Você está na página 1de 8

Revista Baiana ARTIGO ORIGINAL

de Saúde Pública

ATENDIMENTO EM PSIQUIATRIA DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA EM SERVIÇOS


PÚBLICOS DE SALVADOR
Darci Neves Santosa
Marjorie Moreira de Carvalhob
Márcia Andrade Pinhoc
Ana Paola Robatto Nunesd

Resumo
A precariedade de informaçôes sobre a demanda infantil em serviços de saúde
mental dificulta o conhecimento do perfil epidemiológico dos transtornos mentais infanto-juvenis,
presentes na rede pública de atenção, repercutindo sobre a organização do cuidado no âmbito
do SUS. O atual panorama de reorganização da assistência pública em saúde mental, onde se
inclui a tarefa de disponibilizar um cuidado adequado à população infanto-juvenil, exige
informações que auxiliem no diagnóstico de morbidade para o planejamento de serviços em
áreas definidas de assistência. Estudos epidemiológicos brasileiros têm revelado prevalência de
desordens psiquiátricas de 10% a 13%, no grupo etário entre 5 e 14 anos. Apresentamos dados
ambulatoriais e de internação hospitalar relativos à assistência ao sofrimento mental infanto-
juvenil no âmbito da atenção pública em Salvador, Bahia. Retardo Mental foi o diagnóstico mais
freqüente no ambulatório especializado e o segundo maior motivo de internação hospitalar.
Palavras-chave: saúde mental, epidemiologia, infância, adolescência.

PSYCHIATRIC CARE IN CHILDHOOD AND ADOLESCENCE IN THE PUBLIC SECTOR OF


SALVADOR

Abstract
The scarcity of information concerning the needs of young people in mental health
services causes difficulties in establishing the epidemiological profile for mental health problems

a
Instituto de Saúde Coletiva UFBA - Rua Padre Feijó 29, 40 andar Canela Salvador Bahia, CEP 40110-170. Telefone (71) 332 5137 Fax
237 5856, e-mail darci@ufba.br
b
Aluna da Escola de Medicina e Saúde Pública - FDC Avenida Dom João VI , nº 275, Brotas, CEP 4029.000, Salvador, Bahia. Tel: (71)
356-1430 / 7471 / 1941. Fax: (71) 356-1936.
c
Hospital Especializado Mário Leal -Rua Conde de Porto Alegre no 27, IAPI. CEP 40330 200 TELFAX:71-334-1344.
d
Rua Padre Feijó, s/n, Ambulatório Magalhães Neto, 3º andar, Telefax: (71) 2474634, Canela, Salvador – Bahia, CEP 40110-170
Autor para correspondência
Darci Neves Santos bolsista da FAPESB

v.29 n.1, p.35-42 35


jan./jun. 2005
amongst this population, reflecting on the organization of care within the public health system.
The current scheme of reorganization of public care in the mental health area, which includes
the task of making available adequate provision for the young population, requires information
to help achieve a morbidity diagnosis to guide planning in certain sectors. Brazilian epidemiological
studies have shown prevalence of psychiatric disorders of between 10 and 13% in the 5 to 14 age
group. Here we present data on in-patient and outpatient cases related to young people’s mental
health problems in the public care network of Salvador, Bahia. Mental retardation was the most
frequent diagnosis in the especial outpatient unit and the second largest reason for hospitalization.
Key words: mental health, epidemiology, childhood, adolescence

INTRODUÇÃO
A precariedade de informações sobre a demanda de crianças e adolescentes, em
serviços de saúde mental, dificulta o conhecimento do perfil epidemiológico dos transtornos
mentais infanto-juvenis presentes na rede pública de atenção, repercutindo sobre a organização
do cuidado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Chama atenção, em nosso meio, a
ausência de registros sobre a demanda infanto-juvenil em saúde mental assistida em serviços
ambulatoriais, espaço de atenção importante para este grupo etário. Já foram observados, desde
os anos 70, um desconhecimento da real extensão dos problemas emocionais da população
infanto-juvenil brasileira e a insuficiência de serviços gerais e especializados aptos para assistir a
essa clientela.1 Diante do panorama atual de reorganização da assistência em saúde mental pela
viabilização do SUS e dada a importância em disponibilizar um cuidado adequado à população
infanto-juvenil, é preciso informações que auxiliem no diagnóstico de morbidade para o
planejamento de serviços assistenciais em áreas definidas.
A morbidade psiquiátrica na infância e adolescência tem sido avaliada em países em
desenvolvimento, como Etiópia, Sudão e Índia, com taxas de prevalência variando entre 3% e
11%, enquanto as taxas de retardo mental oscilam entre 8 e 12 por mil crianças do grupo etário
entre três e dez anos.2 Observações realizadas na população assistida em Serviços de Assistência
Primária revelaram um percentual de 29% de crianças entre 5 e 14 anos demandando cuidados
em saúde mental.3 Poucos são os estudos epidemiológicos brasileiros de base comunitária sobre
problemas mentais infanto-juvenis. O primeiro detectou, nos anos 70, uma prevalência de 13%
para crianças de 5 a 14 anos no bairro do Maciel, em Salvador.4 Na década de 80, realizou-se
um inquérito epidemiológico em duas fases, estudando uma amostra representativa de 828
crianças do bairro de Amaralina, com aproximadamente 60.000 habitantes. Esse estudo revelou
uma prevalência de 10% de transtornos psiquiátricos na faixa etária entre 5 e 14 anos.5

