célia que ele fora guerrilheiro na UPA-FNLA. O pai, que lhe dizia que
podia ter sido colocado nalgum posto administrativo isolado do Norte
quando ela tinha seis anos, e terem sido vítimas do grande massacre, que
diria agora do seu guarda-costas? Disseram-lhe que Veneno do Diabo
era um assassino profissional; as marcas nos braços, alinhadas, eram
cicatrizes de golpes auto-infligidos, uma por cada pessoa que já matara.
Célia tinha medo dele. Achava-o muito feio e não gostava daqueles
olhos, vermelhos de fumar liamba, que a fitavam de modo turvo. As
facas enervavam-na; se ele usasse pistolas assustaria menos. Desta vez,
achou que o comissário Tobias exagerara no zelo.

Escoltada por um guarda-costas, relacionando-se com homens de um


dos movimentos, alguns deles armados, Célia já não parecia a mesma
aos olhos das pessoas do hotel que a tinham conhecido à chegada. Ia ao
cabeleireiro e fazia compras com o dinheiro que destinara às férias. Não
podia escapar sempre ao Veneno do Diabo. Como não trazia consigo
nada que a identificasse com um partido, sentia-se melhor sem o guarda-
costas. Preferia que ele se limitasse a conduzi-la de carro, mas não
andasse atrás dela.

Um dia, viu uma centena de pessoas, mulheres, velhos, doentes,


crianças perdidas dos pais, vindas dos musseques, fugirem para a
Avenida dos Combatentes, tentando chegar ao centro, onde as patrulhas
do Exército davam uma ilusão de segurança. Fugiam dos conflitos que
se adensavam entre os movimentos de independência, nos bairros
africanos, e do derramamento de sangue que se estava a tornar trivial.

Este e outros sinais levaram Célia a aventurar-se menos vezes nas


ruas. Na recepção do hotel, foi apresentada a uma cantora africana cujas
canções conhecia. Ela introduziu-a a num círculo de artistas que estavam
ali hospedados ou frequentavam a sala de espectáculos. Célia começou a
passar os serões no quarto de um deles, onde se cantavam canções de
intervenção.

Surgiu uma polémica: uns diziam que se devia cantar nas línguas
nativas, outros diziam que cantar na língua do colonizador seria um sinal
de liberdade, já que essa língua tinha representado até há pouco tempo a
repressão. A polémica ficou resolvida quando decidiram cantar uma
canção em português, mas contra os portugueses.

Um dos músicos perguntou a Célia qual era a posição política dos seus
pais e observou que a atitude dos brancos mudara muito. A violência
entre os movimentos de independência vinha crescendo, mas quase
desaparecera a violência por parte dos brancos, que agora não sabiam o
que fazer ou aderiam a um dos movimentos para obter protecção contra
os outros dois. O músico contou que durante os ataques aos musseques e
aos transeuntes negros, no ano anterior, ele estava no autocarro que fora
alvejado. Saltara para o exterior e quando se pusera em pé, apalpando-se
para saber se tinha algum ferimento, um branco aproximou-se e
perguntou-lhe: «Estás bem, rapaz?» Sensibilizado com a abordagem,
mal recuperado do perigo por que passara, balbuciou: «Acho que
sim…», e nesse momento o indivíduo deu-lhe um murro que o fez cair
ao chão.
Depois de descobrir estes serões musicais, Célia só os interrompeu por
uma ocasião para ir a um bar com o comissário Tobias. O guarda-costas
de Célia embebedou-se e a certa altura aproximou-se dela e disse:

– Tu aí, branca… Depois da independência vais ficar para mim.

O comissário Tobias esbofeteou-o com força. Célia pensou que o


guarda-costas ia virar-se contra ele, mas nada fez e foi expulso da
discoteca. Ao fim de quatro copos, o comissário já tinha perdido a
austeridade habitual e revelou a Célia a verdade sobre Veneno do Diabo.
Este não participara nos massacres de 1961, nunca fora guerrilheiro e
não era um assassino profissional. As cicatrizes nos braços eram
resultado de um acidente, e o gosto por punhais não tivera, até àquele
dia, outra consequência que não fosse contribuir para o seu mau aspecto
geral, que fora o atributo que o levara a ser recrutado para as actuais
funções. Quanto à alcunha, Veneno do Diabo, devia-se ao facto de ter
mau hálito. A lenda que dele se contava nada tinha de verdadeiro, mas,
no momento que se vivia, era útil.

22

A delegação chefiada pelo comissário Tobias deixou a cidade. Quando


o comissário veio buscar Célia ao Hotel Universal, o louco do costume
fez-lhe uma última vénia, exclusiva para africanos, a que ele respondeu
com um trejeito de desprezo.

Entraram no Boca de Sapo os mesmos onze que nele tinham chegado


a Luanda. O comissário guiava com todas as cautelas. Evitava as
barreiras de controlo, não sabendo se eram amigas se inimigas. Quando
se aproximavam de uma localidade, desviavam-se por caminhos de areia
e retomavam a estrada mais adiante.

Desta vez parariam na Gabela. O comissário Tobias queria pôr Célia à


porta de casa. Em vez de indicar a casa onde morava com Alexandre,
Célia indicou-lhe a casa dos pais. Beatriz viu-a a sair do carro e, aliviada
por ela estar viva e inteira, notando o alívio do próprio comissário ao
entregar-lhe Célia, convidou todos a lanchar antes de seguirem viagem.

Sem o saber, Célia escapara de um grande perigo. Em breve, os


partidários da FNLA não iriam passear-se à vontade em Luanda.

23

Xavier dormia há vários dias no acampamento de refugiados diante do


Palácio de Governo. Quando era noite ou tinha fome, juntava-se a uma
família de pequenos comerciantes brancos expulsos dos musseques, que
o julgavam uma vítima como eles.

Agravadas as incompatibilidades entre o MPLA e o bloco formado


pela FNLA e a UNITA, com acusações mútuas de preparação de um
golpe para tomar o poder, o MPLA assumiu uma posição de força. A
Batalha de Luanda tomou a forma de confrontos bairro a bairro, rua a
rua. Em plena cidade, a artilharia destruía delegações dos movimentos
adversários. Dos edifícios esventrados, atiravam-se móveis para a rua e
voavam papéis para onde o vento os levasse. De noite, os tiroteios e os
rebentamentos de granadas de morteiro despertavam a população do
sono. Habitantes dos prédios que confinavam com os musseques
espreitavam das janelas e viam guerrilheiros fuzilarem prisioneiros nas
traseiras de casas.

Cada movimento se achava o único representante dos angolanos e


queria receber o poder. A vida sorria àqueles que, a coberto da
militância partidária, queriam apossar-se dos bens alheios e exercer
violência. Os novos membros eram fanatizados com discursos de
incitamento e recebiam armas.

As morgues dos hospitais não podiam receber mais cadáveres.


Soldados portugueses, obrigados à neutralidade, iam em carrinhas de
caixa aberta recolher os cadáveres das ruas da cidade e dos musseques e
empilhavam-nos num pátio do Hospital Maria Pia. Quando a pilha
crescia muito, os corpos eram removidos para a estrada da Catemba e
atirados para uma vala comum aberta por bulldozers. Empapada de
sangue, a terra ficava vermelha.

Dois mil militares da FNLA refugiaram-se na fortaleza de São Pedro


da Barra. Cercados, ameaçaram bombardear os depósitos da refinaria no
Alto da Mulemba, a um quilómetro de distância. A ameaça de explosão
de milhares de toneladas de produtos inflamáveis, que destruiria a
cidade com uma tempestade de fogo, renovou o terror dos luandenses.

Xavier não podia esperar mais. Era seu dever intervir naquele
momento decisivo. Deus não lhe tinha explicado tudo, mas ele sabia
como interpretar as suas palavras. Estava destinado a ser o Cristo negro,
embora tivesse nascido branco, e competia-lhe repetir o drama antigo e
recorrente para ensinar os homens através do seu sacrifício. Já
encontrara o seu Pôncio Pilatos na pessoa do alto-comissário, tinha
agora de encontrar o seu Barrabás para comparecem os dois diante de
Pilatos, o qual, da varanda do Palácio do Governo, perguntaria às
massas quem deveria ser o sacrificado. A partir daí, o guião já estava
escrito. Tinha as ordens de Deus para cumprir. Iria salvar os portugueses
e os angolanos.

Conjecturou que deveria procurar uma esquadra onde houvesse


ladrões presos, de preferência negros. Perguntou à família que o
acolhera no acampamento onde ficava a esquadra mais próxima.
Disseram-lhe que já não havia Polícia e que a esquadra tinha sido
ocupada por guerrilheiros. Isso não estorvava o seu plano. Aventurou-se
a ir até lá. Ouviu o estrondo de rebentamento de granadas de morteiro e
viu gente a correr. Alguns guerrilheiros, de arma em punho, gritavam:

– A FNLA está a bombardear a refinaria! Vão explodir aquilo!

Pressentiu o perigo. Era no centro do perigo que tinha de estar.


Avançou, em passada larga, cruzando-se com civis que fugiam e sendo
ultrapassado por guerrilheiros do MPLA que acorriam em socorro uns
dos outros. Os gritos dos guerrilheiros, os gestos de alguns que
apontavam um ponto preciso mas perdido na distância, a confluência de
ruas num ponto culminante, deram-lhe a perceber que chegara ao lugar.
Ali estava a refinaria, o ponto visado pelos guerrilheiros da FNLA
refugiados na fortaleza de São Pedro da Barra. Xavier ouvira dizer que
se os materiais inflamáveis fossem atingidos haveria uma catástrofe.
Dobrou a última esquina, ultrapassou os guerrilheiros, que se abrigavam
e não passavam dali, e expôs-se ao fogo dos atiradores da fortaleza.
Esperou um minuto, dois. Sentiu um sopro a viajar velozmente sobre a
sua cabeça e, a cem metros do lugar onde estava, rebentou uma granada
de morteiro, perto das paredes da refinaria. Viu a cratera aberta no chão.
Reparou noutras crateras. O edifício ainda não tinha sido atingido.
«Vou desviar os tiros», pensou. Aguardou mais alguns minutos.
Concentrou-se. Caminhou entre as crateras. Estava em plena zona onde
tinham caído as granadas. Fechou os olhos e esperou. Ouviu, distantes,
tiros de artilharia e, crendo que fossem novas morteiradas dirigidas à
refinaria, determinou por um esforço da sua vontade que falhassem o
alvo, que se perdessem no ar. Ali continuou, por longos minutos. Mais
nenhuma granada veio rebentar na refinaria ou perto dela.

Houve uma acalmia. Xavier retrocedeu para a parte baixa da cidade.


Quando parou diante da esquadra, esta parecia um quartel. À porta, foi
barrado por guerrilheiros do MPLA em posição de alerta.

– Onde está Barrabás? – perguntou Xavier.

Um guerrilheiro mediu-o de alto a baixo.

– Leva-me até Barrabás.

– Comandante Barrabás? – perguntou o guerrilheiro, habituado a que


os civis pedissem para falar com os comandantes, de quem esperavam
favores.

– O meu irmão Barrabás.

– O que é que o teu irmão está aqui a fazer?

– Roubou e matou. Leva-me até ele.

– Ah, já percebi…

O guerrilheiro conduziu-o para o interior da esquadra e anunciou-o


aos superiores:
– Este branco quer falar com o irmão, que está aí preso.

Na sala, vários guerrilheiros interromperam uma conversa animada


para o observarem. Um guerrilheiro mais velho voltou-se para Xavier:

– Quem é o teu irmão?

– Barrabás.

– Não temos aqui nenhum Barrabás.

– Leva-me até Barrabás. Tens de me levar até Barrabás.

O guerrilheiro abriu muito os olhos, as costas arquearam-se como se


estivesse prestes a dar um salto em frente e aproximou-se mais de
Xavier para lhe gritar:

– Tu não me tratas por tu! Estás a ouvir? Os teus pais tratavam os


negros por tu, mas isso acabou. Para ti sou o senhor comandante.
Percebeste?

Sentindo a respiração dele na sua cara, Xavier decidiu sorrir para o


apaziguar, e para que o Cristo negro em que ele já deveria estar a
transformar-se naquele momento conquistasse os corações com um
sorriso de bondade.

– Estás a rir? Eu arranco-te o sorrizinho, colonialista. Queres que eu te


arranque o sorriso das tuas fuças de colono? Estás a ver esta bota? – O
comandante levantou uma perna quase até à altura da cabeça de Xavier.
– Anteontem estava cheia de sangue. Parti a cara de um branco que
estava a rir-se para mim. Também queres?
Impressionado com a exaltação do homem, Xavier esqueceu-se de
manter o sorriso, como era sua intenção, o que talvez o tenha salvo. O
comandante virou-lhe as costas, ainda arqueadas e tensas, e um outro
guerrilheiro perguntou-lhe:

– És da reacção? Os da FNLA e da UNITA é que se tratam por


irmãos.

Ficou à espera da resposta. Xavier permaneceu mudo, examinando-lhe


uma cicatriz no queixo. O guerrilheiro tornou a perguntar, com a mesma
calma:

– És da reacção?

Xavier nada dizia. A cicatriz no queixo do outro captava-lhe toda a


atenção.

– Pergunto pela terceira vez: és da reacção?

Era altura de responder qualquer coisa e Xavier disse:

– Leva-me até ao meu irmão Barrabás – pediu.

O guerrilheiro estremeceu instintivamente, como se tivesse sido


picado, e só depois percebeu porquê: tinha de reagir de forma tão
intempestiva como o seu comandante diante do tratamento por tu, para
não dizerem que aceitava ser humilhado por um branco, sobretudo um
que mal saíra da adolescência. Agarrou Xavier pela gola do casaco e
empurrou-o:

– Vais para a cela! Vais lá procurar o teu irmão, colono de um cabrão!


Xavier foi atirado para a cela da esquadra. Lá dentro estavam vários
negros sentados no chão. Ficou uns minutos de pé, fitando-os com um
sorriso bondoso. Todos os presos estavam mergulhados numa modorra,
excepto um que estava deitado a olhar para ele, com sinais de ter sido
espancado. Xavier percebeu: era Barrabás. Sentou-se diante dele, mas
não lhe disse nada. Ele iria reconhecê-lo também. Tinha um olho
fechado e inchado das pancadas que lhe tinham dado, e o outro olho
estava tão inflamado que Xavier começou a duvidar se ele conseguia vê-
lo. Decidiu manter-se sentado, mas encostado a uma parede de modo a
ficar de frente para Barrabás.

Ao fim de um quarto de hora, ponderou que o melhor seria iniciar um


contacto telepático com o outro. Ia fazê-lo, quando o ruído de um motor
invadiu a cela e dois prisioneiros se levantaram e foram espreitar por
uma pequena janela. Espreitou também. Viu um pátio, e no meio um
camião Berliet de onde saíram quatro militares portugueses. Os
guerrilheiros que tinham entrevistado Xavier apareceram no pátio.

– Trouxeram o material? – perguntou o comandante.

– Está aqui. – Um dos militares portugueses levantou o pano de lona


que cobria parte do camião e pôs à vista cunhetes de munições e
espingardas-metralhadoras.

– Tudo operacional, senhor capitão? – perguntou o comandante.

– Tudo. O que combinámos pela libertação dos dois empresários.

O comandante fez sinal a outros que não estavam no campo de visão


de Xavier. Estes apareceram e transportaram o material para dentro da
esquadra. Pouco depois, dois civis brancos foram trazidos à presença
dos militares.

– Entrem para aqui – disse o oficial, tornando a levantar o pano de


lona.

– Esperem – disse o comandante dos guerrilheiros.

Os dois civis pararam, sobressaltados.

– Algum dos senhores se chama Barrabás, ou pode responder pelo


nome Barrabás, ou conhece alguém com esse nome?

– Não – disseram os dois.

– Temos ali um branco que veio à procura do irmão que se chama


Barrabás.

Os outros encolheram os ombros:

– Não sabemos de nada.

– É melhor que o vejam – aconselhou o capitão português.

– Tragam o gajo! – gritou o comandante para os seus subalternos.

Vieram buscar Xavier à cela e levaram-no para o pátio. Os dois


recém-libertados negaram conhecê-lo.

– Já agora, ele que venha também – disse o capitão.

– A troco de quê? – perguntou o comandante.


– Ora, já cá vim descarregar material muitas vezes.

– Mas não negociámos este. Há-de valer alguma coisa.

– Qual é o seu nome? – perguntou o capitão a Xavier.

– Eu sou Cristo – disse Xavier.

– O quê?

– Ele disse que é Cristo. Chama-se Cristo.

– Senhor Cristo – tornou o capitão –, venha daí.

– Alto lá – disse o comandante. – A troco de quê?

– Francamente… – O capitão sorriu, dispondo-se a regatear, como


num jogo. – O rapaz não vale grande coisa.

– Vale, vale… – disse o comandante, que se aproximou de Xavier e


lhe abriu as abas do casaco, para o examinar melhor.

– O que é isso aí estampado no pijama? – perguntou o capitão.

– Isto? Hospital Maria Pia... – leu o comandante.

– Isso é um pijama de hospital – disse o capitão. – O tipo estava


internado? Ouça cá, senhor Cristo… Fugiu do hospital?

– Fugiste do hospital? – repetiu o guerrilheiro, como se tivesse criado


com Xavier uma intimidade eficiente entre carcereiro e prisioneiro;
sabia que o capitão ia fazer tudo para levar o rapaz e não queria ficar de
mãos vazias.
– Está a ver? – disse o capitão. – Ele é um doente. Vale menos por
isso. Entra aqui no débito dos dois empresários. Suba para o camião,
senhor Cristo.

– Alguma coisa vale – insistiu o comandante. – Não tem aí mais


munições?

– Capitão – disse o soldado motorista –, temos uma grade de cerveja.

– Serve! – exclamou o guerrilheiro, fingindo que essa seria a melhor


oferta possível.

Descarregaram a grade de cerveja. Xavier subiu para a Berliet.


Quando o camião fazia a manobra para sair do pátio da esquadra, o
comandante ergueu no ar uma garrafa de cerveja:

– Vamos beber em sua honra, senhor Cristo. E nunca mais trates um


negro por tu.

Passadas algumas horas, os militares devolveram Xavier ao Hospital


Maria Pia.

24

A rendição dos dois mil homens sitiados na fortaleza de São Pedro da


Barra, em Luanda, foi negociada e eles puderam sair da cidade pelo
norte, juntando-se ao ELNA, o braço armado da FNLA, que descia do
Caxito. Fragatas da marinha portuguesa evacuaram milhares de
militantes para a fronteira com o Zaire. A UNITA foi reforçar-se em
Nova Lisboa. O governo de transição já não existia. O MPLA controlava
a capital de Angola.

Na Gabela, discutiam-se os acontecimentos de Luanda. Nas funções


de subdelegado do procurador da República, Mateus era o director da
cadeia. O guarda decidira voltar para Portugal e Mateus foi despedir-se
dele. Parou o carro diante da cadeia, com os faróis ligados.

Conversaram junto do carro. Havia três presos a aguardar escolta para


Novo Redondo, onde iriam cumprir as penas. Um deles era um branco
que tinha espancado um negro quase até à morte e fora levado a
julgamento. Compareceu no tribunal com o ar de quem ia cumprir uma
formalidade inútil. Quando ouviu o juiz Godinho, com aquele tique que
o levava a empurrar a dentadura postiça com a língua e a sorvê-la para
dentro da boca, pronunciar a sentença que o condenava a uma pena de
prisão efectiva, espumou de raiva, insultou toda a gente e teve de ser
agarrado.

Em breve teriam de libertar todos os presos, pelo menos os negros:


iam ser promovidos a presos políticos, vítimas do regime anterior.

– Já não estarei cá – disse o guarda. – Já tive guerras que cheguem.

Mateus pensava na ironia da vida deste homem: ex-prisioneiro de


guerra na Índia, veio a ser guarda prisional em África. Estivera num
posto de defesa na ilha de Angediva e fora um dos últimos a render-se, e
só porque se lhe acabaram as munições, quando as forças armadas da
União Indiana, em superioridade esmagadora, anexaram os territórios
portugueses. Contara a Mateus que, na área da sua companhia, eram
duzentos homens e foram atacados por vinte mil; se estes urinassem
todos ao mesmo tempo, dissera, aqueles morreriam afogados na urina.
Mateus imaginava aqueles duzentos a afogarem-se num rio de urina e
achava que seria um triste fim para os descendentes de Vasco da Gama e
Afonso de Albuquerque.

A conversa foi interrompida com a chegada de uma patrulha da


UNITA. Os guerrilheiros saltaram da viatura e um deles disse:

– Estão com as luzes apontadas para um acampamento. E se nós


tivéssemos atirado para aqui? Podíamos ter metralhado isto tudo.

Os faróis do carro estavam a incidir sobre o acampamento militar da


UNITA, a duzentos metros. Mateus apressou-se a ir desligar as luzes.

Quando a patrulha se ia embora, o mesmo que os interpelara disse:

– É preciso estar atento, muito atento. Olho vivo, meus senhores!

Um outro pôs a cabeça de fora da viatura:

– Estão aí alguns irmãos negros que terão de ser libertados.

Depois da partida do guarda prisional, Mateus escolheu um


funcionário do tribunal para guarda interino.

25

Mariana e Capelo visitavam Xavier uma vez por semana, no hospital.


Souberam da sua fuga e de como fora resgatado de um quartel do
MPLA. O médico que o assistia estimava que a instabilidade crescente
da cidade poderia invadir o próprio hospital. Daria alta a Xavier daí a
alguns dias. Quando chegou a véspera da data prevista, e como as
notícias sobre a situação em Luanda fossem cada vez mais alarmantes,
Capelo decidiu ir sozinho buscar o cunhado.

Quanto mais se aproximava de Luanda, Capelo podia ver que as


coisas se tinham degradado bastante desde a última vez que por ali
passara. Ouviam-se tiros de morteiros, perto e longe. Havia mais
barreiras de controlo do MPLA nas estradas de acesso à cidade. Quando
o tráfego que para lá confluía se tornou mais denso, Capelo viu-se numa
fila lenta de carros que transportavam refugiados de diferentes lugares
de Angola. O pára-arranca obrigou-o a sair do carro algumas vezes para
abrir o porta-bagagens e mostrar que não levava armas. Nesses
momentos de espera, viu os refugiados junto dos seus próprios carros, de
pé, na estrada. Trocou algumas palavras com eles. Estavam a fugir da
guerra civil, das expropriações e dos saques, das perseguições diárias e
das violações. Outros tinham fugido por verem fugir. Muitos só levavam
a roupa que traziam vestida, estavam esfomeados, feridos, exaustos.
Diziam-se escorraçados do lugar onde tinham nascido. Nova Lisboa
estava também a receber muitos fugitivos e desalojados que deixavam
vilas e cidades-fantasma. Os bandoleiros, nesses lugares, a pretexto do
combate político entre os movimentos, saqueavam casas e lojas e
incendiavam-nas de seguida. As máquinas das padarias e dos talhos
eram destruídas. As viaturas que não pudessem ser roubadas eram
queimadas.

Capelo interrogava-se sobre o que andaria a fazer a tropa, que, desde o


cessar-fogo no ano anterior, estava obrigada por Lisboa a ser neutral.
Notícias ouvidas no rádio já tinham dado a saber que a tropa era pouca
para retirar, dos mais variados pontos do país, milhares de pessoas
contidas pelas barreiras dos movimentos e feitas reféns nas próprias
casas. Como se iria fazer a independência marcada para 11 de
Novembro? Os militares portugueses sairiam nessa altura. Crescia o
sentimento de insegurança.

Capelo entrou na cidade, que tinha agora um aspecto sujo. Viu pessoas
a entaipar lojas e casas, para as defender dos assaltos. Passou por carros
abandonados, a serem depredados por delinquentes e oportunistas;
alguns já estavam reduzidos a carcaças que não eram recolhidas por já
não haver um serviço de reboque.

Estacionou diante do hotel onde pernoitara recentemente. O hotel


estava fechado, com um ar de abandono, as portas e janelas tinham
sinais de arrombamento. Uma frase tinha sido escrita na parede da
fachada, em letras pretas: «Angola à venda; falar com os comunistas.»
Ao lado, outra inscrição replicava, em letras vermelhas: «A vitória é
certa.»

Capelo dirigiu-se a outro hotel, contando que ainda estivesse a


funcionar.

O segundo hotel estava aberto. Estava cheio de refugiados e de


pessoas que aguardavam embarque para Portugal. Capelo conseguiu um
quarto por uma noite. Enquanto aguardava pela manhã seguinte, para ir
buscar Xavier, decidiu que não podia confinar-se ao hotel. Queria ver
Luanda como talvez nunca mais a visse: uma cidade de brancos.

Como não tencionava ir muito longe, e para evitar ficar preso no


trânsito ou ter de se sujeitar a mais barreiras de controlo, saiu a pé. Não
demoraria muito a anoitecer. Passou por ruas onde se amontoavam
caixotes, de vários tamanhos, que continham os bens que se podia
transportar e exibiam no exterior o nome dos proprietários. Algumas
pessoas revezavam-se para os vigiar. Capelo ouviu-as dizer que o custo
da madeira e do aluguer dos transportes de caixotes ascendia a preços
exorbitantes. Alguém replicou que não se importava de pagar centenas
de contos por bons caixotes, porque já se sabia que o dinheiro angolano
nada valeria fora do território.

Ao longo de centenas de metros, foi acompanhado pelo som de


marteladas que vinha de todas as direcções. Em muitas casas
preparavam-se caixotes idênticos.

Entrou num restaurante que conhecia bem. Os donos e os empregados


pareciam satisfeitos, indiferentes ao ambiente de perda e esvaziamento
progressivo que se vivia na cidade, porque tinham um negócio que
poderia funcionar até à partida do último avião e do último navio de
desalojados. Atendiam uma clientela abundante e esbanjadora. O dono,
que Capelo conhecia há muitos anos, dirigia-se aos clientes com desvelo
e compreensão, parava uns minutos junto de cada mesa, afagava as
crianças, cumprimentava os adultos, querendo dar-lhes algum conforto e
ficar com parte dos seus derradeiros angolares. Era como se dissesse:
«Comam aqui, que servimos bem e satisfazemos os desejos de quem
vem tão maltratado por ter de fugir. O último a fugir serei eu, quando já
não houver clientes. No fim eu apagarei a luz e fecharei a porta do país.»

Quando se aproximou de Capelo, que estava sentado sozinho a uma


mesa, deu-lhe um aperto de mão firme, acompanhado de uma expressão
solícita e confiável. Capelo indicou as pessoas que enchiam a sala:

– O movimento por aqui não tem parado, imagino eu.


O dono do restaurante fez-se cúmplice, dando a entender que ia abrir
uma excepção a Capelo e falar-lhe sem rodeios de comerciante:

– Está tudo numa roda-viva… Acabei de falar com pessoas que estão
há quatro dias à espera nas filas de camiões, para embarcarem os
caixotes nos cargueiros. É que há greves constantes de estivadores, sabe.
Pode ser mais rápido se as pessoas pagarem gorjetas chorudas.

Fez um ar de entendimento tão expressivo, debruçando-se sobre


Capelo, quase fazendo colidir as cabeças e abrindo muito os olhos, que
este se sentiu na obrigação de concordar:

– Já se sabe como as coisas funcionam.

– Então agora! – juntou o outro. – Mas há mais gorjetas, do tipo


especial. É preciso pagar para os caixotes não serem abertos pelas
comissões de inspecção.

– Há comissões de inspecção?

– Uns tipos que se dizem encarregados de impedir a saída de valores


de Angola. Dizem que fazer sair esses valores é sabotagem económica.
Olhe, aconteceu isso mesmo à família que está sentada na mesa atrás de
mim… – sussurrou. – Acabaram de me dizer. E três mesas atrás de si
estão alguns taxistas. Não os deixam embarcar os carros de praça.
Camiões e veículos utilitários não podem sair. Por causa disso já houve
quem abandonasse caixotes e veículos nos cais para não perder um lugar
no avião.

– E a nossa tropa? – perguntou Capelo. – Eu sei que está obrigada à


neutralidade, mas…
– A neutralidade! – apressou-se a repetir o dono do restaurante.

– Podem fazer alguma coisa, tentar intervir – juntou Capelo.

– Tentar intervir! Exactamente! Ora bem! Mas, meu caro, pilha-se


sem restrições, violam-se mulheres em plena rua… A nossa tropa é
neutral, mantém-se passiva… Isto quando não colabora nas perseguições
e espoliações. Sim, já se viu disso. Há patrulhas que afugentam os
larápios que andam a pilhar as casas, mas os larápios voltam assim que
as patrulhas dão à volta à esquina mais próxima. Está a perceber? Ora aí
é que está! É aí precisamente que… que está.

O homem encarou Capelo muito satisfeito, como se tivesse descoberto


o pormenor que explicava tudo. E, sem transição, sugeriu:

– Temos hoje uma sopinha de espargos muito boa. E o bacalhau com


batatinhas assadas que está um regalozinho. Com um vinhinho de
Reguengos, fica uma maravilha.

– Venha tudo – disse Capelo.

O dono do restaurante celebrou a anuência de Capelo com mais uma


demonstração do seu gesto de cordialidade e cumplicidade: baixou a
cabeça ao nível da de Capelo, abriu muito os olhos e voltou logo à
postura erecta, comunicando sem palavras: «Só eu e você é que
sabemos.»

Enquanto esperava pela sopa, Capelo folheou um jornal amarrotado,


com data de dois dias antes. Na primeira página, uma declaração oficial
do MPLA manifestava repúdio pelos actos diários de violência que iam
tornando a vida impossível; apelava à permanência dos brancos e
classificava a fuga de quadros e de técnicos como um desastre
económico.

Capelo deteve-se numa página de anúncios: vendiam-se carros,


camiões, barcos de recreio, electrodomésticos, aparelhos de alta-
fidelidade. Porsche, Chevrolet, Pontiac, novos, que tinham custado
milhares de contos, vendiam-se por uma ninharia. Capelo ouvira dizer
que muitas pessoas, com raiva por se considerarem expulsas do país,
recusavam vender os seus carros por tão baixo preço e preferiam
incendiá-los, atirá-los ao mar ou encher o depósito de gasolina com sal.

Pousou o jornal. Rodou a cabeça para ver a mesa onde estavam os


taxistas que tinham sido impedidos de embarcar os seus táxis. Viu um
desalento cansado nas suas fisionomias. Conseguiu ouvir a frase que um
deles estava a pronunciar:

– Eles vão cortar o pescoço a todos os brancos que ficarem.

Capelo lembrou-se de que sorte melhor tinham tido alguns amigos


seus, proprietários de iates e de embarcações particulares capazes de
enfrentar o alto mar: atulharam-nos de objectos e zarparam das marinas.

Nessa noite, no quarto do hotel, teve dificuldade em adormecer: o


barulho das marteladas dos improvisadores de caixotes, perto e longe,
não cessava.

Na manhã seguinte, regressou à Gabela conduzindo um Xavier


embotado por medicamentos.

26
Os filhos mais novos de Mateus e Beatriz notavam a inquietação dos
adultos. Miguel, com sete anos, instruiu Olavo, que reagia com ironia às
suas propostas para compensar o facto de ser um ano e meio mais novo,
e Luís, de quatro anos. Iam para o parque infantil arruinado, perto de
casa. As madeiras e os plásticos tinham desaparecido e restavam
estruturas de pedra onde se podia adivinhar as bases de um carrossel ou
de um baloiço. Estas formas eram propícias aos jogos de guerra:
transformavam-se em castelos, muralhas, trincheiras, resistiam a ataques
de um inimigo que, se não eram os índios, eram os negros.

Ao parque vinham ter as crianças da sanzala. Miguel estabelecera que


os três irmãos eram a tropa portuguesa, que regressava para impor a
ordem, como ouvira alguns adultos dizer, e as crianças negras eram a
FNLA, o MPLA e a UNITA. Quando Beatriz proibiu os filhos de
brincarem com estas crianças, Miguel transformou-as em figurantes
mais afastados dos seus enredos, com a função de fugirem da sua
metralhadora de plástico, que tinha pilhas e acendia luzes e fazia
barulho. Adorava correr atrás de grupos que fingiam ter medo, enquanto
gritava:

– Fujam! Corram!

Olavo, não tendo uma arma tão sofisticada, era obrigado a contentar-
se com uma espingarda que não fazia barulho nem tinha luzes. Um dia
sugeriu:

– Vamos dizer-lhes para morrerem e caírem no chão.

Miguel, prevendo que isso complicaria os seus contactos com as


crianças negras e, quem sabe, poria em risco o seu ascendente caso
recusassem, disse que não.

No Natal em que ofereceram a Miguel a metralhadora, a prenda de


Olavo foi um tractor de brincar. Sentiu-se decepcionado, porque Miguel
tinha desembrulhado a metralhadora, que brilhava e fazia barulho. Nos
dias seguintes, tratou de transformar o tractor num tanque de guerra.
Sentou ao volante o boneco de um soldado, descolou autocolantes com
símbolos bélicos de um submarino que também fora de Miguel e a que
este já não ligava e colou-os ao tractor-tanque.

Quando as crianças das sanzalas não estavam disponíveis, Miguel


assumia que ele próprio era a tropa portuguesa, Olavo a FNLA e Luís o
MPLA. Mas Olavo, à segunda vez, recusou. Não era justo que ele e Luís
tivessem de ser os que, à partida, se sabia que iriam ser derrotados.
Miguel determinou uma rotatividade. Ele era o MPLA, Olavo a FNLA e
Luís, o mais pequeno, entre obediente e amuado, tinha de se contentar
em ser a UNITA, o movimento com menos expressão na Gabela.

27

Adivinhava-se uma disputa violenta pela posse da Gabela e da região


cafezeira envolvente. Podia rebentar a qualquer momento, à semelhança
do que estava a acontecer por toda a parte. A FNLA andava a distribuir
armas a brancos, assumindo-se como a aliada destes e dizendo que
reagia ao facto de o MPLA ter armado os brancos seus simpatizantes.
Aceitavam-se alianças provisórias, esquecendo-se que estes mesmos
aliados, noutras ocasiões, defendiam a expulsão dos brancos.

O doutor Humberto apareceu diante do portão da casa de Mateus e de


Beatriz e chamou Mateus para conversarem ali mesmo, ao ar livre.
Surpreendido pelo 25 de Abril, tinha começado por falar disso como se
fosse ele o responsável moral do golpe. Dizia ter sido um antifascista,
que usara o consultório para abrir os olhos a muita gente. Depois,
descontente com o rumo dos acontecimentos, assustado com a ascensão
da maioria negra e a ameaça de perda das fazendas da mulher, aderiu a
movimentos contra-revolucionários de uma extrema-direita branca que
planeava uma independência onde os brancos manteriam os privilégios.
A sua casa era o ponto de encontro dos gabelenses que tinham aderido a
essas organizações. Puseram um negro a presidir para provar que não
eram racistas. O doutor Humberto convidara Mateus para essas reuniões
políticas em sua casa, mas Mateus nunca comparecera.

– Boa vizinhança – disse o médico, apontando para a casa da FNLA.

– Nem sempre temos razões para pensar assim – respondeu Mateus.

– É por isso mesmo que eu aqui venho. O MPLA só quer expulsar os


brancos e fazer de Angola uma colónia russa. Temos ligações com
elementos da FNLA, antigos oficiais do Exército português. Passaram-
nos armas com o objectivo de as distribuirmos por pessoas de bem, que
não querem que Angola seja entregue aos comunistas.

– Armas? Que armas?

– Ligeiras – disse o doutor Humberto, como se suavizasse o perigo. E


acrescentou, tirando um revólver da sua maleta de médico: – Como esta.

Passou-a para as mãos de Mateus.

– Você, quando estava no quadro administrativo, usava armas?


– Poucas vezes – disse Mateus, fazendo menção de devolver o
revólver.

– Isto não são tempos para andarmos desvalidos.

Mateus sentiu que o tom sentencioso do médico lhe causava uma


impressão desagradável, como se estivesse em falta perante um dever
moral.

– Lisboa limita-se a entregar Angola, sem se preocupar com os


brancos que ficam – disse o doutor Humberto, num tom ofendido. –
Cometeu a infâmia de negociar a independência apenas com os
movimentos que fizeram a guerrilha. Promoveram os terroristas a
interlocutores políticos. Os que assassinaram e massacraram inocentes
em 1961 são agora lutadores patrióticos. Mas vamos dar luta. Há que
tocar os clarins a reunir.

– O que é que vão fazer?

– Temos de estar vigilantes. Estes gajos não vão comer-nos as papas


na cabeça. Não seremos descartados. Só querem negociar com quem
tem legitimidade revolucionária, então nós vamos dar-lhes a
legitimidade revolucionária.

Beatriz saiu de casa. Viu a arma na mão de Mateus e disse-lhe:

– Não aceites armas. É para defender as roças destes senhores?

O doutor Humberto olhou para Beatriz com aquele seu ar de espanto


severo. Decidiu ignorar a referência às suas roças.
– Professora Beatriz, isto é só para defesa pessoal.

– Porquê? Não me diga que está preocupado com a nossa segurança.

O médico enrubesceu. Disse, como se fosse uma evidência que


Beatriz desrespeitasse:

– Devemos estar todos preocupados com a segurança uns dos outros.

Beatriz perdera a disposição para se ficar por meias palavras:

– O que os donos de roças e fazendas querem é defender as suas


terras, não querem saber da nossa segurança para nada.

– Quem é que pensa que vai defendê-la? – perguntou o médico. – O


governo de transição? O governo central de Lisboa? Puro engano.

– Não vai ser a FNLA. Se precisar de nós para ter o poder, defende-
nos. Se vir que podemos dar força aos adversários, elimina-nos.

Para pôr fim àquela troca de palavras, Mateus devolveu o revólver:

– Não imagino nenhuma situação em que eu chegue a usar uma arma.

O doutor Humberto enfiou a arma na maleta e disse:

– Ai não? Nem para defender os seus filhos?

– Não faça chantagem com os meus sentimentos – respondeu Mateus.

O doutor Humberto franziu o sobrolho e foi-se embora.


28

Como tinha prometido, Alexandre arranjou maneira de chamar Célia


para ir ter com ele. Sandro, o amigo que o tinha iniciado no mundo
perigoso e promissor do garimpo dos diamantes, regressou à Gabela
para tratar de assuntos pessoais e trouxe um recado para Célia:
Alexandre esperava-a; que fizesse uma mala e fosse com ele para
Malange, de onde voariam para o Cafunfo.

Célia seguiria Alexandre para qualquer parte. Fez a mala, entrou no


carro de Sandro e pediu que parasse em casa dos pais. Queria despedir-
se da mãe. Beatriz, perante a novidade, percebeu que não ia ter tempo de
a digerir.

– Vais andar com bandidos, à cata de diamantes? – perguntou Beatriz.


– As autoridades lá não mandam nada. É isso que tu queres para a tua
vida?

Beatriz tinha a arte de fazer perguntas irrespondíveis.

– Os tempos estão perigosos para andares de um lado para o outro. Já


em Luanda andaste a esquivar-te das balas…

– Eu volto a tempo do recomeço das aulas – disse Célia.

– Não voltas nada. Voltas se o Alexandre quiser voltar também. Vais


atrás dele para onde quer que ele vá. Quem se mete nisso são
aventureiros e pistoleiros, não são pessoas que têm família.

Sandro fez ouvir a buzina do carro, o que relembrou a Célia que não
viera pedir a opinião da mãe mas apresentar-lhe um facto consumado e
despedir-se.

29

No seu gabinete, Mateus ouviu o barulho de vidros a partirem-se.


Parecia vir do fundo de um dos corredores, onde estava o arquivo de
identificação civil. Dirigiu-se para lá e deu com Inácio-Cê-de-Cedilha e
Viviana, a funcionária do arquivo, como que acabados de sair de uma
cena que Mateus perdera por poucos segundos. No chão, aos pés de
Inácio, estavam os cacos; Viviana estava sentada, como de costume, no
outro lado da divisória de vidro e plástico que a separava dos utentes.

– O que é que aconteceu? – perguntou Mateus.

Inácio, que por um segundo pareceu acossado, reagiu de imediato e


dirigiu palavras raivosas a Viviana:

– Está a ver o que fez?

Dito isto, foi-se embora em passos apressados. Mateus virou-se para a


funcionária, que continuava sentada, com a expressão gelada que
Mateus sempre lhe conhecera.

– O que houve aqui? – tornou a perguntar Mateus.

– Esse bruto enfiou a cabeça no guichet para me tentar beijar. Eu


afastei-me mas ele, ao insistir, entalou-se e partiu o vidro.

Mateus percebeu tudo. Sabia do que Inácio era capaz, sabia também
que Viviana falava o mínimo e só quando lhe perguntavam alguma
coisa.

Quando Mateus estreara as instalações da repartição civil, Viviana


empregara-se no arquivo de identificação. Tinha nascido na Gabela; o
pai, regente agrícola, morrera e a mãe e as irmãs tinham-se mudado para
Luanda. Mateus via nela uma mulher estranha e solitária. O escrivão do
tribunal, no andar de cima, aproveitava qualquer pretexto para falar com
ela, mas Viviana nunca se deixara seduzir. Permanecia inatingível,
silenciosa, falando o mínimo indispensável.

