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desesperança do futuro
Fernando Longhi
Neuromancer: desesperança do futuro
Brasília, 2017
Science-fiction offers a collection of fantasies that feed our imagination and transport
us to unknown worlds inspired by reality. This work discusses and brings up the
questions inhabited in urban dystopian representations in one of the exponents
of sci-fi literature, Neuromancer, written by William Gibson and published in 1984.
The research is based on two main axes: the first refers to the comprehension of
the historic panorama in which Neuromancer was written, as well as its genre,
author and book. The second is based on Gibson’s book as an empiric research
field, identifying and exploring the three types of city settled in the narrative: the
virtual, the terrestrial and the orbital. The final section seeks a parallel between the
understanding of today’s urban complexities and its relationship with the themes
evoked by the book. As a result, it is suggested that this cyberpunk dystopia is a
mirror of a near future, assimilating fears and yearnings of its time.
PARTE UM
Neuromancer: o cyberpunk em resposta à sociedade do futuro
08 Breve cenário histórico: o terremoto tecnológico
13 Cyberpunk, movimento literário e William Gibson
20 Neuromancer: o livro
PARTE DOIS
27 As pós-cidades de Neuromancer
33 Chiba City
40 Sprawl
46 O Arquipélago Orbital: Zion, Freeside e Villa Straylight
Considerações Finais
60 A gêmea má da utopia
61 O território do “não-lugar”
63 Cyberpunk: espelho do futuro presente
68 Referências
74 Imagens
Imagem 01
“O futuro está
aqui... olhando
para nós. Tentando
dar sentido à
ficção que nos
tornaremos”
INTRODUÇÃO
“The future is there... looking back at us. Trying to make sense of the fiction
we will have become.” William Gibson, em seu livro Pattern Recognition.
S empre me espantei como a força das mais numerosas fontes de informação
alimentam nossa imaginação. Lembro-me que, ainda criança, bastava
uma breve história contada ou um simples desenho colorido para me imergir em
um mundo paralelo governado pela criatividade. Ainda hoje, mesmo com uma
imaginação cerceada pelos processos educativos, sou transportado para universos
singulares: uns mais íntimos, agarrados à memória; outros mais contemporâneos,
ligados à espaços criados por medos e sonhos.
Não são poucas as mídias que vêm à minha cabeça e me inspiram o
pensamento sobre o futuro. Entre elas, encontram-se os clássicos da literatura
“Admirável Mundo Novo”, “1984”, “Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas?”,
os sucessos japoneses Metropolis, Akira, Ghost in the Shell, os filmes Blade Runner
e Total Recall, somado às mais diversas versões sequenciais dessas obras. Todas nos
transportam instantaneamente para mundos onde a tecnologia, a ciência e a máquina
imperam.
Encontram-se nesses títulos e trabalhos um ponto em comum: o exagero
dos males da cidade do futuro (MARTINS, 2014), projetados de forma distópica.
A arquitetura e o urbanismo presentes em todos esses casos não são apenas cenários
onde as ações se desenrolam, mas também e frequentemente, são “personagens”
importantes das tramas (BUKATMAN, 1993 apud AMARAL, 2005, p.8).
Os motivos que alimentam meu interesse pelo tema comum a esses títulos
referem-se ao desejo de entender as especulações sobre as cidades do futuro que
extrapolam a visão profissional de arquitetos, urbanistas, sociólogos e geógrafos. As
projeções feitas sobre o futuro das cidades auxiliam o entendimento de como os
homens reagem aos avanços tecnológicos, expondo seus medos e apreensões. Soma-
se a estes motivos o interesse pela literatura como um meio válido para discutir essas
projeções e sentimentos sobre as cidades hipotéticas.
Para tanto, este trabalho discute e problematiza questões sobre as
representações urbanas distópicas, tendo no caso, as imagens literárias das cidades
futuristas criadas por William Gibson no livro Neuromancer, publicado em 1984.
Neuromancer é uma aclamada obra literária que estabelece o subgênero cyberpunk.
É aceito como uma referência valiosa para o entendimento da interação entre a
imaginação narrada, pautada na memória, expondo questões e reflexões urbanísticas e
arquitetônicas que compõem paisagens da cidade do futuro (MARTINS, 2014, p.29).
2
As questões propostas para Neuromancer são muitas: correm entre
pensamentos pós-modernos1 e o transumano2, apresentam complexidades
socioculturais em uma abordagem “high tech, low life” – alta tecnologia, vida precária
–, e abrem discussões sobre o corpo físico e o corpo virtual. Além disso, do ponto de
vista da arquitetura e urbanismo, o livro fornece uma rica coleção de imagens literárias
que desenham em nossas mentes edifícios, ruas e casas desconstruídos por uma
estética cunhada num futuro deletério.
Na obra de Gibson, as aglomerações humanas perderam suas fronteiras,
cresceram infinitamente, ultrapassaram dimensões perceptíveis ao olho, invadiram
o mundo virtual e foram povoadas por sociedades multiculturais. Serão elas um
apanhado de cidades sui generis ou a palavra “cidade” não seria mais adequada para as
designar? Assim, torna-se necessário caracterizar o urbano em Neuromancer, buscando
1 De maneira geral, o pós-modernismo pode ser considerado uma manifestação com origens na metade
do século XX nos campos da filosofia, arte, arquitetura e crítica que marcaria o fim do modernismo. É um termo
que, segundo o crítico e teórico Fredric Jameson (1990), ainda permanece conflituoso, contraditório e pouco
compreendido. No entanto, o emprego deste conceito neste trabalho baseia-se no trabalho de Jameson (1990)
devido suas correlações com o gênero literário em estudo e a sua data de publicação, divulgado no mesmo
ano de Neuromancer, em 1984. Em síntese, o pós-modernismo seria uma periodização “cuja principal função
é correlacionar a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica – chamada,
frequentemente e eufemisticamente, de modernização, sociedade pós-industrial ou sociedade de consumo,
sociedade da mídia ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional” (JAMESON, 1985, p. 17). Jameson
(1990) caracteriza a literatura cyberpunk, em especial a de William Gibson, como uma expressão literal do pós-
modernismo e, se não, de um capitalismo tardio em um mundo onde corporações transnacionais configuram uma
paranoia global que assiste a rápidos fluxos de pessoas, produtos, informações e poder. Soma-se a isso o cenário
pós-moderno evocado pelo cyberpunk explorado por Martins (2014) como um mundo desgovernado, subordinado
a uma desordem dos sistemas político, econômico e moral. Um conjunto de ideias que confrontam ideologias e
temáticas a respeito da natureza humana, progresso social, moralidade, verdade e razão. O autor, em sua definição,
cita David Harvey quando alega que esse espaço caótico é oriundo de uma desconstrução desorientada que produz
rupturas em nossas maneiras de pensar a forma e o espaço. Isto é, nessa concepção, o contexto pós-moderno da
literatura cyberpunk estaria marcado pela fragmentação e efemeridade, caos e desordem “mesmo que dentro de uma
ordem aparente” (MARTINS, 2014, p. 30).
2 O transumanismo é um termo cunhado por Aldous Huxley em seu romance distópico “Admirável
Mundo Novo” (1932). Segundo De Jesus (2016), Natasha Vira-More e Max More (2013), atualmente os
principais teóricos do termo, designa a evolução do homem e de suas capacidades psicológicas e intelectivas por
meio do desenvolvimento tecnocientífico. Assim, pressupõe-se que a espécie humana possa habitar ambientes
virtuais, assim como expandir e transferir a mente para componentes digitais. Também é discutida a hipótese da
singularidade tecnológica, o desenvolvimento da tecnologia e da ciência seria alavancado pela própria inteligência
artificial (DE JESUS, 2016, p.63).
3
reconhecer seus elementos, tipos e diferenças. Pode-se ainda indagar sobre os temores
do livro de Gibson – lembrando que são gestados no presente de sua escrita e,
posteriormente, lançados de forma exponencial para o futuro - estariam eles ainda
presentes?