36
Revista Baiana Investigações realizadas no Sudeste do país encontraram taxas de prevalência em torno de 12 %
de Saúde Pública
para crianças de área urbana e rural, no grupo etário entre 7 e 14 anos, em Campos do Jordão.6
Considerando a escassez de informações sobre a ocorrência de transtornos mentais
infanto-juvenis no contexto brasileiro e a importância de dados que possam subsidiar a
implementação e desenvolvimento de serviços em Psiquiatria da Infância e Adolescência,
procura-se, com este trabalho, apresentar dados secundários relativos à assistência ao sofrimento
mental infanto-juvenil, em equipamentos institucionais de atenção pública no município de
Salvador, visando uma contribuição de base epidemiológica para a reflexão sobre a organização e
implementação de ações de tratamento e promoção em saúde mental de crianças e adolescentes,
no Sistema Único de Saúde.

MATERIAL E MÉTODOS
Levantamento Ambulatorial
Realizou-se um levantamento diagnóstico da demanda infanto-juvenil assistida no
Ambulatório de Saúde Mental Mário Leal, em Salvador-Bahia, em junho de 2003, examinando-se
274 prontuários médicos de indivíduos menores de 19 anos, atendidos no primeiro trimestre de
2002. Extraiu-se informação sobre: idade, sexo, diagnóstico pela CID10, profissional que realizou
o atendimento e data do diagnóstico.
Levantamento hospitalar
Foram coletados dados sobre o atendimento infanto-juvenil por serviços
hospitalares de saúde mental no município de Salvador, no ano de 2000. Esses dados foram
obtidos através do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS), a
partir das autorizações de internações hospitalares (AIH). As informações obtidas compuseram um
banco de dados do Microsoft Excel.

RESULTADOS
Do Levantamento Ambulatorial - Dos 274 prontuários examinados 68% foram de
sujeitos do sexo masculino com predomínio da faixa etária entre 15 e 19 anos. Apenas 1,4% dos
diagnósticos foram realizados em crianças menores de 5 anos (Tabela 1). Encontrou-se como
diagnóstico mais freqüente o retardo mental, com um percentual de 42% (Tabela 2). Seguiram-se
os transtornos emocionais e comportamentais, com início na infância ou adolescência, presentes
em 22,6% do conjunto de diagnósticos. O terceiro grupo de diagnósticos diz respeito aos
transtornos invasivos do desenvolvimento atingindo 9,8%, dentre os quais 12 registros (44,4%)
para autismo infantil, sendo que apenas dois indivíduos receberam o diagnóstico de autismo antes

v.29 n.1, p.35-42 37


jan./jun. 2005
dos 7 anos. Chama atenção a predominância dos transtornos invasivos em relação a transtornos
do humor e ansiedade.
TABELA 1. Característica segundo sexo e idade da amostra do Ambulatório de Saúde Mental Mário Leal, primeiro
trimestre de 2002, Salvador BA

TABELA 2. Diagnósticos registrados segundo sexo e categoria da CID 10, no primeiro trimestre de 2002, pelo Ambu-
latório Mário Leal, Salvador BA.

Do Levantamento Hospitalar -Verificou-se um total de 353 internações devido a


transtornos mentais e comportamentais, no conjunto de AIHS expedidas entre janeiro e
dezembro do ano 2000 (Tabela 3). Destas internações, 94,7% situavam-se na faixa etária entre
15 e 19 anos e 5,3% entre 10 e 14 anos. Não se observou registro de internação em menores de
9 anos. Um percentual de 70,2% das admissões teve como diagnóstico principal esquizofrenia e
transtornos esquizotípicos e delirantes. Retardo mental foi o segundo diagnóstico mais
freqüentemente encontrado, abrangendo 36 pacientes (10,2%) na faixa etária de 15 a 19 anos.