Só uma vez recebera a visita da mãe e das irmãs. A mãe perguntara a


Mateus como se estava a dar a filha naquele trabalho e Mateus só teve
elogios para a descrever. A mãe conformou-se com o facto de não
conseguir levá-la para Luanda e confidenciou a Mateus que Viviana era
a mais original das suas filhas: por ocasião da trasladação das ossadas do
pai, no cemitério da Gabela, apropriara-se de um canino retirado da
caveira e usava-o ao pescoço, num fio de ouro. Em casa, tinha um
santuário dedicado ao pai, feito de fotografias e objectos pessoais.
Mateus reparou que as irmãs eram talvez menos bonitas do que Viviana,
que, apesar de não se arranjar, tinha um tipo de beleza que poderia
impressionar.

Algumas horas depois do incidente, quando Mateus se aproximava do


carro para ir para casa, apareceu-lhe Inácio:

– Preciso de falar consigo. Podemos dar uma volta no meu carro e


depois trago-o para aqui outra vez.

Mateus julgou que ele lhe ia dar uma explicação sobre os vidros
partidos, desculpar-se de alguma maneira. Já dentro do carro de Inácio,
que este conduzia devagar, percebeu que o comerciante pensava em tudo
menos nisso.

– Aquela mulher… – disse ele, procurando um tom cúmplice. – Um


mulherão, não acha?

– Mas afinal, o que é que se passou?

– Passou-se que ela é uma tipa que não cede facilmente. Mas você já
deve ter percebido isso há muito tempo, não?

Mateus não partilhou o riso alarve de Inácio. Este alongou-se a


descrever as técnicas complicadas a que um homem deve lançar mão
para vencer a resistência de mulheres como Viviana.

– Eu perguntei-lhe a idade e ela disse-me: «Quarenta.» Perguntei-lhe


se queria ir comigo a um café e ela disse: «Não.» A uma gelataria, e ela
disse: «Não.» Darmos um passeio até Novo Redondo, por exemplo, e
ela: «Não.» Você acredita que ela só dá respostas assim, com uma única
palavra? Acha que ela ainda é virgem? É que tipas destas…

Inácio olhou para Mateus, à espera de uma resposta.

– Não sei se é virgem ou não – disse Mateus.

– E o que é que o escrivão do tribunal conseguiu dela? – quis saber


Inácio. – Eu sei que ele também andou a trabalhá-la. O que é que ele
conseguiu?

– Não sei – disse Mateus, que já não contava com um pedido de


desculpas pelos vidros partidos.
Inácio reflectia. Para triunfar onde outros tinham falhado, teria de
pensar em tudo.

– A que horas é que ela costuma sair do arquivo? Isso ela não me
disse.

– Pergunte-lhe a ela – disse Mateus.

– Mateus, veja quem está aqui a falar consigo. Sou eu, o Inácio.

«Cê-de-Cedilha», pensou Mateus.

– Você tem de me ajudar, Mateus. Lembre-se de quem é que lhe


arranjou aquele livro que não se arranjava em lado nenhum, Lolita, do…
Nabukosov.

Um livro proibido pelo anterior regime em troca da virgindade de


Viviana, eis o que parecia da mais elementar justiça para Inácio.

Nesse momento, passaram diante do quartel da UNITA quando


hasteavam a bandeira do movimento. Inácio atirou, embora só Mateus o
pudesse ouvir:

– Estes cabrões! A puta da bandeira deles! Isto ainda é Portugal!

Os quartéis militares dos movimentos de independência tinham


imposto a obrigação de qualquer transeunte ou carro parar à vista da
bandeira, no momento em que esta estivesse a ser hasteada ou arriada.
Inácio não parou. No momento em que o carro passava por trás dos
militares perfilados, dois ou três viraram a cabeça sobre o ombro,
seguindo-o com o olhar. O caminho não tinha saída e era preciso fazer
inversão de marcha; o carro deparou com uma barreira quando ia a
passar novamente diante do quartel. Os guerrilheiros dirigiram para
Inácio a sua ira. Puxaram-no para fora. Ele não parava de protestar e de
lhes chamar nomes.

Inácio e Mateus foram levados para dentro do quartel. Empurraram-


nos para o interior de uma sala e encostaram-nos a uma parede. Estavam
cinco ou seis militares presentes e outros vinham espreitar à porta.

– Viram a nossa bandeira – disse um dos militares, com as mãos na


cintura. – Porque é que não pararam?

– Isto ainda é Portugal, caralho – respondeu Inácio. – Vigoram as leis


portuguesas.

Levou um bofetão do militar, que recuou dois passos apenas para o


fixar melhor e pareceu aumentar de tamanho com a postura que deu ao
próprio corpo, para mostrar quem mandava ali.

– Sabem que têm de parar diante da bandeira no momento de arriar e


de hastear – repetiu. – A nossa bandeira não lhes merece respeito?

– Não sou obrigado a responder-lhe – disse Inácio.

Outro militar fez menção de avançar, mas o primeiro fez-lhe sinal para
não intervir e continuou:

– Não estou a gostar da sua atitude. Qual é a sua posição política?

– Não sou obrigado a dizer – repetiu Inácio.

– Está a desafiar a minha autoridade?


Os cinco militares na sala aproximaram-se para apertar o cerco a
Inácio, ignorando Mateus. Nesse momento, entrou o comandante, que
reconheceu Mateus e fez um ligeiro trejeito de surpresa; tinham-se
conhecido nas reuniões entre as autoridades administrativas e os
movimentos de independência. O comandante ouviu com atenção o que
os seus subalternos lhe reportaram e disse apenas:

– A bandeira tem de ser respeitada. Da próxima vez, tenham mais


cuidado.

Já na rua, Inácio metralhava impropérios:

– Grandessíssimos cabrões! Filhos da puta!

30

Belarmino, o escriturário do tribunal que o administrador, pouco antes


do 25 de Abril, convidara para a sua festa por ser negro, deixara de
aparecer. Sempre tinha sido um funcionário assíduo. Ao fim de uma
semana, entrou no gabinete de Mateus e, pela primeira vez, sentou-se
numa cadeira, com a perna traçada. Disse que era do MPLA e pediu
dispensa de serviço para participar em iniciativas do partido. Mateus
deu-lhe a dispensa e teceu considerações sobre o quanto ele poderia
contribuir para a cena política gabelense.

Grande foi o espanto de Mateus quando, passados dias, viu Belarmino,


de pistola na mão, a perseguir outro negro na rua. Disparou a arma, que
parecia de pólvora seca. O fugitivo desapareceu numa esquina.

– Belarmino, o que é isso? – perguntou Mateus, aproximando-se.


– Estes reaccionários! – disse Belarmino, brandindo a pistola no ar.

Num gesto furioso, entalou a pistola na cintura das calças e tapou-a


com a camisa. Mateus não quis calar a censura que a cena lhe
despertava:

– A dispensa do serviço não era para se dedicar ao debate político?

– Isso queria eu. Com estes reaccionários o debate tem de ser assim. O
senhor vai para Portugal?

– Não sei. Depende do que acontecer por aqui.

– Devia ir – afirmou Belarmino, sem hostilidade. – Os brancos que


ficarem aqui vão ter problemas.

– Não podem ir todos, senão Angola volta à estaca zero – disse


Mateus.

– Não nos importamos de voltar à estaca zero. Se tiver de ser,


voltaremos à selva, vestidos de tanga, para recomeçar tudo.

Poucos dias depois, Beatriz ouviu uma cantilena vinda da rua que
começou por lhe soar como um canto religioso ou um murmúrio
colectivo durante uma missa. Era de noite. Foi à varanda e viu dezenas
de negros, homens e mulheres, em procissão, a passar na rua. Alguns
empunhavam tochas e lanternas. Diziam:

– O branco matou, tem de morrer… O branco matou, tem de morrer…

O estribilho era repetido como um comando hipnótico. A procissão


passou e desapareceu numa esquina.
31

Os gabelenses iam de choque emocional em choque emocional, até já


não ser possível evitar o desenlace: a dissolução completa da sociedade.
Depois do bom cheiro da terra molhada após uma chuvada, um dos
traços sensoriais mais marcantes de África, iriam descobrir o cheiro dos
incêndios e da pólvora das armas.

Quando os habitantes da cidade achavam que já nada os poderia


surpreender, acontecia qualquer coisa que tornava obsoleto o assombro
do dia anterior. Foi assim que, um dia, viram pela primeira vez os
Pioneiros, as crianças a quem o MPLA dava uma farda e botas militares
de adulto e que recebiam instrução militar. Desfilavam nas ruas,
empunhando armas e cocktails Molotov.

Em Porto Amboim e em Novo Redondo, a cem quilómetros, já tinha


havido combates entre a FNLA e o MPLA, tiroteios, prisões. Alguns
gabelenses ainda diziam: «Na Gabela não vai acontecer nada.» Outros
achavam que se a confusão estava a acontecer por todo o lado era
irrealista pensar que não chegaria ali. Grupos do MPLA, encorajados
pelo que acontecera em Luanda, já tinham aparecido nas ruas a gritar:
«Angola é nossa!»

Beatriz ouviu as gargalhadas de Sebastião, o moleque, que estava com


Luís. Sebastião contou que Luís lhe pedira para o matar porque ouvira
dizer que os pretos iam matar os brancos e ele queria saber como é que
era estar morto. Sebastião disse:

– E eu perguntei: como é que queres que te mate? E ele disse: com um


tiro. E eu disse: não tenho pistola. E ele disse: pede ao meu pai uma
pistola.

Os gabelenses viram, como uma evidência que sempre estivera diante


dos seus olhos, que os quartéis dos três movimentos, em diferentes
pontos da cidade, eram posições de defesa e ataque. Quando estalasse o
tiroteio, a vivenda de Mateus e de Beatriz ficaria no meio de fogo
cruzado. A FNLA tinha a delegação na casa ao lado e um quartel perto;
o MPLA tinha uma bateria montada no morro do Cruzeiro e um campo
de treino à saída da Gabela; a delegação da UNITA estava no cimo da
rua, perto da casa do administrador, e o quartel perto da cadeia. A haver
morteirada, os projécteis sobrevoariam a casa. Estavam na periferia da
cidade, sem vizinhos civis. Sentiam-se desprotegidos. De vez em
quando já se ouvia um tiro, de alguma carreira de treino.

Havia um apartamento do Estado atribuído ao subdelegado do


procurador da República, que Mateus podia ocupar. Ficava num prédio
na rua principal do centro e estava mobilado. Na terceira semana de
Julho, Mateus e Beatriz decidiram fazer a mudança.

Era preciso deixar as coisas encaixotadas. Um carpinteiro e dois


ajudantes deslocaram-se a casa para tirar medidas e tornaram a vir para
armar os caixotes, feitos de madeiras nobres que poderiam vir a ser
aproveitadas para móveis. Seria necessário fazer os caixotes chegar a um
porto de mar, caso decidissem partir para Portugal.

Muitos outros tinham pensado no mesmo. Por toda a Gabela havia o


som de marteladas que vinha das casas e dos quintais. O espaço encheu-
se do barulho de martelos e serras em acção. Esse barulho, a cada dia
mais familiar, saía pelas janelas e portas, descia dos andares mais altos,
chegava às ruas. O negócio dos martelos, serras, pregos, parafusos e
similares conheceu um florescimento intenso.

Na casa de Mateus e de Beatriz, tudo estava a ser arrumado. Mateus


encarregou-se dos livros da biblioteca, alguns milhares de volumes, com
a ajuda do João. Sílvia e Ana competiam entre si para ajudar a mãe.
Tinham ido espreitar a carpintaria e viram os rolos soltarem-se da
madeira a ser aplainada, e agora ali tinham os caixotes já armados, onde
iam colocando coisas bem acondicionadas e embrulhadas: quadros,
álbuns de fotografias, brinquedos, louças, roupas. Só ficavam de fora
algumas louças e roupas para os dias seguintes. O encaixotamento das
coisas proporcionava às duas irmãs momentos bons.

Ana compreendia o que os seus onze anos permitiam. Amuada porque


Sílvia conseguira conquistar as boas graças da mãe para arrumar um
delicado serviço de louça num dos caixotes, resolveu ir despedir-se da
sua melhor amiga da escola, Zenaida, que morava perto.

Parou diante do portão da casa da colega. Veio espreitar à porta um


negro careca: era o pai de Zenaida. O homem reentrou em casa e Ana
calculou que ele tinha ido chamar a amiga. Mas passou ainda algum
tempo até Zenaida aparecer, andando devagar. Ana não reparou logo na
sua expressão fechada.

– Nós vamos embora – anunciou Ana.

– Para onde?

– Para outra casa. Está tudo em caixotes. A minha mãe disse que
podemos ter de fugir.

Zenaida ouviu e ficou calada. Depois disse:


– Nós gostávamos dos portugueses, mas os nossos pais disseram-nos
para não gostarmos mais.

– Então não gostas de mim?

– Os meus pais disseram para eu não gostar.

– Mas nós somos amigas.

Ficaram em silêncio. Zenaida subiu para o portão e imprimiu-lhe um


movimento de baloiço, repetitivo. Depois parou e olhou para a porta de
casa, esperando ver o pai ou a mãe a espreitarem.

– Adeus – disse Ana.

– Adeus – respondeu Zenaida, com naturalidade, como se tivessem


acabado um dia normal de escola.

Desiludida, Ana regressou a casa, mas fez um pequeno desvio para se


despedir, desta vez, da Pedra, junto ao rio Mazungue, onde as lavadeiras
negras lavavam roupa. Gostava de subir para cima da rocha lisa,
cinzento-escura, e olhar para o rio. Sonhava que um dia veria uma
garrafa cheia de diamantes a ser arrastada pela corrente, que pegaria nela
e a ofereceria aos pais e ficariam muito ricos. Não sabia se voltaria a ver
a Pedra e queria lembrar-se de tudo.

Perdida em sonhos, Ana não deu conta do tempo e foi apanhada pelo
crepúsculo rápido. A mãe não ia gostar que ela ainda estivesse na rua.
Apressou-se. Quando chegou à rua em declive que ia do rio até à casa,
ouviu a mãe a chamá-la. O seu nome, repetido para chegar longe, vinha
lá do alto, parecia que a mãe estava a voar nos ares. Caíram sobre Ana
aquele chamamento, o escuro e todos os perigos de que ouvira falar nos
últimos dias, e sentiu o coração a bater muito depressa. Correu, chegou a
meio do declive, olhou para cima e viu a mãe no cimo; Ana podia ver
sem ser vista, porque onde estava as sombras eram densas. Nunca a mãe
tivera de gritar tanto o seu nome, e nunca daquela maneira. Sentiu-se
tentada a pôr fim à aflição da mãe e à sua própria, gritando: «Estou
aqui!» Mas não queria que a mãe descobrisse que estava a vir do lado do
rio. Ficou um instante parada, a olhar para cima, porque a mãe enchia o
céu.

Ana correu por um atalho, galgou a distância, entrou no quintal de


casa pelo portão das traseiras, o coração a bater cada vez com mais
força. O que diria à mãe? Ela já a avisara para não estar na rua quando
escurecesse, porque agora havia perigos novos. Ana distraíra-se…
Porque o mais importante de tudo era a mãe. A mãe tinha sempre razão.
No quintal, em corrida, apanhou uma bola de borracha.

Ana dobrou a esquina da casa. A mãe estava à sua frente.

– Onde estiveste? – perguntou Beatriz, com uma nota de insegurança


na voz, mas capaz de se transmudar em fúria a qualquer momento.

– Fui à rua buscar uma coisa de que me tinha esquecido.

– O quê?

– Isto – disse Ana, mostrando a bola de borracha.

32
Beatriz não tinha um minuto de descanso. Tudo podia acontecer,
reinava a impunidade, estavam à mercê dos guerrilheiros. Os filhos
sentiam que a mãe estava um pouco diferente. Se até aí a tinham achado
infalível, agora aparentava estar vulnerável. Não estavam preparados
para assistir a esta mudança. Queriam de volta a mãe dominadora e
segura de si. Os mais novos estavam a convalescer de uma hepatite e
reparavam na crispação com que tratava deles.

Beatriz pensava em Célia, que não parava no mesmo sítio e se pusera


a circular por um país cheio de barreiras e postos de controlo onde os
guerrilheiros, agindo por conta própria, matavam por razões fúteis. Se
lhe custava aceitar o envolvimento de Célia com a FNLA, mais
inaceitável era saber que ela se expunha ao perigo para ir atrás de um
estouvado que achava que ia ficar rico com o garimpo de diamantes.
Angola não estava para romantismos e Beatriz receava que Célia
descobrisse isso da pior maneira. Andava a tentar localizá-la em
Malange, telefonando a amigos de amigos, mas sem sucesso.

A casa encaixotada, a mudança para outra casa onde era necessário


instalar uma nova rotina que desse segurança aos filhos, quando agora
qualquer rotina corria o risco de ser transtornada, enervavam e cansavam
Beatriz. Via Mateus a lidar com tudo com uma calma que a
desconcertava. Qual era o segredo dele? Adaptação? Resignação?
Indiferença? Recriminava a calma do marido e achava que era a ela que
competia o maior quinhão de preocupações.

Havia mais coisas que contribuíam para o seu estado, como ter de ir
para perto da mãe e das irmãs mais velhas, em Portugal, que iriam
censurar os seus anos no Ultramar e culpá-la por este regresso em
posição desvantajosa. Para a mãe e as irmãs, tudo na vida se resumia a
um apurar de culpas. Até já tinha sonhos com isso. Uma fotografia que
lhe fora parar às mãos, quando encaixotava as coisas na outra casa, e que
mostrava a mãe e as quatro irmãs, trinta anos antes, desencadeara sonhos
em que se via criança, dentro da fotografia. As cinco sorriam, mas
quantas coisas inconciliáveis residiam dentro daquelas cabeças. Casara-
se cedo para fugir ao meio sufocante em que crescera e agora teria de
regressar a isso?

Gente frustrada com a perda de tudo o que construíra ao longo da vida


disparava a sua revolta sob qualquer pretexto. Em conversa com uma
colega na estação dos Correios, Beatriz manifestou compreensão pela
posição dos africanos e disse que apesar de tudo a terra era deles, era
natural que lutassem por ela. Um indivíduo que estava a ouvir saltou do
seu lugar, avançou uns passos e disse, aos berros, com a cara vermelha e
as veias do pescoço inchadas pela raiva:

– É por causa de pessoas como a senhora que nós temos de sair daqui
com uma mão à frente e outra atrás e largar o fruto de tantos anos de
trabalho!

33

Deixariam os caixotes na primeira casa e levariam apenas alguma


roupa. O que necessitassem iriam buscar ao que já estava encaixotado.

Ana, muito excitada, veio dizer à mãe que estava ali a Julieta.
Algumas semanas antes, Julieta deixara de ser criada. Com a ajuda de
Beatriz, concluíra o ciclo preparatório e ia ser monitora na sanzala, para
alfabetizar adultos e crianças. Ia também casar-se, pela segunda vez.
Vinha despedir-se de Beatriz; trazia debaixo do braço a filha de um ano,
tal como, tantas vezes, transportara os filhos mais pequenos dos patrões.

«Ela olha para mim como se não soubesse o que dizer ou esperar»,
pensou Beatriz. «Nada de lágrimas. Tenho de ser prática.»

Não podia deixar de ser a pessoa que controla a situação. Fez


recomendações a Julieta sobre a bebé.

– Tem cuidado com os movimentos de independência – aconselhou


Beatriz, ajeitando a ponta da fralda da bebé, que continuava ao colo de
Julieta. – Andam à luta uns com os outros e a situação pode piorar.
Defende-te.

– O meu pai é do MPLA – disse Julieta. – Mas já não está na Gabela.


O MPLA é melhor do que os outros?

– Pelo menos é mais organizado… – disse Beatriz, sabendo que não


podia ter a certeza de ser Julieta ou ela própria quem mais precisava de
protecção.

– Vão para onde? – perguntou Julieta.

– Para outra casa, mais central. Aqui estamos demasiado longe do


centro e demasiado perto dos quartéis. Mas se nos formos embora, ainda
nos vamos ver, Julieta.

«Sim, adiar a despedida», pensou Beatriz, aliviada.

Naquele momento, no quintal, Mateus chamou Sebastião, o moleque,


para lhe entregar o cão. Black estava preso pela trela.

– Desatrela-o – disse Mateus. – Fica com ele. Podes levá-lo para a


sanzala.

– Fico com ele? – Sebastião olhou para o cão, como se fosse


impossível o que estava a ouvir.

– Sim. Tu é que tens cuidado dele, é a ti que ele segue mais. É teu,
agora.

– O patrão vai embora mesmo? – perguntou Sebastião.

– Vou.

Sebastião desatrelou o cão, devagar, em silêncio, como se estivesse a


ponderar qualquer coisa. Por fim, endireitou-se e disse:

– Patrão, leva eu para o Puto.

– Para Portugal? Isso eu não posso fazer…

– Porquê?

– Lá não tenho uma casa. Vou para casa de familiares. Não há espaço.

– Não há espaço? – perguntou Sebastião, incrédulo. – Eu fico no


quintal.

Mateus supôs que a insistência de Sebastião se devia ao facto de ter


trabalhado para eles desde a infância e nunca ter conhecido outros
patrões.
– A casa para onde eu vou não tem quintal. Porque é que queres ir
para Portugal? Esta é a tua terra. Participa na vida do teu país. Os
brancos já não vão mandar.

– Eu não gosto dos que vão mandar.

Mateus sorriu perante a candura do criado.

– Isto tudo vai mudar, Sebastião. A vida vai ser diferente. Vais-te
adaptar, como os outros.

«Quem é que eu quero enganar?», pensou Mateus. «Sei lá eu o que é


que vai ser deste rapaz…»

O pastor alemão estava agora solto. Espetou as orelhas, correu três


metros para lá, três metros para cá, exibindo a sua agilidade e prontidão,
orgulhoso por ser um cão cheio de vigor e bem tratado. Lançou um olhar
muito vivo, ora para Mateus, ora para Sebastião, hesitante sobre quem
escolher para demonstrar a sua dedicação. Parecia que tinha
compreendido as palavras trocadas entre o patrão e o moleque. Deveria
apegar-se ao antigo dono, deveria seguir o novo?

Mateus sentia-se perturbado pela proposta de Sebastião. E foi o


moleque que lhe estendeu a mão, para Mateus lha apertar e selar a
despedida. Embora surpreendido com esta iniciativa do rapaz, Mateus
não hesitou e correspondeu-lhe.

Sebastião afastou-se uns passos, olhando para Black. O cão já tinha


feito a sua escolha e seguiu-o, numa expectativa feliz.

Mateus ficou a ver o moleque e o cão a afastarem-se, primeiro a passo,


depois a correrem a par um do outro, até desaparecerem da sua vista.
Sentiu aquilo como o primeiro desligamento, a primeira perda.

34

A guerra chegou à Gabela no dia 31 de Julho, quando faltavam poucos


minutos para as seis da manhã.

Começou um tiroteio. A maioria das pessoas estava deitada. No prédio


do centro para onde se tinham mudado, Beatriz levou os filhos para a
casa de banho, o local mais protegido dos projécteis. Os três mais
pequenos cabiam dentro da banheira. As rajadas de metralhadora e as
explosões dos morteiros soavam ora mais distantes, ora mais próximas;
em alguns momentos pareciam mesmo ali à porta. Alguns
rebentamentos ecoavam nas escadas como se estivessem a acontecer no
próprio patamar.

De cada janela espreitavam rostos insones que viam as balas


tracejantes desenharem arcos no céu. Ouviam-se tiros soltos de pistola.
Depois, metralhadoras. As bazucas faziam um barulho abafado; as
morteiradas, um eco estridente. Vinte minutos assim. A seguir o
silêncio. Depois recomeçava a mesma sequência. Por vezes, a sequência
desorganizava-se e impunha-se um estrépito raivoso. Morteiros caíam
no meio da rua, visando pontos ocupados pelos movimentos rivais, mas
errando o alvo e acertando na vizinhança. Parecia mais importante fazer
barulho do que acertar no inimigo, o que punha ainda mais em risco as
vidas de civis.

Ao fim de alguns minutos, Mateus espreitou por uma janela. João


tinha-se aventurado a sair da casa de banho e estava ao lado do pai. Do
segundo andar podiam ver alguns soldados do MPLA na esquina do
prédio em frente, a disparar para alvos no outro extremo da rua. Passou
um jipe a alta velocidade, que foi metralhado. Viram o oculista, que
morava diante deles, atravessar a rua a correr e fechar-se em casa.

As gargalhadas de ambos atraíram Beatriz. João dava saltinhos no


chão e fingia que disparava uma arma, o que renovava as gargalhadas de
Mateus. Pai e filho tinham visto um soldado muito baixo a manobrar
uma metralhadora que, sempre que disparava, fazia o soldado saltar. Era
isso que João imitava.

– Inconscientes! – reagiu Beatriz. – A rirem no meio deste perigo.

Os rebentamentos de granada e a fuzilaria continuaram. Beatriz bateu


à porta do vizinho. Foi pela varanda comum das traseiras, de gatas,
embora ali não houvesse tiroteio. O vizinho abriu e, ao vê-la de gatas,
baixou-se também. Trocaram impressões sobre o que se estaria a passar.
Aquilo era o começo da disputa da cidade pelos movimentos de
independência e não podiam fazer mais do que proteger-se até as coisas
acalmarem.

Por ser a casa de um funcionário do Estado, havia um telefone que


Beatriz usou para ligar a pessoas amigas. Queria saber o que tinham
decidido fazer. Estavam todas na mesma expectativa, estremecendo com
as paredes e os vidros das janelas. Conversas ao telefone permitiam
perceber que havia bairros isolados e que o caminho, para quem saía à
rua, tinha de ser feito em ziguezague, contornando os focos do conflito e
as áreas sujeitas a um controlo apertado.
Ao longo da manhã, o tiroteio teve tréguas e recrudescimentos. Ao
início da tarde, as traseiras do prédio já estavam a ser disputadas.
Espreitando pelas janelas que davam para esse lado, Mateus e Beatriz
viram guerrilheiros na varanda de um prédio cujas paredes estavam
cravejadas de balas.

Antes de escurecer houve uma trégua e muitas pessoas juntaram-se no


jardim central para trocar ideias. Algumas decidiram não voltar para as
casas que estavam no meio do fogo cruzado. Os lugares mais seguros
eram as caves. A população não estava a ser atacada, mas receava-se que
os brancos estivessem guardados para o fim: o movimento que vencesse
viria matá-los.

Nessa noite, as crianças dormiram na casa de banho e os pais ficaram


acordados.

35

Na manhã seguinte, quando tudo se tinha aquietado, as crianças foram


procurar balas perdidas e cápsulas de munições nos quintais.

Mas logo recomeçaram os tiroteios: as pessoas corriam para debaixo


de vãos de escadas e para as casas de banho, que estavam mais
defendidas por terem várias paredes interpostas até à rua. Era habitual
encostarem os colchões das camas às janelas.

As morteiradas faziam tremer os edifícios da cave ao telhado. Os


guerrilheiros tentavam alvejar as delegações e os quartéis rivais, mas
algumas casas de habitação já tinham sido atingidas. Famílias inteiras,
com as crianças ao colo, corriam pelas ruas em busca de um refúgio
melhor ou juntavam-se a outras em moradias mais centrais. Os próprios
guerrilheiros formaram cordões de protecção para retirar pessoas de
prédios ameaçados e levá-las para lugares mais seguros. Sentiam o ar
projectado por granadas que tinham caído perto, ou viam uma sala da
casa destruída por um morteiro quando elas próprias estavam no quarto
ao lado.

Uma rua comercial tinha os vidros das janelas e das montras partidos e
as paredes cheias de buracos de balas. Havia famílias barricadas em casa
há mais de vinte e quatro horas porque na rua a contenda não esmorecia.

Mateus e Beatriz souberam que várias famílias estavam a reunir-se na


cave de um prédio da mesma rua e foram juntar-se a elas. Uma vez na
cave, foram da opinião de que afinal não era segura: tinha janelas
demasiado grandes e estava localizada quase no fim da rua, perto de um
cruzamento onde se sabia que os guerrilheiros circulavam. À noite,
mudaram-se para a casa do juiz Godinho, que já se fora embora para
Portugal, porque tinham ouvido dizer que aí era seguro. Foram encontrar
muitas pessoas deitadas em colchões ou no chão.

Alguém disse que caíra uma granada de morteiro no jardim da casa


onde tinham encaixotado tudo.

Os rebentamentos e o tiroteio com armas ligeiras e pesadas


continuavam, a espaços, nas zonas mais periféricas. Circulava-se no
centro. Em muitas vilas e cidades, a autoridade civil podia associar-se ao
comandante de uma companhia ou de um batalhão ali sediados, mas na
Gabela já não havia tropa. Os gabelenses convenceram-se de que tinham
sido esquecidos pelo poder político e militar.
Um dos barbeiros da cidade foi encontrado morto, degolado, no seu
salão. A explicação mais plausível era que o tinham querido roubar,
aproveitando o caos criado pelo tiroteio. O primeiro branco morto,
pensaram os mais pessimistas. A chacina colectiva não deveria estar
longe, e este sentimento contagiou todos, como um vírus.

No largo defronte da esquadra da Polícia, em novo momento de


tréguas, reuniu-se muita gente. Criados já não se viam em lado nenhum.
Mateus e Beatriz, não tendo com quem deixar as crianças, meteram-nas
dentro do carro, com os mais velhos a vigiarem os mais novos, e foram
integrar-se na assembleia que rodeava o administrador de concelho
Margão do Rosário.

Antes de o administrador falar, o chefe da Polícia comunicou que


nessa manhã tinha ido de jipe, munido de uma bandeira branca, para
conferenciar com os homens do MPLA que controlavam as estradas de
acesso e cercavam a Gabela. A sua intenção era negociar a saída da
população, mas não chegara à fala com ninguém porque fora recebido a
tiro e tivera de regressar com a bandeira furada.

O administrador anunciou que já não era ouvido pelos líderes dos


movimentos de independência e que a única coisa que podia fazer era
pedir a Luanda que enviasse tropas para evacuar a população. Teria de
usar o aparelho P19, da Administração, visto que as ligações telefónicas
estavam cortadas desde o princípio da manhã. A notícia de que não
tinham contacto com o exterior causou consternação. Estavam isolados.
Se achassem, acrescentou o administrador, que se deveria dar o passo de
pedir socorro, haveria que contar com alguma demora, porque as
autoridades tinham de atender muitos pedidos semelhantes vindos de
vários pontos do território.

– Temos de aguardar? – disse Sezinando, um homem forte e


abrutalhado, que se orgulhava de ser o dono do maior stand de venda de
automóveis do Centro e do Sul. – Aguardamos até sermos mortos como
ratos?

– Que mais é que se pode fazer? – perguntou o administrador.

– Isso agrada-lhe, não é? – tornou Sezinando, que, por ser muito


grande e fazer gestos ostensivos, criava uma clareira à sua volta. –
Espera que tudo se resolva por si.

Tocara num ponto sensível do administrador: a entrega ao curso


natural dos acontecimentos, esperando que estes, pela sua própria
dinâmica, gerassem a solução.

– Acha mesmo? – replicou o administrador, olhando para aquele


homem rude e reforçando a sua altivez. – Vou contactar com o gabinete
do alto-comissário, em Luanda, e, como autoridade máxima da Gabela,
em representação da população, de todos vós, exigirei a presença de
tropa portuguesa aqui. O senhor não sabe, mas a tropa minguou nos
últimos meses e tem de apagar vários fogos ao mesmo tempo.

– E fazemos o quê? – gritou Sezinando, abrindo os braços. – Vamos


deixar-nos cozinhar em lume brando? Vamos ser queimados sem fazer
nada?

As pessoas olhavam para ele, magnetizadas.

– A tropa – disse ele –, se vier de Luanda, o que eu duvido, só vai


chegar aqui não se sabe quando. Teremos muitos dias pela frente em que
só poderemos contar connosco. Lembram-se de 1961, no Norte?
Lembram-se? Houve populações brancas que tiveram de pegar em
armas e defender-se dos ataques. Era isso ou morrerem.

– É diferente – ripostou alguém. – Isto agora é entre os movimentos.

– É entre eles mas nós estamos no meio! – retomou Sezinando. – Eles


vão disputar cada rua, cada casa, cada quintal, como já estão a fazer.
Vão destruir tudo, não vai ficar pedra sobre pedra. Quem estiver a
perder vai incendiar tudo para não deixar nada ao vencedor. Nós somos
um bem que eles dizem que querem proteger, mas vão dar cabo de nós
para os outros não nos terem do seu lado.

– É verdade – ouviu-se aqui e ali. – Cada movimento reclama ser o


protector dos brancos. Andam a disputar-nos entre eles.

– Isto é guerra civil – disseram outros. – O preto não se desabitua da


guerra tão depressa. Foi no mato, agora é aqui.

– E portanto vamos ser queimados – reforçou Sezinando –, como toda


esta terra vai ser queimada.

– O que é que fazemos? – ouviu-se perguntar.

– Eu sei o que temos de fazer – disse Sezinando. – Não podemos


deixá-los entrar na cidade. Temos de criar barreiras e impor a nossa
ordem. Eles ficam de fora e não põem o pé aqui dentro.

– Mas como? – perguntavam alguns.


– Eu já falei com o Torga – disse Sezinando. – Torga, anda cá.

Do meio da assistência destacou-se um indivíduo magro, que formava


um contraste notável com Sezinando. Torga era o responsável por uma
frota de camiões estacionada na Gabela, cujo dono estava ausente.

– O Torga vai pegar nos camiões e vai barrar todas as entradas de


acesso à Gabela. Eles que se matem uns aos outros lá fora.

– E quem quiser sair da cidade? – perguntou alguém.

– Ninguém entra e ninguém sai! – rugiu Sezinando; o magro e nervoso


Torga, ao seu lado, ficou paralisado de terror a olhar para ele. – Temos
de estar todos juntos. Vamos remar todos para o mesmo lado. Se uns
desatam a sair daqui, ficamos mais fracos. Temos de nos unir. Mulheres
e crianças, todos, para mostrar que somos uma população unida e que
não têm que vir para a nossa cidade guerrearem-se. Em cada barreira
vão estar homens armados para impedir que os guerrilheiros entrem na
cidade.

– Que homens é que vão estar armados? – perguntou alguém.

– Voluntários, gente de bem, chefes de família, todos receberão uma


arma – explicou Sezinando. – Eu e o doutor Humberto reunimos as
armas, que estão ali naquela carrinha. Podemos começar já a distribuí-
las.

– Eu não sei usar uma arma – ouviu-se.

– Eu e o Louçã – disse Sezinando –, que foi tropa e fez parte das


milícias civis, vamos dar instrução a todos os que precisarem.
Nesse momento, Beatriz aproximou-se e disse:

– Então vamos ficar presos numa armadilha.

Sezinando olhou-a por um segundo e fingiu não ter ouvido.

– Isto já está tudo pensado – disse Sezinando. – Alguns homens


armados, em cada barreira, serão suficientes. Só temos que estar todos
unidos. A união faz a força.

Enquanto falava, cerrava os punhos e retesava os músculos, andava


aos círculos dentro da sua clareira, olhando nos olhos os que estavam
mais próximos. Beatriz sentiu que as pessoas estavam apáticas e iam
segui-lo em direcção ao abismo. Decidiu intervir de novo, desta vez
mais audível:

– O que você está a preparar é a nossa chacina colectiva.

Toda a gente procurou ver quem tinha falado.

– Você quer dar armas a civis que não sabem combater para se
defenderem de guerrilheiros – disse Beatriz, sentindo o coração bater
mais forte mas esforçando-se para que isso não se notasse na voz. –
Você quer barricar a população inteira aqui, sem que ninguém possa
sair, e aí é que vamos ser presa fácil e alvo a abater. O que você está a
propor vai causar a morte de muita gente na Gabela.

Neste momento, Beatriz virou-se para Torga:

– Se você usar os seus camiões para bloquear as estradas e impedir


toda a gente de sair, vai ser responsável pela chacina que vai acontecer
aqui.

O outro abriu muito os olhos, parecendo louco. «O que é que vem


aí?», pensou Beatriz, enfrentando aqueles olhos. Torga respondeu:

– Tem razão… Já não o faço.

Sezinando avançou para Beatriz:

– Eu vou proteger esta cidade de quem a quer destruir!

– Você não quer proteger a cidade – disse Beatriz, para todos ouvirem.
– Quer proteger o seu stand de automóveis. Eu quero proteger os meus
filhos. Quem seguir este homem só vai conseguir atiçar os guerrilheiros
contra nós.

Ouviram-se murmúrios de aprovação. Sezinando, percebendo que a


disposição geral já não lhe era favorável, sozinho depois da deserção de
Torga, que já nem sequer estava à vista, aproximou-se de Beatriz.
Parecia ir investir como um touro cego de fúria. A raiva agigantara-o e
estacou quase encostado a Beatriz. Um frémito de alarme atravessou os
que assistiam, que mudamente gritaram: este brutamontes vai agredir a
professora Beatriz? Mateus, que estava umas filas mais atrás, nadava no
meio das cabeças para chegar à frente e socorrer a mulher, quando
Sezinando, com o rosto desfigurado pelo ódio, atirou, numa voz mais
baixa mas audível nas primeiras filas:

– Vá para o inferno, sua cabra!

Beatriz, que nunca fora tão insultada, manteve-se firme. Entretanto,


Mateus e alguns outros interpuseram-se e afastaram o gigante derrotado.
36

Os tiros de artilharia pesada eram ouvidos nas fazendas em redor da


Gabela. Capelo já não acreditava que os movimentos de independência
defendessem pessoas e bens. A hostilidade entre os movimentos ia
libertar forças até aí contidas, que espoliariam os brancos ou fariam
deles danos colaterais. Era fácil prever que os dirigentes políticos
lamentariam e a arraia-miúda festejaria.

Semanas antes, Capelo tinha ido aos escritórios de Novo Redondo dar
instruções aos seus funcionários. Novo Redondo era cobiçado pelos
movimentos por ter um porto de mar e uma ligação ferroviária com o
interior. A cidade estava calma. Capelo tratara do que tinha a tratar e
voltara para a Gabela. No dia seguinte, a guerra civil chegara a Novo
Redondo. Agora era na Gabela.

Capelo viu Mariana à porta da casa da fazenda sede, imóvel, com as


mãos entrelaçadas, hirtas, à altura do peito, olhando na direcção de onde
vinha o barulho abafado dos morteiros; viu alternarem-se no seu rosto
expressões de surpresa e medo, mas também de fúria contida. O sentido
de posse das terras, a crença na docilidade dos africanos, o legado
familiar de um negócio que prosperava continuamente, permitira a
Mariana adoptar o paternalismo que fora a marca de Mourão, zangar-se
com os nativos, ralhar-lhes, condescender, castigar, como quem educa
sendo ora severa, ora generosa. Quem poderia convencê-la de que ela
não estava a ser justa? Vendo-a agora à porta de casa, Capelo sentiu o
contraste entre os seus próprios pontos de vista e os da mulher: ele
vivera até aí à espera daquilo, mas Mariana dependia da crença na
imutabilidade do sistema hereditário. Viu as mãos de Mariana naquela
posição, adivinhou-a angustiada e indignada, e pensou que fora um erro
nunca terem conversado a sério sobre o assunto, trocarem opiniões,
confrontarem expectativas. Ao menos, Mariana tinha a desculpa de ter
recebido dos pais aquelas ilusões. Ao expandir as terras e aumentar os
seus produtos, Capelo trabalhara para dar a Mariana a impressão de que
ela tinha razão. Intrometera-se naquela cadeia de antepassados,
encontrara um lugar num Cosmos familiar, dera origem a uma nova
geração, esperando que pelo menos um dos filhos prosseguisse a obra.
Esquecera-se de que o Cosmos era uma ideia demasiado perfeita para
ser realizada, demasiado frágil para resistir às catástrofes.

No segundo dia do tiroteio na cidade, Capelo achou mais prudente


ficar na fazenda sede e enviou o único capataz que lhe restava para fazer
rondas pelas outras fazendas, a ver o que se passava. Dizia-se que, a
mando dos guerrilheiros, a população das sanzalas viria roubar e
destruir. Esse trabalho de depredação seria estimulado pelos dirigentes
dos movimentos, seria útil, serviria os propósitos de uma revolução.

O que Capelo não esperava era que fosse ali mesmo, na fazenda
principal, que acontecesse o primeiro assalto. Ouviu uma agitação perto
do terreiro central. Uma multidão ruidosa fervilhava junto dos tractores.
Capelo disse a Mariana para se meter em casa e foi ao encontro dos
intrusos.

Atravessou o terreiro. Não reconhecia a maior parte das pessoas, que


eram, sem dúvida, das sanzalas em volta e repeliam os poucos criados
fiéis a Capelo. Um dos criados aproximou-se para lhe dizer, com a voz
alterada pela emoção:

– Eles vão cortar os pneus.


Capelo viu catanas e facas perfurarem os pneus dos tractores,
retirando fatias ou grandes pedaços informes. Havia quem preferisse
munir-se de ferramentas para desprender as rodas inteiras. Tudo isto
estava a ser feito no meio de gritaria, encontrões, altercações e lutas.
Num ritmo acelerado, o material de borracha dos pneus ia sendo
arrancado e levado dali.

A frota de tractores era nova e cara. Alguns não tinham ainda sido
usados. Capelo dirigiu-se a um homem que fazia rolar um pneu:

– Acha que isso está certo?