A metodologia adotada para a pesquisa apoia-se em dois eixos principais: o
primeiro refere-se à compreensão do cenário histórico em que Neuromancer é escrito,
assim como a conceituação de seu gênero, apresentação de seu autor e do livro; a
segunda apoia-se na obra de Gibson como campo empírico de pesquisa, identificando
e explorando os três tipos de cidades presentes em sua narrativa: a virtual, a terrestre e
a orbital.
Nessa lógica, este ensaio divide-se em dois capítulos. O primeiro apresenta um
histórico dos anos finais do século XX baseado na leitura de Eric Hobsbawn (1995)
e em artigos e entrevistas que apresentam o escritor William Gibson. Em sequência,
apresenta-se o movimento cyberpunk, buscando defini-lo segundo os debates de
Adriana Amaral publicados no livro “Visões perigosas: uma arque-genealogia do
cyberpunk” (2006).
Integram a bibliografia fontes valiosas encontradas na Universidade de Brasília
para complementar conceitos fundamentais aqui utilizados. Entre eles, a dissertação
de mestrado de Allan Mendes de Jesus (2016), cujo foco é a relação entre a aceleração
tecnológica e seu impacto social, destacando como os elementos de realidade e ficção
participam nos trabalhos de design, abordando temas importantes como design
e narrativa, distopia e cyberpunk. Já Diôgo Lemes Martins (2014), mestre pelo
Departamento de Sociologia, constrói seu argumento sobre um viés mais urbanístico,
explora como a ficção cyberpunk estabelece a cidade distópica enquanto espelho de
experiências pessoais e ambientes sociais.
O segundo capítulo dedica-se à exploração de Neuromancer como objeto
empírico e investiga as representações urbanas da obra. Procedeu-se uma leitura
criteriosa guiada pelas questões acima enunciadas, selecionando, também, excertos
textuais que classificassem e caracterizassem cada uma das cidades em estudo. Os
argumentos e respostas encontrados foram marcados em diferentes cores no livro,
possibilitando a construção definitiva do corpus do trabalho descrito e analisado logo
em seguida.
4
A parte final procura investigar Neuromancer como distopia e traçar as
inquietações na narrativa ainda presentes na atualidade. A obra “Archeologies of the
future: the desire called utopia and other science fictions” do crítico literário e teórico
Fredric Jameson (2005) vem de encontro com o fechamento deste trabalho, pois
apresenta um interessante paralelo entre o entendimento das complexidades da
atualidade e suas relações com os temas evocados pela literatura cyberpunk e a distopia.
***
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Imagem 02
Neuromancer:
o cyberpunk
em resposta à
sociedade do
futuro
PARTE UM
Breve cenário histórico: o terremoto tecnológico
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também o comportamento de uma juventude mais autoconsciente e liberal, dando
voz às minorias contestadoras do status quo.
Pouco antes do início da década, em 1957, foi lançada a nave russa Sputnik
I, e, logo depois, levando a bordo a cadela Laika, o Sputnik II. Os Estados Unidos
estavam em desvantagem na corrida espacial comparados aos russos, Iuri Gagárin
havia sido mandado para o espaço sideral em 1961. Porém, a supremacia russa não
durou por muito tempo, sendo superada em 1969, quando Neil Armstrong proferiu
sua famosa frase: “Um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a
humanidade”, ao pisar em solo Lunar. A ambiciosa corrida espacial era assistida por
grande parte da população planetária fascinada.
A quilômetros de altura, os satélites circulavam na órbita da Terra,
instrumentos tanto para espionagem militar, quanto para a disseminação de mídias
televisivas, para esses objetos, o ano de 1962 é um marco, pois nessa data um satélite
passou a transmitir “a programação da TV ao vivo de um lado do Atlântico para
outro” (HOBSBAWN, 1995, p.226). Na mesma época em que a televisão passou a
ser apreciada nos grandes centros urbanos, o rádio portátil, vindo do Japão, ganhou
as ruas, difundindo a cultura pop. A presença de mercadorias nipônicas no ocidente
denunciava o crescimento econômico desse país, que chegava à incrível marca de
12% ao ano (HOBSBAWN, 1995). Não apenas obtendo êxito no ramo de produtos
eletrônicos, a indústria automobilística japonesa também estava cada vez mais
presente, em especial pela diminuição do tamanho de motores e aumento da eficiência
de seus veículos.
A economia mundial a partir da década de 1960 adotava um viés
transnacional, isto é, um sistema de atividades econômicas que ultrapassam os
territórios e fronteiras de Estados. A globalização da economia, da produção e do
consumo dava seus passos firmes nas décadas 1970 e 1980. Para Hobsbawn (1995),
a consequência mais aparente da globalização das atividades econômicas deu-se na
divisão internacional do trabalho, a industrialização passou a substituir com maior
intensidade o trabalho humano, e posteriormente, os parques industriais de países
hegemônicos transferiram-se para os países em desenvolvimento. Esta situação
acarretou consequências dramáticas: de um lado, nos países hegemônicos, surgiu uma
situação de desemprego estrutural, e, nos países em desenvolvimento, desequilíbrios
9
ecológicos e precariedade da oferta de empregos, incluindo-se a mão de obra de
crianças.
No âmbito das ciências médicas, o reconhecimento do DNA por Watson
e Crick (1953) tornou-se ponto de discussões presentes em revistas especializadas
na década de 1960, anos depois da descoberta e da clonagem do sapo de Briggs.
Cirurgias inovadoras como a utilização de marca-passos e o transplante de órgãos
passaram a fazer parte da rotina dos hospitais, assim como o advento de drogas
importantes como anticoncepcionais. Com a criação da primeira bactéria transgênica
em 1973, a transgenia conquistava espaço, com plantas e outros organismos
multicelulares produzidos para fins comerciais.
Quando se aproxima da vida cotidiana, vê-se uma mudança de hábitos
oriunda da inserção de mercadorias inovadoras. Produtos existentes foram melhorados
e outros criados, as fibras óticas, por exemplo, as infinitas variações de plásticos e
colas: “[...] as sandálias de plástico substituíram os pés descalços” (HOBSBAWN,
1995, p.261). Televisão, discos de vinil, fitas cassete, compact discs, rádios portáteis,
relógios digitais, calculadoras de bolso, eletrodomésticos e equipamentos de foto
e vídeo tornaram-se presentes no dia-a-dia, assim como o desenvolvimento de sua
miniaturização e portabilidade. Hobsbawn (1995) afirma que a inovação seria o
elemento principal para a comercialização desses produtos, “desde os detergentes
sintéticos até os computadores laptop” (HOBSBAWN, 1995, p.260). Esta “espantosa
rapidez da mudança tecnológica” (HOBSBAWN, 1995, p.320) conferiu à juventude
uma vantagem considerável sobre gerações anteriores conservadoras e inadaptadas às
novidades tecnológicas.
A revolução cultural foi moldada principalmente pela luta a favor dos direitos
dos negros, exaltação da juventude, nascimento do movimento verde, nova onda
feminista, boêmia rebelde e pelas drogas. Entre as décadas de 1960 e 1970, a clássica
estrutura nuclear da família ocidental estava em retração; houve uma diminuição
considerável no casamento formal e no desejo de ter filhos entre as mulheres;
sucedeu-se uma gradativa liberalização tanto para os heterossexuais, em especial para
as mulheres, quanto para a comunidade homossexual (HOBSBAWN, 1995).
A literatura agitada da geração beat, em meados de 1950, prenunciava a
10
crise no rígido moralismo da sociedade da época, assim como o rock de garagem e o
surgimento do herói “cuja vida e juventude acabavam juntas” (HOBSBAWN, 1995,
p.318), muitas vezes, idealizado como o foi James Dean. A partir da metade da década
de 1960, a juventude deu um tom ácido às suas críticas. Protestos contra a aparente
rigidez de novos governos, a liberdade social e sexual, a entrada acentuada no universo
das drogas e a popularização de grandes ícones musicais da rebeldia, como os Beatles,
os Rolling Stones e Bob Dylan, alimentaram essa nova expressão da juventude.