38
Revista Baiana TABELA 3. Diagnósticos de internação psiquiátrica registrados pelo DATASUS, segundo idade e categoria da CID 10,
de Saúde Pública para o município de Salvador, no ano de 2002

DISCUSSÃO
Os dados de internação hospitalar demonstram que as psicopatologias da infância e
adolescência são diagnosticadas a partir dos 10 anos de idade, predominando o diagnostico de
esquizofrenia e seus correlatos, com 70,2%. Retardo mental tem presença importante nesse
espaço de assistência, seguido de alterações de humor e transtornos pelo uso de álcool e outras
substâncias psicoativas. No nível ambulatorial o retardo mental constituiu a maior demanda por
serviço especializado, seguido dos transtornos emocionais e comportamentais e dos transtornos
invasivos do desenvolvimento. Em uma posição intermediária, ficaram os transtornos psicóticos e
neuróticos relacionados a condição de stress
O diagnostico de retardo mental ao distinguir-se, numericamente, entre os demais,
permite pensar na possibilidade de que os sujeitos assim diagnosticados pudessem também
apresentar patologias em Eixo I, as quais, eventualmente, não foram observadas. Por outro lado, a
freqüência elevada desses diagnósticos em um serviço de natureza ambulatorial remete à
indagação sobre os motivos de consulta neste nível de atenção, já que somente as alterações de
comportamento justificariam tratamento em serviço especializado de saúde mental. Embora a
alteração de conduta seja freqüente entre pacientes com retardo mental, acredita-se que seja
parte da própria dificuldade de adaptação inerente a este quadro, que se agrava por dificuldades
ambientais as quais poderiam ser controladas a partir dos processos educacional e de habilitação,
responsáveis pela integração social desses pacientes. Desta forma, fica claro a importância dos
processos de habilitação como definidores dos serviços básicos destinados ao atendimento dessa
população. 7
No que diz respeito aos 22 % de diagnósticos relativos a transtornos emocionais e
comportamentais, trata-se de um percentual esperado, já que incluem categorias que vão desde
transtornos de déficit de atenção e hiperatividade até transtornos de conduta. A literatura assinala

v.29 n.1, p.35-42 39


jan./jun. 2005
que o transtorno de conduta é o distúrbio psiquiátrico mais freqüente na infância, sendo a maior
causa de encaminhamento ao serviço de psiquiatria infantil. 8, 9 Achados de natureza populacional
identificaram percentuais em torno de 4% de transtornos mistos de conduta e emoções para
crianças entre 10 e 11 anos de idade, investigadas pelo estudo realizado na Ilha de Wight.10 Um
segundo estudo, realizado em Ontário, detectou uma prevalência de 17,2% de distúrbio da
conduta em meninos entre 12 e 16 anos e 12,8% para o sexo feminino 8. Observa-se que os
transtornos invasivos do desenvolvimento ocuparam a terceira posição na freqüência de
diagnósticos, chamando atenção sua predominância em relação a transtornos de humor e de
ansiedade. A subdivisão dos transtornos invasivos demonstrou uma maior freqüência do autismo
infantil em relação aos transtornos desintegrativos e autismo atípico, compatível com a literatura
que preconiza de 10 a 50% de casos de autismo infantil entre os portadores de transtornos
invasivos. 11
A prevalência de autismo na população tem sido estimada em 2 casos por mil
habitantes. 12
Considerando que tais diagnósticos venham a se confirmar, é importante que se
discuta a organização e alocação de recursos terapêuticos adequados ao seguimento desses
prováveis casos.
Para os transtornos de humor e ansiedade, observa-se uma diferença entre os
percentuais de diagnósticos encontrados e o que se apresenta na literatura. Taxa de prevalência
de 25% tem sido identificada para transtornos depressivos na infância e adolescência em
ambulatório de psiquiatria,13 encontrando-se neste levantamento 5,8% de diagnósticos relativos a
esta síndrome.
Para o diagnóstico de esquizofrenia, no ambulatório, encontrou-se, neste estudo,
um percentual em torno de 3%, que por sua vez é infinitamente menor do que aquele observado
nas admissões hospitalares, sugerindo fragilidade ambulatorial no atendimento da psicose ou uso
indiscriminado desta categoria diagnóstica em admissões hospitalares. No que diz respeito à
internação hospitalar, nos casos de retardo mental, cujos percentuais giram em torno de 10%,
reafirma-se a importância de investimentos em programas educacionais que favoreçam a
adaptação e integração social, tornando desnecessária a constante utilização da estrutura
hospitalar no cuidado prestado a esses jovens.
Nossos achados permitem uma caracterização inicial do perfil de atendimento
psiquiátrico da infância e adolescência no setor público de assistência, em Salvador, reforçando a
importância de estudos epidemiológicos em nosso meio, para orientar a organização do cuidado
especializado, exigido pela demanda de saúde mental da infância e adolescência.
Em que pese os limites de um estudo com dados secundários, parece valiosa a
informação aqui colocada, tendo em vista a elevada demanda infantil, a oportunidade de criação