O homem olhou para ele e não disse nada; estava empenhado no


esforço de empurrar o pneu, obstinado nessa tarefa, não queria saber de
mais nada. Capelo viu a mesma obstinação nos outros que levavam os
maiores bocados. Se não se desviasse, seria atropelado pelos pneus que
rolavam a boa velocidade. Era óbvio que eles queriam sabotar os
trabalhos das fazendas a mando de alguém.

– Estão a estragar os tractores – disse Capelo ao criado, tendo de gritar


para ser ouvido no meio do tropel e da vozearia. – Querem parar a
produção?

– Eles não querem parar a produção – disse o criado. – Querem fazer


sandálias.

– O quê? – Capelo julgou não ter ouvido bem.

– Querem fazer sandálias! – repetiu o criado.

Uma mulher que ouvira esta troca de palavras, e que vinha sendo
empurrada por outras pessoas, agitou diante de Capelo uma tira de um
pneu e gritou:

– Primeiro, sandálias para o povo calçar! Depois, pode guiar os seus


tractores!

Atordoado, não tanto com os gritos e os empurrões, mas com esta


reivindicação de ter o que calçar, Capelo ficou calado. À medida que os
tractores eram despojados dos pneus, a turba dos assaltantes diminuía.
Por fim, o terreiro voltou a ficar quase deserto. Só restavam Capelo e
alguns criados.

Inspeccionaram a frota de tractores. Eram dos melhores do mundo e


estavam inutilizados. Capelo sentiu raiva contra o povo das sanzalas.
Com actos destes, o país ia caminhar para a ruína. Mas dentro da sua
cabeça uma voz gritou outra vez: «Primeiro, sandálias para o povo
calçar!» As prioridades eram diferentes para o habitante das sanzalas e
para o fazendeiro.

37

No remanso de uma zona cafezeira, entre vales e serras, a mil metros


de altitude, os gabelenses tinham achado que o tiroteio que chegara a
outras cidades nunca chegaria à Gabela. E agora, que tinham entrado na
Gabela a guerra e a destruição, pensavam já outra coisa, aparentada com
a primeira: que a cidade fora esquecida pelas autoridades portuguesas,
ainda responsáveis pela ordem em Angola.

A guerra já estava na rua onde cada um morava, ia arrombar a porta e


entrar em todos os compartimentos, abrir todas as gavetas, levantar
todos os colchões e o soalho. Durante os treze anos da guerrilha, os
habitantes das vilas e das cidades não ouviram um tiro. Era uma coisa
distante, como se se passasse num país estrangeiro; uma coisa entre a
Metrópole e alguns bandos de terroristas nos matos afastados da
civilização. A população europeia não previra que um dia teria de se
esquivar das balas desses mesmos guerrilheiros, agora instalados nas
cidades; que fosse obrigada a andar de gatas dentro de casa para não ser
atingida por tiros vindos da rua.

Depois de dormirem a segunda noite na casa do juiz, com outras


famílias, ao começar o terceiro dia Mateus e Beatriz procuraram outro
sítio: a casa tinha nas traseiras uma rampa que dava para terrenos
baldios onde havia confrontos; seria fácil para os guerrilheiros treparem
essa rampa e matarem toda a gente dentro de casa. Claro que, se os
guerrilheiros quisessem, também entrariam pela porta da frente e fariam
o que entendessem. Mas a sensação de segurança, por mínima que fosse,
tinha de ser procurada noutro lugar.

Um colega de Beatriz, que já enviara a mulher e os filhos para Lisboa,


convidou-os a irem para o apartamento dele, perto da igreja de Santa
Isabel. Continuavam a pensar que quanto mais pessoas se juntassem no
mesmo local, melhor. O apartamento albergava por isso outras famílias.

A população esperava que um dos movimentos prevalecesse sobre os


outros e que a normalidade voltasse. O medo de que acontecesse o pior
aos filhos alternava com a esperança de que tudo voltasse ao que era. No
entanto, a cada dia que passava, agravava-se o problema da alimentação.
As pessoas só se atreviam a ir à rua fazer compras quando escoltadas por
soldados de qualquer um dos movimentos. Alguns lojistas davam de
graça os artigos que sabiam que não conseguiriam vender.

Um empregado bancário fez saber que, escoltado por guerrilheiros,


iria ao banco para estar disponível para quem quisesse levantar dinheiro
das contas. Esteve até altas horas da noite para atender todos e ainda
disse, a brincar: «Deixem algum para mim!» Veio entregar a Mateus o
dinheiro que este lá tinha, que chegaria para várias semanas.

O apartamento do colega de Beatriz, a quarta casa onde se refugiavam


em três dias, também não era tão seguro como se pensava. Apareceram
guerrilheiros da FNLA à porta do prédio. Montaram na rua uma peça de
artilharia. Os civis, cansados de mudar de casa e de refúgio, já
conviviam mais naturalmente com o perigo. Assim, Mateus e outras
pessoas aproximaram-se e assistiram à montagem da peça. O alvo era
uma casa que se supunha ser frequentada por adeptos do MPLA, mas
entretanto vazia, a algumas centenas de metros, ao lado da igreja. A peça
foi calibrada com todo o cuidado. Por fim disparou um projéctil que foi
acertar na igreja. Não dispararam mais.

Noutro dia, tiveram de interromper a refeição que estava a ser


preparada na cozinha. Ouviram uma explosão que parecia dentro de
casa. A panela de pressão, esquecida sobre o fogão, explodira e havia
feijões colados ao tecto.

Na rua, muito perto, ouviam de vez em quando tiros que pareciam


partir de uma árvore. Alguém explicou que estava um atirador furtivo
acoitado na copa da árvore e que visava um ponto distante. Nunca
chegaram a vê-lo.
Perante as movimentações no jardim, o disparo falhado de artilharia e
o atirador furtivo, podia concluir-se que a zona não era segura.

Vieram contar a Mateus que Sezinando tentara sair da cidade, com a


mulher e a filha, mas fora barrado e mandado para trás por soldados do
MPLA. Depois de, em desespero, tentar convencer a população a pegar
em armas, sacrificando toda a gente apenas para defender os seus bens,
numa manobra que só poderia acabar em desastre, tentava agora escapar
sozinho.

Mateus pensou em ir ao tribunal salvar algumas coisas: uma máquina


de escrever nova, um frasco com diamantes guardado no cofre,
apreendido numa investigação policial e que deveria servir de prova
num julgamento, e alguns poemas e contos passados a limpo. Disseram-
lhe que o edifício do tribunal e do registo civil fora invadido e saqueado
e havia lá pessoas a dormir.

No apartamento do colega de Beatriz, as crianças foram agrupadas


para dormir nas áreas mais abrigadas, com as mães a tomarem conta
delas. Os homens ficaram acordados na sala maior.

Beatriz tapou todos os filhos com cobertores. Não tinha nenhum para
si. Quando tentava dormir, ouviu o dono da casa entrar no quarto, pé
ante pé, para vir tapá-la com um cobertor. Ainda havia gestos de
sensibilidade no meio da aflição e do tumulto geral.

38

No fim do quarto dia do tiroteio foi feita uma tentativa de saída


colectiva da cidade, procurando beneficiar do factor surpresa e a coberto
da noite. Tudo foi decidido à pressa, por iniciativa de algumas pessoas
que convenceram outras. Receosos de irem, receosos de ficarem quando
toda a gente estava a preparar-se para sair, Mateus e Beatriz juntaram-se
ao cortejo. Mateus não se lembrou dos prisioneiros da cadeia.

Reuniram-se famílias inteiras, em muitos carros. Beatriz não queria ir


pelo caminho escolhido, a estrada para Lobito: alunos negros, de um
curso para adultos, tinham-lhe dito que o MPLA barraria qualquer
tentativa de evasão.

A estrada era de terra batida e sem iluminação. O carro de Mateus era


um dos primeiros. À frente ia um camião de uma empresa de
distribuição de água, com rodas enormes. Mateus, quando deu conta,
tinha chegado quase até à traseira do camião que desbravava o terreno,
porque, um a um, os outros condutores tinham-lhe dado passagem, num
gesto que ele interpretou como cortesia.

Já estavam fora da cidade. Havia muitos africanos, saídos do mato e


da escuridão, a correrem na berma da estrada, acompanhando a coluna
de carros que contara passar despercebida. Ouviam-se gritos, palavras de
ordem, mas não se percebia o que diziam. Ana chamou a atenção dos
pais e dos irmãos:

– Vamos fazer-lhes adeus!

– Estejam quietos – disse Beatriz.

Ana ia no colo da mãe, no banco da frente, e teve de obedecer.

– Não olhem para eles – ordenou Beatriz.


O camião que abria a coluna estava parado. Havia árvores derrubadas
a obstruir a estrada e um número elevado de populares mandava toda a
gente para trás. Era preciso fazer inversão de marcha e voltar para a
cidade.

O camião das águas fez a manobra e passou pelo carro de Mateus com
muito ruído, como se protestasse. Todos os carros da coluna fizeram o
mesmo. No espaço apertado que tinha à sua disposição, diminuído ainda
mais pelas pessoas que surgiam do escuro a correr de um lado para o
outro, Mateus deixou uma roda traseira mergulhar na vala que
acompanhava a estrada, para recolha da água das chuvas. Tornou-se
inútil carregar no acelerador. A roda pendia no vazio e o carro estava
bloqueado. Todos os outros veículos desapareceram em segundos,
levando as luzes dos muitos faróis que iluminavam a estrada.

Os passageiros do carro pressentiram um desses silêncios que chocam


qualquer coisa má, prestes a eclodir. No interior, apenas se ouvia a
chucha na boca de Luís, que, como os irmãos, olhava para aquilo que
crescia, se avolumava e se aproximava.

Juntaram-se muitas pessoas à volta do carro, saídas da escuridão.


Algumas saltavam das árvores. O silêncio, lá fora, deu lugar a um
clamor geral e este diferenciou-se em gritaria, berros, vozes alteradas
pela raiva e pela embriaguez. Era muita gente, mais e mais pessoas
vinham apertar-se umas contra as outras; as que estavam mais atrás
acotovelavam-se para virem tentar ver o interior do carro. Os oito
ocupantes viam uma ou outra cara colar-se aos vidros e tornar a
submergir na massa tumultuosa, substituída por outra que queria fazer o
mesmo. Os homens pareciam estar todos bêbedos. Ouvia-se:
– Vai embora! Vai embora já!

Mateus já tinha subido o vidro do seu lado, mas um velho fez sinais
para que o baixasse de novo. Enfiou a cabeça dentro do carro e exalou
um bafo a vinho.

– Tem de voltar já para trás. Já para trás – disse o velho.

– Tenho a roda na vala. O carro não anda – explicou Mateus.

Repetiu várias vezes, sem conseguir ser ouvido. Lá fora, tornavam a


gritar:

– Vai embora já!

Um homem pôs-se em cima do capô e vibrou pancadas com uma


catana no tejadilho. Um outro bateu do lado de Beatriz, exigindo que
baixasse também o vidro, e enfiou o braço que segurava uma catana,
batendo com ela no porta-luvas mesmo à frente de Beatriz. Nunca as
massas negras ululantes, de que tanto se falava, tinham estado tão perto
de Mateus e de Beatriz.

– Lembram-se de 1961? – ouviram perguntar. – Em 61 morreu aqui


muito preto. Agora vai morrer o branco. Mata, que é branco!

Podiam acontecer coisas parecidas com as de 1961: as mulheres


violadas, os homens castrados, os corpos mutilados e decapitados. As
catanas estavam afiadas: uma delas continuava a invadir o habitáculo e a
bater no porta-luvas, a escassos centímetros de Beatriz e de Ana, a outra
batia no tejadilho. Mateus viu crianças com catanas e ouviu alguns
homens dizerem que iam violar as raparigas. Depois falavam entre eles,
como se estivessem a combinar qualquer coisa.

Começaram a abanar o carro, para fazerem chocalhar os ocupantes.


Gritavam:

– Mata, que é branco! Mata, que é branco!

Beatriz rezava baixinho. Inspirando-se no exemplo da mãe, Ana, que


nunca tinha sentido tanto medo, fazia o mesmo.

A ameaça crescia a cada segundo. Agora, qualquer coisa poderia


desencadear a explosão de ira que levaria à chacina. Bastaria vibrar o
primeiro golpe, derramar, ainda que por acaso, uma gota de sangue, e
todos, como lobos, saltariam sobre as presas. Mateus sabia que se o
mandassem sair do carro estaria perdido, poderia ser o princípio do fim.
Mas continuar lá dentro, sem conseguir fazer-se entender por quem não
se dispunha a ouvi-lo, também não era uma alternativa tranquilizante e,
além disso, precisava de desatascar a roda.

Miguel, com voz de choro, quebrou o silêncio dentro do carro:

– Mãe, eles vão matar-nos!

Luís, aninhado em Sílvia, chuchava com mais vigor. Beatriz disse ao


homem que enfiava o braço e a catana dentro do carro:

– Só aqui temos crianças.

Um miúdo espreitou entre as pernas dos adultos e encarou Mateus, e


disse, tornando a desaparecer:

– Vou buscar a minha espingarda!


Sílvia gritava para dentro. Só se salvariam se um poder mágico fizesse
o carro voar. Tinha visto a firmeza da mãe, o respeito que inspirara
quando enfrentara aquele homem que queria que se combatesse para
defender a cidade. Admirava o pai, de quem toda a gente gostava. Mas
agora nenhum deles parecia poder fazer nada que os salvasse.

Apareceu um homem, tão alcoolizado como os outros, que veio olhar


com atenção o condutor. Disse:

– Eu conheço este homem… É do tribunal… Nunca nos fez mal…


Ninguém lhe toca.

Mateus não o reconheceu, mas, vendo ali uma hipótese de salvação,


repetiu as suas palavras mais alto, para que os mais próximos ouvissem:

– Ele conhece-me.

O homem enfrentava agora os outros, como se quisesse afastá-los:

– Não se vai fazer nada a este, eu conheço-o.

Os outros continuavam exaltados, mas a ameaça diminuía. Beatriz


disse a Mateus para pedir ajuda aos homens:

– Pede-lhes para empurrarem o carro. Eles são muitos. Mas não saias
daqui.

Mateus disse ao homem que o reconhecera:

– Tenho uma roda presa na vala. Ajudem-me a libertar o carro.

Vários homens, à força de braços, fizeram o carro mover-se.


Esquecidos da sua fúria, incentivaram-se uns aos outros com uma
daquelas cantilenas compassadas que se empregavam nos trabalhos
rurais colectivos, fazendo lembrar o antigo coro que consolava o espírito
dos prisioneiros. Suspendendo a ira revolucionária de libertação, usaram
uma canção de resignação vinda do fundo dos séculos para prestarem
um último serviço ao senhor branco. A roda pousou na estrada.

Por um instante, tinha parecido que levantaram o carro no ar, com


todos os seus ocupantes. Mateus não esperou para ligar a ignição e
arrancar.

O carro ia em boa velocidade. Antes de reentrarem na cidade,


avistaram algumas crianças no cimo de um pequeno morro. Uma pedra
arremessada por uma delas veio estilhaçar o vidro da frente. O barulho
foi como o de um tiro e pregou-lhes um susto que renovou o terror.
Mateus, contudo, não abrandou a marcha.

39

A maioria dos gabelenses não chegara a participar na tentativa de


fuga. Ficara na expectativa, a ver no que ia dar.

A população estava prisioneira na sua própria cidade, exposta a um


ataque que causaria um massacre. Cercada e impedida de sair pelas
forças do MPLA, sentia-se numa ratoeira e pretendia ser evacuada dali
pelas forças da FNLA.

O administrador Margão do Rosário presidiu a nova reunião. Pensava


no pai, alto funcionário da Administração colonial, e no avô, herói
militar das campanhas do início do século, e tentava medir as suas
palavras pelo orgulho que sentia por essas figuras tutelares.

– Meus senhores, até há bem pouco tempo acreditámos numa


independência decente para as pessoas decentes, sem distinção de cores
ou raças. Mas o certo é que já não existe segurança para ninguém nesta
terra desgraçada, onde ninguém se entende.

Vozes alteradas atropelaram-se em resposta:

– A decência já lá vai! Queremos é tirar daqui os nossos filhos!

O administrador esperava que não o interrompessem logo. Com um


gesto, pediu silêncio e enfrentou todos os olhares, como que chamando a
si as responsabilidades do cargo que ocupava e mostrando que podiam
confiar nele.

– Meus senhores – repetiu –, Angola acabou para os portugueses…

– Já se viu há muito que acabou! – disse Inácio-Cê-de-Cedilha. – Isto


agora é para os comunistas e para quem vendeu a terra aos russos.

– É agora evidente – retomou Margão do Rosário – que a FNLA não


está capaz de conduzir uma evacuação da população da Gabela. A única
solução é insistir com Luanda para que uma escolta militar nos venha
salvar.

A palavra «salvar» teve impacto na audiência, que por alguns instantes


pareceu ficar impressionada com toda a sua carga simbólica.

– Uma escolta militar – disse um homem com uma roupa de garagista.


– Já há muito tempo que se sabia que tinha de ser, pois claro.

Com o aparelho P19, que o mantinha em contacto com Luanda e com


os postos vizinhos, o administrador comunicou ao gabinete do alto-
comissário que a situação na Gabela era desesperada. Milhares de civis
estavam sitiados e sobreviviam debaixo de fogo cruzado, a segurança
estava por um fio e previa-se uma tragédia de grandes proporções. Foi-
lhe garantido o envio de uma escolta dois dias depois.

Alguns radioamadores da cidade enviaram pedidos de socorro. Não se


sabe se por efeito da comunicação do administrador ou dos
radioamadores, circulou o boato de que a Gabela ia ser sobrevoada por
aviões militares, em acção de reconhecimento das movimentações de
guerrilheiros nos arredores.

Sílvia, João e Ana ouviam os adultos a falar entre si, em tom de


segredo, mas percebiam tudo. Ouviram dizer que estavam isolados, que
não havia telefones, que a tropa tinha ajudado as pessoas a sair de todas
as cidades e que a Gabela tinha sido esquecida. Queriam fazer alguma
coisa. A oportunidade chegou quando Inácio apareceu com as duas
filhas, munidas de muitos lençóis brancos. Inácio reuniu o maior número
de crianças e adolescentes e disse-lhes:

– Só há uma maneira de sairmos daqui e vocês vão ajudar-nos. Vamos


estar atentos a qualquer avião que passe. Assim que os virmos ou
ouvirmos, vamos para a rua com lençóis brancos, para que nos vejam.

As Macacas, mais velhas do que os recrutados do pai, embora com


uma idade mental inferior, estavam bem instruídas na tarefa de
carregarem os lençóis, mas não compreendiam o que deviam fazer com
eles. O primeiro avião que sobrevoou a cidade provocou um grande
rebuliço. Correram todos para a rua, aos gritos, ajeitando os lençóis ou
estendendo-os no chão. Numa acção que exigia rapidez e coordenação
de movimentos, as irmãs gémeas, fazendo justiça à sua reputação, foram
imprestáveis e atraíram as reprimendas de Inácio. O avião foi-se embora.

Ana sentou-se num degrau da calçada a chorar, porque pensou que


não voltariam a aparecer aviões. Mas enganava-se. À segunda tentativa,
subiu para o tejadilho de uma carrinha e pôs-se a gritar ainda mais do
que antes, enquanto sacudia um lençol acima da cabeça. Um homem
disse-lhe:

– Eles não te ouvem. Somos formigas, eles só vêem os lençóis.

Ana odiou-o. Porém, o avião desceu um pouco, fez círculos no ar e


oscilou as asas, sinal que Inácio apontou como uma saudação do piloto.
O homem que tinha tentado reprimir o zelo de Ana era, agora, o que
mais gritava:

– Fomos vistos! Fomos vistos!

40

Quando o tiroteio e a fuzilaria estalaram na Gabela, Viviana, a


funcionária do arquivo de identificação civil, a heroína da solidão, teve
um primeiro pensamento sobre a sua segurança pessoal, ao sentir as
paredes do apartamento tremerem, e logo a seguir um pensamento sobre
as ossadas do pai.

O pedido de uma escolta militar pelo administrador confirmara a saída


próxima de todos os brancos. Viviana não podia perder tempo. Por
zonas desaconselhadas aos civis, foi até ao cemitério e passou algumas
notas elevadas para a mão do coveiro, um velho negro, assustado com a
sua abordagem, e pediu-lhe que abrisse a sepultura do pai.

– Para quê, menina? – perguntou o coveiro, com olhos de susto.

– Eu preciso. É cá comigo. Faça-me esse serviço.

– Mas abrir uma sepultura, menina? Tem de ter licença.

– Licença? Estamos em guerra. Esqueça as licenças. Depois eu dou-


lhe o mesmo que já lhe paguei. Preciso que me faça isso. Podemos
começar já.

Viviana caminhou para a sepultura do pai. Os seus modos práticos e


decididos, o dinheiro já dado e o prometido levaram o coveiro a partir a
laje. Pôs a descoberto uma pequena urna, que içou. Abriu a urna e
ficaram à vista as ossadas, que Viviana enfiou num saco de serapilheira.

– Isto não está bem… – dizia o coveiro, que virava a cara para não
ver.

Viviana não o ouvia, absorvida na tarefa, que tinha de concluir antes


que fossem apanhados. Só queria encher o saco com os ossos e sair dali.

Iria para Portugal, de que não tinha recordações, para a aldeia do pai,
que ele descrevia como um presépio de pedra de onde os homens
emigravam para a América, o Brasil, a África. Lá enterraria os seus
ossos.
41

Ao sexto dia de confrontos, o MPLA retirou os seus guerrilheiros da


cidade, ocupou as matas até ao rio N’Nhia e montou o cerco à cidade. A
FNLA tinha de manter um equilíbrio desesperado: se saísse, enfrentaria
um inimigo muito mais numeroso; se permanecesse, partilharia o
destino dos seus habitantes. Declarava estar a proteger a população
branca e queria que esta lutasse ao seu lado.

Mateus lembrou-se do revólver que o doutor Humberto lhe quisera


dar, em aliança com a FNLA. Esse gesto parecia-lhe agora mais ridículo,
porque tudo ia ser decidido, e já estava a sê-lo, com a artilharia pesada.

Contava-se que o comandante Fera, da FNLA, subira o morro do


Cruzeiro e desalojara os elementos do MPLA que manobravam a
bateria. Outros disseram que ele encontrara a bateria deserta. Alguns
gabelenses, que conservavam o sentido de humor, diziam imaginar o
comandante, com uma faca entalada entre os dentes, um cinto de
granadas à volta do corpo, sozinho, a escalar a rocha e a partir a bateria à
cabeçada.

42

Havia grande azáfama na fazenda principal de Capelo e Mariana. Os


carros e carrinhas disponíveis estavam a ser atafulhados com tudo o que
se pudesse salvar. Iam integrar a coluna de veículos que se formava na
cidade.

Repetia-se o mesmo nas quase cem fazendas da região, deixadas à


guarda de empregados de confiança. Era preciso resolver o problema
dos milhares de trabalhadores das roças, embora muitos já tivessem sido
espantados pela guerra e desaparecido.

Mourão, o pai de Mariana, olhava com o sorriso acomodatício que se


lhe tornara habitual. Passavam à sua frente o desespero das pessoas, as
lágrimas de familiares e de criados, as decisões de última hora sobre o
que carregar ou deixar para trás, correrias escada acima e escada abaixo,
tantas coisas desarrumadas e retiradas do seu sítio. A sua reacção era
igual: o mesmo sorriso, o mesmo olhar que parecia atento mas era vazio.

Mariana achava que era melhor assim. A família, excepto aquela que
criara com Capelo, estava destruída: a mãe e a irmã, mortas; o pai,
dementado; Xavier, louco; Alexandre, foragido. Só restava ela, e era ela
quem receberia em cheio o golpe. Haveria um sentido naquilo tudo,
naquela sucessão de mortes, doenças, ameaças e, finalmente, o
abandono das fazendas iniciadas pelo seu bisavô materno? Como
poderiam estas coisas acontecer sem que houvesse um sentido maior,
que escapava à sua compreensão mas que tinha de existir? Talvez Deus
tivesse alguma coisa a ver com isto. Deus ou as forças históricas; a
Bíblia ou Marx. Não se falava da libertação dos povos, do fim de um
ciclo? O pai transmitira-lhe a aversão ao comunismo. A mãe anexara
uma capela à casa e, desde a sua morte, Mariana mantinha-a impecável,
já que a capela fazia parte da antiga ordem da vida numa fazenda
grande. E afinal, de que fugiam eles? Tentava convencer-se de que o
perigo seria passageiro, que se encontraria uma solução, que todos
seriam chamados em breve para regressarem.

Não se cansava de dar indicações aos criados, que mudavam objectos


de lugar e carregavam coisas para os carros. Mas mantinha os três filhos
perto de si, como se achasse que também eles lhe poderiam ser retirados
a qualquer momento. Só lhe faltava perder Capelo e os filhos. Só
poderia descansar quando visse a tropa que iria escoltá-los dali para
fora. A escolta militar era a garantia de que sobreviveriam mas, ao
mesmo tempo, a certeza de que deixariam tudo o que haviam construído.
A terra, as roças… Em breve voltaria. Claro, iria voltar. Não poderia
viver noutro lugar.

Com o ruído de tiros à distância nos primeiros dias, Xavier dera


mostras de ficar ansioso. Mariana e Capelo sabiam que ele se achava
uma peça influente no jogo político e militar e quereria ir ter com os
jogadores que trocavam tiros na Gabela. Desde que Capelo o trouxera de
Luanda, era mantido sob a vigilância de um criado de confiança. Com o
passar dos dias, porém, Xavier foi ficando mais calmo. Olhava,
impávido, as movimentações de toda a gente dentro da casa grande.
Quando Mariana vinha verificar onde estava, Xavier olhava para a irmã
com olhos muito abertos e parados.

Capelo sentou-se ao volante de uma das carrinhas. Via imagens do


passado, quando, catorze anos antes, conduzia uma coluna militar que
inspeccionava fazendas do Norte, encontrava sobreviventes dos
massacres, enterrava mortos, prendia rebeldes. Estes tiros de agora eram
o eco daqueles que então se tinham feito ouvir. Capelo esperava por isto,
estivera muitos anos sentado em cima de uma bomba ao retardador.
Todo esse tempo vivido era a dilatação de um segundo após pisar uma
mina, como aquelas que vira explodir nas picadas do Uíge. Era isso que
lhe diziam os sonhos de que acordava aos gritos, era isso que lhe diziam
os fragmentos quase microscópicos dos estilhaços de granada que o seu
organismo expulsava, de quando em quando, atravessando-lhe a pele.

Agarrou com força o volante, ao ponto de as mãos lhe doerem, para


sentir a dor e obrigar-se a estar ali, no presente. Pensou: «Temos de
pagar a factura. Agora é aguentar.» Não queria identificar-se com frases
que ouvira outros fazendeiros dizerem, algumas das quais encontravam
um eco indesejado dentro de si: «Eu nunca tratei mal os meus pretos…
O que os outros faziam com os pretos deles não era da minha conta…
Estava-se mesmo a ver que isto ia acabar mal… Podíamos cá ficar e
fazer disto um grande país, que aliás já é… Mamámos das tetas da loba
enquanto pudemos, agora a loba vai devorar-nos…»

Quando Mourão estava a ser metido dentro de um carro, e se ouvia o


bater de muitas portas, as últimas ordens gritadas aos criados, as
respostas gritadas destes, o velho fazendeiro, saindo da sua apatia, disse,
sorrindo para a filha:

– Tudo se vai resolver. Não se preocupem, isto não é nada…

Mariana ficou assombrada. Com a porta do carro aberta e o pai já


sentado lá dentro, agarrou-lhe a mão e olhou bem para dentro dos olhos
dele, mas já o pai tornara a desaparecer e só havia aquele olhar vago, o
sorriso de sempre, uma mão esquecida na mão dela. Dissera qualquer
coisa que parecera fazer sentido, mas fora só um instante. Dissera o que
todos tinham pensado, e mesmo agora estavam a pensar: tudo se vai
recompor, vamos voltar, se calhar nem chegaremos a partir.

Alguns criados conduziam as outras viaturas e fá-lo-iam até ao


aeroporto. Os criados que iam ficar postaram-se junto ao portão da
fazenda. Mariana, ao lado do pai, fazia adeus aos que choravam à sua
passagem. À primeira curva, deixou de ver os extensos cafezais que
eram da sua família há três gerações e já estavam maduros para a quarta
geração.

«Tão depressa?», pensou Mariana, vendo, pelo vidro traseiro do carro,


apenas uma nuvem de poeira. Tinha imaginado que a despedida
consistiria em ver os cafezais diminuir na distância, como uma miragem
que se fosse esbatendo e lhe desse tempo de chorar e de pensar, e não
assim, deste modo abrupto, numa curva de estrada cega e poeirenta.

43

Sabendo que as facções inimigas estavam a trocar tiros, Xavier


percebeu que chegara a hora do seu sacrifício. Competia-lhe pôr um fim
à contenda, a todas as contendas. O Pai do Céu pedia-lhe um exemplo
para redimir a humanidade.

A coluna de veículos das várias fazendas foi juntar-se à coluna maior


que se formaria na cidade. Xavier esperou que a irmã e o cunhado, tão
atarefados com idas e vindas, se esquecessem dele. Iludiu a vigilância da
sua família terrena e dirigiu-se, pela segunda vez, para a sanzala.

Há muito tempo que esperava um sinal. Deus transformara-o outra vez


num africano e guiava-o. Até se cumprir o seu destino, todas as balas
que lhe fossem dirigidas seriam desviadas. A sanzala parecia calma e
estavam poucas pessoas à vista. Os guerrilheiros deviam estar a disputar
ruas e bairros na cidade de asfalto.

Apareceu à sua frente uma velha com uma enxada na mão e uma
criança morta nos braços. Depois de se cruzarem, a velha virou-se para
ele:

– Não és tu o Cristo? Se és Cristo, ressuscita-o.

Xavier aproximou-se. O corpo da criança estava seminu e tinha


sangue na boca. Não devia ter mais de cinco anos.

– Uma bala perdida atravessou-lhe o peito – disse a velha, com


rispidez.

Xavier pôs as mãos na cabeça da criança e pensou: «Pai, seja feita a


tua vontade.» Nada aconteceu. A velha soltou uma risada escarninha,
como se tivesse obtido a confirmação da maldade irremediável do
mundo, e continuou o seu caminho.

Já ela estava fora da sua vista quando Xavier decidiu tentar uma
segunda vez. Procurou a velha e a criança, mas perdera-as no labirinto
das cubatas que lhe pareciam todas iguais. A sanzala estava quase
deserta e, no silêncio reinante, ouviu um som que parecia o de alguém
que estivesse a cavar e orientou-se por ele. Encontrou a velha, que abria
uma cova. A criança jazia ao seu lado, sobre a terra fofa. Xavier
ajoelhou-se diante do cadáver. A velha parou de cavar e pôs-se a olhar,
calada. Parecia disposta a fazer um último e cansado esforço para
acreditar no impossível.

«Pai», pensou Xavier, «aqui começa a minha história. Ao lado desta


cova, onde só estou eu, esta velha e esta criança morta. Eu sou o teu
veículo. Devolve a vida a esta criança e isso será sabido na Gabela,
chegará a Luanda, Lisboa, Moscovo e Washington. O mundo saberá
quem eu sou, quem tu queres que eu seja.»

– O nome dele é Jacinto – disse a velha.

Xavier olhou com atenção para a criança. O fio de sangue seco que lhe
saía da boca atraía as moscas. Repetiu mentalmente o nome da criança e,
com isso, já ela parecia estar a voltar à vida.

A velha não olhava para a criança morta, mas para Xavier. Se Xavier
tivesse olhado para ela, poderia ter lido no seu rosto que falira a crença a
que se entregara, e que sentia não apenas pena pela criança e por si
própria, mas também por este Cristo tão incompetente.

Xavier esperava. A velha suspirava de cansaço, agarrada à enxada.


Xavier pôs-se de pé e afastou-se. O Pai do Céu assim quisera. Mas
sentia a falta da sua voz.

Continuou a caminhar por entre as cubatas, como se soubesse para


onde estava a ir. Queria cumprir o seu destino. Ouviu um carro a travar,
perto, mas fora da sua vista, e procurou-o. Foi encontrado primeiro,
porque ouviu, atrás de si, o barulho da culatra de uma arma. Virou-se e
viu um guerrilheiro que lhe apontava a arma. Outros três aproximavam-
se.

– Eu disse que se te tornasse a ver aqui matava-te – disse o


guerrilheiro.

«Cumpra-se tudo», pensou Xavier. «O meu Pai do Céu sabe o que


faz.» Sorriu de novo, com aquele sorriso leve e sereno que devia andar
associado à sua missão.
– Ele está a rir-se – disse um dos guerrilheiros.

– Ai é? Eu já lhe dou motivos para rir.

Houve um disparo. A bala atravessou-lhe o crânio, entrando pela testa,


e Xavier caiu de costas, com os braços abertos.

44

Sete dias depois de rebentar a guerra civil na Gabela, chegou a força


militar que vinha escoltar a população.

Eram quatro Unimog, quatro Berliet e três jipes, estafados por anos de
contraguerrilha. Carregados de soldados, entraram pela estrada da
Quibala e percorreram as principais artérias da cidade. Os militares
perguntaram aos transeuntes onde estava o administrador e foi-lhes dito
que se dirigissem para o largo junto ao jardim municipal, onde se faziam
as reuniões populares. O administrador iria ao seu encontro.

Quando a coluna militar estava a percorrer uma rua, o comandante,


um capitão, de pé na viatura da frente, ouviu uma voz próxima, vinda de
cima:

– Tá! Tá-tá-tá-tá!

Olhou: eram três crianças numa varanda de um segundo andar. A mais


velha, com uma metralhadora de brincar apontada para ele, imitava o
ruído de uma rajada. Eram os filhos mais novos de Mateus e Beatriz.

O capitão arrastava consigo o cansaço e o desencanto de quatro


comissões, duas na Guiné, uma em Moçambique e uma em Angola. E
aqui ficara, depois do cessar-fogo, e aqui deveria continuar até ao dia da
independência. Os altos comandos impediam os militares de reagir aos
incidentes provocados pelos movimentos independentistas. O capitão
considerava-se traído pelos governantes, que tinham deixado o inimigo
de outrora entrar, armado e impune, em todas as vilas e cidades. A tropa
restringia-se agora à escolta de civis. A guerra fora inútil; a neutralidade
a que os obrigavam era uma forma torpe de pôr fim a tantos anos de
esforços em busca de paz e prosperidade para as terras africanas. Mas
vinha a esta cidade para cumprir uma missão e cumpri-la-ia. No
momento em que viu três crianças a apontarem-lhe uma metralhadora de
plástico, o capitão pensou: «Isto nunca acaba, está sempre a recomeçar.»

Toda a gente ficou a saber que os militares tinham chegado. As


pessoas iam ver as viaturas estacionadas. O capitão fez saber que o
objectivo era arrancarem dali na manhã do dia seguinte. Como já eram
esperados há dois dias, presumia que todos estivessem preparados para
partir.

O capitão ficou espantado quando o administrador de concelho lhe


disse que a população branca era superior a doze mil pessoas. Viera de
Luanda com uma força pequena porque lhe tinham dito que os civis a
evacuar seriam umas centenas. Para escoltar uma caravana com milhares
de veículos teria de pedir o apoio de caças da Força Aérea.

Alguns negros procuraram a tropa recém-chegada para dizer que


estava um branco morto na sanzala. A novidade espalhou-se depressa e
causou grande alvoroço. Todos se lembraram do barbeiro encontrado
morto na sua loja, logo no primeiro dia do tiroteio.
Os militares foram à sanzala e, vendo o cadáver de Xavier,
perguntaram como acontecera aquilo. A resposta foi apenas a palavra
que servia para explicar tudo o que agora acontecia em Angola: maka,
confusão. O corpo foi trazido para a cidade. A morgue do hospital já não
funcionava. Os militares regressaram ao jardim municipal e colocaram o
corpo no salão de chá onde se costumava jogar xadrez.

Informados do que tinha acontecido, Capelo e Mariana vieram ter com


o capitão da escolta, que estava ao lado do administrador. Confirmaram
que Xavier, que sofria de uma doença mental, desaparecera no dia
anterior. Capelo andava desde então a tentar encontrá-lo, com a ajuda do
único capataz que lhe restava.

O corpo de Xavier jazia sobre duas mesas justapostas e estava coberto


por uma capa de lona. Era a segunda vez, em pouco tempo, que Mariana
e Capelo eram conduzidos ao lugar onde jazia um cadáver, para
cumprirem o dever de o reconhecer. Capelo, como da primeira vez,
rendeu-se ao fatalismo que os anos e a experiência lhe tinham inspirado:
a morte era tão definitiva, e os vivos tão impotentes, que tudo tinha de
concorrer para aquele desfecho. Mariana estava perplexa por ver crescer
a sua lista de lutos familiares. Lembrou-se do dia em que Xavier,
naquele mesmo salão de chá, ficara aterrorizado com Inácio, seu
adversário no jogo de xadrez. Afinal, Xavier passara por muitos terrores
e ela nunca o soubera defender.

Um enfermeiro do hospital da Gabela propôs transportar o corpo de


Xavier numa ambulância e integrar-se na coluna.

45
O capitão da escolta dialogou com o comandante Inabalável, no posto
avançado do MPLA perto da cidade. O seu principal argumento eram os
dois Fiat G-91 que apareceram a fazer voos rasantes e ruidosos sobre as
copas das árvores. Os sitiantes, que não podiam enfrentar meios aéreos,
aceitaram que se fizesse a evacuação em vinte e quatro horas.

Beatriz pensava numa maneira de avisar Célia sobre o abandono da


cidade. Dirigiu-se ao administrador de concelho Margão do Rosário, que
podia ser encontrado no jardim municipal, o lugar dos grandes
ajuntamentos. O administrador via e dava-se a ver, mas a postura rígida
do seu corpo, a expressão séria e meditativa com que reagia a todas as
questões, mostravam aos gabelenses, que o conheciam bem, que ia uma
vez mais deixar-se levar pelos acontecimentos. Beatriz viu muita gente a
instá-lo a resolver as suas angústias: como avisar os familiares quando
as vias de comunicação estavam cortadas. Margão do Rosário, não
sabendo o que fazer, devolvia as perguntas, esperando, como sempre,
que a massa crítica do grupo que o rodeava produzisse a solução. A sua
estratégia resultou, porque o capitão disse o que se praticava havia já
várias semanas: os centros de acolhimento de refugiados, em Luanda ou
Nova Lisboa, enviavam avisos radiofónicos para os desalojados
comunicarem onde estavam.

O dono de um camião-cisterna forneceu gasolina a todos. As famílias


concentraram os carros no largo. Só iam poder contar com o que
levassem nos carros. Como esperavam dormir no chão, nalgum sítio
aonde fossem parar, levavam agasalhos e mantas. Ficava encaixotado o
recheio das casas, aguardando um transporte que já não se realizaria.

A coluna de viaturas civis aumentou ao longo do dia e madrugada


adentro. Os que não tinham carro trataram de arranjar boleia. A tropa
redobrou os esforços para orientar a arrumação nas ruas, que não
estavam preparadas para um ajuntamento tão grande de carros, carrinhas
e camiões, e ainda teve de ir a todas as fazendas dos arredores chamar os
que aí moravam. Havia uma grande fogueira à entrada da cidade onde as
pessoas se aqueciam e comiam alguma coisa. Muita gente dispunha-se a
dormir nos carros. Havia quem chorasse, antecipando a grande
despedida.

Desta vez, Mateus lembrou-se a tempo dos prisioneiros da cadeia. Deu


ordem ao guarda interino para os libertar. O prisioneiro branco integrou-
se na coluna, à boleia.

Milhares de pessoas, com o jardim municipal como ponto de


referência, fizeram um gigantesco piquenique. Havia panelas de comida
em cima de fogões portáteis. Um homem cozinhou um arroz de
bacalhau numa grande panela, regou o arroz com uísque e disse:

– Há que aproveitar. Deixei encaixotado um Château Latour de 1875.

Havia gente, incluindo brancos, que andava a roubar as casas


comerciais. A dona da farmácia oferecia biberões e fraldas às mães que
tinham bebés e dizia a várias pessoas para irem à farmácia buscar o que
quisessem, caso contrário tudo o que lá estava se perderia. Disse-o a
Mateus, que recusou:

– Não sou capaz de fazer isso. Sou seu cliente.

– Mas vai deixar de ser – contrapôs ela. – Estão a saquear-me a


farmácia. Prefiro dar as coisas a pessoas que conheço. Vá lá buscar
perfumes e champôs para as suas filhas, por exemplo. O que ficar vai
parar às mãos dos pretos.

– Agradeço, mas não me sentiria bem fazendo isso – disse Mateus.

Beatriz e Mateus foram dos que se juntaram à concentração de manhã


muito cedo, dia 8 de Agosto. Foram os últimos a sair da casa do colega
de Beatriz onde se tinham refugiado. Enquanto Mateus e os filhos já
aguardavam na rua, Beatriz fez uma última ronda para ter a certeza de
que as luzes estavam apagadas, as torneiras de água e os bicos de gás
fechados, as janelas trancadas. Fechou a porta à chave.