A cultura juvenil tornou-se objeto das economias de mercado, em especial
àquela relacionada ao desenvolvimento tecnológico. Os IBMs e os Hitachis eram
projetados por pessoas que não ultrapassavam a casa dos vinte anos e a discrepância
entre gerações tornava-se cada vez maior. Outro importante aspecto dessa juventude
foi seu internacionalismo. Tornou-se possível pensar uma cultura jovem global,
alimentada também por modismos cada vez mais populares, como blue jeans e a
expansão do rock.
Esta revolução significou o triunfo do indivíduo sobre a sociedade. Isto
é, a rejeição de uma camada da sociedade à ordenação histórica e às convenções e
proibições que limitavam a autonomia do desejo humano. Essa nova atmosfera,
“informal e antinômica” (HOBSBAWN, 1995, p.323.), era fortalecida por novas
maneiras de entretenimento e consumo. A juventude contestava o conflito armado
entre nações, questionando decisões políticas e opiniões públicas que as apoiavam.
A exemplo da Guerra do Vietnã, a defesa das liberdades dos vietnamitas soava
extremamente contraditória enquanto negros norte-americanos ainda sofriam
ostensiva opressão nos Estados Unidos (HOBSBAWN, 1995).
***
12
Cyberpunk, movimento literário e William Gibson
13
Pode-se dizer que o tema central do cyberpunk é o conflito dos seres humanos
e a tecnologia por meio de sua simbiose. Para os cyberpunks, o corpo é o último local
de resistência aos avanços da tecnologia. O corpo é uma imagem retórica, é supérfluo,
é objeto, é apenas carne. A discussão central gira em torno de uma cultura em
transformação, com uma atitude contestadora e de formação social, uma alegoria da
década de 1980. (AMARAL, 2006).
Na literatura, hackers e amantes da tecnologia se deram conta de estar diante
de seu mais claro manifesto. Marianne Trench, em seu documentário Cyberpunk
(1990), deixa claro que este subgênero da ficção científica havia, de certa maneira,
superado seus antecessores:
4 Never before have science fiction literature determined the way people thought and spoke about new
technology. This synthesis of fiction and fact proved to be a value to each and now cyberpunk is a movement looking set to
blast towards the Millennium. Gibson’s image of computer cowboys hacking a perilous post humanist lifestyle on a new
technological frontier gave hackers and technophiles an identity and set of any noble myths. After reading Neuromancer,
hackers started to realize that they were in fact and probably had always been cyberpunks (TRENCH, 1990, p. )
5 A New Wave (Nova Onda) é um subgênero da Ficção Científica que se apresentou entre as décadas
de 1960 e 1970. Segundo Amaral (2006), os principais nomes dessa vertente que influenciaram o movimento
cyberpunk foram: Michael Moorcock, por meio da revista britânica New Worlds; Brian Aldiss, que posteriormente
escreveria roteiros para a Marvel e para a série Jornada nas Estrelas; Philip K. Dick, autor que inspirou o filme
Blade Runner (1982); entre outros. Esta ficção caracterizou-se pela experimentação linguística por meio da
incorporação de gírias e jargões em texto, assim como descrições mais vívidas de violência e sexo. Os escritores
14
década de 1980, inclui em suas narrativas as teorias da pós-modernidade, a cultura
pop através de seus ícones estéticos e o computador. Suas principais características
consistem na “hiperestética” das relações homem-máquina; na presença da imagem
do “não-humano”; no indivíduo autônomo que conduz sua própria realidade; e no
estilo estético das subculturas. Esta “hiperestetização” ocorre pelo excesso e demasiada
presença de signos estéticos do cotidiano e do mundo, construindo um vocabulário
narrativo que toma forma segundo indivíduos, comunidades, nações e épocas.
(AMARAL, 2006)
A cidade aparece como um objeto estetizado, entendido na relação entre
um movimento estilístico, no caso a arquitetura de uma cidade, e uma narrativa.
Essa articulação usa os cenários construídos de forma verossímil para dar identidade
à obra literária. Para esclarecer seu ponto de vista, Amaral recorre ao exemplo do
romantismo, no qual, muitas vezes, a cidade é representada em uma atmosfera de
tensão e medo, com referências à arquiteturas medievais arruinadas, criando uma
atmosfera macabra. (AMARAL, 2006).
A mesma autora reconhece no romantismo gótico que a cidade distópica,
elemento recorrente na Ficção Científica, surge nas ruelas labirínticas e enevoadas
marcadas pela industrialização e transformação de cidades cada vez maiores. O clima
de terror e decadência dos primeiros contos de Ficção Científica, como Frankenstein
(1818) de Mary Shelley, apresentam questões urbanas daquele tempo intimamente
ligadas aos seus maiores desafios: o crescimento claustrofóbico de metrópoles, a
industrialização e a dissolução dos vínculos sociais. Posteriormente, é na ficção de
Philip K. Dick que a cidade ganha especial importância “tanto pela sua arquitetura
monstruosa, como por suas artérias sombrias nas quais habitam distintas raças, classes
sociais e tribos urbanas” (AMARAL, 2006, p.62).
do gênero anterior, Época Dourada da Ficção Científica (1938-1950), estavam interessados em relatar com
preciosidade técnica o espaço sideral, haja vista as obras de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Frank Hebert, autores
de Eu Robô, O Fim da Infância. No caso da New Wave, os autores inseriram questões da área das ciências sociais
sobre um viés existencialista, salientando relacionamentos e sentimentos. Isto é, viu-se uma maior aproximação
do indivíduo e as especificidades técnicas ficaram em segundo plano, o que conferiu sua associação ao termo “soft”
science fiction (ficção científica suave) à sua definição.
15
A herança do romantismo na Ficção Científica se manifesta
principalmente através da ideia de utopia, da nostalgia de se retornar
aos valores perdidos, pela estetização do presente, pela rejeição e
euforia em relação à modernidade e, principalmente, pela ideia de
maquinização do mundo e das relações puramente utilitárias entre
seres humanos [...]. Os espectros da Ficção Científica, trazidos à vida
em meio às sombras das cidades góticas, continuam aterrorizando o
imaginário da sociedade tecnológica através de seus muitos gêneros,
sobretudo pelo imaginário cyberpunk, com seus corpos modificados,
tatuados, perfurados, mixados de sangue, placas de silício e circuitos
metálicos. (AMARAL, 2006, p. 77)
Para Martins (2014, p.13), esta literatura “rompe com o real e com as
mazelas da experiência cotidiana e, ao mesmo tempo, encerra um determinado
sentido específico da contemporaneidade, cuja função significante é crítica da polis
contemporânea”. Isto é, os autores do gênero cyberpunk constroem uma visão de
futuro a partir de nossas próprias experiências e contextos sociais, associados às
narrativas comuns da história e do presente. Dessa maneira, esse subgênero da Ficção
Científica define uma paisagem constituída de exageros estéticos que, por fim, nos
instiga a questionar o presente e seus problemas futuros por meio da poética literária
que busca na racionalidade a compreensão de padrões socioculturais e econômicos.
16
Por mais que o cyberpunk apresente pontos estilísticos e abordagens constantes,
é importante destacar que cada autor tem suas especificidades, temáticas e manias
prediletas. No caso de Neuromancer, William Gibson interessa-se pela dicotomia
corpo físico e o virtual. Para ele, a mente é uma entidade alheia à constituição física.
O corpo é apenas um recipiente de carne, sem utilidade alguma no ciberespaço.