40
Revista Baiana dos CAPES infantis, e a escassez de estudos epidemiológicos abordando o atendimento
de Saúde Pública
psicológico em instituições públicas. Observe-se que, se os diagnósticos corresponderem
corretamente à condição clínica detectada, é preciso refletir sobre a fragilidade da estrutura
pública de recursos para o adequado seguimento da criança com suspeita de transtorno invasivo
do desenvolvimento, considerando-se, ainda, que tais achados possam indicar a dificuldade de se
estabelecer um diagnóstico definitivo em faixas etárias menores. Distorções de encaminhamento
são geralmente observadas, na medida em que o abuso de substância psicoativa não se faz
presente nos diagnósticos ambulatoriais, sendo restrito ao tratamento hospitalar. Neste sentido,
observe-se, também, a freqüência elevada de retardo mental ocupando espaços de tratamento
tanto ambulatorial quanto hospitalar, quando, na verdade, poderia beneficiar-se de programas
educacionais integrados à comunidade.

AGRADECIMENTOS
Dra. Iná Maria Santos, Diretora do Hospital Especializado Mário Leal, pela
colaboração para obtenção dos dados ambulatoriais deste estudo. Estatística Eva Costa, pela
colaboração no manejo do banco DATASUS. Dr. Celso Vilas Boas pela discussão inicial sobre
autismo infantil.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Almeida-Filho N. Epidemiologia das Desordens Mentais da Infância no Brasil. 1a


ed. Salvador: Centro Editorial e Didático da Universidade Federal da Bahia; 1985

2. Nikapota AD. Child Psychiatry in Developing countries. British Journal of Psychiatry


1991; 158: 743-751

3. Giel R, Arango Mv, Climent CE et a.l Childhood Mental Disorders in Primary


Health Care: Results of observations in four developing countries. Pediatrics 1981;
68 ,677-683

4. Coutinho D. Prevalência de Doenças Mentais em uma Comunidade Marginal.


Um estudo do Maciel. [ Tese de Mestrado ] . Salvador (Ba) Universidade Federal
da Bahia; 1976.

5. Almeida-Filho N. Estudo de Prevalência de Desordens Mentais na Infância em


uma Zona Urbana de Salvador-Ba. J Bras Psiq 1982; 31 (4): 225-236

6. Fleitlich & Goodman, -2001- Jornal Folha de S. Paulo de 20 04 03 C6.1

v.29 n.1, p.35-42 41


jan./jun. 2005
7. Assumpção FB e Kuczynski E. Deficiência Mental. In: Assumpção FB, Kuczynski
E, eds Tratado de Psiquiatria da Infância e Adolescência. 1a ed. São Paulo: Ed.
Atheneu; 2003. p. 247-63

8. Bordin AI. Aspectos Gerais de Psiquiatria Infantil. In: Almeida PO, Dratcu L,
Laranjeira R, Manual de Psiquiatria, 1a ed Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan;
1996. p 250-64

9. Curatolo E. Transtornos de Conduta. In: Assumpção FB, Kuczynski E, eds Tratado


de Psiquiatria da Infância e Adolescência. 1a ed. São Paulo: Ed. Atheneu; 2003. p.
343-48.

10. Goodman R; Scott S. Epidemiology IN: Child Psychiatry 2a ed. Reino Unido
Blackwell Science Ltd 1998 pg 30-38

11. Goodman R; Scott S. Autistic Disorders IN: Child Psychiatry 2a ed. Reino Unido
Blackwell Science Ltd 1998 pg 41-49

12. Assumpção FB. Transtornos Abrangentes do Desenvolvimento. In: Assumpção


FB, Kuczynski E, Tratado de Psiquiatria da Infância e Adolescência. 1a ed. São
Paulo: Ed. Atheneu; 2003. p. 265-79.

13. Fu I L. e Robatto-Nunes A.P., Transtornos Afetivos na Adolescência. In: Assumpção


FB Kuczynski E, Adolescência Normal e Patológica. 1a ed São Paulo: Ed. Lemos;
1999. p. 75-90.

Recebido em 11/11/2004
Aceito em 10/02/2005

42

Você também pode gostar