Quando o carro estava posicionado na fila, Ana lembrou-se da


tartaruga do lago do jardim municipal. Quem é que lhe daria de comer?

Às oito da manhã, ouviram-se os primeiros motores a arrancar. Já se


viam nas ruas alguns negros com sacos, impacientes por começar o
saque das casas. Havia grandes concentrações de africanos na entrada da
cidade por onde a coluna iria passar, vindos das sanzalas. O capitão, no
topo de um Unimog, observou-os com os binóculos e comentou, com
despeito:

– Aí está o Poder Popular.

Um Unimog e uma Berliet iam à cabeça da coluna, que se foi


estendendo pela Avenida Marechal Carmona. Quem, desde o começo do
tiroteio, não tinha tido uma noção do estado da cidade, podia tê-la agora
e ver fachadas de vivendas e de prédios crivadas de balas, estores
descidos, lojas com as portas fechadas e os taipais corridos, bocados de
papel a esvoaçar, lixo nas ruas.
A população das sanzalas viera assistir e postou-se dos dois lados da
estrada para a Quibala, que a coluna, como um carreiro de formigas,
teria de seguir. Num momento em que a coluna parou, algumas
mulheres aproximaram-se dos carros e interpelaram os ocupantes. Uma
perguntou a Beatriz:

– Vão-se embora? Porquê?

Beatriz não encontrou nada melhor para dizer senão que tinham de ir.
Olhou para a multidão, durante alguns minutos, na esperança de ver a
Julieta. Afinal, não se tinham despedido formalmente.

Havia espanto e consternação entre os que assistiam à passagem dos


carros. Algumas pessoas abanavam a cabeça ou choravam: viam os
patrões desaparecer estrada fora e não sabiam quem viria substituí-los.

A estrada, de terra vermelha, passava diante do edifício do tribunal.


Mateus tornou a pensar nas coisas que lá deixara: a máquina de escrever
nova, o frasco com diamantes, alguns dos seus poemas e contos. Tinha a
chave da porta principal consigo. Poderia aproveitar o pára-arranca da
coluna para lá ir. Mas pensou que podia ter um mau encontro, além de
que a escolta não garantia a segurança de quem saísse da coluna.

Viu o comandante Fera diante de doze homens em formatura, à beira


da estrada. O que significava aquilo? Porque escolhia o comandante
Fera esse momento para se mostrar? Podia ser um acto simbólico, como
se afirmasse: vocês saem e nós ficamos; temos o poder soberano.
Alguém disse mais tarde que, assim que a cauda da coluna passou, os
homens da FNLA integraram-se nela para saírem da cidade e
beneficiarem da escolta portuguesa.
Algumas pessoas viram dos seus carros assaltantes a sair das casas e
dos prédios carregando vários volumes, como mesas e cadeiras, às
costas.

O padre Emanuel dissera a toda a gente que ficaria na Gabela, porque


nada poderia derrotar a acção missionária. Agora é que ele iria ser mais
necessário do que nunca. Altivo, solene, despediu-se de muitos dos que
estavam de partida. No entanto, acabou por se juntar também à coluna.
Contou mais tarde que, depois de se ver sozinho na cidade, decidiu ir
fazer a barba. Quando estava a meio dessa operação, sentiu um grande
silêncio. Foi à janela e não viu ninguém nas ruas do centro: tudo
silencioso, deserto. Então, correu para o seu Ford e alcançou os últimos
carros já fora da cidade.

46

A cidade ainda ali estava, suja, ferida, aguardando os golpes que


derrubariam as paredes e os tectos.

Uma parte da cidade branca estava metida nos caixotes deixados nas
casas. Outra eram as próprias pessoas que fugiam, os seus carros e
bagagens. A última era tudo o que não podia ser encaixotado, enfiado
num carro ou num avião: as casas, os prédios, os muros, os postes de
iluminação pública, os bancos dos jardins, as pedras da calçada e o
asfalto das estradas que, cobrindo a terra, era o próprio símbolo da
cidade branca, onde pés sempre calçados não tocavam o pó ou a lama. A
cidade fragmentava-se em três grandes parcelas, mas estas iam
fragmentar-se mais, quando os carros fossem largados junto dos portos e
aeroportos e as bagagens se perdessem ou fossem confiscadas, ou à
medida que os refugiados, confluindo na sua maioria para Lisboa, se
dispersassem nas regiões e cidades familiares ou por obra de colocações
provisórias. O trabalho de fragmentação era infinito.

As massas negras das sanzalas, segundo uma lei natural que impele a
ir habitar um nicho ecológico vazio, afluiriam. O que não viesse a ser
habitado e usado, ruiria, tornar-se-ia entulho, cobrir-se-ia de pó, de
humidade e de plantas rasteiras. Esboroar-se-ia, ficaria corroído,
infiltrado de água, corromper-se-ia. Mesmo as casas abandonadas por
pessoas que tinham deixado a mesa posta com os pratos e os talheres do
costume, ou que, como Beatriz, se preocupavam em verificar a torneira
do gás e as luzes apagadas, conheceriam esse destino.

A coluna dirigiu-se para a Quibala, a setenta e cinco quilómetros. À


cabeça seguia um Unimog equipado com rádio e uma Berliet cheia de
soldados e material bélico. A meio estava outro Unimog com rádio e
outra Berliet carregada. Na cauda, um terceiro Unimog com rádio e uma
terceira Berliet. Havia comunicação permanente entre a cabeça, o meio e
a cauda da coluna. Três jipes circulavam entre a cauda e a cabeça.

Ao longo da estrada continuaram a ver muitos negros com sacos


debaixo do braço, caminhando no sentido oposto, preparados para o
saque.

Quando estavam percorridos vinte e dois quilómetros, a viatura da


frente soube, via rádio, que nesse momento estava a viatura da cauda a
sair da Gabela. Seguiam na coluna treze mil pessoas. Era sobrevoada por
dois aviões Fiat, a menos de quinhentos metros de altitude. Um jipe que
andava num vaivém constante exibia um cartaz onde se lia: «É favor não
saírem da fila. Mantenham-se nos vossos lugares.»
Circulavam entre os cinco e os dez quilómetros por hora. Quando um
carro parava por algum motivo, os que vinham atrás tinham de parar e
os que iam à frente seguiam até se aperceberem da paragem. Havia
vários incidentes que provocavam paragens, sobretudo crianças com
vontade de urinar e pneus furados. Se o motor das viaturas mais velhas
gripava, as pessoas eram distribuídas por outros carros e perdiam os
poucos haveres que levavam no veículo abandonado na berma da
estrada.

Inácio levava dois carros, com o máximo de bagagem, um conduzido


por ele e outro pela mulher. Com a mãe, iam as gémeas. Mateus, num
momento de paragem, andou a pé, para desentorpecer as pernas, e viu a
mulher de Inácio deixar o carro ir-se abaixo e ficar nervosa. O
comerciante vinha lá da frente aos berros, a insultá-la.

Mariana e Capelo estavam num carro que seguia atrás da ambulância


reconvertida em carrinha funerária, que levava o caixão com Xavier.
Mariana escondia os olhos atrás de uns óculos escuros. Capelo agarrava
o volante com as mãos crispadas e tinha as costas afastadas do assento,
numa postura de prontidão e vigilância.

Sobre a ponte do rio N’Nhia, surgiu uma barreira. Os guerrilheiros


exigiam a entrega dos homens da FNLA que diziam estar escondidos na
coluna. O comandante da escolta foi, como se dizia na gíria militar,
parlamentar. Algumas pessoas disseram ter visto o capitão, a dado
momento, a apontar para o céu. Os guerrilheiros desobstruíram a ponte e
a coluna seguiu. Mais tarde, constou que o capitão disse que faria recuar
a coluna e pediria um bombardeamento aéreo.

Depois de parar para se restabelecer a ordem na fila, a parte mais


dianteira da coluna demorou oito horas a chegar à Quibala, que era um
nó rodoviário. Mateus e Beatriz chegaram ao fim da tarde. Os militares
da escolta disseram que a partir dali as pessoas já não iam ter a sua
protecção. Podiam escolher ir para Luanda ou para Nova Lisboa.
Escolheram Nova Lisboa: as estradas para Luanda estavam
congestionadas e havia grande confusão na capital.

Desfeita a coluna, os carros iam-se isolando uns dos outros. Era de


noite e Mateus não conhecia a estrada. O grande medo era que o carro
avariasse. Já não estavam na coluna, onde seriam socorridos. Propusera
a um indivíduo que seguissem juntos, para se ajudarem em caso de
necessidade. O outro tinha um carro mais potente e Mateus, não o
conseguindo acompanhar, perdeu-o de vista.

Na falta do vidro da frente, estilhaçado durante a primeira tentativa de


fuga, um vento forte invadia o carro. Mateus vestiu o casaco ao
contrário, preso com um alfinete-de-ama. Os olhos lacrimejavam-lhe por
causa do vento. Os adolescentes e as crianças dormiam. Beatriz avistou
luzinhas junto ao horizonte e pensou que seria uma povoação, mas eram
estrelas.

Depararam com postos de controlo, que não eram mais do que o


tronco de uma árvore atravessado na estrada e alguns soldados com
Kalashnikovs e lança-foguetes. Mateus dava notas aos guerrilheiros que
o interpelavam, sem saber de que movimento eram porque não usavam
uniformes regulares. Se o tratassem por «camarada», eram do MPLA; se
o tratassem por «irmão», eram da FNLA ou da UNITA. Levava as notas
preparadas e sacava-as sempre que necessário. Numa das barreiras um
guerrilheiro quis ver o porta-bagagens, para confiscar armas. Mateus
abriu-o; caiu de lá de dentro a tampa de uma panela que saltitou sobre o
asfalto e assustou o guerrilheiro, que se virou, com a metralhadora em
riste.

Chegaram a Nova Lisboa a meio da madrugada. Os refugiados


estavam a ser encaminhados para os pavilhões da Feira Internacional.

47

Houve pessoas que não tiveram a mesma sorte na estrada Quibala-


Nova Lisboa. Uma família parou para fazer alguma necessidade e
surgiram guerrilheiros que mandaram todos sair do carro. Uma miúda de
dez anos assustou-se, desatou a correr e foi abatida. Os pais tiveram de
seguir viagem com o cadáver. Contaram-se variantes desta história: que
a menina fora apanhada por fogo cruzado; que fora atingida por um
disparo acidental de alguém da própria família.

Alguns elementos da FNLA que integraram a coluna, disfarçados de


mulheres ou escondidos em sacos de batatas, foram apanhados e mortos
a tiros de metralhadora por elementos do MPLA.

Beatriz e Mateus não chegaram a saber como decorreu a fuga da


funcionária do arquivo de identificação. Viviana, transportando uma
mala pequena e um saco de serapilheira, pedira boleia a um casal que
tinha duas filhas adolescentes. Obrigaram-nos a parar e a mostrar o que
levavam. Em muitos lugares confiscavam-se as bagagens e o dinheiro
dos desalojados, argumentando que pertenciam ao povo e eram fruto da
exploração dos negros. O homem protestou que o que levava ali fora
ganho com o seu trabalho e que nunca explorara ninguém. Disse entre
dentes, num desabafo: «Merda!» Os guerrilheiros acharam que ele
estava a insultá-los, espancaram-no à coronhada e ameaçaram atirá-lo ao
rio.

Viviana assistiu, paralisada de medo. Não havia mais ninguém à vista,


só eles e os guerrilheiros, no meio da noite. Quando a mandaram sair do
carro, agarrou com força o saco de serapilheira, o que atraiu a atenção de
um guerrilheiro.

– O que levas aí? – perguntou ele, agarrando o saco.

Viviana não largou o saco. O homem puxou com força e arrastou-a


para o outro lado de um camião encostado na berma, para fazer o saque
mais à vontade sem ter de dividir com os companheiros. Ele sabia que
algumas pessoas levavam jóias ou maços de notas, às vezes todas as
economias levantadas do banco. Puxou o saco, que Viviana agarrava
pela outra ponta, um monte de ossos humanos saltou para o chão. O
guerrilheiro apalpou-os; alguns estavam embrulhados em panos
bordados, como relíquias de um santo. O saco não tinha mais nada. Ele
bem que o revirou, incrédulo, à espera de ver cair um monte de notas.

– O que é isto? Uma caveira?

– São de família – disse Viviana, numa voz que tentou que fosse
neutra.

O homem fitou-a em silêncio. Nesse momento, Viviana ouviu os


gritos da mulher e das duas filhas e percebeu que estavam a ser violadas.

– E se eu deitar isto ao rio? – disse ele, dando um pontapé nos ossos.


– Não, por favor! – gritou ela.

– O que é que me dás em troca para eu não atirar isto ao rio?

– Não tenho dinheiro.

– Mas tens outras coisas – disse ele, tocando-lhe com as pontas dos
dedos na face. – O que é que me dás em troca?

– O que quiseres – disse ela, numa voz sumida.

– Então ajoelha-te. Vamos, ajoelha-te!

Ela ajoelhou-se e, ao mesmo tempo que ele começava a abrir a


braguilha, recuperou os ossos espalhados no chão.

Malange, 1975

Enquanto a família estava debaixo de fogo cruzado na Gabela, Célia


vivia uma situação idêntica em Malange.

As coisas não tinham corrido como esperava. Sandro, o amigo de


Alexandre, viera buscá-la e viajaram no carro dele para Malange. Iam
ficar uma noite na casa de Sandro e na manhã seguinte apanhariam uma
avioneta para o Cafunfo, onde Alexandre esperava por ela no meio do
garimpo selvagem de diamantes. A namorada de Sandro, uma negra
gorda, mostrou-se simpática e instalou-a num dos quartos da casa.

À noite, quando Célia tentava dormir, excitada com a ideia de voar


numa avioneta para uma zona que lhe tinham descrito como uma espécie
de far west, só acessível por avião, ouviu as vozes de Sandro e da
namorada. Ela gritava que queria ir para o Cafunfo; Sandro acusava-a de
ciúmes. Ela talvez achasse que Célia era amante de Sandro e que este
mentira ao apresentá-la como namorada de Alexandre.

No dia seguinte, foram para o aeroporto apanhar o táxi aéreo que


Sandro requisitara. Só havia lugar para dois passageiros. Sandro teve de
mudar de planos: iriam ele e a namorada, primeiro, e ele voltaria logo de
seguida, na mesma avioneta, para vir buscar Célia.

Célia viu-os partir e dispôs-se a esperar num café do aeroporto, a ler


um livro. A espera ia ser de algumas horas. Não tinham passado mais de
duas quando sentiu uma mudança no ambiente. Vozes preocupadas,
gritos, murmúrios, qualquer coisa de aflitivo que atravessava o ar como
uma corrente eléctrica e modificava o estado de espírito dos presentes.
Viu algumas pessoas a correr de um lado para o outro. O empregado do
café esclareceu-a: os movimentos de independência tinham iniciado um
tiroteio, o espaço aéreo de Malange ia ser encerrado. Por quanto tempo,
não sabia.

Célia ficou sozinha, a olhar para a pista, à espera de ver o táxi aéreo
regressar a tempo de a vir buscar. Mas os minutos passavam e nada
acontecia.
– Venha daí! – gritou um funcionário do aeroporto. – Temos de ir
embora.

– Porquê? – perguntou Célia, ainda incrédula.

– O aeroporto vai ser ocupado. Temos de sair daqui.

O homem quase puxou Célia pelo braço, porque ela não queria mexer-
se do lugar. A avioneta que traria Sandro podia aparecer a qualquer
momento e ela queria estar ali para a ver, ir ao seu encontro, embarcar.

Já na rua, viu mais gente a correr para os carros. Estavam a chegar os


guerrilheiros de um dos movimentos. Eram do MPLA. Depois de um
tiroteio pesado nos arredores, havia agora uma luta pela posse do
aeroporto.

Os guerrilheiros improvisaram posições de defesa. Corriam à volta de


Célia que, carregando a sua pequena mala, girava sobre si própria e
olhava para o céu, à espera de ver a avioneta salvadora. Portas de carros
eram fechadas com força, uns porque partiam a toda a pressa, levando
civis em fuga, outros porque chegavam e travavam bruscamente,
saltando do seu interior mais guerrilheiros. Ao longe, explosões de
artilharia. Começavam a ouvir-se também rajadas de metralhadora.

De repente, lá estava ela, no céu, a avioneta. Célia reconheceu as


letras desenhadas a preto na fuselagem. Era o táxi aéreo de Sandro. A
avioneta descreveu círculos no ar. Célia pulava, agitava as mãos por
cima da cabeça. Quis alcançar a pista, para se tornar mais visível, mas
foi barrada por guerrilheiros.

– Eles vêm buscar-me! – disse, muito aflita, a um oficial que a agarrou


pelos ombros, apontando para o táxi aéreo que continuava aos círculos.

– Já não podem descer – disse o oficial, largando-a.

– Eu tenho de ir com eles! – tornou Célia, com um sentimento de


urgência que nunca antes experimentara.

– Não pode – disse o oficial. – Veja, já se vão embora.

A avioneta virou sobre a asa direita, descreveu uma curva para fora
dos círculos repetitivos que até aí empreendera e, com a dianteira já
apontada para Nordeste, afastou-se, foi diminuindo de tamanho, o ruído
dos seus motores apagou-se na distância.

Célia ficou a vê-la desaparecer. Não havia nada que desejasse mais do
que estar lá dentro, para ir ter com Alexandre. Sentiu vontade de chorar.
O oficial fez uma expressão de comiseração e encolheu os ombros,
como se dissesse: «É a vida.» Depois, como um polícia sinaleiro
deslocado naquele ambiente, indicou com a mão a direcção que Célia
deveria tomar.

Com a mala a bater-lhe nas pernas, ela afastou-se uns metros. Viu um
carro à sua frente. O condutor acabara de ligar a ignição. Perguntou-lhe:

– Vai para a cidade?

– Vou. Entre.

Sentou-se ao seu lado. Tomaram uma estrada que representava um


desvio face ao tropel guerreiro que avançava para o aeroporto. O
barulho da artilharia tornou-se mais forte, embora não se vissem os
beligerantes. Depois, a caminho da cidade, o atroar de morteiros e
obuses foi ficando mais ténue.

As ruas centrais de Malange já estavam muito condicionadas por


patrulhas e postos de controlo dos guerrilheiros. Não podiam circular em
busca de um hotel.

– Se quiser pode ir para minha casa – disse o homem. – Não se


preocupe. Sou casado e tenho filhos.

– Obrigada, mas prefiro ir para um hotel – respondeu Célia.

– Há um na rua onde eu moro. Vamos para lá.

O homem deixou-a à porta do hotel. Célia entrou e viu dezenas de


pessoas sentadas nas escadas e espalhadas pela entrada. Ignorou-as e
dirigiu-se à recepção. Quando pediu um quarto, o recepcionista olhou
para ela como se pedir um quarto na recepção de um hotel fosse a coisa
mais bizarra do mundo.

– O hotel está lotado – disse. – Olhe à sua volta. Arrume-se onde


puder, nas escadas, que é o sítio mais protegido dos tiros.

Durante alguns segundos, Célia sentiu-se indignada. Tinha de se


amontoar com aquela gente toda? Encarou a realidade a frio. Aquelas
pessoas eram refugiados que procuravam a segurança relativa do hotel.
Era isso que ela era agora: uma refugiada.

2
Célia permaneceu nas escadas do hotel, apinhadas de gente, durante
cinco dias.

Instalara-se na ponta de um degrau e fizera seu esse lugar. Só se


levantava para ir à casa de banho. As escadas davam para um pátio
interior, longe da rua e das balas perdidas. Nos degraus, as pessoas
dormiam sentadas, em cima de toalhas ou mantas, ou deitadas de
maneira a permitir a circulação pela escada. Alimentavam-se de comida
trazida por militares portugueses.

O tiroteio, violentíssimo, parecia nunca mais acabar. Dia e noite, as


paredes estremeciam com as explosões próximas. Algumas pessoas que
tinham saído e voltado diziam que a cidade estava a ser destruída.
Usava-se artilharia pesada e havia vários prédios atingidos. Havia
muitos mortos nas ruas, incluindo civis. Reclamava-se a intervenção das
autoridades portuguesas. Vituperavam-se os responsáveis políticos.
Manifestava-se repugnância pela inacção do Exército, que assistia de
braços cruzados ao desenrolar dos acontecimentos.

O dono de um stand de carros distribuiu chaves de carros para as


pessoas levarem. Malange chegara ao fim, Angola chegara ao fim, ele
não queria deixar os carros «para os pretos». Disse a Célia que um Alfa
Romeo verde que lá estava seria para ela. Célia respondeu que não sabia
conduzir.

Em pouco tempo, Célia leu os dois romances que trazia na mala.


Começou a observar melhor as pessoas que estavam no mesmo lance de
escadas. Uns degraus mais abaixo, reparou num casal que devia ter a sua
idade. Ela tinha uns cabelos castanhos lisos, compridos, parecia
tranquila e sonhadora. Ele adoptara uma expressão obstinada, de quem
queria mostrar que sabia lidar com situações difíceis. Ela costumava
deitar a cabeça no colo dele e ele afagava-lhe os cabelos. Um dia ele
pôs-se a pintar as unhas das mãos e dos pés dela, e, sem os poder ouvir,
Célia percebeu que ele fazia elogios à rapariga. A observação da
intimidade despreocupada do casalinho entreteve Célia durante algumas
horas por dia.

Ao terceiro dia, Célia sentiu que alguém lhe tocava no braço. Era a
rapariga do casalinho, que vinha propor-lhe uma troca. Deixou o único
livro que trouxera e levou os dois de Célia. Esta troca de livros
desencadeou uma amizade entre os três jovens, no meio do marasmo
enjoado de todos os outros refugiados daquele lanço de escadas. Ora um,
ora outro, subiam até ao degrau de Célia para conversar. Só ao fim de
um dia de intensa conversação é que Célia percebeu que eram irmãos.
Sentiu-se chocada com a intimidade que observara neles.

Rute e Rogério contaram que o pai morrera quando eram pequenos e a


mãe assumira a direcção da herdade familiar, com criação de cavalos e
vacas, perto de Malange. A mãe casara-se pela segunda vez com um
homem que tinha um filho da idade deles e, ao fim de alguns anos,
fugira para Luanda com o enteado, agora seu amante. Rute e Rogério, à
beira da idade adulta, ficaram sob a tutela de um tio materno. A herdade
fora atacada pela FNLA, que destruíra todas as máquinas e abatera os
animais que tivessem cor branca, porque tudo o que era branco tinha de
morrer. Depois, a herdade fora ocupada pelo MPLA, que dissera que
pertencia ao povo.

O tiroteio obrigara os dois jovens a procurar refúgio naquele hotel e


separara-os do tio, mas contavam reunir-se-lhe para irem para Sá da
Bandeira, onde tinham familiares.

A tropa portuguesa negociou tréguas entre os guerrilheiros para


conduzir a população civil ao quartel da cidade.

Um pouco por toda a cidade, surgiram veículos militares para


transportar os refugiados. Todos os que estavam há cinco dias nas
escadas do hotel desceram e saíram para a rua. Célia deu por si num
camião militar, entalada entre outras pessoas. Perdera Rute e Rogério de
vista.

Havia uma sensação de alívio: já tinham quem os orientasse e


protegesse. No percurso para o quartel viram a cidade destruída. Não
havia prédio ou casa que não tivesse buracos de obuses, morteiros e
granadas. As pessoas olhavam, incrédulas, como se tivessem sido
levadas para uma cidade bombardeada que não era a sua.

O tiroteio apanhara muitos civis nas ruas. Encontraram brancos


mortos há cinco dias dentro dos carros, que só agora iam ser recolhidos
pela tropa, e famílias inteiras mortas, atingidas quando fugiam de
prédios em chamas.

De todas as partes da cidade chegavam refugiados. Havia muitos


carros dentro do quartel, autorizados a estacionar ali, único lugar seguro,
e tendas montadas, já cheias de gente. O quartel, que tinha espaço para
trezentas pessoas, acolhia umas dez mil. A tropa serviu esparguete e
salsichas.
O ar estava empestado com o fumo dos incêndios e do cheiro a
putrefacção. Por vezes, conforme o vento soprasse, era difícil respirar,
mesmo ali, dentro dos muros do quartel.

Os militares permitiam que as pessoas usassem a secção de


transmissões para enviarem mensagens pelo rádio aos familiares de
quem se tinham perdido. Célia achou que os pais, se soubessem o que se
estava a passar em Malange, esperariam que ela o fizesse, mas afastou a
ideia de comunicar com eles, já que Beatriz fora contra o facto de ela se
ter querido juntar a Alexandre. Não queria olhar para trás, mas para a
frente; não para os pais, mas para o namorado. Ficou desolada quando
os militares lhe disseram que não tinham nenhum canal de comunicação
com o Cafunfo, essa zona garimpeira de sonho que, aos olhos de Célia,
parecia cada vez mais inatingível.

Depois de comer, viu-se entregue a si própria. Procurou um sítio onde


se instalar no meio de tanta gente. Deparou com um carro aberto e vazio,
entrou lá para dentro, deitou-se no banco traseiro e dormiu dois dias
seguidos, com uma manta por cima do corpo. Para quem vinha de cinco
dias passados nas escadas de um hotel, onde não tivera uma única noite
de sono retemperador, não era mau.

Quando acordou e pôs os pés no chão, um homem aproximou-se, num


passo trôpego, com uma garrafa de vinho abafado na mão. Deve ter lido
alguma coisa no olhar dela, porque lhe estendeu a garrafa. Célia
agarrou-a e bebeu de um só trago. Tinha sede e o vinho era adocicado.
Voltou para o carro e dormiu mais.

4
Como noutros pontos atingidos pela guerra civil, organizaram-se
caravanas de carros, com escolta militar, para levar a população para
Nova Lisboa, cujo aeroporto estava a escoar milhares de refugiados para
Portugal.

À saída do quartel, Célia reencontrou Rute e Rogério. Falavam com


um indivíduo mais velho e que Célia adivinhou ser o tio. Chamava-se
Tomé. Tinha uma barbicha com pêlos louros e grisalhos. Os olhos,
cinzentos, exprimiam dureza e ironia.

– É esta a vossa amiguinha? – disse Tomé, sorrindo para Célia.

Célia tinha de se associar a alguém para sair de Malange e pediu-lhes


boleia. Eles iam aproveitar a escolta militar até Nova Lisboa e daí
seguiriam para Sá da Bandeira. Calhava bem, porque Célia poderia ser
acolhida em Sá da Bandeira pelos seus antigos colegas do liceu que
andavam na Universidade. Mais tarde procuraria chegar à Gabela, que
deixara em paz uma semana antes. Achava que nenhum problema
deveria ter atingido a família; a Gabela parecia-lhe longe da guerra.

Instalou-se no banco de trás do carro, ao lado de Tomé, e os dois


irmãos foram para a frente. Rogério conduzia.

À medida que a coluna saía da cidade e passava pelos subúrbios,


milhares de africanos ao longo das estradas e dos caminhos assistiam à
partida dos brancos. Muitos faziam adeus, alguns choravam. As sanzalas
em volta estavam a arder.

Um Unimog com vinte homens era a cabeça da escolta; de três em três


quilómetros seguia um jipe com uma metralhadora fixa e seis homens
armados de pistolas-metralhadoras; as Berliet, com quarenta homens
cada uma, iam mais atrás na coluna; na cauda havia outro Unimog. Os
condutores das viaturas civis foram instruídos para circularem
encostados à direita, deixando espaço para as viaturas militares fazerem
inversão de marcha sempre que tivessem de acorrer a qualquer ponto da
coluna que precisasse de ajuda. Estas recomendações depressa foram
esquecidas e, como não havia trânsito em sentido contrário, os camiões
civis já entupiam o meio da estrada.

Tomé adoptara um tom irónico e protector quando se dirigia a Célia:

– Pode confiar em mim. Estou habituado a cuidar de desamparados.


Comecei por estes dois.

A coluna parava com frequência. Num desses momentos, Tomé


propôs que pusessem a mala de Célia na bagageira, em vez de ir ao colo.
Saiu do carro e foi abrir a porta do lado de Célia. Como esta demorasse
um segundo ou dois a passar-lhe a mala, ele disse:

– Tenciona ficar parada a criar bolor?

Célia achava estas tiradas irresistíveis.

Passaram por carros incendiados na berma da estrada. Quando a


coluna parava, Tomé saía e falava com alguns homens, brancos, uns
metros mais à frente ou mais atrás. Rute e Rogério, dentro do carro,
observavam o tio em silêncio, numa expectativa tensa. Célia viu um dos
homens com quem Tomé falava mostrar um revólver e examinar o
interior da câmara. Passou a perscrutar o rosto de Tomé, que nesses
momentos de reunião com aqueles homens perdia a expressão
descontraída que usava para falar com ela.

Em Cangandala, quando a coluna se aproximava da ponte sobre o rio


Cuanza, houve nova paragem. Passaram-se minutos e nada acontecia.
Ouviam-se algumas portas a bater: eram condutores e passageiros que
saíam dos carros para desentorpecer as pernas e ver o que se estava a
passar. Tomé decidiu sair para ir investigar.

Passaram-se mais alguns minutos. Aos ouvidos de Célia chegavam


sons vindos da frente da coluna: gritos, palavras de ordem, que
cresciam, cada vez mais próximos. Os três jovens saíram do carro.
Outros tinham feito o mesmo e agora havia muitos curiosos a esticar o
pescoço e a aguçar a vista. Viram sete guerrilheiros a abrir portas dos
carros e a retirar lá de dentro as pessoas, à coronhada. E rebentou o
tiroteio. O coração de Célia começou a bater com força. Um camionista
apossara-se da pistola-metralhadora de um dos guerrilheiros e disparara
sobre quatro deles, abatendo-os ali mesmo. Quase em simultâneo, Tomé
disparara o revólver sobre os outros três. Os dois apropriaram-se das
sete pistolas-metralhadoras.

O comandante da escolta apareceu a correr. Perguntou, olhando para


os mortos:

– O que houve?

– O que houve? – reagiu, aos gritos, o camionista. – Houve que vocês


falavam e nós tivemos de agir. Foi isso o que houve.
O comandante ficou calado a olhar para aquele homem que espumava
de raiva segurando quatro pistolas-metralhadoras no meio dos
cadáveres.

A coluna tinha parado porque um grupo de guerrilheiros da UNITA


barrara a entrada para a ponte e interditara a marcha da coluna, alegando
que esta transportava bens que pertenciam ao povo angolano. Os
militares da escolta foram fazer aquilo a que chamavam «parlamentar» e
conferenciaram à entrada da ponte. Ao mesmo tempo, alguns
guerrilheiros foram avançando ao longo da coluna, abrindo os carros à
força, sob a ameaça das armas, obrigando os passageiros a sair, como
Célia tinha visto.

Vários indivíduos, vindos de diferentes pontos da coluna, juntaram-se


a Tomé e ao camionista e receberam das suas mãos as pistolas-
metralhadoras. Pareciam já ter combinado uma acção entre si.
Determinados e agora armados, rodearam o comandante da escolta, a
quem Tomé disse:

– Não se negoceia com esta gente. Aqui funciona a lei da bala.


Enquanto você negoceia lá à frente, nós temos de assistir à brutalidade
que eles exercem sobre as nossas famílias. Daqui em diante acabaram-se
as negociações.

Célia, ao lado do par de irmãos, observava Tomé e não o reconhecia.

O camionista, pondo-se entre Tomé e o comandante, gritou, com as


veias do pescoço inchadas e uma espuma no canto dos lábios:

– Se vocês tornam a parar para falarem com esses filhos da puta, em


vez de os matarem logo, juro que descarrego todas as minhas balas nos
vossos cornos!

Os civis a quem tinham passado as armas aperraram as pistolas-


metralhadoras: disparariam sobre a tropa se esta perdesse um segundo a
conferenciar com os guerrilheiros. O comandante reflectia. Para impor a
sua ordem, teria de virar os soldados contra os civis que deviam
proteger. Mais valia aceitar o ímpeto daqueles homens, canalizá-lo para
um inimigo que as autoridades já não consideravam como tal, e levar a
bom porto a coluna com milhares de civis, que era o objectivo da
escolta.

Aproximaram-se mais militares, a quem o comandante deu ordens


para empunharem as armas em posição de disparo, seguindo uns para a
frente e outros para a cauda da coluna. Ele próprio foi, com alguns
seguidores de Tomé e do camionista, para a cabeça da coluna, onde já
não iria negociar o avanço sobre a ponte, como o exemplo dos sete
guerrilheiros mortos ilustrava. Pressionado tanto pelos guerrilheiros que
seguiam a coluna como pelos civis armados que o intimavam a defendê-
la com recurso ao combate, abandonou a neutralidade que a hierarquia
lhe impunha.

Quando voltava para o carro, Célia ouviu dois disparos. Tomé dera o
tiro de misericórdia a dois dos guerrilheiros, que não estavam bem
mortos. Rute e Rogério ficaram a olhar para o tio, sérios mas não
assustados. Tomé enfiou o revólver no bolso das calças e, enquanto os
três jovens se sentavam de novo dentro do carro, foi à bagageira, tirou
uma garrafa de água e limpou os salpicos de sangue dos sapatos.

Estes dois tiros desfechados na cabeça dos moribundos eram mais


arrepiantes do que os disparos que ele tinha feito no calor do tiroteio.
Tomé, em silêncio, sentou-se ao lado de Célia, no banco de trás.

A coluna prosseguiu em direcção a Nova Lisboa. Faltava percorrer


uma distância igual à que já tinha feito.

Célia estava perplexa. O homem que tinha morto três guerrilheiros à


sua frente estava ali ao seu lado, como se não tivesse acontecido nada.
Tomé olhou para ela e disse:

– Viu do que os pretos são capazes, Célia? Se deixássemos, faziam o


que quisessem de nós. Os nossos militares querem parlamentar, como
eles dizem, em vez de combater. Entre outros males, a tropa sofre deste:
não leu Montaigne. Se o tivesse lido, saberia que há um ensaio intitulado
«A hora perigosa das conversações». Aí se demonstra que é quando um
Exército decide cessar fogo e encetar conversações com o inimigo que
este aproveita para vibrar o golpe fatal. É o que se está a passar em
Angola. Querer negociar é um erro crasso. Os pretos encaram isso como
um sinal de fraqueza. Estes militares vêm para África sem conhecer a
mentalidade do preto e sem a honestidade intelectual de nos perguntar.
O preto só entende e respeita posições de força.

Esperou que estas palavras agissem sobre Célia, que não respondeu.

– O Moreira limpou ali quatro com uma grande pinta – comentou


Rogério, olhando para o tio pelo espelho retrovisor.

– O Moreira… – começou Tomé, com admiração e orgulho, mas


interrompendo-se. – Mataram-lhe o filho, em Malange. E sabem
porquê? Sabem porque é que o filho do Moreira foi morto? Porque
desde o 25 de Abril a tropa deixou de querer combater. E o inimigo, que
está tão interessado em parlamentar como eu estou em ser comunista,
aproveita para vibrar golpes. Acontece que é sobre nós, civis, que
recaem esses golpes. O maior de todos os crimes está a ser perpetrado
pelos políticos, que entregam as colónias aos comunistas. A deriva
esquerdista da Metrópole vai levar Portugal e o Ultramar para o abismo.

– Nós no lugar deles não faríamos o mesmo? – perguntou Célia.

– No lugar de quem, minha linda?

– Dos negros. A terra é deles. Estão aqui há mais tempo e são a


maioria.

– E isso dá-lhes o direito de violar as nossas crianças e mulheres e de


lhes retalhar os corpos à catanada, como fizeram em 1961 e querem
fazer agora? – perguntou ele, numa voz neutra e calma que arrepiava.

– Não – disse Célia. – Mas será que poderia ser diferente? Os brancos
fizeram massacres e violações desde que aqui chegaram.

Com o olhar procurou o apoio de Rute e Rogério, achando que eles,


por terem a sua idade, partilhariam a mesma opinião; mas os dois irmãos
estavam do lado do tio. Tomé como que se debruçou um pouco na
direcção de Célia:

– Espero, estimável Célia, que não precise da minha protecção se eles


vierem para cima de si, para a violarem e retalharem. Mas se eu estiver
por perto, pode crer que vou defendê-la, vou usar todas as balas da
minha arma sobre esses selvagens que queiram tocar-lhe com um dedo
que seja.

Enquanto dizia isto, olhou para o cabelo e o rosto de Célia como se


quisesse acariciá-los, o que era ainda mais sinistro; era como se,
mostrando-se disposto a protegê-la, fosse também capaz de dirigir
contra ela a sua violência latente. «Quem é este homem?», pensou Célia,
que pressentia o perigo. Tomé parecia empenhado em doutriná-la:

– Vê se entendes isto… – Agora ele tratava-a por tu. – Esta terra não é
dos negros. Fomos nós que construímos aqui um país. As casas são
nossas. As empresas são nossas. Os portos, os aeroportos, as estradas, os
comboios, as estações de rádio, os jornais, é tudo nosso. Os negros é que
carregaram a pedra para construir, mas não saberão usar essas estruturas,
que não podem ser entregues a quem nunca beneficiou delas e para
quem elas não foram construídas. A terra é de quem sabe trabalhá-la, é
de quem constrói uma vida humana digna em cima dela. Os pretos eram
tão donos desta terra como as manadas de antílopes ou os enxames de
formigas. Viviam aqui, pisavam esta terra, como um elefante, uma cabra
ou um rinoceronte, mas não eram os donos da terra. Os donos da terra
são os que têm consciência do que estão a fazer, não se limitam a viver
em manada ou em enxame, segundo os instintos da natureza. E esses
somos nós. Os pretos eram pouco mais do que animais de carga, e
permitimos que evoluíssem à categoria de pessoas. Deviam estar-nos
gratos. E sabes que mais, Célia? A maioria até está. Somos nós que lhes
damos de comer. Angola é o país mais moderno do continente logo a
seguir à África do Sul, que iniciou esse processo há mais tempo. Mas os
comunistas impingem-lhes ideias estranhas, para correrem connosco
daqui e virem eles explorar as riquezas de Angola. – Acrescentou,
assumindo ironicamente que Célia estava preocupada: – Mas não te
preocupes, Célia. Isto não vai resultar. O MPLA recusa eleições e recebe
armas da Rússia para fazer a guerra contra a FNLA e a UNITA. Mesmo
assim, vai ser derrotado, a não ser que Lisboa e Moscovo continuem a
dar-lhe apoio. O Acordo de Alvor foi uma farsa para Portugal fazer crer
ao mundo que age com isenção, quando na verdade trabalha para a
supremacia do MPLA. Não é uma vergonha que a antiga potência
colonizadora tome o partido de uma das forças, em vez de promover
eleições livres? Eleições que o MPLA jamais poderia ganhar, porque é
formado apenas por alguns angolanos intelectualizados, fanáticos da
cartilha marxista, e não pelas massas populares. Os comunistas não
conhecem o preto e vão-se dar mal com ele. Nós conhecemos a
mentalidade do preto, eles não. O preto não muda.

– O preto não muda! – repetiu o sobrinho, rindo.

– É o meu melhor aforismo político – afirmou Tomé –, a base de todo


o meu pensamento. Apenas há que distinguir o preto rural do preto da
cidade. Isto até parece aquela fábula do rato do campo que visita o
primo, o rato da cidade… O preto do campo atira umas sementes à terra
e espera que cresçam. Quando tem fome, apanha um peixe ou caça um
animal qualquer. O preto da cidade, que aprendeu a ler e a escrever, acha
que não tem de fazer trabalho braçal. Os comunistas não sabem lidar
com o preto, seja ele do campo ou da cidade, e só teriam hipóteses de o
controlar escravizando-o, como escravizam todos os povos submetidos à
lei comunista. África para os africanos, é o slogan deles, que significa:
vamos pôr fantoches nos governos africanos. O que vão os pretos fazer?
Vai o contínuo ser gerente de um banco? Vai o escriturário chefiar uma
repartição das finanças? Vai o estafeta do tribunal ser ministro da
justiça? Os pretos vão arrombar as portas dos palácios do governo, em
todas as capitais de distrito, vão emborcar as garrafas de uísque do
gabinete do governador para desenfastiarem da aguardente e mais nada!

Célia sentia-se siderada por aqueles olhos metálicos que não


pestanejavam. Tomé alternava o tratamento por tu e por você, de uma
maneira que parecia propositada, como se dissesse que conhecia as
regras mas que se dava ao luxo de as quebrar se lhe apetecesse.

– Há tanta coisa que a Célia não sabe… Os comunistas querem


entregar Angola a Moscovo. Acontece que a Rússia já foi derrotada pela
tropa portuguesa na luta de guerrilha que andava a financiar. Agora que
o comunismo manda em Lisboa e em Luanda, há uma campanha de
mentiras que esconde o fiasco militar. Dizem que o triunfo é deles, que
são uns heróis do anticolonialismo. Falam em democracia, liberdade,
direitos humanos. Mas os governantes desarmaram a população branca e
não se importam nada que ela seja dizimada pelas massas negras. Os
brancos que não morrerem terão de fugir. A única hipótese será aliarem-
se à FNLA. Deixámo-nos enganar por estes políticos de pacotilha, que
sabiam que a nossa reacção seria outra se adivinhássemos o que nos
estavam a preparar.

– Mas as coisas não podiam eternizar-se… – disse Célia, enfrentando-


o. – Quer dizer, como estavam antes do 25 de Abril.