6 O steampunk é uma variante do subgênero literário cyberpunk que combina estéticas históricas com o
acesso à tecnologia na construção dos cenários narrados. Normalmente, incorporam-se elementos vitorianos, como
máquinas a vapor (steam), a fantasias, mantendo-se sempre o caráter distópico. As obras mais relevantes desta
categoria seriam a novela de 1992 de Gibson e Bruce Sterling “The difference engine” e “A league of extraordinary
gentleman”, quadrinhos de Alan Moore e Kevin O’Neill (AMARAL, 2006).
7 O postcyberpunk, ou “pós-cyberpunk”, é outra variante do subgênero cyberpunk que surge em meados
dos anos 1990. A grande diferença é a maior atenção na ecologia e a vida em sociedade face a tecnologia.
Exemplares dessa categoria podem ser encontrados nos livros de Cory Doctorow, como a coleção “Pequeno
Irmão”, de 2011 (AMARAL, 2006).
17
em Vancouver, mergulhou na contracultura e dedicou-se à literatura ficcional
especulativa. Sua obra tem sido objeto de interesse e inspiração para autores de
ficção científica e para o cinema – a exemplo a trilogia Matrix, das irmãs Wachowski,
episódios da série Arquivo X e o filme Alien 3 –, e para o mundo acadêmico, com
reverberação na filosofia, no design e na arquitetura.
Em suas aparições públicas, o autor revela alguns posicionamentos que
auxiliam a dedução de tópicos inerentes a Neuromancer. Em sua entrevista para o
programa televisivo sueco Rapport (1994), o autor aponta três questões que julga
de interesse: a democracia Americana em decadência, a importância da inserção
digital em comunidades humildes e o caráter elitista da Internet. É possível sentir seu
descontentamento com a situação política e social estadunidense:
8 There are large parts of the United States today that must seem, I would think, to a European as dystopian
and possibly more dystopian than I describe in my books. There are large parts of many American cities that are absolute
social nightmares. America is a country that may already have an enormous permanent underclass [...] it’s a tragic
situation. (GIBSON, 1994)
18
geografia não existe mais. [...]. Às vezes, suspeito que estamos presenciando na
Internet algo tão significante quanto o nascimento das cidades. [...]. É realmente algo
novo, um novo tipo de civilização” (GIBSON, 2014).
Quando questionado se este novo “lugar” seria melhor do que o mundo físico,
o escritor nega a possibilidade. Na verdade, se opõe à rejeição do corpo em relação ao
espírito:
***
9 One could imagine a very ascetic sort of life growing out of this, where the body is ignored. This is something
I’ve played with in my books, where people hate to be reminded sometimes that they have bodies, they find it very slow
and tedious. But I’ve never presented that as a desirable state, always as something almost pathological growing out of this
technology. (GIBSON, 1994)
19
Neuromancer: o livro
20
cyberspace foi inventado por nosso autor, descartou outras opções como infospace e
dataspace, pois para ele, esses termos não soavam bem. O neologismo surgiu quando
observava a euforia de jovens frente à primeira geração de arcades14. Era a postura
de grande tensão durante o jogo, que parecia ser uma coleção de zeros e um em um
computador, a materialidade dos corpos dos jogadores não fazia mais sentido: “eles
queriam estar lá, com os dados giratórios coloridos”, disse Gibson (2010).
No prefácio do livro em sua 5a edição brasileira de Neuromancer (2016,
Editora Aleph), Gibson expõe sua surpresa com o sucesso de sua obra. Ele não
esperava ser publicado vinte anos após o lançamento de Neuromancer. Confessa que,
ao escrevê-lo, receava não conseguir terminá-lo, ou que seu manuscrito fosse recusado
pela editora. Seu medo diz respeito ao espírito de dissidência que o tomou enquanto
escrevia Neuromancer, algo muito relacionado com o personagem principal da
trama. Para ele, era também uma espécie de ressentimento com relação ao gênero que
acompanhou sua adolescência, uma vontade de se opor “ao que o público havia sido
ensinado a querer da ficção científica” (GIBSON, 2016, p. 15).
21
Neuromancer continua a ser uma viva alegoria imaginada para
o mundo dos anos 80, quando as primeiras sementes da enorme
e globalizada disparidade econômica foram plantadas, e quando
os rumores inaugurais da rebelião tecnológica foram sentidos
pela primeira vez. Uma geração mais tarde, estamos vivendo um
futuro que não é nada como o de Gibson, mas instantaneamente
reconhecível como seu primo menos elegante e menos romântico.
Ao invés de zaibatsus administradas por sararimans sem rosto, temos
jovens neoconservadores e neoliberais doutrinários que querem
tratar de tudo, de escolas a hospitais, como se fossem empresas”15.
(DOCTOROW, 2014, tradução nossa)
15 Neuromancer remains a vividly imagined allegory for the world of the 1980s, when the first seeds of massive,
globalized wealth-disparity were planted, and when the inchoate rumblings of technological rebellion were first felt. A
generation later, we’re living in a future that is both nothing like Gibson future and instantly recognizable as it’s less
stylish, less romantic cousin. Instead of zaibatsus (large conglomerates) run by faceless salarymen, we have doctrinaire
young neocons and neoliberals who want to treat everything from schools to hospitals as businesses” (DOCTOROW,
2014)
22
Em sua nova situação, dormia nos caixões mais baratos – cápsulas de moradia
–, em um dos distritos mais necrosados de Chiba City, deixou de frequentar os bares
onde era estimado por sua maestria e foi forçado a assaltar e roubar para sobreviver.
O personagem, sem sucesso e em estado “overdrive”16 terminal, vê-se persuadido
a auxiliar um novo empregador em troca de um tratamento para encerrar seu
sofrimento.
Case e Molly, sua nova parceira de trabalho, são empregados por Wintermute,
uma inteligência artificial suíça que demanda uma série de ações, cujo objetivo é
livrá-la de limitações impostas pela polícia Turing17, órgão encarregado de controlar a
evolução dessas entidades. A inteligência artificial contata Case de diversas maneiras.
Na maioria das vezes, esse contato se dá no ciberespaço sob a forma de constructos18
à imagem de conhecidos dos personagens. As manifestações de Wintermute também
podem ser percebidas em telas de quaisquer dispositivos eletrônicos, de relógios
digitais a robôs funcionais.
A imagem dos constructos de Neuromancer levanta um dos aspectos centrais
da trama: a singularidade e o sentimento de transcendência que remontam ao
transumanismo. Na narrativa, Case frequentemente interage vividamente com o
constructo de um de seus grandes mestres, o ROM que replica “as habilidades de um
morto, suas obsessões, suas reações automáticas” (GIBSON, 2016, p.103). McCoy
Pauley, ou Dixie Flatline, frisa a todo momento que está morto. No entanto, ele não
necessariamente “sabe” que está morto, mas expressa um desejo quase desesperado de
ser apagado.
Molly é o arquétipo da femme fatale, muito presente nas ficções do gênero.
A personagem é dominante, extremamente competente e mais bem informada que
Case. Enquanto o cowboy surfa no ciberespaço, quebrando barreiras criptografadas de
grandes empresas e decodificando segredos, Molly fica a cargo de todo o confronto
físico. É ela quem corre, invade, agride e seduz, tudo com uma precisão e elegância
16 Saturado, impulsionado até o fim, estado de intensa atividade, superexcitação. Normalmente utilizado
para qualificar dispositivos mecânicos.
17 Turing seria uma referência ao Teste de Turing, desenvolvido por Alan Turing em 1950, cujo objetivo é
avaliar a capacidade de uma máquina de demonstrar inteligência correspondente a uma pessoa
18 Constructos são personalidades geradas artificialmente que são animadas no ciberespaço. Comumente
são oriundas da gravação de memórias póstumas a partir de uma ROM – Read Only Memory, memória virtual
que, após registrada, nunca mais se atualiza.
23
perfeitas; uma arma. A jovem de cabelos pretos cortados de maneira selvagem
tem um corpo modificado para ser letal: grandes lentes implantadas em seu rosto,
amplificadores que aumentavam sua destreza e lâminas mortais que projetavam suas
unhas.