Os olhos cinzentos de Tomé escureceram quando disse:

– Não podiam eternizar-se mas podiam resolver-se. Em 1961,


enfrentámos os selvagens que fizeram massacres à catanada. Lá na
minha zona aquilo foi como tiro a bonecos de feira. Eles julgavam que
as nossas armas cuspiam água. Protegemos populações africanas e
pusemo-las a trabalhar em paz. O território produzia, a economia ia de
vento em popa. Fazíamos isto para espanto de todos, dos países amigos
e dos inimigos. Porque estas terras eram nossas, são nossas, continuarão
a ser nossas. O 25 de Abril não mudará isso. Devíamos ter cortado com
Lisboa. Faltou-nos união. E se os movimentos de independência
continuassem a fazer-nos a guerrilha, nós íamos aos países vizinhos que
os apoiam e onde têm bases e dávamos cabo deles. Com a ajuda dos sul-
africanos, esmagávamo-los nos buracos onde eles se escondem.
Incluindo a FNLA, que só nos serve de aliado provisório contra o
MPLA. Portugal finge deixar aqui uma democracia que resulte de
eleições. Isso são tretas que funcionam nos países da Europa Ocidental,
não em África. Os criminosos da descolonização disseram que os
guerrilheiros teriam de depor as armas antes de entrarem nas cidades,
mas eles entraram com as armas todas que tinham. Disseram que iam
consultar os brancos para ajudar a decidir dos destinos de Angola e não
o fizeram nem vão fazer. O que eles querem é que os brancos de Angola
sejam chacinados, para não haver refugiados em Portugal e para
entregarem um território vazio de brancos aos russos. Esta
descolonização vai libertar instintos primários dos nacionalistas de pé
descalço, que querem saltar da sanzala para o asfalto. Só haverá ruínas e
chacinas. Acha isso bem, Célia?

Chegaram a Nova Lisboa sem mais incidentes. A coluna desfez-se.


Milhares de refugiados distribuíram-se pela cidade, procurando os
pavilhões da Feira Internacional ou indo para o aeroporto.
Célia não sabia que a população da Gabela já fora evacuada e que os
seus pais e irmãos estavam ali, realojados nos barracões da Feira. Tomé
e os sobrinhos iam prosseguir mais para sul, para Sá da Bandeira, onde
ela tentaria contactar com os pais ou arranjar um meio de chegar à
Gabela.

A atmosfera dentro do carro mudou um pouco. Rute sugeriu que


fumassem liamba. Ela própria confeccionou quatro charros, que
distribuiu. Célia, que fumava pouco, embora tivesse uma planta de
cannabis no jardim dos pais, sem que estes soubessem e imitando um
hábito de muita gente, aceitou o charro.

Rogério conduzia agora à vontade, sem a lentidão da coluna. Já não


tinham militares a escoltá-los, já não havia o perigo de ataques de
guerrilheiros. Tinham a estrada quase por sua conta. Parecia que a
destruição de Malange, a cidade natal da família, tinha sido noutro país.

– Os nossos já estão lá em baixo? – perguntou Rute.

– Já vi passar o Faria, o Oliveira… – disse Tomé, lançando um olhar


para a estrada interminável que se desenrolava à sua frente.

– Onde é que nos vamos reunir? – tornou Rute.

– Na casa do Oliveira.

Célia interrogava-se quem seriam os «nossos» a quem eles se


referiam, olhou para Tomé e viu que ele estava a olhar para ela como se
adivinhasse a sua curiosidade. Tinha qualquer coisa de diabólico. Célia
começava a perceber, devido à descontracção proporcionada pelo
charro, que devia ser ainda mais perigoso do que parecia.
Um sorriso divertido bailava no rosto de Tomé, entre a barbicha loura
e os olhos de um cinzento metálico. Algo da sua nova disposição deve
ter passado para os sobrinhos, lá à frente, porque Rogério, procurando-o
no espelho retrovisor, perguntou:

– Contamos à Célia? Ela agora é nossa amiga.

– Se contamos à Célia? – indagou Tomé, como se quisesse prolongar a


expectativa. – Querem contar à Célia? Contem à Célia.

Rute abriu o porta-luvas e retirou uma folha de jornal. Célia


desdobrou o recorte e viu uma fotografia de quatro homens encapuzados
sentados a uma mesa, em que estavam expostas armas ligeiras e
granadas, tendo atrás uma bandeira pendurada na parede que exibia uma
sigla para ela desconhecida. A legenda da fotografia dizia: Já não há
dúvidas de que um esquadrão da morte é responsável por acções
violentas em Luanda e Malange.

Era um daqueles partidos da extrema-direita branca que fora afastado


do debate político pelo governo de transição. Endurecera os seus
métodos e criara um esquadrão da morte encarregado de cometer
assassinatos políticos, assaltos a postos policiais e quartéis para obter
armas. Queriam sabotar o programa para a independência. Assaltavam
bancos e carrinhas de valores, agentes cambistas, estações de rádio,
fábricas. Tinham reunido milhares de contos. Infiltrados em negócios de
tráfico de armas, formaram um arsenal particular com armas ligeiras e
pesadas. Suspeitava-se de que tinham sido eles a atacar uma viatura
militar portuguesa, disfarçados com fardas das FAPLA, para criar
confusão entre os militares portugueses e o MPLA. Perseguidos pelas
autoridades, foram perdendo força e capacidade. Alguns elementos do
partido estavam presos, outros em fuga para o Brasil, a África do Sul e
Portugal.

– Vocês são deste partido? – Era a pergunta natural, depois de ler a


notícia. Não houve resposta, o que ela interpretou como uma anuência. –
E fazem parte do esquadrão da morte?

Reparou que Rogério, enquanto conduzia, olhava pelo espelho


retrovisor para Tomé. Rute olhava para a paisagem, mas estava a ouvir
tudo.

Vindo-lhe à memória a imagem de Tomé a liquidar os guerrilheiros,


Célia teve a certeza de que ele fazia parte do esquadrão da morte. Ficou
alarmada. De qualquer forma, era tarde para escapar. O carro seguia a
alta velocidade e levava-a com eles num percurso de mais de mil
quilómetros. Já tinham partilhado palavras simpáticas, anedotas, charros,
por isso Célia podia encher-se de coragem e perguntar:

– Estão em fuga?

– Fuga? – disse Tomé, franzindo ostensivamente a testa. – Os nossos


movimentos são estratégicos. Vamos para Sá da Bandeira, mas a
caminho de uma nova etapa que nos reconduzirá a Malange. A partir do
Sul vamos restabelecer a ordem e limpar Angola.

– Como?

– Receberemos ajuda da África do Sul. Não ficaremos impávidos e


serenos a ver Angola ser entregue aos comunistas. Vamos fazer o que já
devíamos ter feito há muito tempo, se os brancos não estivessem tão
desunidos e não fossem enganados por Lisboa. Vamos proclamar
unilateralmente a independência de Angola e construir um Estado à
imagem da Rodésia. Uma aliança entre as forças armadas sul-africanas e
a FNLA, com muitos portugueses à mistura, derrotará o MPLA.

«Tantas Angolas…», pensou Célia. «Haverá Angolas que cheguem


para todos?» E sentiu, pela primeira vez, saudades dos pais, dos irmãos e
da Julieta. Viu, com uma nitidez alucinatória, o pai inclinado sobre um
tabuleiro de xadrez; ela e a mãe a levantarem a taça de champanhe, na
direcção uma da outra, na noite da passagem de ano; Sílvia a mexer nos
seus estojos de maquilhagem; Julieta, enorme, a transportar os seus três
irmãos mais pequenos, que esperneavam sem se conseguirem libertar. O
carro voava para o Sul e Célia estava cada vez mais longe deles.

Olhou para os companheiros de viagem a uma nova luz. A atmosfera


incestuosa entre os dois irmãos, a fuga da mãe com o enteado, o
fanatismo do tio, mestre e guia dos sobrinhos, tudo isto não era mais do
que uma auto-suficiência megalómana defendida a ferro e fogo, uma
teimosia em sobreviver no meio do caos e da derrocada, ignorando a
realidade.

– Tencionam lutar até à morte? – perguntou Célia, sentindo que a


pergunta era esquisita, só para ouvir a voz de Tomé depois de o ter visto
a esta nova luz, para testar se ele era tão fanático como começava a
suspeitar, se fora tudo imaginação sua.

– Até à morte dos outros, sim, com certeza – disse Tomé. – Entre
morrer a lutar contra esta gentalha ou exilar-me na África do Sul, sou
capaz de preferir exilar-me na África do Sul. Mas isso sou eu, que não
tenho vocação para mártir. Bom, bom, era que os pretos se matassem
todos uns aos outros até não restar um só. Depois reocupávamos isto
tudo. Mas como isso é sonhar muito alto, temos muito trabalho pela
frente. Derrotar o comunismo, pôr os pretos na ordem, recuperar os
brancos cobardolas ou oportunistas que não se juntaram a nós. – Após
um instante de silêncio, perguntou: – E a Célia, tem uma posição
política? Está filiada nalgum partido? Não te preocupes. Aceitarei tudo o
que disseres.

– Sou da FNLA – disse Célia.

– Hum… menos mal. Sabes que vos vamos meter na linha, quando
derrotarmos o MPLA. E tens namorado?

– Tenho – respondeu Célia, surpreendida com a pergunta.

– Ele também é da FNLA?

– Não tem partido. É do partido dele. Está no garimpo de diamantes.

– Ah, estou a ver o género. É sempre interessante falar de diamantes.


E ele está por conta própria ou nalguma empresa garimpeira?

– Por conta própria.

– É um aventureiro. Gosto disso.

– Mas há uma coisa sobre ele que se calhar não vai gostar.

– E qual é essa coisa, Célia?

– Ele é mulato.

Disse isto ao mesmo tempo que espiava a reacção dele. Mas Tomé,
percebendo a sua intenção, fez um sorriso sardónico e disse:

– Ninguém é perfeito. Se eu vir um mulato carregado de diamantes


tentarei nutrir alguma simpatia por ele, porque pode ser o seu namorado.

A certa altura, Tomé enfiou a mão debaixo do banco.

– Tome – disse ele. – É para si.

Célia, hesitante, fez o gesto de receber o que ele lhe estendia e recebeu
no colo uma mão-cheia de notas, de alto valor, que pareciam novas.

– Aceite. Vai precisar de dinheiro.

– Porque é que me está a dar isto?

– Simpatizo consigo. E vai precisar de dinheiro em Sá da Bandeira.

Célia lembrou-se dos bancos assaltados pelo esquadrão da morte.

– Se não formos nós a triunfar – retomou Tomé –, isto vai piorar e


muito. Haverá uma guerra civil que durará sabe-se lá quanto tempo. Não
pense, minha cara, que vai encontrar a sua vida na Gabela como a
deixou. A sua família pode bem já estar num aeroporto, a dormir no
chão, à espera de um avião. Quem vai tomar conta dos diamantes?
Ninguém sabe. Queremos ser nós. E se o seu namorado, o audaz
garimpeiro, não nos for simpático? Atenção, não falo de mim. Como já
disse, o próximo mulato que eu vir carregado de diamantes vou pensar
que pode ser o seu namorado e terei tendência para sentir estima por ele,
em consideração por si. Mas outros que não eu, não sei o que farão.

– O tio está a assustar a rapariga – disse Rogério, rindo.


– Pobrezinha… – Tomé chegou mesmo a fazer uma festa na cara de
Célia. – Tão indefesa, nesta terra cheia de hienas e lobos maus.

Passou pela cabeça de Célia que poderia cair sob o feitiço dele e,
nesse exacto instante, ele disse:

– Junte-se a nós, Célia. Vivemos tempos perigosos. E você parece-me


um tanto ou quanto perdida. Isto à nossa volta só vai piorar, sabe?

– Tenho a minha vida organizada – disse Célia. – Já não sou


recrutável.

– Ninguém tem a vida organizada – contrariou Tomé. – Não se


esqueça, querida: sopram os ventos da História. África para os africanos,
o direito dos povos à autodeterminação, a Declaração Universal dos
Direitos do Homem…

– Este não é o tempo para se pensar numa vida calma e pacata –


acrescentou Rute. – É tempo para a acção directa. Para neutralizar
alguns indivíduos, para colocar algumas bombas nos sítios certos.

– Junta-te a nós – disse Rogério, mirando-a pelo espelho retrovisor. –


Estás separada da tua família, não estás? Nós seremos a tua família até
isto voltar ao normal.

Célia lembrou-se dos bons momentos de convívio com Rute e Rogério


nas escadas do hotel de Malange, no meio do barulho da artilharia.
Agora propunham que se lhes juntasse numa irmandade de morte,
assassinatos, assaltos.

– Se quiseres, claro – disse Rute, para alívio de Célia, grata por não a
obrigarem a juntar-se-lhes.

– Propomos-te um meio de combateres a tua orfandade provisória –


disse Tomé.

Célia achou que era altura de tentar mudar de assunto e perguntou:

– Já alguma vez estiveram em Sá da Bandeira?

– Nunca.

– Em criança fui lá com os meus pais – disse Célia.

– Nós somos de Malange, mas Angola inteira é o nosso lar – disse


Tomé. – Como é que diz o anúncio? De Cabinda ao Cunene. E é isso
que nós queremos defender, Célia. O direito de te deslocares entre
Moçâmedes e Sá da Bandeira, como no passado, de circulares por
Angola inteira sem teres de fugir dos tiros. De Cabinda ao Cunene.
Assim era e assim será. Vamos lutar pelos direitos dos cidadãos livres
desta terra. O direito mais elementar de se deslocar de cidade em cidade,
de região em região.

– Antes que mudem os nomes todos – interveio Rute. – Os africanos


querem pôr os nomes deles às vilas e cidades.

– São os nomes nativos – disse Célia. – São questões culturais.

– Questões culturais… – repetiu Tomé. – Não me venha com as


questões culturais, Célia. Houve alguém que disse: quando me falam em
cultura puxo logo da minha pistola. Uma das frases mais lúcidas de toda
a Segunda Guerra Mundial. Deveria inspirar a nossa acção aqui em
Angola.

– Há coisas mais importantes do que os nomes – disse Célia.

– Não, não há – rejeitou Tomé. – O nome tem importância.


Interrogue-se sobre isso. Faça como a Ofélia, do Hamlet, que
perguntava: «O que há num nome?» Faça essa pergunta e descobrirá que
os nomes têm muita importância.

– Os negros viveram em sítios com nomes portugueses. Os brancos


poderão viver com os nomes africanos. O importante é que haja paz.

– Ah, Célia… Não há tempo, não haverá tempo para lhe explicar tudo,
para a elucidar, para lhe mostrar a luz! A sua ingenuidade comove-me.
A única independência viável para Angola é uma independência liderada
por brancos, como na Rodésia. Olha para as independências negras e vê
o triste resultado que tiveram. Nos países independentes há quinze anos
não se constrói uma estrada, uma fábrica, não se expande um porto. Os
europeus sacam tabaco, ferro ou cobre. Os negros lá não vivem melhor.

– Eles têm a força da maioria – insistia Célia. – Isso não se pode


conter.

– Não se pode? O pastor não conduz o seu rebanho? O campino não


controla os touros no meio das vacas? Um branco com armas e
munições chega para mil pretos. O MPLA sabe isso e tem medo de uma
frente unida dos brancos. Mas nós não nos soubemos unir. Dêem-me um
chicote e um cão de guarda e eu controlo cem pretos.

– Mas isso é uma loucura! – disse Célia, corajosa.


Tomé sorriu e disse, no tom neutro e distante que às vezes adoptava,
de um modo que não deu para perceber logo que estava a declamar:

– Sem a loucura o que é o homem mais que a besta sadia, cadáver


adiado que procria? – Fez uma pausa dramática e juntou: – Fernando
Pessoa.

– Eu conheço esse poema – disse Célia. – É sobre o D. Sebastião, o


que quer dizer que pode acontecer-vos o mesmo que a ele: um herói
morto.

– Minha querida… Antes morto que viver numa Angola comandada


pelos pretos, a soldo da Rússia e da China. Angola merece que lutemos
por ela. É a conclusão natural dos cinco séculos da nossa presença aqui.

Tomé já citara Montaigne, Shakespeare e Pessoa. Mas Célia vira-o


matar três guerrilheiros e a dois deles dera o tiro de misericórdia.

Em Sá da Bandeira, pararam num ponto central para Célia sair. Tomé


tirou a mala dela da bagageira. Despediu-se com um aperto de mão e
uma expressão risonha, na qual os seus olhos brilhavam infantilmente,
como se não fossem os mesmos que, noutros momentos, podiam
despedir um ódio gelado.

Reentrou no carro e, vendo Célia parada no passeio a olhar para eles,


gritou-lhe, quando o veículo arrancou, de porta aberta:

– Angola há-de ser nossa outra vez!

Célia ouviu a sua risada abafada pelo bater da porta. Era como se risse
da sua própria loucura.
8

Em Sá da Bandeira, Célia encontrou os antigos colegas de liceu. A


vida decorria sem alterações. Os estudantes da Universidade
frequentavam as aulas enquanto os seus familiares estavam a ser
desalojados das cidades já atingidas pela guerra civil.

Uma amiga contou a Célia o que se passara na Gabela e a saída da


população. Soube do caso de uma rapariga de doze ou treze anos que
fora morta quando fugia com os pais. Pensou que poderia ser uma das
suas irmãs. Não sabia se a família fora para Luanda ou para Nova
Lisboa.

A guerra estava a dispersar pessoas e a separar famílias por milhares


de quilómetros. Ao fim de alguns dias, Célia ouviu na rádio uma
mensagem dos pais: estavam em Nova Lisboa e diziam-lhe para se
dirigir à Feira Internacional e perguntar aí por eles. Já não podendo ir
para o Cafunfo ter com Alexandre, porque essa zona estava isolada e
não havia meios de ir e voltar, Célia decidiu ir ter com os pais e os
irmãos a Nova Lisboa. Arranjaram-lhe uma boleia.

Nova Lisboa, 1975

1
Quando entrámos em Nova Lisboa, de madrugada, com todos os
filhos a dormir, não foi difícil descobrir para onde deveríamos ir.
Estavam sempre a chegar refugiados de várias zonas do Centro e do Sul.
Bastava seguir o maior fluxo do tráfego automóvel ou perguntar a
patrulhas da tropa que subiam e desciam as ruas principais. As pessoas
estavam a ser acolhidas nos barracões da Feira Internacional.

Assim que saímos do carro, fomos encaminhados para uma mesa onde
a comissão de recepção aos refugiados distribuía a cada pessoa um ovo
cozido e uma manta. Eu podia ver que a chegada a uma outra cidade, de
madrugada, fugindo da guerra, com a preocupação de guiar seis filhos
menores, predispunha a Beatriz para a luta. Dois acontecimentos
confrontaram-na com a realidade. O primeiro foi quando a comissão de
recepção forneceu comprimidos contra o paludismo para as crianças.
Beatriz rejeitou a oferta, porque os nossos filhos já estavam a fazer um
tratamento preventivo. O segundo acontecimento foi quando uma das
senhoras pegou numa manta barata e a pôs sobre os ombros de Ana.
Beatriz não suportou ver Ana com aquela manta sobre os ombros e
tirou-lha. Conheço-a: não queria aceitar o estado de necessidade e
dependência. Já não era dona do seu destino, decisora consciente e
autónoma do que lhe acontecia. Agora éramos refugiados e tratados
como tal.

Os pavilhões da Feira tinham o chão coberto por alcatifas e


cobertores. Percorremos uma das secções, passando pelos pavilhões já
ocupados por famílias, à procura de um que estivesse vago. Num deles,
vi o doutor Humberto, sentado no chão, com um cobertor pelas costas.
Cansado, fitava as mãos, que seguravam uma caneca de café. Levantou
os olhos e viu-me. No seu rosto apareceu uma expressão de espanto,
como se só ele tivesse o direito de ser um refugiado. Trocámos um
cumprimento, à distância. Sem me deter, ia seguir em frente quando o
médico, erguendo na minha direcção a caneca de café, com um brilho
escarninho nos olhos, brindou:

– Mateus, sabe o que isto tem de bom? Nunca mais me vai chamar
para fazer aquelas malditas autópsias. Bendita descolonização!

Conseguimos dormir alguma coisa no chão atapetado de cobertores e


almofadas do pavilhão onde nos instalámos. Na manhã seguinte,
acordámos com os ruídos da vida agitada que nos rodeava. Deparámos
com filas para tomar banho nos lavabos.

A Feira, que à noite tinha parecido assustadora, surgia agora cheia de


diversões para as crianças e os adolescentes. Havia gelados, algodão-
doce, cafés, esplanadas.

Famílias inteiras, que tinham preferido acampar nos jardins públicos


da cidade, acorriam de manhã às instalações da Feira, onde se
encontravam os serviços de apoio. Um estúdio de rádio difundia os
anúncios dos que queriam comunicar a familiares o lugar aonde tinham
vindo parar, que eram a própria Feira ou o aeroporto. Lá fui para uma
nova fila, a dos anunciantes radiofónicos, com um papel na mão onde eu
e Beatriz redigimos um texto para ser ouvido por Célia, onde quer que
ela estivesse. Não era difícil perceber que, nos próximos tempos, cada
iniciativa nossa ia ter de passar por uma espera numa qualquer fila,
forma simples e civilizada de tentar conter o pânico.
Por toda a Feira, contavam-se histórias de horror, medo, descrença,
cansaço. No entanto, podiam ouvir-se risos. Pessoas que nada tinham
sabido umas das outras, nas últimas semanas, maravilhavam-se por se
reencontrarem. Comia-se com apetite. Crianças brincavam. Os espelhos
eram usados para as pessoas comporem a maquilhagem. As lojas
continuavam abertas. A existência humana, dominada pelo impulso
vital, persistia. A vida sempre foi, fundamentalmente, sobrevida.

A tropa trazia comida em grandes panelas de alumínio. À hora do


almoço, as pessoas pegavam num prato e numa colher e colocavam-se
numa fila para serem servidas. Havia quem não conseguisse disfarçar a
humilhação por estar ali, de gamela na mão.

Vimos nessa fila algumas figuras respeitáveis que conhecíamos e


percebemos uma vez mais o quanto tínhamos decaído. Beatriz recusou ir
para a fila. Disse a alguém da organização que os filhos mais pequenos
estavam a convalescer de uma hepatite, o que de resto era verdade.
Haveria alguma coisa mais leve para eles? Foi-lhe dito que sim. Beatriz
tinha de controlar o que lhe acontecia. Abdicar do controlo seria abdicar
da própria vida.

Os nossos filhos sempre a tinham visto cheia de iniciativa e de


certezas, e assim iam continuar a vê-la, mesmo ali, tão perto das filas
para as casas de banho públicas e de distribuição de comida. Mesmo
perturbada pela presença das senhoras da comissão de recepção, com os
seus medicamentos e recomendações, Beatriz continuava a ser imensa,
infalível, altiva. Quando os filhos a viam entrar ou sair do pavilhão onde
nos tínhamos instalado, este devia deixar de lhes parecer uma barraca de
madeira igual a todas as outras e passava a ser uma casa, grande e
espaçosa, a casa da mãe.

Levei as crianças a ver os animais do jardim zoológico, ao lado da


Feira. Mais tarde os tratadores, antes de se irem embora, abateriam
alguns.

Uma antiga colega de Beatriz apareceu à nossa procura. Falou com a


madre superiora de um colégio de freiras e conseguiu que fôssemos aí
acolhidos. Ficaríamos instalados numa camarata, sem mais ninguém,
onde teríamos camas e lençóis lavados. Para Beatriz, tudo o que a
afastasse dos barracões cheios de gente era bem-vindo.

Dormimos uma segunda noite na Feira e passámos para o colégio, na


periferia da cidade. Era um edifício portentoso, que ainda não tinha sido
estreado. Destinava-se a acolher raparigas desvalidas. No edifício
estavam apenas três freiras e um padre. Tivemos a surpresa de saber que
era o padre Emanuel. Tinha um quarto à parte cuja janela ficava
iluminada até altas horas da noite. Ele, que tinha o dom da repetição,
contou-nos outra vez, com abundância de pormenores, a história da sua
saída da Gabela: depois de renunciar à fuga, distraíra-se a fazer a barba e
fora alertado pelo silêncio, tão grande como súbito, que tomara a cidade;
foi à rua e viu a cauda da coluna a desaparecer numa esquina; com a
cara cheia de espuma de barbear, correu para o seu carro.

Tínhamos por nossa conta uma camarata inteira, destinada às


raparigas desfavorecidas que já não viriam. O colégio, a cheirar a novo,
era obsoleto. Não eram agora todos os brancos os novos desvalidos e
desfavorecidos? Mas as freiras eram inflexíveis, achavam que tudo
voltaria a ser como dantes.

Beatriz vigiava os filhos mais novos e dava alguma liberdade aos mais
velhos. Sílvia, João e Ana exploraram o espaço do colégio. Havia um
nunca acabar de escadas, pátios, portas, arcadas. Esta exploração punha
as freiras nervosas. Sílvia descobriu que elas escondiam comida numa
despensa e contou à mãe. Beatriz, a quem as freiras tinham dito que não
tinham reservas alimentares, deixou de lhes dar parte das compras que
fazia no mercado.

Os adolescentes sentiam-se atraídos pelo quarto isolado do padre


Emanuel. Iam lá furtar cigarros, que fumavam às escondidas. Quando
Sílvia disse que a janela do quarto ficava iluminada até tarde e que a
porta não estava trancada, eu achei que devia ser para alguma freira
entrar. Os meus filhos riram-se, mas Beatriz reprovou a minha sugestão.

De vez em quando ouviam-se tiros fora da cidade. Era uma questão de


tempo até a guerra chegar a Nova Lisboa. Como a camarata estava ao
nível do rés-do-chão, Beatriz, sempre que ouvia tiroteio, mandava as
crianças para debaixo das camas.

Ao terceiro dia, fomos inscrever-nos na lista de espera para o voo para


Portugal. O departamento de refugiados que fazia as inscrições
funcionava numa repartição pública. Os nossos nomes foram
introduzidos, incluindo o de Célia, que esperávamos que pudesse ouvir a
nossa mensagem. Disseram-nos que o voo seria no dia 27 de Agosto. A
lista, sempre renovada, era afixada numa parede para consulta pública.
Daí a dois dias incluiria já os nossos nomes.

Não é todos os dias que se participa numa evacuação colectiva. Todo


o cuidado é pouco. Por isso, passados os dois dias, voltámos à repartição
e vimos os nomes riscados e um papel colado por cima com os nomes de
outras pessoas. Os organizadores devem ter querido inscrever nove
pessoas amigas e procuraram uma família com nove elementos para
excluir da lista e pôr os amigos no seu lugar. Perguntámos a uma
funcionária o que acontecera. O facto de os nossos nomes estarem
riscados dava que pensar e carecia de uma explicação que ela não sabia
dar.

Apareceu um indivíduo que nos encarou num silêncio tenso.


Consultou a lista, tornou a desaparecer dentro de um gabinete,
reapareceu e disse que tínhamos razão, que fora um engano, que
deveriam ser outros nomes a riscar, com certeza; iam, aliás, pôr já os
nossos nomes. Admitiu que isto ia custar-nos mais três ou quatro dias de
espera por um avião. Beatriz exigiu estar presente no momento em que
incluíssem os nossos nomes na lista. O homem fê-la passar para o outro
lado do balcão para ver um terceiro funcionário redigir a lista numa
máquina de escrever. Verificou que os nomes estavam lá. A data
prevista do voo passou para dia 30 de Agosto, daí a dezanove dias.

O plano de repatriamento garantia transporte aéreo a todos os que


quisessem sair de Angola até ao dia da independência. As linhas
comerciais de voo tinham desaparecido, todos os aviões estavam a
encher-se com os milhares de desalojados que convergiam para Nova
Lisboa e Luanda. Nos aeroportos destas cidades, a aerogare e parte das
placas de estacionamento tinham gente acampada, sob a protecção de
comandos e pára-quedistas. Milhares de pessoas, novas e velhas,
doentes e sãs, dormiam ali; alimentavam-se de frutas, conservas,
bolachas; levavam os documentos e as fotografias mais importantes, o
ouro e as jóias, quando os tinham, o brinquedo preferido das crianças se
fosse fácil de transportar. Gente que trocara um automóvel por um maço
de cigarros, que entregara aos criados as chaves de vivendas ricas, que
dera milhares em dinheiro angolano por poucas centenas de escudos
portugueses, sentia uma resignação cansada.

Como os receberiam os familiares? Agora não iam para férias


endinheiradas, nem levavam prendas. Havia quem nunca tivesse saído
de Angola. Iam sujos, apavorados, doentes. Tiveram de largar os bens,
as propriedades, os depósitos bancários, as viaturas, os instrumentos de
trabalho. Tiveram de contar com a sorte e com subornos para que as
bagagens não fossem saqueadas por comissões de trabalhadores
portuários e alfandegários.

A maior ponte aérea civil do mundo atingiu proporções que ninguém


previra. Não havia horários de voo. Assim que aterrava, um avião
reabastecia-se de combustível, enchia-se de passageiros até aos limites
mínimos de segurança e descolava. Não se sabia quando chegaria o
seguinte. A certa altura, vieram também aviões estrangeiros. As
tripulações dos aviões da Lufthansa eram as mais elogiadas.
Lembrando-me do desastre alemão de 1945, dei a minha opinião, a
quem me quis ouvir: «Os alemães, esses, sim, sabem organizar uma
evacuação…»

Tripulantes que algumas horas antes tinham descolado de Lisboa,


Estocolmo, Amesterdão, Frankfurt ou Paris, quando aterravam em
Luanda ou em Nova Lisboa deparavam com aquelas multidões, as
patrulhas militares, os acampamentos, as mulheres inconsoláveis que
viam os maridos ficarem em terra para tratar das bagagens, os
passageiros que discutiam entre si o direito de embarcar primeiro, gente
levantando no ar macacos e gaiolas com canários e trouxas feitas à
pressa. E, um pouco mais afastados, os ruídos da guerra que fazia o seu
cerco. Os comandantes e as tripulações procuravam embarcar primeiro
as crianças e os doentes.

Vindos dos vários portos angolanos, barcos de cabotagem e barcaças,


com capacidade para trezentas pessoas, chegavam a Luanda com duas
mil a bordo. Traineiras de pesca e barcos de recreio superlotados,
transportando carros, procuravam os portos da África do Sul. Sofreram
avarias, andaram à deriva, houve naufrágios em águas frequentadas por
tubarões. Traineiras em fuga foram em socorro de outras. Muitas
completaram o plano de chegar à costa portuguesa, mesmo vindo de
mais longe, de Moçambique, tendo de dobrar o Cabo da Boa Esperança.

O paquete de luxo Infante Dom Henrique participou na evacuação dos


refugiados. Eu viajei uma vez no Infante Dom Henrique, lembrava-me
da estátua do pioneiro das grandes navegações colocada no vestíbulo da
primeira classe. Não me admiraria se ele observasse, com a cara de
pedra desfigurada pelo pasmo, os desalojados e fugitivos do Império.

Colunas motorizadas, algumas com três mil camiões, empreenderam a


travessia de África em direcção a Portugal, onde só chegou meia
centena. No Sul, entre Sá da Bandeira e Moçâmedes, partiram caravanas
para o Sudoeste Africano. Sobre uma jangada, ultrapassaram as águas
perigosas da foz do rio Cunene, que vão ter à Costa dos Esqueletos, e
atravessaram o deserto do outro lado da fronteira. Aviões de
reconhecimento leram palavras escritas na areia: PÃO, ÁGUA…
Militares sul-africanos foram ao seu encontro e organizaram campos de
refugiados, com tendas, comida e água.

Em Julho, Nova Lisboa tivera o primeiro choque com a chegada de


desalojados do Lobito e de Benguela. Os combates tinham paralisado o
porto do Lobito e, em consequência, o caminho-de-ferro, o que
bloqueou muitas actividades empresariais e fez escassear as importações
vindas do litoral, como o peixe fresco e o sal. Afluíram dezenas de
milhares de desalojados, brancos e negros, desde Malange, a norte, até
Caconda, a sul. Num mês, os neo-lisboetas viram a população da cidade
duplicar.

As ourivesarias já não tinham ouro. Troquei dinheiro com os militares


acabados de chegar: por cada angolar recebia meio escudo. Vendedores
de bilhetes premiados da lotaria nacional, que já tinham dado o dinheiro
aos premiados, e que mais tarde fariam contas com a Santa Casa da
Misericórdia, revendiam os bilhetes a refugiados que, em Lisboa, os
trocariam por dinheiro. Comprei alguns, embora as quantias fossem
baixas.

A moeda estrangeira era trocada por angolares a um quinto do valor


oficial. Comprava-se tudo o que os refugiados ou as empresas vendiam
barato por não poderem transportar para fora do país: carros, aviões,
maquinaria industrial. Faziam-se sair esses artigos do país e revendiam-
se. Um professor de liceu podia traficar um helicóptero.

As levas de refugiados esgotaram as ourivesarias, primeiro, e as


boutiques e as lojas de electrodomésticos, depois. Comprámos roupa,
brinquedos, dicionários, material escolar caro que os nossos filhos
poderiam usar, como estojos de desenho, kits de química e biologia.
Com seis filhos em idade escolar, se não os podíamos cobrir com ouro e
diamantes, ao menos investíamos na ciência e nas luzes do espírito. Os
militares compravam bonecas para as filhas ou tecidos para as mulheres
nas lojas à beira da ruptura.

Enquanto Beatriz ficava no colégio das freiras a tratar dos mais


pequenos que convalesciam da hepatite, sem a dieta adequada, eu
circulava muito de carro para comprar comida, acompanhado pelo João.
O carro continuava sem o vidro da frente. Deparávamos com postos de
controlo da UNITA. Quando isso acontecia, João, que apesar dos seus
treze anos acumulara alguma experiência, já sabia o que fazer: saía do
carro e ia abrir a porta da bagageira, para os guerrilheiros verem se
levávamos armas.

Os guerrilheiros perguntavam-me:

– Irmão, já se filiou na UNITA?

– Estou a tratar disso – dizia eu, evasivo. – Tenho de tirar as


fotografias.

Podia acontecer ser o mesmo guerrilheiro ou delegado que já me


interpelara antes, e as evasivas tornavam-se mais difíceis de sustentar.
Uma vez disseram:
– A UNITA precisa de todos. Temos de derrotar o MPLA.

A maioria dos brancos considerava que aquela guerra não era sua, mas
os militantes da UNITA ainda os tentavam aliciar a fazerem-se membros
do partido. Ao mesmo tempo, lia-se em muitos muros e paredes, em
letras escritas a carvão: «Brancos de merda, vão-se embora.»

Podia ter-se um mau encontro ou muita sorte. Uma noite, não vendo
um guerrilheiro que me fez sinal para parar, quase o atropelei a alta
velocidade. Pelo espelho retrovisor, vi uma silhueta a fazer um gesto na
direcção do carro que se afastava e a agitar no ar uma metralhadora.

Beatriz encomendou um bolo de aniversário para os doze anos de


Ana. Não íamos deixar de festejar a data, mesmo no meio da derrocada.
Quando eu e o João nos dirigíamos à pastelaria, vimos carros a inverter
a marcha; a pastelaria estava a ser metralhada e assaltada. Tivemos de
procurar outro bolo, noutro lugar, para que, nesse dia, Ana tivesse a
surpresa que lhe reservávamos.

Uma noite, acompanhado por Sílvia, Ana e João, eu jantava com o


padre Emanuel num restaurante perto do colégio de freiras. Terminada a
refeição, os adolescentes entretiveram-se num jogo mudo a olhar uns
para os outros e para o último morango que restara da sobremesa.
Deveriam comê-lo? E qual deles o deveria fazer? Sílvia, por ser a mais
velha? Ana, por ser a mais nova? João, o do meio?

O padre estava a contar-me pela centésima vez o modo como saíra


precipitadamente da Gabela. Eu já conhecia a história de cor. Não tive
de a ouvir toda, porque entraram três guerrilheiros armados com
espingardas-metralhadoras. Um deles perguntou de quem era um carro
estacionado lá fora. Ninguém se acusou. Enquanto o guerrilheiro falava,
a sua arma estava apontada, por acaso, na direcção do padre Emanuel,
que me disse num murmúrio:

– Afaste-se um pouco, que ele tem a arma apontada para mim.

Arrastei a minha cadeira para o lado e o padre fez o mesmo.

Ana levantou-se e correu para o outro lado do balcão do restaurante. O


guerrilheiro seguiu-a apontando a arma. Senti que o sangue pode mesmo
gelar-se-nos nas veias. Agachada atrás do balcão, a Ana deve ter
pensado que ali não lhe faziam mal. O guerrilheiro contornou o balcão e
foi espreitar. Eu e o padre dissemos:

– É uma criança.

O guerrilheiro afastou-se e foi-se embora, seguido pelos outros dois.

Alguns cinemas ainda funcionavam. Eu e Beatriz, na única ocasião em


que saímos para nos distrairmos, fomos ver A Golpada, com Robert
Redford e Paul Newman. Não podia haver título que melhor ilustrasse a
situação que estávamos a viver. Talvez por isso, a sala estava quase
cheia. Apareceu um militar da UNITA, bêbado, que se sentou numa
zona isolada da plateia. Tinha uma espingarda a tiracolo e granadas na
cintura. Víamo-lo a cabecear, de olhos fechados, em luta contra o sono.
Ouvia-se murmurar, de vários pontos da sala:

– Nem aqui nos livramos deles.

– E se ele deixa cair uma granada?


– A granada, para explodir, tem de estar espoletada.

– E acha que um bêbado não é capaz de o fazer?

– Vejam, ele está meio a dormir.

– Pior! Vai sonhar que está na guerra e desata aos tiros.

– Desde que não o irritem…

– Minha senhora, temos de compreender que foram quinhentos anos


de opressão.

– Foram quinhentos anos de opressão mas hoje eu paguei um bilhete e


tenho direito de ver um filme em paz.

– Oxalá ele goste do filme, se não protesta com tiros e granadas.

– Pois, deve ser crítico de cinema da UNITA.

– Está mais a dormir do que acordado.

– Desde que não ressone…

– Meus senhores, com estas coisas não se brinca.

Numa terra sem lei, onde o movimento dominante podia matar quem
lhe apetecesse, muitos brancos tornaram-se mais papistas do que o Papa.
Em 1961, em reacção aos massacres no Norte, os particulares e as
empresas tinham-se armado contra os guerrilheiros. Agora, em resultado
de novas alianças, as mesmas empresas davam armas aos guerrilheiros
para que estes as protegessem. A UNITA e a FNLA queriam eleições
livres. O MPLA queria o Poder Popular e recusava uma burguesia negra
no lugar da branca. A UNITA atraía os brancos mais indiferenciados,
não os mais progressistas, que preferiam o MPLA. A alta burguesia e os
meios empresariais escolhiam a FNLA. Havia mercenários portugueses
nos três movimentos de independência, depois de terem combatido
contra os três ao mesmo tempo. Chama-se a isso versatilidade.

O governo, quando acusado, respondia que a culpa era dos


movimentos emancipalistas, que não se entendiam nem depunham as
armas. Os ressentimentos antigos, o ódio dirigido aos movimentos
rivais, mais ainda do que ao ex-colonizador, os bandidos fazendo-se
passar por guerrilheiros, produziram destruição, saque e morte.
Apanhada no fogo cruzado, convicta de que aquela não era a sua guerra
e aquele já não era o seu país, a população branca ia-se embora, com a
calma possível ou em corrida precipitada.

Ingressei no quadro geral de adidos para funcionários públicos. As


guias de marcha, uma da comissão de repatriamento e outra da
conservatória do registo civil, abrangiam a Beatriz e os nossos filhos. No
papel, eu era descrito como desalojado do meu local de trabalho e de
residência. Os serviços de finanças deram-me uma guia de vencimentos.
Se é possível, no meio da derrocada e da debandada, oferecer um bolo
de aniversário a uma criança, também é exigível que a burocracia
funcione minimamente.

As freiras eram severas e exigiam um comportamento irrepreensível


das crianças. Como se o mundo à sua volta não tivesse sofrido
alterações; como se o seu colégio para raparigas desvalidas, a cheirar a
novo e por estrear, estivesse a salvo de ser invadido e arrombado. O
colégio ficava longe do centro, aonde tínhamos de ir para comer ou fazer
compras, passando por postos de controlo da UNITA. Fui ameaçado: se
não me filiasse no partido, não tornaria a passar. Sem carro seria difícil
chegar ao centro. Sabia-se de pessoas que eram mortas para lhes ficarem
com os carros.

O acaso veio em nosso auxílio. Um dia, estando com a Beatriz a


circular na Avenida Norton de Matos, ouvi uma buzinadela que nos era
dirigida. Era Barbosa. Estacionámos os carros e conversámos na rua.
Barbosa tinha voo marcado no dia seguinte para o Rio de Janeiro, onde
o esperava a cunhada. Contou-nos que estivera preso durante oito dias:

– Com uma arma apontada à cabeça, tive de dizer quinhentas vezes


«sim, senhor», por conta dos quinhentos anos de colonialismo.

Não resisti a emitir um comentário sarcástico:

– O colonialismo moderno tem setenta ou oitenta anos. Só devia ter


dito «sim, senhor» oitenta vezes, no máximo.