Logo no começo da aventura, Case tem acesso a uma espécie de Simstim19 que
lhe permite sentir e ver todas as ações de Molly. Os dois se envolvem em uma relação
de afeto, porém, o relacionamento parece não evoluir. Molly sempre está à frente da
situação e parece não depender de ninguém, uma mulher autossuficiente que sabe
o que quer. Case é indiferente e dá claros sinais de que seus verdadeiros sentimentos
estavam guardados para Linda Lee, personagem que morre logo no início do livro.
A história se passa em diversas paisagens, ora reais, ora virtuais. Começando
no que se entende como algo próximo ao Japão, para o território da monstruosa
conurbação norte-americana Sprawl, às colônias orbitais de Zion e Freeside.
Os protagonistas enfrentam situações arriscadas a fim de invadir bases de
dados importantes e coletar informações para as futuras ações de Wintermute.
Constantemente a natureza da inteligência artificial é posta em questão, dúvida
surgida logo no início da obra quando Molly e Case buscam saber os principais
motivos que levaram Wintermute a procurá-los.
No fim do livro, Case consegue acessar o mainframe20 de Neuromancer,
uma inteligência artificial gêmea de Wintermute. Ao escapar, invade os sistemas
dos criadores de ambas as entidades, a gigante corporativa dominada pelo clã
Tessier-Ashpool. O império familiar tinha como objetivo associar-se às inteligências
artificiais, isto é, suas ações poderiam ser imortalizadas por decisões tomadas
conscientemente através de uma entidade que reuniria anos de memórias.
Wintermute era a parte fria e calculista. Foi feita para tomar decisões e podia
efetuar mudanças no mundo real. De alguma forma, sua concepção abriu a brecha
19 Simstim (simulated stimuli) é uma espécie de aparelho de realidade virtual que simula estímulos
em seus usuários. Segundo o livro, cowboys não entravam em Simstim pois era um brinquedo “de carne”, uma
multiplicação dos sensórios vividos pelo corpo. O Simstim é um produto muito popular para os mais abastados,
possui astros do mês e é altamente viciante.
20 O termo mainframe refere-se comumente ao computador de grande porte dedicado ao processamento
de uma grande quantidade de informações. É o gabinete principal que aloja a unidade central de processamento
dos computadores da década de 1980.
24
para que sua mente-colmeia tivesse a compulsão de libertar-se. Assim, como “uma
aranha cibernética lentamente tecendo teias enquanto Ashpool dormia” (GIBSON,
2016, p. 309), Wintermute planejou o possível para que sua versão atual chegasse ao
fim.
Neuromancer era ego. “Neuro, que vem de nervos, os caminhos prateados.
Romancer, romanceiro, romante, necromante. Eu invoco os mortos. [...]. Eu sou os
mortos, e sou também a terra deles” (GIBSON, 2016, p. 284). Assim como Dixie
Flatline, Neuromancer era algo parecido com um constructo para a gravação de
personalidades, porém, gigantesco e em constante atualização. Além de acumular
mentes, a narrativa nos conduz a concluir que a entidade consegue estabelecer uma
consciência, ela pode criar sua própria personalidade e existe nela mesma. Ademais,
os constructos inerentes à Neuromancer acreditam estar em um meio real. Para eles, a
vida era real, não distinguindo o virtual o real. Neuromancer era a imortalidade.
Na tentativa do cowboy de impedir que Wintermute tenha acesso à
Neuromancer, as entidades acabam unificadas, tornando-se um sistema constituidor
de toda a internet, uma Matrix. Por fim, este novo “ser” entra em contato com Case
e o elucida sobre as questões de sua Verdade. A imagem final do livro apresenta os
constructos de Case e Linda Lee existindo eternamente na entidade artificial. Molly
diz adeus à Case e ambos nunca mais se veem.
29
descrevem o espaço como uma colagem de elementos culturais diversos, como por
exemplo a casa de chá Jarre de Thé, em Chiba City (cidade à oeste de Tóquio):
***
31
“O céu sobre o
porto tinha cor
de televisão fora
do ar”
CHIBA CITY
33
por multidões, especialmente à noite, quando a cidade ganha vida. O ar dessa área é
pior que o de costume, “parece ter dentes”, e as ruas têm um constante cheiro de aço
frio onde “hologramas se contorcem e estremecem ao rugido dos games, fantasmas
se sobrepondo na neblina lotada do lugar, um cheiro de suor e tensão com tédio”
(GIBSON, 2016, p.147). Essa Chiba de Gibson é diferente, parece ter deixado de
lado os deleites da vida da carne, aquela vivida e sentida no mundo real. De suas
margens é possível ter uma visão nebulosa e melancólica dos neons espetaculares
de Tóquio enquanto seus habitantes regularmente vestem máscaras com filtro para
enfrentar o “céu de prata envenenado”. Tóquio estava reservada às “famosas butiques”,
abastecendo arcologias pontiagudas que exibiam seus gigantescos hologramas
corporativos, enquanto Night City era o enclave dos renegados.
Case descreve a gente que formava Night City:
24 Efeito que consiste em avançar uma gravação de áudio ou vídeo de maneira mais rápida.
34
Imagem 04:
Rua no Japão.
35
Imagem 05: Nakagin
Capsule Tower,
projetada por Kisho
Kurokawa em 1972.
36
É notória a segregação social entre Chiba e Night City. A primeira é a casa
dos sararimans25 e das zaibatsus26, onde as pessoas de bem fazem o sistema funcionar
e a economia girar; a segunda, a casa dos gaijins e dos delinquentes, laboratório
de procedimentos perigosos e parque temático de divertimento e esbórnia. Chiba
conforma-se como uma padronagem de microcircuitos e seu horizonte é ocupado
por “cúpulas de fábricas dominadas pelos cubos imensos das arcologias corporativas”,
enquanto Night City nasce a partir de galpões industriais e armazéns modernizados.
É interessante abordar o conceito de arcologia pois foi um termo cunhado
pelo arquiteto Paolo Soleri (1919-2003) e designava uma cidade com alta densidade
demográfica e ecossistema próprio. Isso denota o aspecto superpopuloso de Chiba,
reforçado pela presença rotineira de habitações “caixão”, cápsulas de morar como
o Cheap Hotel de Gibson (2016): “Os caixões brancos de fibra de vidro estavam
empilhados em uma estrutura de andaimes industriais. Seis andares de caixões, dez
caixões de cada lado” (p.42). Os caixões minúsculos para os pobres, as arcologias
higienizadas para os ricos.
Podemos assimilar os caixões de morar de Gibson ao movimento
arquitetônico corrente no Japão do pós-guerra, o metabolismo japonês. O trabalho
de um de seus arquitetos mais reconhecidos, Kisho Kurokawa, envolvia a unidade
básica deste movimento: a cápsula. Koolhaas e Obrist (2011) afirmam que este objeto
viria em resposta à obsessão da época pela mobilidade e à severa situação demográfica.
Kurokawa declara: “A cápsula representa a emancipação do edifício em relação ao solo
e anuncia a era da arquitetura em movimento...” (p.336, tradução nossa).
As “gaiolas de plástico” em Neuromancer são a opção mais barata para morar,
objetos parasitas atracados a outros prédios que oferecem o mínimo necessário para
ter uma noite razoável de sono, enquanto outras camadas sociais habitam as arcologias
colossais. O caixão é um tipo de habitação portátil que se adequa ao rápido e intenso
fluxo da cidade e sua estrutura social.