Barbosa ofereceu-nos o apartamento, que ficaria vago no dia seguinte


e onde estaríamos mais confortáveis do que no colégio. Tinha a
vantagem de ser no centro.

Perguntei-lhe se tinha alguma notícia de Capelo.

– Até há dois dias atrás, a última vez que soube dele, estava em
Luanda à espera de um avião – disse Barbosa. – Eu posso fazer no Brasil
o que fazia aqui, mas ele não pode levar na mala milhares de hectares de
terra.

– O que é que ele irá fazer? – reflecti. – Não é funcionário público,


como nós, que vamos para um quadro de adidos. Deve ter planos para
voltar. A família da Mariana estava aqui há muitas gerações.

– Se o MPLA nacionalizar as fazendas, ela poderá não querer voltar –


contrapôs Beatriz. – Sobretudo depois de lhe matarem o irmão.

– O que vai o Capelo fazer? – repetiu Barbosa. – O mesmo que todos


nós: ou dá um tiro nos miolos, ou dá um salto mortal e cai em pé. Tenho
pena de deixar isto. O que eu dei a esta terra. Empreguei tantos pretos. E
pagava-lhes bem. E tratam-me desta maneira.

– Para eles somos todos iguais – consolou-o Beatriz.

– Não dizemos nós o mesmo dos africanos? – disse eu. – Que eles são
todos iguais? Nós também somos todos iguais: colonialistas, fascistas,
racistas. Actos individuais de decência não compensam tudo o que
aconteceu de mau.

– Ajudei tanta gente – repetiu Barbosa, absorto.

– Você não tem um cartaz nas costas a dizer que é um tipo porreiro –
observei. – Então é um colonialista tão racista como os outros.

– Portugal acabou, Portugal era a África – disse Barbosa. E voltou à


frase consagrada, que tantas vezes lhe ouvi em relação a Angola: – O
Brasil é o país do futuro.

7
Barbosa contou-nos o que lhe sucedera antes de nos encontrar. Já
estava em Nova Lisboa antes da chegada dos primeiros refugiados.
Tinha um apartamento e ramos da sua indústria na cidade. Teresa, ao
fugir da Gabela com o padre Joaquim, facilitara-lhe as coisas. Barbosa
enviou Rebeca, a cunhada, para o Rio de Janeiro, onde instalaria os seus
negócios. Tratava das últimas diligências e já tinha bilhete de avião para
o Brasil quando fora preso pela UNITA.

Diante do prédio onde morava, dois homens obrigaram-no a entrar


para o seu próprio carro e entraram também. Sob a ameaça de armas,
conduziu atrás de uma carrinha dos guerrilheiros. Pararam diante de uma
moradia nos subúrbios. Lá dentro, empurraram-no para uma sala
mobilada. Dois guerrilheiros encostaram-lhe os canos das metralhadoras
às costas e um terceiro disse:

– Tu és da PIDE. Estás do lado da opressão e da repressão.

– Eu, da PIDE? – reagiu Barbosa. – Isso não é verdade.

– És da PIDE. Torturaste irmãos nossos em São Nicolau.

– Estão a confundir-me com alguém. Nunca fui da PIDE, nunca


torturei ninguém. Nunca estive em São Nicolau.

– Tu és um PIDE – repetia o outro, parecendo não se importar com o


que ele dissesse. – Vais pagar pelos teus crimes contra os angolanos.

Obrigaram-no a sentar-se num sofá. Os três trocaram palavras em voz


baixa. Barbosa ouviu vozes e passos noutros compartimentos da casa e
no andar superior. A moradia devia ser usada como prisão. Ao fim de
alguns minutos, levaram-no para um pátio traseiro onde havia uma
garagem e atiraram-no lá para dentro.

Na garagem recebeu as boas-vindas de quatro brancos. Explicaram-lhe


que a acusação arbitrária era um pretexto para ficarem com a sua
empresa, a sua casa e o seu carro, como já tinham feito com três deles. O
quarto prisioneiro tinha sido comando. Os ex-comandos eram muito
procurados pelos três movimentos, que receavam que se juntassem aos
rivais como mercenários.

– Não nos podem fazer isto – disse Barbosa. – Temos os nossos


direitos.

– Claro que podem – disse o ex-comando. – Estamos à mercê deles.

– Estamos abandonados por Portugal – disse um outro. – Podemos


apodrecer aqui. Não há interesse em repatriarem-nos porque nos
consideram perigosos e capazes de nos juntarmos a forças anti-
revolucionárias. Aquilo lá no Puto está como aqui.

– A soberania ainda é portuguesa – insistia Barbosa.

– Esqueça isso. Quem manda são os movimentos de independência.


Eles andam a usar-nos como moeda de troca com o governo português.

– Você está filiado nalgum partido? – perguntou um deles.

– Não. Quero sair daqui. Vou para o Brasil.

– Alguns portugueses, filiados num movimento, querem apresentar


uma boa folha de serviços e denunciam compatriotas dos outros
movimentos para serem presos ou repatriados e não serem concorrência
nos negócios.

– Como é possível? – reagiu Barbosa.

– Amigo – disse o ex-comando –, convença-se disto: tudo é possível.

– O que é que nos vão fazer?

– O que lhes apetecer. Há quem esteja preso nesta casa há várias


semanas. Há quem seja solto ao fim de algumas horas por intercessão de
amigos. Há quem desapareça e nunca mais ninguém sabe se está vivo ou
morto. Todos nós já fomos torturados. Partiram-me os dentes com as
coronhas das Kalashnikovs.

– Eu vim transferido de outra prisão – disse outro. – Obrigaram-me a


ser faxina do comandante. Batiam-me se não tinha limpado o pó ou feito
bem a cama. Encaixava as pancadas e sufocava a humilhação. Quando
os servia à mesa, ouvia-os contar uns aos outros como tinham violado
esta ou aquela branca. Aguentei tudo calado e impassível. E sabe
porquê? Porque queria continuar vivo. Um gajo o que quer nestas
situações é sobreviver.

– Eu tenho uma fábrica com mais de seiscentos empregados – disse


um outro. – Fui preso sob a acusação de desenvolver actividades contra-
revolucionárias e sabotar a economia angolana. Foi uma acusação falsa
do meu capataz, que tinha sido meu moleque em criança e agora quer
tomar conta da fábrica. Há dois meses que estou a dormir neste chão de
cimento. Já fui interrogado por tipos que dizem ser dos serviços
secretos. Encostaram-me uma pistola à cabeça para eu dizer onde é que
escondi o dinheiro da fábrica, quando não tenho nenhum dinheiro
escondido.

Passadas algumas horas, dez guerrilheiros entraram na garagem,


armados com metralhadoras. Olharam para Barbosa, o recém-chegado.
Ordenaram-lhes que se pusessem em sentido e, obrigando-os a manter
essa posição, esmurraram-nos na cara e na barriga. Queriam provocá-los
para os abaterem se reagissem.

Arrastaram Barbosa para um canto. Com uma pistola apontada à


cabeça, teve de dizer quinhentas vezes «sim, senhor». Era pelos
quinhentos anos de colonialismo.

Quando escureceu, vieram trazer-lhes alguma comida. Mas a Barbosa,


por ser novo na prisão, serviram-lhe a comida na palma das mãos. Se
deixasse cair a comida, por estar quente, teria de a comer no chão à
frente deles.

Durante a noite, ouviram guerrilheiros bêbados gritarem que os iam


fuzilar. Descarregavam rajadas de metralhadora no ar. Sempre que a
porta se abria, julgavam que os iam arrastar para algum pátio onde os
abateriam.

No dia seguinte, os quatro companheiros de cela de Barbosa foram


levados. Habituou-se a ficar sozinho na garagem escura. Ao terceiro dia
de cativeiro, começou uma tortura nova. Todos os dias um carcereiro
diferente vinha dar-lhe uma tareia de chicote. Revezavam-se uns aos
outros no prazer de chicotear um branco. Isto durou mais três dias.
Barbosa lembrava-se das palavras do outro prisioneiro: aguentar para
sobreviver. Pensava em Rebeca, à sua espera no Brasil.
Ao sétimo dia, vieram buscá-lo e juntaram-no a quinze outros
prisioneiros. Olhou em volta e não viu os quatro com quem partilhara a
garagem. A cada um, amarraram as mãos atrás das costas e vendaram os
olhos. Fizeram-nos encostar ao muro que limitava a moradia. Era o fim.
Iam ser fuzilados. Barbosa ouviu os disparos e o ricochete das balas
contra o muro e no chão, perto de si. Alguns desmaiaram com o susto.
Era uma simulação, para gáudio dos carcereiros. Devolveram-no à
garagem.

Nessa noite, os dezasseis tornaram a ser reunidos no mesmo lugar. Os


faróis de algumas carrinhas iluminavam a cena. Os guerrilheiros,
bêbados, explicaram que, quando ouvissem gritar «Deitou!», deveriam
atirar-se para o chão ou seriam atingidos pelas rajadas das
metralhadoras. E então, durante alguns minutos, gritaram e dispararam.
De todas as vezes os prisioneiros conseguiram atirar-se ao chão a tempo
de se esquivarem das balas, até os carcereiros se fartarem do jogo.

Sem que nada o fizesse prever, Barbosa foi solto. Conduziram-no até à
rua. Ficou perplexo e parado no mesmo lugar. Não lhe deram qualquer
explicação. O portão da moradia fechou-se. Estava sozinho na rua. Era
de noite. A liberdade súbita era tão difícil de entender como o facto de
ter sido preso. O seu mundo, durante oito dias, tinha sido a prisão e a
tortura. Ficou uns segundos a olhar para o portão, como se esperasse vê-
lo abrir-se e os carcereiros aparecerem e levarem-no de novo para a sua
cela. Mas o portão continuava fechado.

Deu uns passos na direcção que lhe pareceu correcta para o centro da
cidade e então viu o seu carro à beira da estrada. Tinha sinais de ter sido
usado pelos guerrilheiros. Espreitou para dentro. Não estava trancado e
tinha a chave na ignição. Era difícil entender também isto, mas, sem
questionar nada, enfiou-se no carro e arrancou.

Chegou a ruas que lhe eram familiares. Não se via ninguém. À sua
frente apareceu qualquer coisa que barrava a estrada. Parou o carro e
saiu. À luz dos faróis reconheceu cadáveres amontoados no asfalto:
eram guerrilheiros, mortos num combate recente. Estava longe de casa,
continuar a pé pareceu-lhe uma má opção. Teve de remover trinta corpos
para abrir espaço para o carro passar. Havia feridos que gemiam no meio
dos mortos. Pensou: «Não posso socorrer ninguém, tenho de sair daqui.»
Quando ia voltar para o carro, ouviu uma voz vinda da escuridão:

– Camarada, agache-se… Os tiros vêm dali, da frente…

Parecia um sonho. Distinguiu silhuetas que rastejavam no escuro.


Entrou no carro e arrancou. Dobradas duas esquinas, ouviu tiros que não
sabia de onde vinham, se de trás dos prédios ou ainda de mais longe.
Viu mais cadáveres e alguns delinquentes a despojá-los de tudo: roupas,
botas, relógios, anéis. Os delinquentes olharam para o seu carro que
seguia a alta velocidade.

As ruas mais centrais pareciam calmas. Só então pensou nos riscos


que correra para chegar ali. Estacionou o carro diante do seu prédio. Na
prisão tinham-lhe esvaziado os bolsos e não lhe devolveram as chaves
de casa. Subiu ao décimo quinto andar, onde morava, levando um pé-de-
cabra que tinha no carro e com que forçou a porta do apartamento.

O interior estava intacto. Contentaram-se em prendê-lo, não vieram


saquear o apartamento. Talvez tivessem descoberto que já não era dono
das empresas, porque as vendera, e foram atrás do novo dono. De um
armário do quarto retirou uma maleta. Ali estavam os diamantes em que
convertera a sua fortuna e com que contava recomeçar, no mesmo ramo
das máquinas de moagem do café. Rebeca esperava-o no Brasil.

– O que eles queriam não conseguiram – disse-nos Barbosa. –


Queriam matar-me, mas não conseguiram. Tomei um banho, o primeiro
em oito dias, e dormi um sono profundo. Quando acordei, a luz da
manhã atraiu-me para a varanda. Fiquei surpreendido ao ver que estava
tudo no lugar: a estrada de asfalto, os prédios, os carros, as vidraças, os
reflexos nas vidraças. Eu estava vivo, era livre. Todas as manhãs o
mundo recomeça, para os homens o venerarem ou estragarem. Podia
gozar a luz do sol, ter um futuro. Sozinho, na varanda, vi que o Universo
é perfeito e dei por mim a sorrir.

Fomos ocupar o apartamento oferecido por Barbosa. Estava mobilado;


os armários e as cómodas guardavam muitas roupas de Barbosa e das
suas duas mulheres, Teresa e Rebeca. Beatriz arranjou as camas e os
colchões disponíveis para nos acomodarmos. Agora tínhamos mais
privacidade. E até uma cozinha, se quiséssemos preparar as refeições. A
varanda dava para uma rua movimentada, quinze pisos acima do trânsito
automóvel.

Uma antiga empregada de Barbosa aparecia quase todos os dias, a


pretexto de arrumar as coisas. Chegou a trazer um homem negro,
familiar ou amigo dela, que examinou o espaço com olhos de entendido.
Pareceu-nos óbvio que queriam ficar com o apartamento, como muitos
africanos estavam a fazer à medida que os patrões se iam embora.
Sílvia, João e Ana iam para a varanda assim que nós saíamos para a
rua. Habituados a viver em moradias, era uma novidade ver uma cidade
cheia de prédios altos e ruas movimentadas, a partir de um décimo
quinto andar.

Observavam o trânsito lá em baixo quando, no cruzamento, viram um


choque entre dois carros. Um deles, de onde saíram guerrilheiros da
UNITA, abalroara outro, do qual viram uma peça soltar-se e voar alguns
metros. Deste segundo carro viram sair os próprios pais e os três irmãos
mais novos.

O carro dos guerrilheiros desrespeitara a cedência de prioridade e fora


embater com violência no meu carro. Miguel e Olavo, no banco de trás,
bateram com as cabeças e ficaram atordoados. O barulho do acidente
atraiu muitos transeuntes, que foram formando uma roda. Já não havia
polícias ou brigadas de trânsito. Os guerrilheiros observaram os danos
no meu carro: na parte direita traseira, o pára-lamas penetrara na
carroçaria e a panela do tubo de escape fora arrancada. Murmuravam
qualquer coisa entre si quando Beatriz lhes disse:

– Vocês não sabem conduzir. As crianças podiam ter-se magoado.

– Nós preocupamo-nos com as crianças – respondeu um dos


guerrilheiros. – Não somos animais. Se quiser levamo-las ao hospital.

– Não, não quero que as levem ao hospital.

Beatriz verificou que Miguel e Olavo tinham apenas um galo na


cabeça. Uma senhora veio segredar a Beatriz:

– Não fale assim com eles, que eles podem fazer-lhe mal.
– Agora temos de aturar tudo? – Beatriz não se preocupava em falar
baixo. – Eles que voltem para a sanzala, não têm nada que conduzir
carros na cidade.

Os guerrilheiros tornaram a enfiar-se no carro e arrancaram.

O pára-lamas entortado roçava no pneu, se alguém se sentasse no


banco traseiro, o peso fazia abater a peça e impedia a roda de girar. O
carro só podia andar sem ninguém no banco traseiro. Não tive pressa em
procurar uma oficina que fizesse a reparação, o que aliás não era fácil de
encontrar numa cidade que todos os dias se ia esvaziando.

Dois ou três dias depois do acidente, um oficial superior da UNITA


mandou-me parar, fazendo sinal com um bastão. Disse:

– Requisito este automóvel para me dar boleia até ao quartel da


UNITA.

Quando o militar se sentou no banco de trás, este abateu com o peso.


Só então me lembrei de que com aquele peso suplementar a roda ficava
encravada. João ia ao meu lado; o carro não comportava uma terceira
pessoa. Expliquei isto ao oficial, que saiu resmungando:

– Podia ter dito antes.

Falaram-me de um mecânico que ficara a viver numa oficina, fechada


e sem materiais. O homem atou a ponta de uma corda à peça que
estorvava a roda, atou a outra ponta a um ferro espetado no chão,
arrancou com o carro e endireitou a peça.
9

Célia, em Sá da Bandeira, alertada por uma colega que ouvira a nossa


mensagem na rádio, apanhou boleia para Nova Lisboa e procurou-nos na
Feira Internacional. A primeira pessoa que encontrou foi o padre
Emanuel, que, para compensar o facto de ter deixado as suas obras
missionárias, frequentava o recinto da Feira para auxiliar os refugiados.
Foi pelo seu antigo professor de Latim que ficou a saber que tínhamos
estado num colégio de freiras e agora morávamos num apartamento. O
padre Emanuel deu-lhe a morada.

Célia veio ao nosso encontro como se estivesse com pressa, apenas de


passagem. Contou-nos o que lhe acontecera em Malange. Beatriz ouviu
tudo e no fim anunciou o que lhe parecia ser a conclusão lógica:

– Já estamos todos inscritos na lista de espera para um avião e tu estás


incluída.

– Eu não vou – disse Célia, como se fosse uma evidência.

– Não vais? Vais fazer o quê? – perguntou Beatriz, com aquela


expressão tão sua de sugerir que o interlocutor não tinha razão.

– Vou para o Cafunfo. Vou ter com o Alexandre. – O tom de Célia era
o de alguém que procurava ouvir a própria voz para se convencer da
consistência das suas afirmações.

– Célia, não estás a vir de uma tentativa falhada de chegar ao


Cafunfo?

– Sim, mas não por minha culpa.


– E queres tentar outra vez? Andaste a fugir aos tiros, viste uma
cidade destruída, mortos na rua, foste escoltada pelo Exército… e queres
tentar outra vez? Sabes bem que isso não vai resultar.

– O Alexandre está à minha espera.

– O Alexandre não está à tua espera. Está a ver se fica rico com os
diamantes. Tu já não podes andar por aí. Os caminhos estão cortados
pelos guerrilheiros. Andam a matar pessoas, a violar mulheres. Não há
tropas suficientes para nos defenderem. Não disseste que só se chega ao
Cafunfo por avião? Todos os aviões estão a ser usados para evacuar as
pessoas, para as pôr a salvo, não para te levar para um sítio perigoso e
sem lei.

– Então vou procurar a FNLA – disse Célia. – Eles vão ajudar-me, eu


pertenço ao partido. Vou ficar aqui, com a FNLA. Não tenho nada a
fazer em Portugal.

– Não tens família? Julgas que a tua família é a FNLA? Eles estão em
guerra, tu não és guerrilheira, não tens qualquer utilidade para a FNLA.
A tua família, os teus amigos, estão todos a ir para Portugal. Se teimares
em ficar aqui, vais estar sozinha, entregue à bicharada. Sabe-se lá quanto
tempo vai durar a guerra.

– É aqui que eu tenho de estar, o mais perto possível do Alexandre…

– Se o teu objectivo é juntares-te ao Alexandre, será mais fácil


localizá-lo a partir de Portugal do que permanecendo aqui. Também há
gente da FNLA em Lisboa. Julgas que vão parar a guerra só para tu
passares em segurança? A família do Alexandre, o Capelo, a Mariana,
todos eles já saíram da Gabela, vão para Portugal, se é que já lá não
estão. É até de esperar que o Alexandre tenha algum contacto com a
Mariana, ou se veja obrigado também a fugir do Cafunfo. Ele não foi
expulso de todos os movimentos de independência? Então será o
primeiro a ter razões para fugir quando a guerra lá chegar.

Este argumento convenceu Célia. Para se juntar a Alexandre, iria fazer


um desvio necessário por Lisboa.

Sílvia acompanhava de perto o nervosismo da mãe. Todos os filhos


dependiam do ânimo de Beatriz. A mãe, sempre tão senhora de si,
solucionava todos os problemas. O que seria se sucumbisse? Quando
confirmou junto de Célia que a irmã iria ficar connosco, Sílvia apressou-
se a dizê-lo a Beatriz, julgando que contribuiria para a acalmar:

– A Célia vai connosco.

Beatriz pressentiu a angústia de Sílvia, e que a calma desta dependia


da sua. Tranquilizou-a:

– Sim, eu sei.

A única coisa que a Célia possuía era o diploma do liceu, que Beatriz
ainda tinha em seu poder. O resto ficara em casa da Célia, incluindo
duas arcas cheias com o enxoval que Beatriz lhe preparara ao longo dos
anos, com peças que bordara à mão e que a filha não chegara a usar.

Nas semanas seguintes, Célia pouco parou no apartamento. Passava


mais tempo na Feira: era aí que estavam os seus amigos da Gabela e a
discoteca que frequentavam. O ambiente de despedida e de fim de um
mundo levava a que as pessoas procurassem gozar a vida enquanto
podiam. Preocupavam-se em gastar o dinheiro, que nada valeria fora do
território. Célia disse-nos, mais tarde, que viveu um pouco de tudo,
desde bares de prostitutas e mafiosos a galas em hotéis luxuosos. Nunca
tinha havido tantas festas. E, no entanto, todos os dias partiam aviões
cheios de desalojados. Aqueles mesmos que estavam empenhados em se
divertir já tinham o nome nas listas dos voos seguintes. Nas discotecas,
quando se ouviam tiros lá fora, aumentavam o som da música.

Célia ia ao apartamento que Barbosa nos cedera só para tomar banho.


Era-lhe insuportável a ideia de ficar ali parada à espera do avião. O
grupo de amigos, que corria os locais de diversão, deslocava-se na
carrinha de um deles. Iam até à Caala, vila vizinha de Nova Lisboa, a
um certo café onde encontravam tabaco. Demoravam-se por lá. Foram à
Vila Flor, ao lugar chamado Ilha dos Amores, onde havia um ribeiro e
árvores com troncos entrelaçados e se podia passear numa atmosfera
romântica.

Aos filhos adolescentes, dávamos dinheiro. Era preciso estourar os


angolares. Sílvia, João e Ana andavam com os bolsos cheios. Embora
vissem mais prateleiras vazias do que cheias, compraram roupas, discos
e cartazes de estrelas de cinema.

Algumas pastelarias continuavam a laborar e expunham nas montras


bolos de casamento e de baptizado, e fá-lo-iam enquanto houvesse
refugiados à espera de embarque e os guerrilheiros não destruíssem os
seus fornos e cozinhas.

Ouvimos gargalhadas vindas de um dos quartos do apartamento.


Sílvia, João e Ana estavam com outros adolescentes do prédio, a contar
anedotas uns aos outros. Beatriz repreendeu-os por estarem a rir no meio
de uma situação tão aflitiva. Os adolescentes olharam para ela, culpados.
Depois de fechar a porta, pareceu-me que Beatriz se arrependeu de os ter
censurado. Já nada iria alterar o curso dos acontecimentos.

10

Tinham chegado milhares de desalojados a Nova Lisboa. E atrás


deles, a guerra. E atrás da guerra vinham ladrões, violadores e
assassinos.

Os combates começaram nos arredores e pararam a produção de


vegetais e carne; os mercados e os talhos deixaram de ser abastecidos.
As viaturas que transportavam alimentos para a cidade eram detidas à
entrada por guerrilheiros que se apoderavam das cargas. As fábricas de
massas, bolachas e bebidas encerraram em resultado de ataques, da falta
de matérias-primas e da fuga de trabalhadores e técnicos. As quintas e
vacarias eram assaltadas e os guerrilheiros matavam animais caros,
como vacas leiteiras, por serem brancos e ser necessário matar tudo o
que era branco. Galinhas, cabras, carneiros, patos, eram mortos por
serem brancos. Carros e carrinhas eram destruídos se estivessem
pintados de branco.

Em pouco tempo, os neo-lisboetas tinham falta de alimentos, carvão,


lenha, gás, gasolina. A central térmica não tinha carburante. Havia falhas
de energia durante o dia e uma iluminação deficiente durante a noite.

A capital da região agro-pecuária mais rica de Angola estava a passar


fome. Os guerrilheiros vendiam géneros alimentícios saqueados, que
eram moeda de troca em situações de chantagem. O quilo de batatas, de
açúcar ou de arroz, a gasolina, os cigarros, tudo se vendia a preços
incríveis. O que mais chocou a população branca foi ver soldados
portugueses a fazerem o mesmo e a lucrarem com a desgraça dos outros:
punham no mercado negro os cigarros, as bebidas e os artigos de rancho.
Soube-se de casos em que uma lata de leite condensado foi trocada por
sexo com mães de filhos esfomeados ou pela virgindade de uma filha
adolescente. Isto vindo da mesma tropa de quem se esperava protecção.
Ali, como em Luanda, alguns militares faziam-se pagar pelo transporte
de bagagens de desalojados para o aeroporto. Eram actos predatórios
que um exército em guerra costuma praticar contra os civis dos países
inimigos.

Muitos refugiados que afluíam a Nova Lisboa viram os seus bens


confiscados pelos movimentos de independência: tudo o que possuíam
era produto da exploração do trabalho do povo e pertencia a este. Levar
essas coisas era um crime contra a economia angolana.

Qualquer pessoa podia ser abordada por vendedores de diamantes, que


sabiam que muitos desalojados queriam comprá-los. Havia o perigo de
ciladas, para além de que muitas vezes os diamantes eram falsos.

Em Agosto, as coisas pioraram. Guerrilheiros e bandos não


identificados já assaltavam lojas no centro da cidade. Os movimentos
rivais, envolvidos em combates, alternavam entre si, no lapso de dias, o
controlo de pontos-chave da cidade e dos seus acessos. Sair à rua
tornou-se um risco.

Quando eu tinha de circular, não sabia o que me ia acontecer.


Lembrava-me do tempo em que as 6 Horas do Huambo em
automobilismo paravam a cidade. Tinha vindo uma vez, há muitos anos,
ver as corridas. Os hotéis, as pensões e os restaurantes esgotavam. As
bancadas estavam cheias de público; os prédios em construção eram
aproveitados e ia gente para os pisos mais altos, para assistir. Agora, as
únicas corridas que tínhamos em perspectiva eram para fugirmos às
balas.

Já não havia autoridade policial e judicial. O comando da Polícia fora


assaltado por desconhecidos que levaram armas e caixas com granadas
ofensivas. Qualquer transeunte podia ser espoliado de dinheiro, jóias,
relógios. Não era raro uma viatura ser levada do sítio onde o dono a
estacionara. Em nome da UNITA, que tinha um ascendente cada vez
maior sobre os partidos rivais, requisitava-se tudo: alimentos,
combustíveis, carburantes, contribuições pecuniárias, alojamentos,
carros. A requisição era uma formalidade para se tomar posse de tudo o
que se desejasse.

As patrulhas e os postos de controlo passaram a exigir o cartão de


filiação no partido para se circular nas ruas. Quem estivesse em falta não
poderia chegar ao local de trabalho ou aos mercados. Cobrava-se
dinheiro para preencher os boletins de inscrição, uma taxa apresentada
para cobrir as despesas do partido. Não se passava recibo e o dinheiro
desaparecia nos bolsos dos militantes que faziam as inscrições. A taxa
duplicou numa semana; depois já era quatro vezes mais, dez vezes mais;
no fim já se trocava a inscrição por automóveis. Transeuntes sem o
cartão de filiação do partido eram chantageados, espancados, detidos.

Aumentaram os raptos de mulheres em plena rua, sobretudo jovens,


levadas para quartéis onde eram violadas por vários homens durante
dias. Eram alimentadas para aguentarem mais tempo. Por fim, largavam-
nas em qualquer parte, avisadas para dizerem que o mesmo tinha sido
praticado pelos brancos contra as filhas e as irmãs dos negros durante
séculos. Algumas mulheres suicidaram-se: ingeriram comprimidos,
cortaram as veias ou atiraram-se para a linha férrea, onde ainda
circulavam algumas composições.

11

Fomos para o aeroporto no dia marcado para o voo, a meio da tarde.

O meu carro prestou-nos o último serviço. Deixei-o no parque de


estacionamento do aeroporto, com a chave na ignição.

O aeroporto estava lotado. Avançámos no meio de centenas de


refugiados, a maioria brancos. Um choque: foi anunciado que o voo fora
requisitado pelas autoridades portuguesas para fazer evacuar de Nova
Lisboa, para Luanda, elementos do MPLA em perigo de serem mortos
pela UNITA. Iríamos no próximo voo, mas não se previam mais aviões
para esse dia e não havia certezas quanto ao dia seguinte.

O medo de perder o próximo avião levou-nos a escolher dormir no


aeroporto. Se voltássemos para o apartamento de Barbosa, poderíamos
ter um atraso na manhã seguinte por algum motivo imprevisto. Era
melhor ficar e marcar o lugar.

Sentámo-nos onde encontrámos algum espaço livre, no meio de gente


desconhecida, passos, correrias, vozes, gritos, gargalhadas, choros.

Cerca de dez mil pessoas esperavam embarque naquele momento.


Enchiam o largo fronteiro ao aeroporto, as salas de espera, a sala de
embarque, os hangares, os terminais de carga. Não disfarçavam a falta
de higiene e de sono, a fome, o frio, o medo, em cima de um chão de
cimento e alcatrão cheio de imundícies, dejectos, latas vazias.

As listas de espera obrigavam pessoas a viver ali há mais de uma


semana. Havia tendas oferecidas pelo Exército montadas no exterior.
Também se dormia ao relento, ao frio, na humidade do cacimbo, só com
um cobertor por cima, junto dos caixotes que não cabiam nos hangares.
Havia abrigos improvisados com chapas de zinco como tecto, entre
caixotes e malas. Cozinhava-se o que se podia.

No interior dos edifícios, viam-se pessoas sentadas em cima das


bagagens. Por toda a parte pilhas de malas, caixotes grandes com
mobílias, caixotes pequenos. Dormia-se sobre os bancos ou no chão, em
cima de colchões de espuma, com cobertores que eram distribuídos. As
crianças mais velhas, aproveitando o cansaço dos pais, corriam e
brincavam, entregues a si próprias. Já não havia ninguém para limpar a
sujidade. Viam-se papéis velhos espalhados no chão. O lixo, disperso
pelo vento ou pelas crianças, chegava até à pista. A Cruz Vermelha
distribuía medicamentos e comida.

12

Resolvi dar uma volta para desentorpecer as pernas.

Os objectos que os refugiados traziam davam ao recinto um aspecto de


feira de velharias. Via-se de tudo: volumes simples atados com cordéis,
panelas, molduras de plástico, argolas para cortinados, castiçais, gaiolas
com ou sem pássaros, recordações de viagens como miniaturas do Big
Ben ou da Torre Eiffel.

Os telefones das cabines públicas já não funcionavam, nem os dos


balcões. Gente que ia ter de esperar horas ou dias precisava de contactar
com familiares que estavam no centro da cidade, mas já não havia táxis.

A espera era angustiante para todos, ainda mais para os idosos, os


doentes, os traumatizados, as crianças pequenas. Crianças sujas, com
cara de fome, olhavam assustadas para o desespero dos pais e assistiam
a zaragatas entre adultos sobre quem tinha prioridade no próximo
embarque. Senti uma baforada fétida vinda das duas casas de banho à
disposição de milhares de pessoas. Perto delas havia charcos de urina e
as pessoas passavam-lhes por cima arregaçando as calças. Crianças não
vigiadas iam chapinhar nessa lama.

Abstraí-me da vozearia, do choro das crianças, dos gritos dos pais,


olhei para as paredes do recinto e vi cartazes turísticos que anunciavam
safaris, pesca desportiva, passeios de avioneta, praias com coqueiros. O
leão, o rinoceronte, a manada de elefantes correndo na savana e
fotografados a partir do ar, pareciam cartazes esquecidos de um circo.

A Nova Lisboa continuavam a afluir os refugiados do Sul. As novas


levas eram difíceis de acolher enquanto as anteriores não fossem
evacuadas. Todos os dias chegavam ao aeroporto pessoas esfarrapadas,
outras descalças e com os pés cobertos de adesivos por terem percorrido
dezenas ou centenas de quilómetros a fugir à guerra. Saltavam de
viaturas de carga onde se amontoavam como animais. Chegavam
esfomeadas, sujas e esgotadas. Vi pessoas chegarem em macas, porque
já não podiam andar e não tinham arranjado uma boleia. Havia doentes
com tifo, diarreias, tosse convulsa, febres palúdicas, gangrenas em
resultado de ferimentos acidentais ou provocados por agressões de
guerrilheiros. Não eram raros os desmaios por exaustão. Chegavam
pessoas à beira da morte. O tiroteio e a fuga precipitada separaram
elementos da mesma família, que agora se procuravam uns aos outros
sem saberem se tinham chegado vivos ou mortos.

Havia quem sucumbisse a um colapso nervoso. Um homem ou uma


mulher gritava, chorava, arrepelava os cabelos, dizia que se desgraçara.
Exigia embarcar imediatamente. Todos sentiam pena e, com base no que
tinham vivido ou testemunhado, consentiam que embarcassem primeiro
esses que tinham os nervos esfrangalhados.

Falava-se do caso da criança de doze anos que, naquela sala de


embarque, alertara toda a gente aos gritos. Abanou a mãe, enrolada em
cobertores no chão. Acorreram enfermeiras da Cruz Vermelha, que
observaram uma espuma que saía da boca da morta e viram um frasco
de barbitúricos vazio. Algumas pessoas conheciam a história. Um bando
de delinquentes entrara-lhes em casa e arrastara a família para a rua.
Amarraram o marido a uma árvore e violaram a mulher e a filha à frente
dele. O marido pedia misericórdia. A criança desmaiou à terceira
violação, a mãe à sétima ou oitava. Ao mesmo tempo, a casa era
saqueada. Quando mãe e filha acordaram, o pai estava morto.

Algumas pessoas jogavam às cartas em silêncio. Observei com


especial atenção os solitários, ao pé das suas trouxas, os olhos fitos no
chão, o pensamento longe dali. Conversava-se por toda a parte. Apanhei
frases no ar:

– Só tenho pena de não trazer diamantes do mercado negro.


– Pois eu levo comigo os meus maiores diamantes.

– Ah sim? Como é que conseguiu?

– São a minha mulher e os meus filhos.

Vi o rosto do que falara primeiro fixar-se numa expressão de


assombro, como se pensasse: «Que bem achado! Porque é que não fui eu
a dizer isso?»

Dois homens trocaram as seguintes palavras:

– Isto não é nada connosco… Vamos voltar para aqui em breve…


Claro, depois da tempestade vem a bonança…

Passei perto de vários grupos que conversavam:

– O governo não vê esta desgraça?

– Claro que vê. O governo é que nos desgraçou.

– Mais valia dar um tiro nos miolos. Acabava-se tudo de uma vez.

– Um tiro nos miolos? Sim, mas só se for nos miolos dos governantes.

– Dá vontade de pegar numa metralhadora e matar esses cabrões.

– Os comunistas deram cabo disto.

– Os tipos não mandam aviões suficientes para nos recolherem. Não


nos querem lá. Têm medo de que os enforquemos na Praça do Rossio.

– Quantos mais de nós morrerem, melhor para eles.


– Não sei como é que vou ser recebido pelos meus familiares. A
minha vida aqui era melhor do que a deles. Volto de mão estendida.

– Eu dou-me mal com os meus irmãos, não me vão receber bem.

– A minha vida acabou. Julgava que ia envelhecer e ser enterrado


aqui.

– E enterram-te. Mas vivo.

– Trinta e sete anos de trabalho destruídos. Já nem me lembro da cara


das pessoas que vão estar à minha espera em Lisboa.

– E o Ramos, o ourives? Forrou o casaco com diamantes. Quando


falei com ele só tinha medo de que o revistassem à entrada do avião.

– Não estão a revistar ninguém.

– Esse também pode dizer que só leva a roupa que tem no corpo. Mas
devia acrescentar que a roupa está forrada de diamantes.

– Fiquei sem a casa, todo o recheio da casa e o meu cão. Têm de me


devolver a casa com todo o seu recheio e o cão.

– O último a sair que feche a porta.

Havia refugiados de fato e gravata e malas da primeira classe. Havia


homens que queriam fazer embarcar as mulheres e os filhos, ficando
eles sozinhos para, mais tarde, quando a situação melhorasse, trazerem a
família de volta. Aconteciam pequenas peripécias, ouviam-se anedotas e
gargalhadas, vivia-se e gozava-se a vida, mesmo que esta fosse, por
enquanto, aquela espera num aeroporto, perdendo o que se dera como
adquirido. Havia raiva e amargura, alegria e confiança. Os seres
humanos estão sempre disponíveis para tudo, mesmo que não o saibam.

As pessoas pensavam em salvar a própria vida e encaravam o que


estava a acontecer como um grande transtorno pessoal. Havia a ordem
quotidiana da vida para restabelecer. Não se viam como actores do
último acto do drama dos Descobrimentos, Expansão e Conquista que
começara seis séculos antes e terminava em êxodo, guerra, libertação de
povos. Mas foi ali, no aeroporto de Nova Lisboa, que tomei consciência
do fim do Império. A ponte aérea impressionava-me tanto como os
últimos comerciantes que, já com o bilhete de avião no bolso, vendiam
os últimos artigos das suas lojas. Achava que o fim do Império era
também o gesto daquelas pessoas que, nas discotecas, ouvindo o tiroteio
lá fora, optavam por aumentar o volume da música.

Já tinha anoitecido. Alguns gritos chamaram-me a atenção. Um grupo


estava a protestar pela falta de aviões diante de dois membros do pessoal
da evacuação. Aproveitando essa agitação perto de uma das portas,
outro grupo no exterior exigia entrar na sala de embarque, superlotada,
porque estava frio lá fora. Mas só podia entrar quem tinha um cartão de
embarque.

O pessoal de evacuação era insultado, ameaçado, agredido por gente


que depois chorava e pedia desculpa. Até os pára-quedistas que
guardavam o aeroporto eram alvo da raiva dos desesperados. Eu soube
que tinha havido uma invasão dos balcões de embarque, na tentativa de
tomar de assalto um avião que acabara de aterrar. Todos os dias havia os
que mostravam atestados médicos e telegramas de familiares, para
passarem à frente. Mentia-se muito: pediam a familiares em Portugal
que mandassem um telegrama a dizer que a mulher ou os filhos estavam
a morrer de uma doença qualquer, o que dava direito a embarcar mais
depressa. Havia tentativas de suborno para levar mais bagagens ou
passar à frente nas listas de espera.

Quando fazia o caminho de volta, tive outra surpresa. Reparei numa


mulher sentada no chão, hirta, com o olhar parado e vazio. Reconheci
Viviana, a minha funcionária do arquivo de identificação civil da
Gabela. Aproximei-me e cumprimentei-a. Ela ergueu um olhar
desvairado que me assustou. Estava suja, desgrenhada, tinha as roupas
amachucadas. Devia estar ali há muitos dias.

Abraçava um saco de serapilheira, e quando reparou nesse meu olhar


sobre o saco puxou-o mais para si, num instinto de defesa. Pensei que
guardaria ali alguma coisa importante. Viviana não devia conhecer
ninguém em Nova Lisboa e talvez estivesse desligada da mãe e das
irmãs, que viviam em Luanda. Levava só aquele saco de serapilheira.

– Precisa de alguma coisa? Dinheiro? – perguntei.

Ela tornou a encarar-me com uma expressão alucinada e abanou com


força a cabeça, para pôr fim à conversa. Afastei-me.

13

O recinto cheio de gente tinha-se aquietado. Muitos dormiam. Os


outros falavam em voz mais baixa. As luzes eram menos intensas.

Célia tentou improvisar uma cama de jornais no chão. Fazia-o com


uma expressão de grande concentração e seriedade. Eu observava-a e
pensava que ela estava a levar longe demais o papel de desalojada.
Disse-lhe:

– Célia, em vez de te deitares no chão, deita-te ali, naquele banco.

Célia olhou para o banco que eu lhe apontava e pareceu só então ter
reparado nele. Tínhamos todos de lutar para conservar a sanidade
mental.

Beatriz vigiava o sono dos filhos mais novos. Tinha visto a fome na
cara de crianças obrigadas a esperar vários dias no aeroporto. Disse-me:

– Juro que não vou ver os meus filhos com cara de fome por terem de
dormir no aeroporto. – E acrescentou, levando as coisas como uma
afronta pessoal: – Querem obrigar-me a isso mas não vão conseguir.

Luís e Olavo já estavam a dormir. Miguel mantinha-se desperto,


embora fingisse já ter adormecido. Estava a sonhar acordado com a sua
bicicleta, novinha em folha, que eu não pudera colocar no tejadilho do
carro. Para Miguel, o fim do Império resumia-se à perda da bicicleta.

Só muito mais tarde soubemos das actividades a que se entregaram


Sílvia, João e Ana no aeroporto. Especializaram-se a furtar cigarros a
adultos, que fumavam às escondidas, e divertiam-se a pensar naqueles
que trocavam um carro por um punhado de cigarros.

14

No dia seguinte, bem cedo, foi anunciado que chegaria daí a um par de
horas um avião da TAP. Sempre que se fazia um anúncio desses era
grande a alegria dos que contavam embarcar.

Formou-se uma fila em plena pista do aeroporto. Todos tinham de


passar pelas balanças que pesavam as bagagens. Alguns passageiros não
aceitavam levar apenas trinta e cinco quilos. Eu, longe desse limite,
aceitei uma mala a pedido de um passageiro. Havia na fila uma senhora
com trezentos quilos em caixotes com mobílias, electrodomésticos,
roupa.

– Perdi tudo! – gritou. – Isto é tudo o que tenho.

O desespero da mulher não demoveu o pessoal. Os animais de


estimação eram outro problema. Havia quem se recusasse a embarcar se
não pudesse levar o papagaio ou o canário, o gato ou o porco-da-índia.
As crianças choravam, obrigadas a separarem-se do cão. Tinha sido pior
nas primeiras semanas da evacuação. Depois apareceram aviões com
cabines climatizadas nos porões para os animais.

Estávamos em risco de não embarcar: pessoas não inscritas na lista


afixada numa parede do aeroporto chegavam das suas casas no centro da
cidade e entravam à frente. Não ia haver lugar para todos os que tinham
dormido no aeroporto por causa do desvio do avião no dia anterior.
Teriam de passar para o voo seguinte, que nunca se sabia quando
chegaria, e, entretanto, os que já contavam com o voo seguinte
reclamariam ao verem em risco a sua hipótese de embarcar. Beatriz
disse-me que não aceitaria mais uma noite no aeroporto. Tinha jurado
que não iria ver a fome na cara dos filhos. Cerrou os punhos e preparou-
se para a luta.

A fila subia as escadas para o avião. Eu ia à frente. Beatriz, que não


queria perder nenhum dos filhos de vista, era a última. No topo da
escada, já com um pé dentro do avião, um homem agitou um braço no ar
e gritou:

– Isto é porque não posso fazer os canalhas do governo engolir as


notas!

Abriu a mão e soltou centenas de notas de mil angolares, que o vento


espalhou pela pista. As notas foram perseguidas por guerrilheiros da
UNITA, que se empurravam uns aos outros para as apanhar.

À porta do avião estavam duas hospedeiras. Quando chegou a minha


vez, interromperam a entrada de mais passageiros para irem verificar se
havia lugares. O comissário de bordo veio dizer:

– Só há lugar para mais cinco pessoas.

Beatriz fez-me sinal para eu entrar com os quatro mais novos. Havia
mais algumas crianças de outras famílias que seguiam atrás, na fila.
Beatriz ia dizendo às hospedeiras, à medida que os nossos filhos
entravam no meio de outras crianças:

– Esse é meu. Esse não é meu.

Eu e os quatro mais novos entrámos do avião. O comissário voltou:

– O avião já está cheio.

Beatriz já tinha a resposta pronta:

– Nós somos nove e só entraram cinco.


– Já temos passageiros nos lugares reservados à tripulação.

– Nós vamos todos juntos. Quatro filhos meus já estão aí dentro e


tenho aqui mais três.

– Se querem ir juntos, vão todos no próximo voo – sugeriu o


comissário.

– Nós vamos neste voo, porque é neste que estamos inscritos. Já


fomos enganados com as listas de espera e ainda nos enganam outra vez.

– Mas estou a dizer-lhe que já não há lugares.

– Faça sair daí de dentro aquelas pessoas que entraram à nossa frente e
que não estavam inscritas na lista de espera. Faça-as levantar para
entrarmos nós. Eu não saio daqui enquanto não resolverem o problema.

A dois filhos que já tinham entrado e voltaram atrás para ver o que se
estava a passar, Beatriz disse:

– Voltem já para os vossos lugares.

O comissário hesitava. Beatriz voltou à carga:

– Façam nova chamada para verificar se as pessoas que estão aí dentro


estavam inscritas na lista de espera.

Fazer uma chamada que respeitasse a ordem das pessoas inscritas


seria um transtorno enorme: gente que já estava sentada teria de se
levantar e sair, além de que poria a nu o favor que fora feito às pessoas
não inscritas.
– A minha paciência já se esgotou – disse Beatriz. – Inscrevemo-nos
na lista e retiraram-nos da lista. Perdemos um avião para transportarem
pessoas do MPLA. Tivemos de dormir uma noite no aeroporto. Agora
vamos neste avião. Pessoas que não estavam inscritas foram metidas à
nossa frente.

O comissário cedeu. Entrámos todos. Luís ficou no meu colo, Olavo


iria no colo de Beatriz, Miguel ficou entre desconhecidos, os quatro
mais velhos iam em lugares reservados à tripulação. Beatriz estava de
pé, controlando tudo. Um comissário de bordo disse-lhe que se podia
sentar, mas Beatriz estava determinada a só o fazer quando as portas do
avião se fechassem. Não confiava em ninguém e receava que fizessem
sair alguns dos filhos nas suas costas.

O avião estava pronto. Houve um último contratempo. O piloto


recusou-se a descolar enquanto estivesse montada uma metralhadora
antiaérea sobre o telhado do aeroporto. Isto implicou contactos
demorados entre militares portugueses e os responsáveis da UNITA. A
metralhadora foi desmontada.

O avião correu sobre a pista e, de modo imperceptível, separou-se da


terra. Os passageiros sentiam-se derreados. Esvaziavam a mente de
pensamentos.

A bordo, a atmosfera emocional era de resignação. As pessoas


descomprimiam e tentavam dormir.

Quem não iria dormir nem por um minuto era Beatriz. Sentado vários
lugares mais atrás, assisti às suas manobras. Levantou-se para ir ver
Miguel, isolado da família, e dar-lhe a certeza de que não estava
sozinho. Perto do seu lugar, viu uma mulher com ar arrogante a fumar
um cigarro com uma boquilha de marfim. Estava acompanhada pelo
filho adolescente. O cigarro caiu da boquilha e perdeu-se no chão.
Beatriz disse-lhe:

– O seu cigarro caiu.

Ela olhou para o chão, mas sem se esforçar muito para encontrar o
cigarro. Beatriz insistiu:

– Tem de o apanhar. Pode arder.

A mulher parecia mais atrapalhada com a pressão de Beatriz do que


com a beata perdida. O filho dava mostras de estar mais empenhado do
que a mãe em encontrar o cigarro. Passava nesse momento o comissário,
a quem Beatriz disse:

– Aquela senhora deixou cair um cigarro aceso e não o encontra.

O comissário encontrou a beata e veio dizer a Beatriz:

– Não tem grande perigo fumar aqui, mas fez bem em avisar-me.

Levantei-me para ir dizer a Beatriz que concedesse descanso a si


mesma. Ela deslizava para pensamentos estranhos e disse-me:

– O comissário disse que não é perigoso, mas se calhar é e ele quer


morrer e rebentar com o avião, e com toda a gente…
Lisboa, 1975

Todos os que saíam do mesmo avião iam ter a um espaço onde se


viam muitas pessoas desencontradas. Gente com malas, de pé ou
sentadas, tentando não se afastar dos seus pertences; gente de fora
tentando entrar para abraçar os familiares; gente da comissão de
recepção oferecendo um saco com uma sandes e uma maçã. Os nossos
filhos mais velhos foram abordados por esses elementos que distribuíam
comida. Beatriz examinou o conteúdo do saco, desconfiou da qualidade
do pão e da fruta. Ouvi-a dizer para si mesma:

– Não me vão impingir nenhuma porcaria só porque sou uma


refugiada.

Os filhos ficaram na expectativa do juízo que a mãe ia formular sobre


o lanche que lhes era oferecido. Uma senhora disse que o lanche não era
tão fresco como desejariam porque tinham estado à espera do nosso
avião no dia anterior. Olhei para esta senhora e achei que também a
expressão do seu rosto não estava fresca, mas cansada e desiludida.

Os que acabavam de chegar eram encaminhados para uma triagem. A


cada adulto eram dados cinco mil escudos. Passavam-se guias de
transporte para qualquer ponto do país. Quem não fosse para casa de
familiares ou amigos iria para hotéis. Não podiam ir todos para os
melhores sítios, e Beatriz, prevendo novas manipulações para favorecer
alguns, receando ir para algum lugar sem privacidade, aceitou a
hospitalidade da minha mãe, que morava nos arredores de Lisboa. Viúva
havia trinta anos e habituada a viver sozinha, veria nove pessoas
encherem-lhe o apartamento, um santuário de música romântica tocada
em velhos discos, fotografias de mortos em todas as paredes e visitas
dominicais de catequistas durante as quais era oferecido um chá.

Um autocarro deixava as pessoas onde elas precisassem de descer.


Atravessámos o recinto, atordoados com o vozear que enchia o espaço.
Vimos adultos e crianças deitados no chão, enrolados em cobertores
puídos. Ouvi um indivíduo interpelar alguém da comissão de recepção e
perguntar, exaltado, porque é que havia centenas de pessoas
amontoadas, com as bagagens, em pavilhões frios e húmidos dos
terminais de carga, onde recebiam comida da Base da Força Aérea. A
família deste homem estava ali havia um mês. Elementos da Cruz
Vermelha rodearam uma criança de dez anos que viera sozinha de Nova
Lisboa e se perdera da avó, o seu único parente. Um grupo de cinco
mulheres negras estava a lamentar-se alto; o homem que se oferecera
para as meter num avião, para chegarem ali, recebera cinco mil escudos
por cada uma delas, o dinheiro que davam a cada adulto, e desaparecera;
gritavam, desesperadas.

Entrámos no autocarro. Entretanto, anoiteceu. Qualquer refugiado é, à


sua maneira, um turista, por isso eu e Beatriz apontávamos aos nossos
filhos alguns lugares de interesse: o Terreiro do Paço, o Mosteiro dos
Jerónimos, a Torre de Belém. Célia recusava olhar. A única coisa que a
impressionava era a estreiteza das ruas; habituada a espaços grandes e
modernos, parecia-lhe que os carros iam chocar. Os adolescentes
acharam tudo antigo, como tinham lido nos livros da escola. Fomos os
últimos passageiros a descer.
O autocarro passou perto da ponte, que já não se chama Salazar mas
sim 25 de Abril. Descemos. Célia e Sílvia iam enfeitadas com missangas
e panos africanos, numa necessidade de afirmação de Célia e que Sílvia
imitava. Bateram à porta. Veio atender a avó, que só conhecera a neta
mais velha ainda bebé e desde então só vira os netos em fotografias. A
avó disse qualquer coisa para si mesma; ouvi ser pronunciada a palavra
«ciganitas». Logo a seguir aparecemos todos diante da porta.

– Oh, é o Vítor! – exclamou a minha mãe.

– Olá, mãe – disse eu, com a consciência aguda de que, dezanove anos
antes, quando eu partira para África, ela só me vira com um filho e
agora eu lhe apresentava mais seis.

Iniciámos assim a via-sacra do desalojado que se faz acolher em casa


de familiares. África tinha sido uma oportunidade para os colonos se
afastarem das famílias de origem. Muitos tinham-se empenhado em não
visitar os pais ou os irmãos na Metrópole. Agora era preciso engolir o
orgulho e ser admitido por algum tempo, como um viajante que,
apanhado numa tempestade, bate à primeira porta que lhe aparece; e a
primeira porta era, muitas vezes, uma mãe castigadora, uma avó idosa,
um irmão de quem se preferiria estar afastado milhares de quilómetros,
ou uma sogra por quem se nutria antipatia.

Toda a gente viveu às custas das colónias, mas com a chegada dos
retornados propagou-se a ideia de que as colónias só davam prejuízo.
Sobre estes que retornavam deveria recair todo o ónus da derrocada. No
dia 24 de Abril, os da Metrópole aplaudiam o ditador; no dia 25 de Abril
acompanharam o golpe militar, a ver no que aquilo ia dar; no dia 26,
entusiasmados com o resultado, já se diziam progressistas e
anticolonialistas desde pequeninos. Os do Ultramar vinham numa altura
em que o País julgava ter-se transformado; poderiam servir de bode
expiatório para tudo o que correra mal ou viesse a correr mal.

Nós, os do Ultramar, ali estávamos, sem dinheiro, ao contrário do que


costumava acontecer quando vínhamos de férias. Agora, receber-nos era
uma maçada. Éramos os parentes que vinham estorvar, que queriam
comer da mesma panela onde não havia para todos, que despertavam a
hostilidade dos que não tinham atravessado o mar. Acabara o tempo em
que colonos ricos desciam dos navios, trazendo abastança e boas
gorjetas. Portugal, templo arruinado, sepulcro de santos e heróis, monte
de ossadas sagradas, recebeu estes filhos, desalojados dos locais de
trabalho e de residência, como diziam os documentos oficiais.

Para tratarmos do ingresso no quadro geral de adidos, tínhamos de


consultar os boletins oficiais com as nomeações de carreira, que faziam
prova dos cargos que tínhamos exercido.

Era preciso requerer a nacionalidade portuguesa nos registos centrais.


Mais de metade dos retornados nascera em África. E esta é a pergunta
que eu faço à democracia: em África não éramos portugueses? Foi tudo
fingimento e encenação?

No quadro de adidos, que me pagava sessenta por cento do


vencimento, recomendaram-me ir às conservatórias do registo civil para
que estas, alegando a falta de pessoal de que tanto se queixavam, me
requisitassem ao próprio quadro de adidos, que pagaria o ordenado. O
posto de oficial privativo do registo civil equivalia a primeiro ajudante
na Metrópole. Fui recebido por um conservador:

– Nesta repartição não há ninguém com o posto de primeiro ajudante,


só de segundo. Se o admitisse, ia passar à frente dos outros, seria o meu
substituto. Não seria justo passar à frente desta gente toda. Você andou
lá pelas Áfricas…

As «Áfricas»… A expressão usada em séculos passados para o lugar


do desterro, depois o das grandes oportunidades, era agora usada para
uma terra que se queria esquecida. As carteiras profissionais das ex-
colónias não eram reconhecidas. Uma circular da comissão nacional
instaladora do sindicato dos trabalhadores dos registos e do notariado
repudiava as nomeações de retornados para lugares que implicassem
prejuízo para os trabalhadores dos quadros metropolitanos; recomendava
que não fosse levada em conta a qualificação que tinham tido nas ex-
colónias. Começava bem o socialismo em Portugal.

Beatriz planeou as coisas para sairmos da casa da minha mãe o mais


depressa possível. Nada lhe desagradava mais do que depender da
benevolência dos outros. Disse-me que África era o capítulo encerrado
de um livro ainda por ler. Adiava a sua leitura porque, entretanto, tinha
coisas urgentes que requeriam atenção. A única coisa que a salvava da
loucura era estar ocupada: havia os estudos e as doenças dos filhos, o
duelo surdo com a sogra para gerir, muitas torneiras de gás para verificar
e tornar a verificar se estavam bem fechadas, à noite, quando todos se
iam deitar. O passado estava em suspenso. Proibiu a si própria o luxo de
uma depressão. Era preciso concentrar-se para recomeçar do nada. Não
queria ser uma Tinha. Chamavam Tinhas aos que diziam: «Em África eu
tinha isto, tinha aquilo…»

Beatriz iniciou funções numa escola. O ano lectivo começou com


atraso e os alunos exigiam saneamentos de professores. Beatriz
preparava-se para pôr a turma a fazer a análise gramatical de um texto
quando um aluno lhe perguntou se não ia fazer uma assembleia de voto.
Explicou que a professora do ano anterior, já depois do 25 de Abril,
numa aula em que dissera para apontarem os adjectivos e os
substantivos de um texto, e havendo discórdia entre os alunos, propôs
que votassem: mesa é adjectivo ou substantivo? A maioria votou em
adjectivo e assim foi classificada a palavra. Beatriz disse que não faria
tais assembleias. E acrescentou que estivessem à vontade se quisessem
saneá-la por causa disso.

No meio da tempestade política, Beatriz conseguiu a proeza de


readquirir uma rotina. Se lhe dissessem então que teria de viver sob a
ameaça de uma guerra, que haveria escassez de comida para os filhos,
que deixaria de haver escola e polícias e serviços dos Correios, que
guerrilheiros usariam o seu quintal como uma posição estratégica, que
morteiros voariam sobre o telhado da sua casa, que seria preciso fugir
levando só a roupa que trazia vestida, Beatriz pensaria: «Não vou ser
capaz.» No entanto, teria sido capaz, e pelas mesmas razões da primeira
vez: atravessa-se o caos e o perigo apenas com o desejo de retomar a
ordem e a paz.

Irritava-se com a minha calma, a que chamava indiferença. Eu preferia


filosofar para mim mesmo. A vida é uma sucessão de compensações de
coisas perdidas, desde o desmame, ou mesmo antes, desde o nascimento.
A civilização aperfeiçoa uma visão do mundo a partir de desaires e
desilusões. Somos o resultado de catástrofes e mudanças. Edificou-se e
perdeu-se muito na história da humanidade, e as gerações, umas atrás
das outras, reconstruíram ruínas, fugiram de exércitos incendiários,
sobreviveram a saques e morticínios. A última descolonização africana
era apenas um episódio do drama de perdas e sobrevivência que os seres
humanos protagonizavam.

Ao longo de quase vinte anos, eu tinha enviado poemas meus e


fotografias das crianças para as minhas irmãs e a minha mãe. Agora
elas, sabendo que eu não trouxera nada, devolviam-me os poemas e as
fotografias. Foi estranho vermo-nos a nós mesmos num passado recente
que, reduzido a imagens, já parecia distante. Afinal, tínhamo-las enviado
a nós próprios, porque as recebíamos agora. Tinham partido desses
outros que estavam desterrados no passado, que fôramos nós, e chegado
a estes que estavam desterrados aqui, e que também éramos nós.

Todos os dias eu ia à Baixa procurar novidades. No Rossio, nas


paredes, afixavam-se anúncios de pessoas que queriam localizar amigos
e parentes. Apareceu aí o jornal O Retornado, onde se relatavam
experiências e se denunciava a incúria das autoridades.

Em plena rua, debatia-se uma questão terminológica. A palavra


retornado, que começava a generalizar-se com conotações negativas,
não era aceite: «Retornado como, se não nasci aqui? Como posso
retornar a um sítio onde nunca estive? Eu sou um refugiado.» Falar em
colonização e colonizadores provocava reacções violentas: «Eu não
colonizei ninguém. Desfiz-me dos bens que tinha na Metrópole para
investir nas terras ultramarinas, que eram províncias da pátria-mãe.» O
que gerava mais consenso era dizer desalojado, que tinha a reputação de
ser o termo técnico correcto. Outros preferiam escorraçado ou
espoliado.

Uma espécie de cumplicidade fraterna começava a unir todos os


refugiados. Apesar das condições penosas do retorno, via-se já em
esboço um discreto, e por vezes indiscreto, sentimento de superioridade
em relação aos metropolitanos.

No café Pic-Nic, fiquei a saber que alguns retornados tinham trazido o


selo branco e o papel timbrado de universidades e escolas técnicas e
passavam diplomas a quem vira os estudos interrompidos pela fuga.
Diziam que era para compensar as pessoas prejudicadas pelo governo.
Faziam-se pagar por este serviço.

Debatiam-se planos para chamar a atenção para a tragédia de quase


um milhão de pessoas. Havia um adversário poderoso: o boicote
jornalístico, o silêncio tácito das rádios, da televisão e dos jornais. Os
conselhos de redacção diziam que falar dos retornados daria forças à
reacção, que aproveitaria todas as consequências desagradáveis da
mudança do regime. Com a aproximação da independência de Angola,
de onde viera o maior número de pessoas, marcada para 11 de
Novembro, o silêncio teria de ser rigoroso para não prejudicar o brilho
desse acontecimento, um dos frutos mais queridos da revolução.
Interessava enaltecer a independência das colónias como um progresso
político e esquecer os desalojados que ela criara.

O instituto público de apoio aos retornados dava as guias de transporte


para qualquer ponto do país e encaminhava pessoas para hotéis, pensões,
colónias de férias, estâncias balneares, complexos turísticos à beira da
falência, reconvertidos em centros de acolhimento, pagos pelo Estado.
Havia histórias de subornos para os funcionários do instituto darem
ajuda a quem não precisava. Desviava-se material destinado aos
refugiados, escondiam-se facturas. Na rua, ouvi vários casos: um que
tinha guias de tratamento passadas pelo instituto mas sem dinheiro para
os transportes; um outro que tinha guias de transporte mas não tinha
guias de tratamento; um terceiro que se queixava de ter recebido apenas
três mil escudos do instituto para sustentar a família e que, tendo sempre
vivido do seu trabalho, interrogava-se se deveria mendigar ou roubar;
um quarto que dizia já ter vendido os anéis, os relógios e os
electrodomésticos que trouxera; um quinto que estava havia um mês à
espera dos caixotes onde colocara as coisas de maior valor e que já os
considerava perdidos, reclamava e ninguém lhe sabia dizer quem era
responsável; um sexto que dizia que andara a dormir no chão de uma
casa mas que entretanto alguém lhe dera um colchão; um sétimo que
estivera preso em Luanda e que, ao chegar a Lisboa, tinha militares à sua
espera que lhe disseram para não contar nada à imprensa, insinuando
represálias contra a família ou prejuízo para os que ainda estavam presos
em Angola: as autoridades portuguesas eram agora amigas do MPLA e
encobriam crimes e torturas.

Numa repartição na Rua da Junqueira, que tratava de assuntos dos


desalojados, vi o Rebocho, o chefe de posto que em Moçâmedes se
oferecera para torturar rebeldes. Lembrei-me da sua perseguição ao
submarino russo, do empenho que pusera em vigiar as praias, atraindo a
chacota dos colegas quando seguira com os binóculos uma tartaruga
gigante. Tinham passado catorze anos. Rebocho falava, muito entretido,
com outros inscritos do quadro geral de adidos. Pensei nas voltas da
fortuna: aquele agora já só podia contar com sessenta por cento do
vencimento.

Um grupo estava a ocupar havia dias o Banco de Angola. Assisti à


exibição de cartazes pendurados das janelas. Gritava-se ao megafone.
Queriam que o governo convertesse a moeda angolana em moeda da
Metrópole, para não se perderem as economias de muitos anos. No dia
anterior, os ocupantes tinham sido retirados por polícias e militares, mas
eis que tinham voltado a ocupar o edifício. O ambiente era tenso.
Esperava-se que houvesse uma carga policial violenta.

Eu estava a ouvir, no meio de uma pequena multidão, quando alguém


me deu um toque nas costas. Virei-me; era Capelo.

– Viva! – exclamei, estendendo-lhe a mão, e nesse momento percebi


que não havia outra pessoa que mais me agradasse reencontrar.

– Como vai isso, Mateus? – Capelo apertou-me a mão com a calma e a


firmeza que eu lhe conhecia. – A ver como param as modas?

– Isso mesmo.

Por uns segundos, no meio de tanta gente e apesar do barulho feito


pelos ocupantes do banco, parecia que estávamos à parte de tudo aquilo.
Dei-lhe a saber que o apartamento da minha mãe tinha sido tomado por
nove pessoas; Capelo contou-me que Mariana e ele tinham um pequeno
apartamento em Lisboa, onde costumavam passar férias quando queriam
descansar das roças de café. Era o único bem que lhes restava.

– Estamos lá nós, mais os meus três filhos e a minha sobrinha, filha da


Elisa.
– Para quem estava habituado a ter espaço… – conjecturei,
lembrando-me de que não lhe seria fácil passar de fazendeiro rico,
visitado pelo governador-geral, com capitais investidos em vários ramos
de negócios, para a condição de trabalhador assalariado.

– O espaço encolheu para toda a gente – disse Capelo. – O país voltou


às fronteiras que tinha há quinhentos anos.

Parecia-me típico de Capelo: não pensava em si próprio, assumia-se


como parte de um destino colectivo. Perguntei-lhe o que era feito do
Alexandre.

– Não sabemos – respondeu. – Mas conheço a criatura e calculo que


ainda não é o fim da linha para ele. Se não ficar por lá, a tentar alguma
jogada, talvez tente passar por herói do processo de descolonização, aqui
em Lisboa. Ainda lhe dão um bom lugar num partido, desses que
querem fazer tudo diferente do que se fazia antes para se fingirem muito
progressistas.

– A Célia não descansa enquanto não o encontrar.

Do segundo andar do banco estava pendurado um dos ocupantes, que


gritou através do megafone:

– As nossas divisas! O governo que explique porque é que não troca o


nosso dinheiro por dinheiro da Metrópole! Camaradas…

De vários pontos da multidão ouviu-se:

– Camaradas, não! Não diga camaradas!


– Amigos! – corrigiu o homem do megafone. – Companheiros! As
nossas divisas foram emitidas num território português. Para mandarmos
as nossas economias para Portugal temos de comprar o dinheiro no
fundo cambial, com grandes perdas. Agora, companheiros, amigos…
ouçam o pior de tudo. O governo comunicou-nos que não vai mandar
mais polícias contra nós. Em vez disso, diz que vai suspender a ponte
aérea que continua a trazer gente do Ultramar, se nós não sairmos daqui.
Chantagem, amigos! Chantagem!

Quando nos afastávamos dali, Capelo informou-me de que havia


pessoas que tinham forrado uma parede de casa com notas de uma ex-
colónia.

Estávamos outra vez no Rossio.

– Já conhece o Velho do Rossio? – perguntou-me Capelo.

– Não. Quem é?

– É o maior aliado dos retornados. É um velho de muletas que vende


bilhetes de lotaria. Associou-se aos nossos problemas. Chamam-lhe o
Velho do Rossio, em memória do Velho do Restelo.

– Bom – disse eu –, o Velho do Restelo avisava sobre os perigos da


cobiça que se ia refastelar longe da pátria. E o do Rossio, que diz ele?

– Ainda não sei bem. Vamos ver se está por aqui. Ele procura os
retornados, solidariza-se. Olhe, ali está ele.

Capelo apontou-me um velho equilibrado sobre as muletas, com


barbas grisalhas e um boné preto na cabeça. Falava com três ou quatro
indivíduos. Aproximámo-nos.

– Vocês foram enganados – dizia. – Empurraram-vos para as colónias,


disseram que aquilo lá é que era bom, mandaram camponeses para
colonatos que não deram em nada. Desertificaram os nossos campos,
esqueceram a nossa agricultura, não quiseram saber do País, que está a
cair de podre. Já nem falo das minhas pernas e de não ter assistência na
saúde, digo é que este país, por ter mandado tanta gente para longe,
ficou sem pernas para andar. Havia muito para fazer aqui. O que
tínhamos de ir fazer lá fora? Estava-se mesmo a ver como é que isso ia
acabar. Empurraram-vos para o desastre. Todos nós fomos enganados.
Deram cabo da nossa lavoura… Tudo para se irem meter com mouros e
pretos, índios e hindus, chineses e japoneses, lá na terra deles, em vez de
cuidarem da nossa. Avidez, ânsia de riquezas, loucura de cruzar o
mundo para conquistar, matar, saquear, escravizar. Então a nossa terra
não dá o suficiente se a trabalharmos? Um homem só precisa de uma
enxada para sachar a sua horta. Mas nós quisemos uma espada, uma
espingarda, um canhão, uma nau cheia de canhões, uma esquadra de
naus, e fomos lançar mão ao que não era nosso. Afogámo-nos no mar,
que se vingou da nossa audácia.

O velho falava e uma roda de retornados ouvia-o com gravidade. E era


como se uns pensassem: «Estou arrependido»; e pensassem outros:
«Faria tudo igual outra vez.»

Eu conservava de Lisboa uma imagem artificial, como esses aparelhos


ópticos de feira, onde, colocando uma moeda, se espreita por umas
lentes e se vê sucederem imagens curiosas. Confesso: romantizo a
cidade. A literatura familiarizou-me com ruas e atmosferas, miradouros
sobre o Tejo, passos de poetas e escritores que frequentaram um café,
que descreveram a cor e o barulho dos eléctricos, o perfil das casas, as
luzes dos candeeiros públicos, a chuva sobre as colinas. Eu vinha
redescobrir estes lugares literários onde havia uma tradição, objectos
reconhecíveis, referências intemporais: uma tipografia onde se imprimiu
um clássico, uma ponte de ferro forjado, uma estátua de bronze que já
foi muito fotografada a preto e branco e agora era-o a cores, uma praça
onde houve massacres e aclamações. Começava a esquecer África, onde
julgara que viveria para sempre. Os meus passos agora procuravam
criptas onde jazessem reis cantados por poetas, aqueles e estes com
estátuas nas ruas e bustos nas bibliotecas.

Cruzei uma esquina e recuei diante de uma manifestação de operários


metalúrgicos. Fintei os grupos tresmalhados dos manifestantes, que
procuravam reunir-se numa outra praça. Aceitando ou recusando um
panfleto político que me estendiam, eu procurava os fantasmas de poetas
e as personagens de romances, numa Lisboa que era, para mim, mais
próspera na literatura do que alguma vez o fora como capital de um
Império ou como centro de um processo revolucionário em curso.

Lisboa puxava-me e empurrava-me em várias direcções. Estava cheia


de antigos fascistas que tentavam passar despercebidos, de comunistas e
socialistas que proclamavam vitória nos comícios, de estrangeiros
apaixonados por revoluções que vinham fazer turismo político.
Mulheres do Norte da Europa vinham assistir à revolução; casavam-se
com homens que lhes pareciam muito revolucionários, para escândalo
dos pais burgueses nos seus países de origem. Portugal era um
laboratório político, com assembleias populares, ocupações de casas,
comunas agrícolas, nacionalizações, saneamentos. Nos cartazes que
cobriam paredes e muros, o povo era representado por um camponês,
um operário e um soldado, quando, antes da revolução, o povo tinha
sido uma multidão a ouvir os discursos do ditador. O povo lutava contra
a representação que os novos agentes políticos faziam dele. A coisa e a
sua representação procuravam um acordo, ou, pelo contrário, agravavam
o conflito e o equívoco. Poderia a realidade do povo ser outra coisa que
não a sua própria representação em cartazes de propaganda política?

Os políticos moderados queriam alinhar o País com as democracias


europeias liberais; os comunistas queriam integrá-lo no bloco comunista.
Saídos de uma ditadura de direita que durara quase cinquenta anos,
parecíamos caminhar para uma ditadura de esquerda. Se na primeira fora
enaltecida a Pátria, agora todos evitavam dizer essa palavra com medo
de parecerem reaccionários. Muitos dos privilegiados do regime
anterior, julgando que esta revolução era como a russa, que prendera e
matara muita gente para mudar a sociedade, fugiram para o Brasil. Não
demorariam a descobrir que entre portugueses as mudanças nunca são
radicais e a um nível profundo tudo permaneceria como dantes.

Os governos eram voláteis e sucediam-se rapidamente. Pairava o


espectro de uma guerra civil. Partidos de direita, tendo do seu lado parte
das Forças Armadas, queriam impedir uma ditadura comunista; partidos
de esquerda, que contavam com outra parte das Forças Armadas,
defendiam aquilo a que chamavam as conquistas da revolução. As
Forças Armadas, divididas, sofriam ainda ataques no seu todo, acusadas
de crimes nas guerras de África, em manifestações de apoio aos
movimentos africanos.
Os comunistas preconizavam a ditadura do proletariado; a esquerda
militar defendia o poder do povo, organizava assembleias de
trabalhadores, comissões de moradores, conselhos de aldeia, podendo
resvalar para a deriva anarco-populista; uma ala que se dizia moderada,
apoiada por socialistas e sociais-democratas, queria impedir o
totalitarismo de esquerda. Cada facção dizia incorporar o espírito
original da revolução. Surgiam patrulhas militares à entrada das cidades
para revistar os carros, à procura de reaccionários. A ameaça de guerra
civil poderia encorajar um regresso ao fascismo, proposto como a
melhor solução.

O Sul, com a cintura industrial de Lisboa fervilhante de operários


sindicalizados e os latifúndios do Alentejo em plena reforma agrária,
passava por progressista; o Norte era acusado de reaccionário por não
fazer o mesmo que o Sul; as ilhas da Madeira e dos Açores ameaçavam
com o separatismo. A luta de classes promovia a expulsão dos quadros
superiores e a ocupação dos lugares de chefia, realizava ajustes de
contas, ocupações selvagens e o controlo operário da produção. A
economia, afectada pela descolonização e pela reforma agrária,
prejudicada por uma recessão mundial, estava à beira do colapso.

Os jornais e a televisão promoviam ao estrelato alguns civis e


militares que defendiam políticas radicais populistas. A atmosfera era de
intrigas, vinganças pessoais, protestos, fanfarronadas, planos secretos,
ameaças, revoltas. As cadeias enchiam-se de presos sem culpa formada.
As tipografias faziam edições piratas de jornais cheios de ideias
revolucionárias não partilhadas pela direcção e pela redacção. Vários
órgãos de comunicação social tinham sido nacionalizados para
difundirem o ideário revolucionário, ao ponto de muita gente procurar os
noticiários estrangeiros sobre o País. Faziam-se atentados bombistas em
emissoras de rádio, redacções de jornais, sedes de partidos. Havia
jornais guardados por militares.

Insultava-se quem andasse de saltos altos, porque a nova moda


impunha roupas simples, de operário, sapatos rasos. Uma manifestação
de feministas foi atacada por um grupo de autodenominados machos
latinos.

A tropa dizia a quem não tinha casa para ocupar as casas vazias.
Famílias ciganas ocupavam andares de prédios e eram vistos burros a
espreitar das janelas. O comando militar que zelava pelo cumprimento
das políticas revolucionárias ordenou a um alferes que escoltasse, com
meia dúzia de soldados, as pessoas que iam ocupar uma casa vazia, mas
os donos da casa, tendo ido passar férias no Algarve, estavam de
regresso; o alferes entregou a casa aos legítimos donos, o que enfureceu
os seus superiores.

Uma ganadaria foi ocupada por uma comuna de trabalhadores, que


expulsou os donos, acusados de exploradores feudalistas. O caseiro
explicou que o boi de cobrição, um animal caro, precisava de uma
alimentação especial. Responderam-lhe: «Não queremos bois fascistas.
Vai comer o mesmo que os outros.» O boi recusou a ração que lhe
deram, adoeceu e morreu.

Nas festas dos santos populares, em praças transformadas em terreiros


de romarias, danças e ingestão de sardinhas assadas, intrometiam-se
discursos radicais e ameaçadores. Faziam-se assembleias de voto
popular por tudo e por nada. Apareceu uma mulher nua a passear no
Rossio. Os transeuntes murmuravam. Alguém disse que a conhecia, que
era uma louca. Formou-se uma roda à sua volta. Um polícia anunciou
que se deveria votar sobre a atitude a tomar: prender a mulher ou deixá-
la estar. A maioria votou, de braço no ar, que ela deveria ser deixada em
paz.

Intoxicados pela velha megalomania nacional, os responsáveis tinham


começado por achar a descolonização comparável à epopeia dos
Descobrimentos. Depois declararam que seria uma descolonização
exemplar. No fim, diante da tragédia e da desgraça, concluíram que
tinha sido a descolonização possível. Segundo os retornados, uma
vergonha nacional, um crime gigantesco. O regime fascista revelara-se
um astuto hipnotizador ao impor a ideia de um povo de brandos
costumes. A violência, quando não pega numa matraca e esmigalha o
crânio do adversário, adopta disfarces, incluindo o dos brandos
costumes. As constantes de mais de cinco séculos: conquista,
esclavagismo, saque, exílio, extermínio, prisão. O florescimento das
colónias coexistira com aquelas constantes, até que as forças
elementares se sobrepuseram às boas intenções: tudo rebentou como as
águas constrangidas de uma represa e devastou a terra. O País reduzira-
se a cinco por cento do território que costumava administrar; regressara
às fronteiras do século XV, com excepção das ilhas atlânticas. Os
saudosistas diziam que Portugal agonizaria porque, nação
intrinsecamente imperial, tinha nas colónias a sua razão de ser. O
passado iria desaparecer por causa do golpe militar? Ou seria recalcado?
E que formas assumiria quando retornasse? Os retornados do Ultramar
eram esse retorno do recalcado, inoportuno, indesejado.

O passado expansionista do País era visto como vil e infame. O


Infante D. Henrique e Vasco da Gama eram piratas e esclavagistas, e
Luís de Camões o seu cúmplice literário. Nas escolas, baniram-se os
clássicos, como Camões, o poeta-símbolo, para em seu lugar se
estudarem canções revolucionárias e poemas panfletários de Agostinho
Neto, líder da esquerda angolana, e de Samora Machel, líder da esquerda
moçambicana. O ex-oprimido, agora libertado, era modelo e exemplo.

O próprio mar foi considerado fascista, porque fora o meio pelo qual
Portugal levara o colonialismo e a opressão a outros povos. Desde
Xerxes, o rei persa que mandou chicotear o mar porque este ousou
afundar-lhe as naus com que contava invadir a Grécia, que o mar não era
tão vilipendiado pelas leis humanas.

Figuras da política internacional declararam Portugal perdido para o


comunismo. Um jornalista estrangeiro disse que o País se tornara um
manicómio em autogestão. A BBC exibiu uma reportagem intitulada O
Manicómio da Europa, motivando os protestos dos deputados
portugueses. A metáfora, no entanto, já começava a prosperar. Os
retornados do Ultramar contribuíam para o estado de loucura geral da
nação.

Nas ruas, relembrava-se a frase do general romano que, havia mais de


dois mil anos, escrevera ao imperador: «Há, na parte mais ocidental da
Ibéria, um povo muito estranho que não se governa nem se deixa
governar.» Havia quem citasse isto com orgulho, como se dissesse:
como nós não há ninguém e isso é reconhecido desde a Antiguidade.

Todos os meses, na Baixa, eu ia para uma fila de funcionários


públicos do quadro de adidos, à porta do Banco de Portugal, para
levantar o vencimento. A fila prolongava-se pelo passeio e dava a volta
à esquina.

Conversei com três indivíduos. Um deles tinha feito comissões de


guerra em Moçambique e ingressara na Polícia. Trazia condecorações ao
peito e mostrava fotografias onde aparecia rodeado de crianças e
habitantes negros de uma aldeia, para provar que não fizera nada de
reprovável. O segundo era desenhador topógrafo de aeroportos,
empenhado em ignorar os lisboetas que passavam e ficavam a olhar. O
terceiro tinha sido camionista de uma empresa madeireira. Fui
testemunha de um diálogo assaz edificante.

TOPÓGRAFO: Eu poderia ter ficado, mas tinha de me filiar num dos


movimentos e aguentar humilhações.

POLÍCIA: Lá, ouvi dizer: «Branco, volta para a tua terra.» Aqui ouço:
«Retornado, volta para a tua terra.» Fazem-nos sentir estrangeiros.
Vejam estas fotografias que tirei nas sanzalas. Eles adoravam-me. O
africano tem boa índole. Quem o virou contra nós foram os dirigentes
dos movimentos.

CAMIONISTA: Se eu tivesse podido trazer os milhares de contos que


ganhei com o suor do meu rosto, esfregava-os no focinho destes tipos e
já não me insultavam.

TOPÓGRAFO: Erguemos cidades e países e querem fazer de nós a


escória da nação. Os militares não quiseram ganhar a guerra. Precisavam
de fazer muitas comissões para ganhar dinheiro e construir casas em
Luanda, vivendas no Estoril, prédios nas avenidas novas de Lisboa. Os
generais e os políticos roubaram o Ultramar para o entregarem aos
patrões moscovitas. No fim já não nos protegeram, protegeram-se a eles
próprios. Onde é que eles estavam quando o tiroteio começou em
Luanda, em Malange, em Nova Lisboa, quando mulheres eram violadas,
quando casas eram saqueadas? Estavam com as armas entupidas pelos
cravos das floristas de Lisboa e com os bolsos cheios do dinheiro dos
comunistas internacionais, os seus novos patrões.

CAMIONISTA: Eu não pude trazer um único dos meus camiões.


Quem nos vai indemnizar?

TOPÓGRAFO: Aquilo não foi uma descolonização, foi um leilão de


bens pilhados. Tudo foi feito contra nós e contra o povo africano.
Entregaram-nos aos carrascos. Isso é que é ser democrata? Entregaram
os territórios a ditaduras de partido único, que é o mesmo que querem
fazer aqui.

POLÍCIA: Somos parte dos danos secundários. Para nós não houve
democracia. Não era para haver democracia, com o 25 de Abril?

TOPÓGRAFO: Eu digo-lhe o que foi o 25 de Abril. Pegaram nuns


jipes e nuns tanques a cair de podres e foram assustar as pombas no
Terreiro do Paço e no Largo do Carmo. É mais fácil assustar pombas do
que bater o inimigo escondido no capim e armado com material de
guerra fornecido por russos, chineses e americanos. É que pisar numa
mina ou cair numa emboscada ainda aleija. Chamam a isto a Revolução
dos Cravos. Como se a floricultura pudesse mudar as sociedades. Se
tivessem espetado os cravos nos olhos dos governantes, compreendia-se.
Mas não, limitaram-se a espetá-los na ponta das espingardas, porque não
queriam disparar nem mais um tiro.
CAMIONISTA: Nós é que somos os fascistas. Eles são só vítimas do
fascismo. Mas porque é que nós não nos sabemos organizar? Em vez de
estarmos aqui, na fila para o banco, devíamos estar ali ao lado, no
Rossio, a enforcar os políticos nos postes de iluminação pública.

TOPÓGRAFO: Os melhores lugares nas colónias eram ocupados por


gente mandada dos serviços e das empresas de cá. Os afilhados iam para
o topo dos serviços públicos e das empresas. Para os outros ficava o que
sobrava. Nós, que nascemos lá, éramos brancos de segunda. Os
colonialistas eram os que estavam aqui, a comprar barato toneladas de
algodão, açúcar, café, madeiras e tudo o mais que depois nos vendiam a
preços exorbitantes. Tratam-nos mal porque viemos disputar o pouco
pão que há, mas quando houve Ultramar todos comeram.