Além do Jarre de Thé, mencionado no início deste capítulo, há outras
37
referências arquitetônicas que compõem o cenário de Chiba aos olhos de Case. O
Chatsubo é seu local favorito e seu dono, um eurasiano muito peculiar:
Quem estava cuidando do bar era o Ratz, que enchia uma bandeja
de copos com cerveja Kirin draft, com uma prótese de braço que
se movia aos trancos. Ele viu Case e deu um sorriso; seus dentes
eram uma teia composta de aço do leste europeu e decomposição
marrom [...] Sua feiura era legendária. Numa era em que ser bonito
saía barato, havia alguma coisa de heráldica na ausência de beleza
que ele exibia. O braço antigo gemeu quando ele o estendeu para
pegar outra caneca. Era uma prótese militar russa, um manipulador
force-feedback de sete funções, revestido com plástico rosa encardido
(GIBSON, 2016, p.37)
Ratz representa a típica gente de Ninsei, Ratz era a própria Night City,
e o “Chats”, seu refúgio. A toca transcultural onde hackers e outros “expatriados
profissionais” desapareciam em uma cidade tumultuada. O nome Chatsubo refere-
se a um típico recipiente japonês cerâmico para amarzenar o chá, uma relação
possivelmente irônica, pois o bar é frequentado predominantemente por gaijins, era
possível “beber ali todos os dias durante uma semana e nunca ouvir duas palavras em
japonês” (GIBSON, 2016, p.37).
O Sammi’s era diferente. A maioria de seus frequentadores eram japoneses;
para Case, “não era a multidão típica da Night City. Era uma multidão urbana.
Techies das arcologias”. Seus fregueses assistiam a danças violentas de hologramas
performáticos sobre o ringue: uma casa de lutas. Essa era uma imensa cúpula inflável
nas margens da baía de Tóquio, sustentada por um material acinzentado “esticado e
reforçado com uma rede de cabos finos de aço”. Lá dentro, o “concreto se inclinava
em degraus até uma espécie de palco central, um círculo elevado com um ringue
reluzente de equipamento de projeção. Nenhuma luz, a não ser os hologramas que
se deslocavam e piscavam sobre o ringue [...] Estratos de fumaça de cigarro subiam
das arquibancadas, vagando até baterem em correntes criadas pelos ventiladores que
38
davam suporte à cúpula”. A julgar pela clientela, Case achava que a arena tinha algo
a ver com as grandes corporações da cidade. Um divertimento empresarial para seus
sararimans, que viviam e morriam às custas de suas Companhias. (GIBSON, 2016, p.
61-62)
Night City e Ninsei são a zona decaída da megalópole. Chiba tolera o enclave
pois é um laboratório de horrores. Além de herança da Yakuza, Night City é um
“playground deliberadamente supervisionado de tecnologia”, pois, afirma Case,
o desenvolvimento de novas tecnologias exigia espaços como este. Uma parasita
necessária.
No fim do livro, mesmo curado e endinheirado, Case volta a seu local
favorito: o Chatsubo. Ratz o olha com indiferença, era como se ele nunca tivesse
aparecido por lá, afinal: “Ninguém volta a um lugar como Night City” (GIBSON,
2016, p.308).
39
“Manhattan e Atlanta
brilham com um branco
incandescente. Então,
começam a pulsar:
a taxa de tráfego
ameaça sobrecarregar
sua simulação. Seu
mapa vai virar uma
supernova.”
SPRAWL
40
Programe um mapa para exibir frequência de troca de dados, sendo
cada gigabyte um único pixel em uma tela muito grande. Manhattan
e Atlanta brilham com um branco incandescente. Então, começam
a pulsar: a taxa de tráfego ameaça sobrecarregar sua simulação. Seu
mapa vai virar uma supernova. Esfrie o mapa. Aumente a escala.
Cada pixel vale agora um milhão de megabytes. A cem milhões de
megabytes por segundo, você começa a distinguir certos quarteirões
no centro de Manhattan, os contornos de parques industriais de cem
anos de idade ao redor do núcleo antigo de Atlanta... (GIBSON,
2016, p.67)
E sta é Sprawl, a super cidade que se estende entre Boston e Atlanta, ela
não cabe nem mesmo em um mapa. Uma mancha urbana prolongada
incessantemente, como a explosão de uma supernova no espaço. Este intenso processo
de expansão urbana horizontal é permitido pela disponibilidade de terras e disposição
geográfica da costa leste estadunidense, diferentemente do Japão, cuja situação
geográfica é muito mais restritiva, requerendo uma expansão vertical para suprir a
demanda demográfica.
A força simbólica de Sprawl é notável no contexto da narrativa, normalmente
retomada por personagens com sotaque e ações “típicas” de pessoas da região, porém
o espaço descrito é pouco específico e muito genérico. Em Neuromancer, Sprawl
não se sobressai a Chiba em termos de relevância cultural. Na verdade, elementos
orientais são muito mais presentes em suas passagens do que elementos americanos
característicos.
O BAMA, Boston-Atlanta Metropolitan Axis, é a terra de todos, entendido
como um universo extremamente plural e mutável, onde se pode fazer o quiser e ser
quem quiser. Nas palavras de Case: “modismos varriam no Sprawl à velocidade da luz;
subculturas inteiras podiam surgir da noite para o dia, proliferar por algumas semanas
e depois desaparecer inteiramente” (GIBSON, 2016, p. 83). Assim, vê-se que é um
espaço onde os códigos culturais são generalizados, associam-se e desassociam-se em
alta frequência.
O horizonte do BAMA é dominado por “uma montagem tremeluzente” de
41
Imagem 06:
Geodésica de Fuller
sobre a cidade de
Nova Iorque.
42
torres de vidro, edifícios pirâmides, cúpulas geodésicas de Fuller e versões gigantescas
do Cheap Hotel, todos sempre acompanhados de seus hologramas comerciais.
Já a superfície é dominada por pontes, vias abarrotadas e trens de alta velocidade
(GIBSON, 2016, p.55).
Possivelmente, o elemento que mais contrasta Chiba e Sprawl é a habitação de
Case: o cowboy dormia em um cápsula minúscula em Night City, mas no BAMA seu
quarto era grande:
Paredes nuas, sem janelas, uma única porta de incêndio de aço pintada
de branco. As paredes haviam recebido incontáveis demãos de tinta
látex branca. Espaço de fábrica. Ele conhecia aquele tipo de aposento,
aquele tipo de prédio; seus inquilinos operavam na interzona, onde
a arte não chegava a ser crime e o crime não chegava a ser arte. Ele
estava em casa. (GIBSON, 2016, p.68)
Isso era quem ele era, o que ele era, seu ser. Ele se esquecia de comer.
[...] Às vezes lamentava ter que sair do deck para usar o banheiro
químico que haviam montado num canto do loft. [...] Seu labirinto de
pixels arco-íris era a primeira coisa que via quando acordava. Ia direto
para o deck, sem nem pensar em se vestir, e se conectava. [...] Ele
estava trabalhando. Perdia a noção dos dias. (GIBSON, 2016, p.84-
85)
Esta não é uma situação atípica na vida do protagonista, e sim seu dia-a-dia e
o estilo de vida de muitos no mundo de Sprawl. A virtualidade passa a ser a vida real,
as necessidades básicas do ser humano são um empecilho. Seu trabalho, suas relações,
seus deleites e medos estão no “labirinto de pixels arco-íris”, de modo que a casa perde
43
seu valor espiritual e torna-se, assim como o corpo, apenas um recipiente humano.
Mesmo assim, a vida continua intensamente nas ruas de Sprawl:
44
Todos estes enclaves funcionam como um todo em Sprawl, pois suas
distâncias foram encurtadas; é possível deslocar-se de Nova Iorque a Atlanta em
questão de minutos, por exemplo. Essa integração é feita por um eficiente sistema
de transporte: os trens trans-BAMA. As “raízes de ferroconcreto do Sprawl” estão
muito presentes na vida dos citadinos, e de certa forma figuram a extensão da rua.
(GIBSON, 2016, p.55).
Apesar do livro tratar Sprawl muito brevemente, é possível ter uma visão geral
sobre sua complexidade, mas surgem algumas questões. Enquanto Case andava pelas
ruas, frequentemente avistava propagandas que atraíam sua atenção para um convite
sedutor:
45
“O DNA humano
transbordando e
se espalhando para
fora do íngreme
poço gravitacional
como uma mancha
de óleo no oceano.”
ARQUIPÉLAGO
ORBITAL
46
Arquipélago. As ilhas: toroide, fuso, aglomerado. O DNA humano
transbordando e se espalhando para fora do íngreme poço
gravitacional como uma mancha de óleo no oceano. (GIBSON, 2016,
p.129)
Zion havia sido fundada por cinco operários que se recusaram a voltar,
que deram suas costas ao poço gravitacional e começaram a construir.
Sofreram perda de cálcio e o encolhimento cardíaco antes que a
gravidade rotacional fosse instalada no toroide central da colônia [...]
o casco improvisado de Zion lembrou Case do patchwork de barracos
de Istambul, as placas irregulares e descoloridas rabiscadas a laser com
símbolos rastafári e as iniciais de soldadores. (GIBSON, 2016, p.131)
27 Fumo a base de maconha usado para fins espirituais pelos Rastafari.
28 “[...] Case foi aos poucos se dando conta de uma música que pulsava constantemente por todo o
aglomerado. Era chamada dub, um mosaico sensual misturado a partir de imensas bibliotecas de pop digitalizado;
era fé, disse Molly, e um senso de comunidade” (GIBSON, 2016, p.132).
48
Ative uma representação gráfica que simplifique a troca de dados
do arquipélago L-529. Um segmento aparece em vermelho-vivo, um
retângulo maciço dominando sua tela. Freeside. Freeside representa
muitas coisas, nem todas evidentes aos turistas que sobem e descem
o poço gravitacional em ônibus espaciais. Freeside é bordel e nexus
bancário, cúpula de prazer e porto livre, cidade de fronteira e spa.
Freeside é Las Vegas e os jardins suspensos da Babilônia, uma Genebra
orbital e lar de uma família acostumada a cruzamento interno e
refinada a um cuidado extremo, o clã industrial de Tessier-Ashpool.
(GIBSON, 2016, p.129)
29 L-5 refere-se a um dos Pontos de Lagrange, locais de interssecção gravitacional entre corpos celestes, no
qual seria estável o suficiente para a hospedagem de uma estação especial.
30 O melhor e mais caro restaurante de Freeside, uma jóia que flutua em um pequeno lago perto do hotel
Intercontinental.
49
Imagem 07: Visão geral da
colônia espacial Stanford Torus,
desenhada por Don Davis.
50
renascentistas e piscinas deslumbrantes, ótimo local para se bronzear.
A rua Jules Verne – tributo ao padrinho da ficção científica – era a principal
de Freeside. Larga e coberta de paralelepípedos, “parecia ser o chão de uma fenda ou
desfiladeiro profundo; cada uma das extremidades estava oculta por ângulos sutis nas
lojas e prédios que formavam suas paredes. A luz, ali, era filtrada por massas verdes
frescas de vegetação que pendiam de degraus e varandas suspensas que se elevavam
acima deles” (GIBSON. 2016, p.151-152).
Esta avenida seguia a circunferência no centro do fuso da colônia-charuto,
cortada perpendicularmente por seu segundo eixo mais importante, a rua Desiderata
– homenagem desta vez feita ao poema homônimo de cunho motivacional e reflexivo
escrito por Max Ehrmann em 1927. Em Freeside, “se você virasse à direita, saindo da
Desiderata, e seguisse pela Jules Verne direto, acabaria se aproximando da Desiderata
pela esquerda”. Case adiciona:
51
Freeside de repente começou a fazer sentido para ele. Podia sentir
aquilo tudo vibrando no ar. Aquilo ali é que era a ação local. Não a
fachada superbrilhante da rua Jules Verne, mas a coisa real. Comércio.
A dança. A multidão era mista; talvez metade fosse turistas, a
outra metade de residentes das ilhas. [...] Ele passou rapidamente
pelas mesas lotadas, ouvindo fragmentos de meia dúzia de idiomas
europeus. (GIBSON, 2016, p.176)
Freeside era uma versão melhorada de Night City, apropriada ao estilo de vida
sofisticado de seus clientes e moradores afortunados. Mas diferentemente de Night
City, onde o deleite da carne era abominado, Freeside valorizava a contemplação
de suas belas paisagens arborizadas e o desfruto de um céu fantástico para bronzear
o corpo que não fazia sentido para Case, ele observa um grupo de jovens: “os
bronzeados delas eram irregulares, um efeito de estêncil produzido por boosting31
seletivo de melanina, tonalidades múltiplas sobrepondo-se em padrões retilíneos,
realçando e contornando musculaturas” (GIBSON, 2016, p.156).
Este era um fato intrigante para o cowboy do ciberespaço, ali o corpo e a vida
real eram valorizados, mesmo que com doses homeopáticas de tecnologia. Além da
proximidade à carne, Case estranha o “número antinatural de árvores”:
52
Imagem 09: Ilustração de
Pierre Mio representando um
shopping-center orbital.
53
a segregação exacerbada entre classes sociais e, consequentemente, seus privilégios
desequilibrados. Case nunca havia sentido o cheiro de grama cortada, por exemplo,
e muito menos se importava em embelezar seu “recipiente de carne”. Eram mundos
praticamente opostos.
Sobre Freeside existe uma estrutura em formato toroide que abraça seu fuso.
Sua fama é a de uma estância estritamente particular, pertencente à família Tessier-
Ashpool. A Villa Straylight, um lugar “bonito, todo cheio de laguinhos e lilases. É um
castelo de verdade, todo de pedras e poentes”, dizem. Straylight significa mais do que
a casa dos Tessier-Ashpool, é um ninho que traduz espacialmente o que o clã gostaria
de ser, um corpo espacial “equivalente a um humano”. (GIBSON, 2016, p.184-205).
Na voz de um dos membros da família:
Nota-se que Gibson faz uma digressão entre três pilares que fundamentam
a dinâmica operacional do arquipélago: o corpo mandante, Villa Straylight, o corpo
produtor, Freeside, e o corpo operário, Zion. Straylight é uma formação parasita que
tira proveito de sua própria criação, Freeside, escape da vida terrestre, é abastecida por
Zion. Em suas palavras:
***
56
Imagem 10: Poço gravitacional
do Stanford Torus, desenhada
por Don Davis
57
Imagem 11
“A melhor maneira
de predizer o
futuro é inventá-lo”
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A gêmea má da utopia
60
mas estaria muito distante de nossa realidade.
Para ler Neuromancer como distopia, tomemos as observações de Fredric
Jameson (2005). Esse autor cruza os conceitos de utopia e distopia para esclarecer
a real natureza dessas representações. A posição otimista da utopia pode ser vista
como uma semelhança textual puramente formal com sua irmã má. Porém, mesmo
que a diferença entre o bom e o mau “não-lugares” esteja nas imagens que ambas
comunicam, utopia e distopia estruturalmente evocam o mesmo caráter: ser a
representação de uma situação oriunda de um repertório histórico-social que oferece,
de alguma maneira, suas causas e consequências, problemas e soluções, perguntas e
respostas. Portanto, pode-se entender a criação de Gibson nesta chave comum que
é a intersecção de utopia e distopia: são as situações críticas vividas por Gibson nos
anos de 1980 que o inspiram, são seus medos, ansiedades, atordoamento diante
de um vórtice de mudanças que lhe alimentam a criar as experiências e dramas de
Neuromancer.
O livro resulta de uma realidade familiar vista de outra maneira. Seu resultado
é uma projeção incerta dos elementos negativos da sociedade de seu tempo. Essa
projeção carrega em si a capacidade de nomear, tematizar e representar fenômenos
que não apenas criticam questões socioeconômicas, mas também o fazem de maneira
poética e estetizada, permitindo sua visibilidade para maiores grupos sociais, no caso,
como um livro de ficção científica. (JAMESON, 2005)
O território do não-lugar
61
antropológico. Em um “território” onde a métrica espacial não faz sentido, limites
tornam-se apenas artifícios.