CAMIONISTA: Para nós não há solidariedade proletária? Para nós


não há socialismo? Somos os cidadãos mais explorados. Perdemos tudo
e não nos trocam as notas que trouxemos de um território que era
português.

POLÍCIA: Essa gente vai ter de ser chamada à responsabilidade.


Fomos abandonados por um punhado de compatriotas que tinha a
obrigação de nos proteger. Atraiçoaram um milhão de portugueses.

CAMIONISTA: Bom, não será um milhão… Talvez meio milhão.

POLÍCIA: Meio milhão? Só isso, ou mais, tinha Angola, sem contar


com as outras colónias. Creia-me, somos um milhão ou quase.

TOPÓGRAFO: O comunismo não vai resultar aqui. Vamos para a


Comunidade Económica Europeia. Seremos o quintal das traseiras da
Europa. Duvido que esta bicharada política consiga melhor do que isso.

CAMIONISTA: Somos os pretos da Europa. Sem a África, como é


que vamos fingir perante o mundo que não somos os cafres da Europa?

TOPÓGRAFO: Não espero nada destes políticos. Não se pode esperar


nada deles. E, como diz um primo meu, de onde menos se espera, daí é
que não vem mesmo nada.

No outro lado da estrada passaram dois homens de mãos nos bolsos.


Olharam para a fila do banco e gritaram os insultos da moda:

– Exploradores de pretos! Ladrões de bancos! Vêm aqui roubar-nos o


dinheiro e os empregos! Aqui é o Banco de Portugal, não é o vosso!
Voltem para a vossa terra!

Depois, passaram três homens. Mais gritos voaram sobre o asfalto:

– Imperialistas! Já não podem esfolar os pretos? Correram convosco


de lá e agora querem o que é nosso… Voltem para a vossa terra,
retornados! Vão enganar os pretos, que aqui não enganam ninguém!

Da fila saiu um colosso com dois metros de altura. Em duas passadas


saltou para o outro lado da estrada e agarrou um dos provocadores, que
deixou quase inanimado com um estalo dado por uma manápula de
gigante. Um dos outros estacou, paralisado pelo medo. O matulão
agarrou-o pela gola do casaco, encaixou-lhe a cabeça debaixo do braço
esquerdo e com a mão direita pregou-lhe dois socos na cara, fazendo
jorrar-lhe o sangue do nariz. Por fim, empurrou-o na direcção do
terceiro, que já corria para longe. Os três juntaram-se na fuga e
dobraram em corrida a esquina mais próxima. Ouviu-se uma voz do
outro lado da esquina deixar atrás de si três palavras, como três
cuspidelas raivosas:

– Filho da puta!

O gigante voltou para a fila, debaixo de aplausos. Ouvi-o dizer:

– As estaladas e os murros no focinho já ninguém lhos tira.

POLÍCIA: Viram isto? Esta maltinha só quer greves, manifestações e


comícios. Depois toca a encher o bandulho com cerveja e sandes de
couratos. Vamos ensinar a estes calaceiros como é que se trabalha.

CAMIONISTA: Só sei trabalhar. Não sou fascista encapotado, não


sou especialista em greves e manifestações, não sei pôr bombas em
sedes de partidos, nunca aprendi a ocupar casas nem a roubar.

TOPÓGRAFO: A nossa vitória será sobrevivermos. Não vamos ser os


perdedores desta história. Vamos sacudir a infâmia que nos querem
impingir.

CAMIONISTA: Isto é um país onde se vendem testículos nas feiras,


como eu já vi. Mas não são testículos de touro. Aquilo são os testículos
destes gajos que nos insultam. Nós vamos ser os únicos portugueses
com tomates entre as pernas.

Num pequeno percurso a pé, até à estação de metro, li vários cartazes


colados às paredes: «Liberdade para os homossexuais», «Abaixo os
chefes», «Quem tem medo do comunismo? O monopolista, o
latifundiário, o colonialista, o inimigo da liberdade, o inimigo do
progresso, os parasitas», «Governo provisório não, governo popular
sim», «Viva o controlo operário da produção», «Movimento das forças
armadas, sentinela do povo», «Não faças o jogo da reacção, vota pela
revolução», «Pela reforma agrária contra a reacção e o fascismo», «Pelo
avanço e reforço das assembleias populares em defesa das conquistas da
revolução, grande manifestação unitária».

Nos Restauradores, encontrei Inácio-Cê-de-Cedilha. Inácio contou que


estava sozinho. A mulher ficara com as filhas, as gémeas Macacas, num
lugarejo do interior.

– Eu não suportava aquilo.

– Onde é que está alojado? – perguntei.

– Numas instalações da Santa Casa da Misericórdia. Mas vou sair de


lá. Armei o caralho de uma bronca por causa de uma tipa.

– Como é que foi isso?

– Ela está lá alojada. É altíssima, tem quase dois metros de altura.


Começámos a falar e lá nos entendemos… Ela disse-me que não tinha
férias. Passados uns dias, desapareceu e tornou a aparecer. Tinha ido à
província. Ou seja, enganou-me. Tinha ideias de a convidar para
almoçarmos num sítio muito bom que eu descobri, um sítio de categoria,
mas disse-lhe: «Ouve lá, ó sua girafa, disseste que não tinhas férias e
afinal foste-te embora sem dizer nada.» Foi para a terra dela, sei lá eu
com quem é que ela esteve, às tantas andou embrulhada com algum
cabrão e já vinha embuchada e depois dizia que o filho era meu. E eu
não estou para criar filhos de cabrões machos lá de longe. Até já tinha
pensado em pedir-lhe uma fotografia e ir a uma loja mandar pôr a
fotografia dela e a minha num relógio. Um sítio onde fazem aquilo com
muita categoria. Disse-lhe: «Quer queiras, quer não, levo-te comigo para
onde eu for.» Pôs-se aos gritos, não me quis dar a fotografia. Apeteceu-
me dar-lhe uma mocada nos cornos, mas aquilo está cheio de padres e
freiras, ainda chamavam a bófia e eu ia de cana. Como ela é muito
religiosa, aproximei-me do crucifixo que estava na parede e disse-lhe:
«Rogo-te uma praga, que este que aqui está na cruz não te dará o filho
que queres, hás-de querer um filho e não o vais ter, ele apodrece dentro
de ti, a minha vontade era dar-te um sopapo no focinho que o melhor era
levares um pão debaixo do braço.» No meio da gritaria que fizemos, ela
perguntou: «Para que é que é o pão?» E eu: «É para não morreres de
fome pelo caminho, do tempo todo que vais andar no ar, sua passa-
fome.»

– Mas era mesmo capaz de bater numa mulher?

– Um homem quando perde a cabeça leva tudo à frente e mais o


caralho. Mas contive-me e deixei-a em paz. Fica para aí, ó vaca, que não
me vais encornar a vida…

Inácio travou-me pelo braço e perguntou:

– Quer vir comigo ao cais? Esta tarde vou lá buscar um carro, a única
coisa que consegui despachar de Angola.

– Sim, porque não? Vamos lá.


– Comprei-o em Luanda no princípio deste ano. Vi-me grego para
salvar o carro, que me custou muitos anos de economias. É um carrão.
Duvido que haja um igual em Lisboa. Não tenho dinheiro para a
gasolina. Vou vendê-lo. Quem o quiser tem de me dar o que paguei por
ele: oitocentos contos. Vai servir para o meu recomeço de vida. Senão,
vou viver do quê? Dos poucos carapaus que sobrevivem na poluição do
Tejo?

Apanhámos um táxi para o cais.

O cais estava atravancado de caixotes, caixotões, baús, grades,


sobrepostos até alturas incríveis, mesmo à vista do Padrão dos
Descobrimentos, onde um petrificado Infante Dom Henrique,
notabilíssimo fantasma, lidera os navegadores do século XV. Era uma
parte do que se espalhava por todos os cais, nos vinte quilómetros de
faixa portuária. Objectos bem ou mal acondicionados estavam
empilhados, vindos de cinco países africanos, desde plantas de plástico
até peças em marfim, desde álbuns de fotografias de família até
bibliotecas inteiras, desde óculos com hastes partidas até carros por
estrear.

Muitos caixotes, grandes como camiões ou pequenos como malas de


mão, tinham os nomes dos proprietários ou das cidades de destino
escritos em letras toscas. Outros exibiam, em algarismos gigantes, os
números das respectivas guias. Mais do que um, com uma seta a indicar
a parte de cima, estava virado ao contrário. Ao ver grades e embalagens
rudimentares, atadas por cordas e fios, lembrei-me das madeiras nobres
com que mandara fazer os caixotes onde eu e Beatriz guardámos as
coisas e que ficaram fechados e intactos.
– Estes gajos da estiva são todos comunistas – disse Inácio. –
Descarregam as bagagens de qualquer maneira, de propósito. Os
manobradores dos guindastes largam coisas para se espatifarem no chão,
porque dizem que são fruto da exploração dos negros. Se fazem o
mesmo ao meu carro, eu parto os cornos aos gajos.

Inácio entrou no posto da alfândega para tratar da guia de


desembaraço do carro. Um dos funcionários conduziu-nos ao lugar do
cais onde este estava estacionado. Era um Chrysler luxuoso. Brilhava
num tom azul metálico, novinho em folha. Inácio apontou, num gesto
teatral:

– Eis tudo o que consegui trazer.

Observou a minha reacção. Não sendo apreciador de carros, tentei


mostrar a admiração que ele esperava de mim. Inácio descrevia-me os
pormenores do carro quando duas vozes ecoaram no meio das
montanhas de caixotes. Era um repórter, com um microfone na mão,
seguido por um colega que o filmava com uma câmara da televisão.
Pareciam estar à procura do melhor ângulo que apanhasse o amontoado
de caixotes e o Padrão dos Descobrimentos ao fundo.

Os dois repórteres pararam a alguns metros. O do microfone olhou


para a estátua do Infante e acenou para o que filmava.

– Vamos experimentar daqui – disse. – Estás pronto?

– Podes começar – disse o segundo.

A voz do repórter chegava-nos clara e audível:


– Aqui, as bagagens trazidas do Ultramar cercam o Infante Dom
Henrique, que fita a linha do horizonte…

– Olhem-me este caralho – disse Inácio.

– Para aqui – dizia o repórter – veio tudo ter. Daqui partiram


descobridores e conquistadores e aqui veio tudo refluir, como as ondas
do rio vão e vêm aos pés da estátua do Infante. Os mares navegados
pelos portugueses recuaram como uma maré vazante e puseram à vista
os destroços dos naufrágios. O ciclo está completo e fechado. Aqui foi o
princípio, aqui é o fim do primeiro e mais duradouro Império moderno
da História…

– Já viu uma coisa destas? – perguntou-me Inácio. Levantou a voz,


deu dois passos e atirou na direcção dos repórteres: – Ó amigo, que se
lixe o Império e o Infante. Falem de nós. Falem das pessoas.

O repórter esforçou-se por ignorá-lo. Inácio não desistiu:

– Sejam homenzinhos. Falem mas é de nós.

O repórter baixou o microfone e virou-se para ele:

– Desculpe, estou a incomodá-lo?

Inácio olhou à sua volta, como se tivesse dúvidas sobre se o outro lhe
dirigira a pergunta, e respondeu:

– Está a incomodar-me, sim. Em vez de virem para aqui filmar


estátuas e caixotes, filmem pessoas, de carne e osso, como eu e este meu
amigo aqui. Falem com as pessoas que vieram do Ultramar.
– O senhor está a boicotar o meu trabalho – disse o repórter.

– Vocês sabem lá o que é trabalho. De boicotes e greves percebem


vocês, de trabalho não percebem nada. Filmem a verdade, não essas
histórias da Carochinha. Já lhe disse: vão falar com as pessoas. Não
ignorem as pessoas. Tenham vergonha.

– Eu estou a falar das pessoas. Disponha-se a ouvir em vez de berrar.

– Estão para aí a enaltecer o Império e o Infante, e mais o Império e


mais o caralho… É para quê? É para não terem de falar das pessoas
reais? Daqueles que deixaram lá tudo e vieram só com a roupa que
traziam no corpo?

– Ouça lá – disse o repórter, num tom de voz diferente. – Aquele carro


que está ali é seu, não é? Então trouxe mais do que a roupa que trazia
vestida.

– Olhe-me este finório… – disse Inácio, baixinho. – Comunista de


certeza. – E aproximando-se do repórter: – O que é que você tem a ver
com o que eu trouxe?

– E o que é que você tem a ver com o meu trabalho?

– Veja se entende… Falem dos desalojados do Ultramar. Ainda por


cima o gajo gostava de homens – acrescentou Inácio, virando costas ao
repórter.

– Agora está a chamar-me nomes? Está a chamar-me o quê?

– Não é você, homem. É o Infante.


– A sua sorte é não estar aqui a Polícia.

Inácio tornou a encará-lo, furioso:

– Isso, chame a Polícia! Julga que me mete medo? Não sabe resolver
os seus assuntos sozinho? Precisa de chamar quem o proteja?

Aproximava-se mais, com gestos ameaçadores:

– Esqueçam as estátuas de uma vez por todas! Sim, é contigo que eu


estou a falar, tu, Vasco da Gama da merda! Pedro Álvares Cabral, a puta
que te pariu! Afonso de Albuquerque, o caralho que te foda! Infante
Dom Henrique, o Navegador da cona da tua mãe!

Enquanto eu segurava Inácio por um braço, os repórteres foram


postar-se mais longe.

– Esta gente não tem um caralho de vergonha – afirmou Inácio,


tentando sacudir os restos da afronta que sentia. – Querem filmar
monumentos.

– A reportagem se calhar nem vai passar na televisão – disse eu. – As


redacções estão controladas por comunistas que não querem saber de
nós.

– Olhe, o carro tem alguma gasolina. Quer boleia para a Baixa?

Célia, quase a fazer vinte anos, passava os dias deitada. Só se


levantava para comer e ir à casa de banho. De vez em quando,
arrancava-se à própria letargia e ia à Baixa para encontrar alguém que
lhe desse notícias de Alexandre. Não sabia se ele teria vindo na ponte
aérea. Eu e Beatriz dissemos-lhe para não tentar encontrar uma pessoa
que transformara a prisão por tráfico de armas em perseguição política e
em luta antifascista, que passara por todos os movimentos de
independência e de todos fora expulso, que usara os privilégios políticos
para vinganças pessoais.

Célia estava arrependida de ter vindo. Achava que deveria ter ficado
para partilhar o destino da sua terra, lutar pelo direito de ficar lá, com
todos os riscos que isso implicasse. Beatriz falava-lhe no perigo de
morte que seria ter ficado, Célia respondia que teria valido a pena
morrer por aquela terra porque tinha valido a pena viver nela. Desde o
primeiro dia que aqui chegou, falava em embarcar de novo para Angola.
Disse-nos que nunca mais iria ser a mesma pessoa. A energia, a
iniciativa, a liderança, tinham desaparecido. África é que lhe tinha dado
confiança em si própria e inspirado todas as suas qualidades. África
chamava-a para grandes coisas. Sentia que estava a tornar-se uma
sombra do que fora. Algo fora cortado. O que estava agora a viver, o que
ia viver dali em diante, era este arrastar-se, esta expectativa constante de
algo que não se realizaria nunca. Ia reagir aos encontrões, aos choques,
mas perdera a capacidade de decidir e escolher. O resto da sua vida
continuaria o movimento iniciado pela expulsão de África. O grande
encontrão fora esse, e só lhe restava deixar-se levar para onde esse
encontrão a empurrasse, sem nada fazer para o deter porque a única
coisa que teria valido a pena era ter prosseguido a trajectória que fora
interrompida.

Na rua da Junqueira, Célia encontrou alguém da Gabela a quem


perguntou por Alexandre. Disse que não sabia se ele estava vivo ou
morto. Um indivíduo, que ouviu a conversa, interrompeu-os para dizer:

– Esse senhor de quem está a falar não é aquele que vai ali?

Célia olhou para onde ele estava a apontar e viu Alexandre a


atravessar a rua. Foi a correr na sua direcção, gritando:

– Alexandre!

Ele virou-se. À distância, já o via a sorrir, com aquele seu sorriso


calmo e descontraído a que as mulheres não resistiam. Quando Célia,
que não parara de correr, estava já muito próxima, ele fez um ar muito
espantado e ela percebeu que não era Alexandre.

Os jornais e algumas pessoas recém-chegadas ao nosso convívio


deram-nos conta de que o barulho dos canhões, em Luanda, foi
constante nas vésperas da independência. Os combates entre o MPLA e
a FNLA faziam-se a poucos quilómetros da cidade. Parecia impossível a
independência no dia 11 de Novembro. As forças portuguesas
embarcariam antes da meia-noite. A FNLA, com artilharia pesada e uma
infantaria de milhares de soldados, só esperava por isso para iniciar a
invasão. A cidade seria arrasada, haveria um banho de sangue nos
musseques. Esperava-se a segunda Batalha de Luanda.

Ainda havia trinta mil portugueses na cidade. A ponte aérea já tinha


sido encerrada. Alguns, para quem a vitória do MPLA era insuportável,
esperavam que a FNLA conquistasse Luanda. Tudo se iria decidir no
corredor Quifangondo-Caxito.

A FNLA fazia cair folhetos do céu, nos quais, debaixo do retrato do


líder, se lia: «Deus no céu e Holden Roberto na terra.»

A neutralidade das autoridades portuguesas enfurecia cada um dos três


movimentos de independência, que acusava Portugal de favorecer os
outros dois. O último alto-comissário exercia os poderes soberanos e
estava impaciente por sair. Não conseguira negociar a paz entre os
rivais. Caças a jacto informavam-no sobre a evolução das tropas no
terreno, em torno de Luanda e até às fronteiras. Havia três zonas
político-militares, com as respectivas capitais: Luanda era do MPLA,
Uíge, ex-Carmona, era a sede da FNLA, Huambo, ex-Nova Lisboa, era
da UNITA. Impossível preparar os movimentos de independência para
eleições livres: eram disputados pelas maiores potências mundiais, em
plena Guerra Fria e na corrida aos diamantes e ao petróleo. O ano não
chegara ao fim e já se estimava em cem mil os mortos desta nova guerra
angolana.

A FNLA atacou a norte da cidade, a partir do Caxito, e marchou sobre


Quifangondo para tomar o controlo da estação de captação de águas do
rio Bengo. Uma conduta subterrânea, gigante, foi atingida, o que privou
Luanda de água durante alguns dias. Num clima de medo, julgando-se
que a FNLA estava já às portas, formaram-se longas filas junto de
torneiras de jardins que tinham água nos tubos de alimentação. Houve
cortes na luz. O MPLA reconquistou o Caxito e repeliu a FNLA mais
para o Norte.

Nas ruas de Luanda havia muitos carros danificados. Quase todas as


lojas estavam fechadas e entaipadas. Escasseavam os géneros
alimentícios. Poucos restaurantes funcionavam.

A cidade estava à beira do 400.º aniversário da sua fundação, mas


poucos se lembravam disso. Todos estavam aterrorizados com a
possibilidade de haver uma carnificina ou atarefados com as inúmeras
contingências da saída precipitada. As estátuas dos conquistadores,
generais e governadores que enfeitavam as ruas foram desmontadas. O
monumento a Luís de Camões foi mandado pelos ares com dinamite,
para indignação dos últimos portugueses. O único monumento que
permanecia intocado era o dos combatentes da Primeira Guerra
Mundial: comentou-se, jocosamente, que seria adaptado à guerra de
libertação mudando-se a legenda.

Na madrugada do dia 9 de Novembro, a FNLA, com a ajuda de tropas


zairenses, iniciou um ataque de artilharia a sessenta quilómetros da
cidade. Os combates duraram até às cinco da tarde do dia seguinte, com
centenas de mortos, mas a capital não foi tomada. Um coronel português
dos comandos, que se associara à FNLA e trazia consigo uma tropa de
elite endurecida pela Guerra Colonial, não quis depender de um oficial
zairense e retirou-se do combate. Ao mesmo tempo, a UNITA, ajudada
por dois mil militares sul-africanos, atacava pelo Sul, mas não conseguiu
chegar a Luanda porque encontrou as pontes do rio Queve dinamitadas.
Uma coluna, formada por sul-africanos e mercenários portugueses,
ocupou Moçâmedes, Benguela e o porto do Lobito. Lisboa ignorou esta
violação da integridade territorial de Angola, como já tinha feito com a
entrada dos cubanos que reforçaram o MPLA.

Os últimos militares portugueses em Luanda faziam a segurança do


porto e da base naval, dos aeroportos, das altas patentes no Palácio do
Governo e na Fortaleza de São Miguel, sede do Comando-Chefe das
Forças Armadas. Os que estavam de licença iam para as praias, onde
chegavam ecos dos canhões de uma guerra que já lhes era alheia. No
Palácio do Governo, comiam rações de combate em faiança da
Companhia das Índias e retiravam água da piscina e de um reservatório
para tomarem banho, porque as condutas da cidade tinham rebentado.
Nos jardins do Palácio, fizeram-se fogueiras para queimar documentos
da governação colonial. Encheram-se caixotes com papelada
confidencial, prontos a embarcar nos navios. Havia muito que o moral
destas tropas era baixo, devido ao alheamento da Metrópole e à sensação
de não estarem ali a fazer nada. Já seguiam a luta entre os movimentos
de independência como jogos de futebol.

Mulheres aflitas vinham tentar falar com os oficiais do alto-


comissariado e do comando-chefe para que ajudassem a libertar os
maridos, os pais ou os filhos presos. Só recebiam palavras de
consolação. Havia centenas de homens raptados que nunca mais tinham
sido vistos. O que seria desses presos a partir do dia 11, numa Angola
independente e já sem militares portugueses? Seriam presentes a um
grande julgamento popular?

Começou a operação com o nome de código Cordão Umbilical. No


dia 10, ao meio-dia, o alto-comissário, de farda branca, rodeado por
oficiais do seu estado-maior, no salão nobre do Palácio do Governo,
junto a uma tapeçaria que evocava os Descobrimentos, oficializou,
diante de jornalistas, o último acto solene da aventura que estava
representada na própria tapeçaria. Proclamou a independência de Angola
com efeitos a partir da meia-noite. Entregava o poder ao povo, não a um
governo ou partido. A seguir, na fortaleza de São Miguel, a cerimónia de
encerramento de cinco séculos de presença portuguesa em Angola
resumiu-se ao arriar da bandeira nacional. Não havia representantes do
governo português nem dos movimentos emancipalistas. Nalguns pontos
da cidade os populares já festejavam.

Uma coluna militar de dezenas de jipes e camiões cheios de soldados,


sobrevoada por helicópteros e protegida por fuzileiros e pára-quedistas
em cada esquina, de metralhadora nas mãos, saiu da Fortaleza e
atravessou o centro da cidade, cujo trânsito fora cortado. Dirigiu-se para
o cais, ao som de clarins, enquanto uma fragata de guerra fazia
manobras na baía. O alto-comissário ia numa limousine preta. Levavam
todo o equipamento bélico aproveitável. Com esta exibição de força
davam a entender que saíam de Angola como queriam, que não tinham
sido derrotados pela guerrilha, tinham cumprido o que lhes competia, o
resto teria de ser com os políticos. Deixaram toneladas de material
carcomido pela ferrugem e que já só merecia a sucata: aviões de
transporte, lanchas, camiões, jipes, milhares de espingardas e de obuses.
Seguiram pela ponte que ligava à Ilha de Luanda. A ponte foi bloqueada
por um destacamento que impedia o acesso dos curiosos. Embora fosse
uma tarde de sol, a parte da cidade que cruzaram estava deserta. Viram
apenas um grupo de militares do MPLA que quisera assistir aos últimos
instantes da força militar portuguesa em Angola. Na base naval,
embarcaram em três navios, que seriam escoltados por uma fragata e
duas corvetas. Os brancos fecharam-se em casa, receosos da partida
destes homens, temendo que as festividades populares degenerassem
numa caça ao branco.

Os navios levantaram âncora no primeiro minuto do dia 11. Ao


mesmo tempo, Agostinho Neto, que, não recebendo os poderes
soberanos das mãos do alto-comissário, estava empenhado em afirmar
um direito conquistado ao fim de catorze anos de luta armada, declarou
a independência da República Popular de Angola. Horas mais tarde,
entraria como Presidente no antigo Palácio do Governo, agora Palácio
do Povo.

A frota portuguesa, na baía de Luanda, viu e ouviu as manifestações


de alegria e os festejos que irrompiam. Rajadas de balas tracejantes
partiam da terra e iluminavam o céu, simulando um fogo-de-artifício.
Olhando mais para norte, na direcção de Quifangondo, junto à foz do rio
Bengo, os que partiam contemplaram luzes de explosões de artilharia,
ali onde o autoproclamado Exército heróico da FNLA chocava contra o
autodenominado Exército glorioso do MPLA.

Epílogo

Vertigem

Capelo não entendia o que via numa Lisboa fervilhante de actividade


política, duelos de retórica, manifestações e contramanifestações. Havia
até espaço para os veteranos de guerra e os civis retornados serem
disputados por forças políticas diferentes que se fingiam interessadas
pelos problemas de uns e de outros, apenas para arregimentarem mais
alguns adeptos para os seus partidos. E ele, Capelo, que partido poderia
tomar se era ambas as coisas, veterano de guerra e residente desalojado?

Agudizava-se em Capelo um sentimento de culpa. Na guerra, cada um


trabalha para objectivos que o ultrapassam, suspende a consciência
individual em prol da consciência colectiva e faz o que, noutras
circunstâncias, não faria. Depois, retirado do ambiente de guerra,
regressa à consciência individual e assume sozinho coisas que tinham
sido colectivas. As duas comissões no Uíge pareciam ter sido noutra
vida, mas às vezes Capelo olhava-se ao espelho para saber se estava
fardado, olhava para as mãos para se certificar se seguravam a
espingarda-metralhadora. A guerra visitava-o algumas noites sob a
forma de pesadelos. Mais raramente, emergia da pele um estilhaço
minúsculo daquela granada de morteiro que lhe abrira setenta e quatro
buracos no corpo, confirmação concreta e ferrugenta dos acontecimentos
passados. Com o tempo, desenvolveu uma certa estima por estas
erupções cutâneas que, embora raras, tinham a vantagem de ser
concretas, o que o salvava de se perder numa angústia vaga, flutuante,
sem materialidade e sem objecto.

A fuga à guerra civil tinha dado mais força ao seu nervosismo. Em


Lisboa, andava num estado de alarme permanente, ruminava memórias,
pensava e repensava naquilo contra a própria vontade. Quando se
deitava, ficava imóvel, com os olhos abertos, fixos no tecto, rebobinava
o filme da guerra num mecanismo cinemático insone e estafante. E via-
se com o seu pelotão, metidos na água, perdidos um dia e uma noite
inteira, andando a vau por um rio que corria entre cabeços enormes,
íngremes. Se o inimigo estivesse lá em cima, poderia abatê-los como
patos. Tinham os pés engelhados da água. Não podiam falar pelo rádio
porque os cabeços altos cortavam a comunicação. Só quando saíram do
rio e do meio dos montes é que conseguiram comunicar ao comando da
companhia, que os fora buscar. E tornou a ver aquele capitão que estava
quase a terminar a sua comissão, que já mandara para Portugal a mulher
e os filhos e que fora uma última vez para o mato e lá ficara, com um
tiro na cabeça. Nesse dia morreram quatro. Lembrava-se dos nomes, das
caras, dos tiques, da voz de cada um. E aquele morto ao pé da cozinha
de campanha… Porque é que se lembrava tantas vezes do morto ao pé
da cozinha?

Se dormisse, era pior. Tinha sonhos esquisitos, pesadelos loucos. Uma


dor a expandir-se, uma aflição grande. O fim. Um rebentamento. Sangue
por todo o lado, costuras rebentadas. Rebenta uma granada e dois
homens estão a ficar desfeitos, com sangue espichado. Sombras, figuras
estranhas que geram aflição, arrepio. Um homem comeu uma granada e
rebentou, abriu. Coisas vistas ao longe, fumo, o que está ao longe e não
se sabe o que é nem se consegue chegar, uma inquietação, uma moinha
que nos vai matando, tirando a vontade de viver. A prisão do sonho.
Abriram alguém ao meio e puseram a secar a pele, pendurada. O
rebentamento de uma mina. Uma fogueira, alguém a ser queimado. À
volta nascem bichos, comem os restos. Coisas destruídas, animais a
trepar, fumo. Goelas a abrir, um grito. Fragmentos espalhados. Bocados
de coisas. Bocados de alguém espalhados. Peles do corpo humano.
Sangue… Gritos… Rebentamentos… PAM!

Ao fim de duas semanas em Portugal, Capelo cumpriu uma obrigação


que não podia continuar a adiar: a visita à irmã mais velha, que morava
num prédio nos arredores de Lisboa, na mesma morada que fora dos pais
e onde ele passara a infância e a adolescência. Tinham perdido o
contacto um com o outro. Previa algum embaraço de parte a parte.
No autocarro, Capelo lembrou-se dela e dos pais quando embarcou
para Luanda. Acenavam-lhe do cais. A mãe e a irmã choravam a partida
do menino da família. Olhou para o seu próprio reflexo no vidro da
janela e não se reconheceu naquele que a irmã esperava ir ver daí a
minutos.

Assim que abriu a porta, ela desatou a chorar. Apertou-o com força e
molhou-o com as suas lágrimas. Capelo reparou que eram lágrimas
rápidas, que desapareceram tão depressa como apareceram, e que ela se
apressou a secar com cuidado, com um lenço, para não estragar a
espessa camada de pó-de-arroz que lhe dava um ar de fantasma.
Recebeu-o vestida num robe cor-de-rosa fluorescente.

Capelo achou-a envelhecida. «Parece-se com a mãe», pensou.


Sentaram-se junto de uma grande mesa cheia de panos bordados e
terrinas de louça. O apartamento, muito pequeno, estava atravancado de
móveis grandes, plantas e vasos, tapetes, cortinados de muitas cores, um
relógio de parede com anjos dourados soprando em trompetas, lustres
pesados que ameaçavam abater-se sobre eles a qualquer momento. O
espaço fora atafulhado, num caso grave de horror ao vazio.

A sala tinha o aspecto de um bazar, tão variada era a colecção de


miniaturas. Nenhuma destas conseguia atrair a atenção de Capelo,
atordoado com aquela carambola visual.

Pensando que o irmão lhe vinha pedir dinheiro, mal se sentaram ela
começou a desfiar o rol dos seus queixumes: as doenças, as despesas
com a saúde, a pensão de viuvez que não dava para nada, o que faria se
não fosse a compreensão do farmacêutico, do merceeiro, do carteiro.
Falou de requerimentos e pedidos de ajuda ao Estado, depois lhe
mostraria os papéis todos, guardados numa pasta. Passou para a
descrição pormenorizada das enfermidades, das dores, das dificuldades
em andar, da visão que se lhe turvava em certos momentos, do vazio
dentro da cabeça, dos quase desmaios no meio da rua que alarmavam os
vizinhos e os transeuntes.

Enquanto a ouvia, calado, Capelo pensava que, para quem se queixava


tanto de doenças e despesas de saúde, a irmã vestia um robe de uma cor
demasiado berrante, um cor-de-rosa que incomodava a vista, o cabelo
pintado de louro, o rosto com uma camada de pó-de-arroz demasiado
espessa, os olhos muito pintados que acentuavam o seu aspecto teatral.
Só falou de si própria. Não fez nenhuma pergunta sobre ele e o seu
estado actual.

Ela referiu a Virgem Maria e mostrou um candeeiro que representava


uma santinha que chorava. A lâmpada, dentro de uma armação
encimada por uma estatueta da santa, aquecia um fluido que circulava na
armação e que se dirigia para os olhos da estatueta, simulando lágrimas
que lhe corriam pelas faces rosadas.

– É preciso esperar uns minutos até isto aquecer – disse.

A irmã contou as patifarias que alguns vizinhos faziam. Porque se uns


eram muito bons para ela, outros eram uma gente que devia arder no
Inferno. A raiva que os vizinhos lhe despertavam revigorava-a. Falando
deles, a sua voz não fraquejava nem era lamentosa. Exaltava-se,
possuída por uma energia que substituía a ladainha queixosa. Capelo
pensou: «Há uma relação directa entre a santinha que chora e desejar
que os inimigos ardam no Inferno.» Os olhos da irmã, de um azul
intenso, vivos e astuciosos, continuavam separados dos seus lamentos.
Fingindo ouvir a irmã, e arrastando a visita por mais alguns minutos
por dever de cortesia, Capelo reconheceu duas peças de cerâmica
pintadas em tons de verde, castanho, amarelo e preto. Eram duas
garrafas com forma humana: uma tinha na base a inscrição
«Gungunhana antes» e representava o último imperador de Gaza, no sul
de Moçambique, com ar risonho, empunhando na mão direita um bastão
e na esquerda uma garrafa; a outra era «Gungunhana depois» e
mostrava-o curvado, com as mãos acorrentadas atrás das costas. As duas
garrafas tinham pertencido aos pais. Capelo, em criança, habituara-se a
vê-las em casa. Vivera em África sem nunca se lembrar delas. E era
agora, em casa da irmã, sem estar preparado, que aquilo retornava, que a
visão das duas garrafas, tão quietas sobre a prateleira, o atingia como
uma pedrada na cara. Não era suficiente derrotar o imperador, no final
do século XIX, não era suficiente submeter a ferro e fogo povos inteiros,
nas décadas seguintes; era também necessário oferecer a cada família
um troféu de guerra sarcástico. Toda a gente podia ter em sua casa um
Gungunhana de louça, ou até mesmo dois: um alegre e triunfante, o
outro triste e humilhado. Abria-se a garrafa desatarraxando a cabeça do
boneco; qualquer um podia decapitar o grande chefe africano para verter
vinho nas mesas portuguesas.

Capelo reviu as famílias chacinadas em fazendas e povoações


isoladas, as casas destruídas. Populações nativas a fugirem de aldeias
incendiadas. Populações saindo em coluna com escolta, ao mesmo
tempo que podiam ver que das suas casas já estavam a sair saqueadores
com volumes às costas. As casas de uns e de outros devassadas desde
que o mundo era mundo. O ódio, a vingança, a perseguição, estavam
arrumados dentro das casas como os bibelôs nas prateleiras. Estavam
dissimulados nas garrafas com a forma do imperador africano. Velavam
o sono dos habitantes, como a santinha que chorava. Guardavam-se
como os recibos da farmácia numa gaveta. Tudo estava ali, na casa da
irmã, a mesma que fora dos pais de ambos, o lugar da sua infância e
adolescência, e só agora, depois de tantos perigos passados, é que ele via
com clareza.

Passaram-lhe pela cabeça cenas da vala comum onde eram enterrados


os rebeldes, em Quicangulo, de onde saía um braço mordiscado e
puxado pelos cães; Serafim, o caçador, liderando uma milícia que não
deixava prisioneiros vivos; cabeças humanas espetadas na viatura que
abria a coluna, entre picadas afogadas no capim; Fraga, aquele rapaz que
animava o pelotão apesar de não saber se a mulher e os filhos estavam
vivos, a receber um tiro em cheio no momento em que apontava para a
casa onde morava. E aqui estava a causa de tudo isso. Aqui, atrás dos
olhos azuis da irmã, ora lamentosos, ora despedindo cólera quando
falava das coisas que a indignavam.

Sentado diante da irmã, mas já não a ouvindo, Capelo percebeu os


ciclos repetitivos do poço do tempo e teve uma vertigem.

Naufrágio

Numa manhã cinzenta da última semana de Novembro, Mateus


aventurou-se a ir para a Baixa sem guarda-chuva.

O céu enevoado sobre Lisboa oprimia menos do que o clima de guerra


civil iminente. A esquerda radical e os moderados contavam as
espingardas. No dia 12, uma manifestação de operários sequestrara os
membros do governo e os deputados da Assembleia Constituinte. O
cerco durara toda a noite e o dia seguinte, até o Primeiro-Ministro
atender as reivindicações dos sindicatos. Na semana seguinte, numa
medida inovadora a nível mundial, o governo declarara-se em greve por
considerar que não havia condições para governar. Uma grande
concentração popular exigira a instauração de um governo
revolucionário.

Os moderados diziam pressentir a preparação de um golpe de Estado


por parte da esquerda radical. Ataques contra sedes do Partido
Comunista e de organizações políticas, no Norte e no Centro, reforçaram
os rumores de que ia rebentar a guerra. Uma noite, um grupo de
comandos entrou na sede da Polícia militar, tida como revolucionária, e
apreendeu material de guerra desembarcado do Niassa e proveniente de
Angola. Por toda a parte soavam alarmes de roubo de armas, montavam-
se operações militares que assustavam e não apanhavam nenhuma arma.
A guerra civil parecia a solução ou, então, a ameaça que refreava os
ânimos.

Antes de chegar a sítios onde encontraria outros retornados, Mateus


olhou para uma tabuleta: o nome era o de um poeta da sua predilecção e
sentiu-se numa espécie de lar, sensação que nenhum panfleto da
extrema-esquerda, da extrema-direita ou dos moderados lhe poderia
proporcionar.

Encontrou o topógrafo com quem falara na fila para o banco.

– Venha daí! – disse o outro. – Há uma manifestação no Rossio. Já


queimaram uma bandeira do MPLA e vão levar um caixão com terra de
Angola para o Palácio de Belém, para oferecerem ao Presidente da
República.
Pelo caminho, o topógrafo disse:

– E isto não vai ficar por aqui. Queremos dar uma tareia aos
comunistas.

O Rossio estava cheio de gente. Mateus furou a multidão. «Onde está


o caixão?», pensou. Uma discussão propagou-se e dividiu os
manifestantes em duas facções, o que ameaçava abortar a acção. Uns
eram contra a independência proclamada pelo MPLA; outros diziam que
deveriam estar em bons termos com o MPLA, para voltarem para
Angola, retomarem os seus empregos e reaverem os seus bens e
propriedades antes que fossem nacionalizados.

Um indivíduo mostrou uma edição do Sunday Times, onde se via uma


caricatura sobre o arriar da bandeira portuguesa em Angola: a bandeira
descia do mastro, puxada por três braços, a Rússia, a China e os Estados
Unidos, ao mesmo tempo que a corda içava um negro enforcado e
amputado.

No extremo norte da praça juntou-se um outro grupo. Eram ex-


combatentes das guerras de África, que se diziam esquecidos num país
em convulsão que glorificava os desertores e considerava criminosos os
milhares de mortos e mutilados da guerra. De um lado e do outro da
praça voavam insultos e palavras de ordem. Crescia a hostilidade entre
os dois ajuntamentos. Isto reforçou a unidade dos retornados, fragilizada
pouco antes pela diferença de atitudes a tomar em relação à nova
Angola.

Não se sabia quem tinha começado: se os retornados que, vendo os ex-


combatentes, gritavam que estes deviam ter acabado com os
guerrilheiros quando os combateram no mato, e que, depois da
revolução, não protegeram as populações dos movimentos de
independência; se os ex-combatentes, que achavam que os retornados
não deviam fazer manifestações porque tinham vivido bem no anterior
regime, explorando os negros, enquanto os militares arriscaram a vida.

Mateus ouviu dizer perto de si:

– A malta não devia provocar.

– Eles é que provocaram.

– Não devíamos responder. Há agitadores a aproveitarem-se.


Acicatam-nos e prometem soluções se nos filiarmos nos partidos deles.
Isto é um engodo.

O bruaá geral abafava tudo. O movimento lento das duas massas,


forças brutas que nada poderia deter, tornava mais próximo o confronto,
como duas feras que se miravam, deslizavam uma diante da outra,
preparando o salto.

Os lisboetas, os que nunca tinha estado em África, nem como colonos,


nem como militares, assistiam estarrecidos. Mateus viu ao longe,
diminuído pela distância, o vendedor de lotaria, o Velho do Rossio,
profeta irado e impotente, ignorado por todos, levantar as duas muletas
no ar. Parecia invectivar cada um dos lados da contenda.

Apertado por aqueles que queriam chegar-se mais à frente, Mateus


olhou para cima, imaginou que voava e avistava a praça lá do alto,
acima daqueles que estavam agarrados ao pó da terra. Mas a evasão
durou pouco, porque nesse mesmo céu viu nuvens escuras avançarem
umas sobre as outras, com fiapos que eram garras aguçadas.

O caixão que continha terra de Angola foi erguido no ar, acima das
cabeças, e só então é que Mateus o viu. Num impulso absurdo, vários
braços empurraram o caixão na direcção dos ex-combatentes, como para
lhes mostrar que tinham alguma culpa pelo morto de que se estava a
fazer o funeral simbólico. Pondo-se em bicos de pés, Mateus tornou a
ver o caixão, caravela periclitante movida por vagas e vagas de braços,
que alcançou o limite daquele mar e oscilou mais ainda, porque já não se
sabia que rumo lhe dar, e desapareceu da sua vista, náufrago.

Índice
CAPA
Ficha Técnica
Luanda e Uíge, 1961
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Moçâmedes, 1956-1961
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Uíge, 1961-1964
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Gabela, 1964-1974
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Gabela e Luanda, 1975
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Malange, 1975
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Nova Lisboa, 1975
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Lisboa, 1975
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8
Epílogo
Vertigem
Naufrágio

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