A problemática essencial de Neuromancer é o embate do corpo frente a
eliminação do espaço. Este mesmo espírito ante espacial também permeia o território
da pós-cidade atual e é alavancado pelo progresso tecnológico, principalmente, pela
presença corriqueira do ciberespaço em nossa rotina. A combinação entre espaço
real e virtual concebe a cibercidade e, no caso do livro, a cidade cyberpunk. Estas
representam o momento de transição entre a cidade clássica e a cidade do amanhã
quando, enquanto corpos, vivenciamos a desintegração do espaço real.
A anomalia urbana de Gibson é a alegoria da pós-cidade. Ela cresce de
maneira irregular e descontrolada para suprir as demandas de seus fluxos comandados
por intencionalidades corporativas, manifestando mutações irreversíveis em seu tecido
social. Sprawl, Chiba City e arquipélagos são apenas uma, compreendem “territórios
desterritorializados” que, segundo Caliari (2009), atravessam paisagens híbridas que
perderam fronteiras e se estabelecem no ciberespaço, uma extensão desvinculada do
espaço-tempo.
No fluxo enérgico da cidade cyberpunk, a perda da memória desintegra
códigos e símbolos culturais; a identidade é questionada e substituída pela
generalização. A arquitetura como massa construída, no entanto, contradiz toda
essa aspiração hiperdinâmica da cibercidade. “Rígida”e “monovalente”, a arquitetura
presente nas pós-cidades age como corpo fechado em seus tecidos urbanos
(CALIARI, 2009, p.33-66). Ela existe de maneira significativa e simbólica para
ancorar no espaço-tempo memórias que nos permitem atingir exigências que são,
nas palavras de Caliari, “psicologicamente insuperáveis”. É a forte necessidade que
ainda sentimos de nos apoiarmos em símbolos identitários para suportar a incessante
“mobilização universal”, são corpos de referência. O holograma da Fuji Electric e
as arcologias de Chiba City, as cúpulas geodésicas de Fuller e os trens silenciosos de
Sprawl, as paisagens estonteantes de Freeside e o labirinto mórbido de Straylight:
todos são símbolos que aportam o leitor e os personagens para que seus cenários
literários sejam imaginados e, de fato, habitados; assim o fazendo na cibercidade do
amanhã.
62
Um dos símbolos mais presentes em Neuromancer é seu espaço orientalizado.
Trata-se de uma crítica. Para Lemos (2014), as sociedades ocidentais tornaram-se
parâmetros universais da modernidade. Sociedades orientais desempenham um papel
desvantajoso em relação ao padrão do mundo moderno, constituindo uma relação
assimétrica e, por vezes, ofuscante. O que acontece em Neuromancer é a inversão
destas polaridades, uma espécie de “neocolonialismo às avessas”, onde o Oriente –
observados seu rápido crescimento demográfico e econômico – passa a ser modelo
triunfante que alastra seus códigos influentes em uma civilização global supostamente
modernizada e homogênea.
A rica e complexa cidade-personagem de Neuromancer é uma paisagem
sensorial que se materializa pela descrição detalhista. Gibson utiliza esse recurso
para observar a sociedade e assimilá-la na narrativa. Suas representações traduzem o
embate com uma nova cultura tecnicista onde todas as estruturas, política, econômica
e social, são confrontadas. A distopia de Gibson tematiza a soberania da corporação
transnacional vinculada ao esquecimento da organização social justa e igualitária e das
relações interpessoais. Se o espaço distópico é um enclave imaginário com um espaço
social real (JAMESON, 2005), então Gibson utiliza de sua percepção e intuição para
refletir seus próprios anseios em relação à sua época.
63
desenvolvimento é algo inevitável e que está acontecendo diante de
nossos olhos, reconfigurando o nosso espaço urbano e nossa forma de
organização.
33 “Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de
realidade social e também uma criatura de ficção” (HARAWAY, 2016)
64
formas de se pensar a arquitetura e o urbanismo. Entender estas especulações é tomar
conhecimento do contexto em que foram construídas, da personalidade por trás de
palavras escritas e dos anseios que permeiam aqueles que habitam a pós-cidade. A
distopia de Gibson é um laboratório de cidades hipotéticas que não apenas alimenta
nossa imaginação, mas também, ratifica o que Alan Kay nos disse ainda em meados de
1971: “A melhor maneira de predizer o futuro é inventá-lo”34.
***
34 Alan Curtis Kay, na PARC (Palo Alto Research Center) em 1971. Kay é um dos
pioneiros da computação pessoal, um dos inventores do laptop e dos mais importantes conceitos
de programação e interface gráfica de computadores.
65
Imagem 12
REFERÊNCIAS
Livros:
CAVALLARO, Dani. Cyberpunk and cyberculture: Science fiction and the work of
William Gibson. Londres: The Athlone Press, 2000.
68
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
NESBIT, Kate (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica
1965-1995. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
Artigos:
AMARAL, Adriana. A metrópole e o triunfo distópico: a cidade como útero
necrosado na ficção cyberpunk. Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v.2, n.13, p. 1-14,
julho/dezembro 2005.
69
BRUNO, Giuliana. Ramble city: postmodernism and Blade Runner. In:
OCTOBER, v.41, pp. 61-74, verão 1987. Disponível em: <<http://links.jstor.org/
sici?sici=0162 2870%28198722%2941%3C61%3ARCPA%22R%3E2.0.CO%3B2-U
>>, acesso em Março, 2017.
CUMMING, Ed. The Guardian: William Gibson: the man who saw tomorrow.
2014. Disponível em: <https://www.theguardian.com/books/2014/jul/28/william-
gibson-neuromancer-cyberpunk-books>. Acesso em: 13 maio 2017.
Dissertações:
JESUS, Allan Mendes de. Design e narrativa: a prática, pesquisa e didática em
design a partir da relação entre ficção e realidade. 2016. 124 f., il. Dissertação
(Mestrado em Design)—Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
70
LEMOS, A. La cyberculture. Les nouvelles technologies et la société
contemporaine.Tese de Doutorado. Paris V – Sorbonne, 1995.
Outros:
AKIRA. Direção de Katsuhiro Otomo. Produção de Haruyo Kanesaku. Música:
Shoji Yamashiro. Tóquio: Akira Comittee Company Ltd., 1988. (124 min.), son.,
color.
71
METROPOLIS. Direção de Rintaro. Produção de Masao Maruyama. Roteiro:
Katsuhiro Otomo e Osamu Tezuka. Música: Toshijuki Honda. Tóquio: Madhouse,
2001. (113 min.), son., color.
***
72
IMAGENS
Capa: montagem do autor.
Imagem 01: Coleção “The future is now”. Ilustração de Josan Gonzalez. Manipulação do autor.
Imagem original: Disponível em: << http://www.fsix.es/index.php/future/preview-gallery/network3.
jpg>>. Acesso em: junho, 2017.
Imagem 02:Capa de Neuromancer (2016), ed. Aleph. Ilustração de Josan Gonzalez. Manipulação
do autor.
Imagem original: Disponível em: << http://www.pelatocadocoelho.com.br/wp-content/
uploads/2016/08/neuromancer.jpg>>. Acesso em: junho, 2017.
Imagem 05: Geodésica de Buckiminster Fuller em Nova Iorque, EUA. Manipulação do autor.
Imagem original: Disponível em: <<https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/
originals/87/62/12/876212ece210f12ac7c59e0ac3d26dee.jpg>>. Acesso em: junho, 2017.
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01 02
03 04 05 06
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Imagem 11: Imagem do filme Blade Runner (1982). Manipulação do autor.
Imagem original: Disponível em: <<http://planb.hr/wp-content/uploads/2015/05/Blade_Runner_6.
jpg>>. Acesso em: junho, 2017.
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