Você está na página 1de 4

Fruta da época

Havia uma maçã amarela. Era a única maçã amarela naquela árvore e em todo o pomar e uma das que
na mesma árvore mais estava próxima do chão. Aí, um dia, o casal e o filho que habitavam o solar
adjacente às macieiras receberam visitas; um outro ilustre casal, contrastando com os habituais plebeus
que lhes vinham pedir por melhores condições de trabalho a toda a hora, e o casal anfitrião decide fazer
uma tarte para enriquecer o manjar, mandando o filho trazer uma das maçãs do pomar para o efeito. O
jovem, de cinco anos, viu a maçã amarela e não pensou duas vezes: destacou-se-lhe e estava ao seu
alcance. A mãe franziu ligeiramente a testa ao ver o fruto escolhido - o rapaz podia ter trazido outra
maçã (as de cima costumam ser melhores) - mas acabou mesmo por usar a amarela na tarte. E esta,
juntamente com o resto do almoço, saciou as duas famílias, enquanto algumas das maçãs mais acima
eventualmente caíram e foram comidas por minhocas.

Encontro com um desatino

Eu não queria mas o mister escolheu-me para marcar o penalty. O jogo está empatado em cima dos 90
minutos regulamentares e fui eu o escolhido para o fardo. É o último jogo do torneio, a final do
campeonato. É a réstia de esperança que nas minhas mãos saltita. Não queria isto, mas acho que já o
disse.
Porque, ora, se eu marcar este penalty, vou ser herói por um dia. Não, se calhar mais que um dia: para
aí um mês. Vou ficar nos livros como o tipo que marcou o penalty decisivo, que teve tarimba mais que
suficiente, enorme, para suster a pressão e o suor frio que só uma grande penalidade consegue gerar.
Vou chegar a casa e encontrar a minha mulher e filhos (não os vejo há quase um mês, desde que
partimos) e vamos ser a família mais realizada do sítio, do país… Do mundo?! A minha mulher vai estar
cheia de vontade, tal como eu agora, e vamos fazer amor até que um de nós desmaie ou que as nossas
partes baixas se quebrem pelo desgaste. Era óptimo, tão bom quanto marcar; a nossa relação já não é o
que era há bastante tempo. Temos 30 anos de idade e 10 de amor. Isto vinha mesmo a calhar. Ou
então, pronto, com a minha idade e sem lugar assegurado, talvez seja o meu último jogo pela equipa.
Isto era bom para toda a gente; toda a gente que me interessa, claro.
E se eu falhar, ou se o guarda-redes defender? Lá se vai o sexo espectacular com a moça e os meus
dois rapazes vão ficar eternamente desiludidos comigo. Não quero. Todos os pais têm que sob
obrigação quase que legal ser os heróis dos seus filhos. E a porcaria do sexo, não te esqueças. Vai o
sexo e vai relação, vai tudo isto com o caraças. Nem a vou conseguir olhar nos olhos como deve ser
quando ela for ter comigo ao aeroporto durante a chegada da equipa a Londres. Que terror. E ela que
tem uns olhos verdes tão mas tão bonitos que brilham mais e com mais força que a taça que não está
muito longe de mim, tanto figurativa como literalmente. A taça, sim. Os olhos dela nem os quero mais
descrever. E mais, mais. A nação vai odiar-me de uma ponta à outra, seu coxo de meia tijela que nem a
porra de um penalty soubeste marcar. Vamos todos lá em casa receber ameaças de morte; nunca se
sabe até que ponto esse tipo de palavras se é capaz de concretizar. Não sei mais no que pensar, e
sabes, dói-me mas é a cabeça.
Olho para o árbitro e aceno com o corpo de forma afirmativa. Ponho a bola na marca e encaro o guarda-
redes - resolutos - à medida que lhe tento fintar a atenção. Dou três passos para trás e respiro fundo; o
diafragma prende. E qualquer que seja o final desta história, o que me interessa é despachá-lo muito,
muito depressa. Sem espinhas, o que for, e eu depois logo me preocupo em ser feliz.

O título deste conto

Olá. Sou o narrador deste conto. Há quem diga que não sou participante se não estiver envolvido
directamente na história. Ora acho que já passámos essa parte, ou não? Estou a falar na primeira
pessoa, a falar de um eu. Mas não sou só eu.
Vá, vou apresentar-vos o protagonista deste conto. É um mercenário, óptimo no manejo da espada.
Sadix, acabaste de ser criado. Diz olá aos leitores.
- Hã? Eu? Olá...
O Sadix é meio despistado, mas é bom moço, excepto quando lhe pagam a quantia certa.
- Eu? Mas porquê?
Porque o autor do conto assim quis. Achas que mandas alguma coisa?
- E se me apetecer ser um agricultor ou um fazendeiro?
Não podes ser nada disso.
- Mas não posso porquê? Tenho de me chamar Sadix?
Não és tu quem manda. E vais continuar com esse nome a menos que apeteça ao autor mudá-lo. Eu
também não queria propriamente ser narrador, que nem tenho direito a pôr um travessão antes das
minhas falas, porque quem me inventou não me quis dar o dom do discurso directo.
- Mas quem é o autor, afinal?
O autor é aquele que nos criou e continua a criar. É através dele que a nossa história está a ser feita
com cada palavra nossa. Ele vai nos deixar eternos. Sadix decide agora deferir alguns golpes de
espada, a fim de testar a sua habilidade inata.
- Ei, nada mau! Tenho de matar pessoas?
Vamos ver, não é? Eu não sei o resto do conto, Sadix. Sou só o narrador, como já te disse. Eu só relato
o que acontece, aliás, nem deveria estar aqui a tentar discursar com uma personagem. Mas talvez, por
outro lado, seja esse o rumo que o tal autor quer dar a este conto.
- Ah, pronto. E o que é isso do conto?
Sadix era curioso à farta para um jovem de 14 anos. Um conto é uma história tendencialmente curta e
sem muito por onde divagar. A qualquer hora dá-se algo curioso e ficaremos por aqui.
- Mas eu não existo mesmo? Eu não quero ser uma personagem de um conto! Eu consigo pensar,
consigo fazer contas, porra, eu sinto me livre!
É. Também eu me sinto. Mas somos imaginários, infinitos.
- Então assim o conto pode estar mesmo a acabar, agora que começo a perceber o que se passa?
Então e depois? Eu não queria morrer já!
Não te preocupes, Sadix. O mercenário levanta-se e avassala as duas pessoas mais próximas ao seu
redor. Já alguma vez viste alguém imaginário a morrer de verdade? Já te disse, somos infinitos. A nossa
existência dar-se-á sempre que alguém ler estas palavras. Nós só existimos dentro de outras pessoas e
se elas assim o deixarem. Sadix estava furioso.
- Então posso matar mais pessoas? Eu sinto que literalmente fui feito para isto!
Força, mata mais quantas pessoas quiseres, quer dizer, quantas pessoas o autor quiser que tu mates.
Essas vidas também elas são inventadas. E foste feito para isso, sim. O teu papel é o de mercenário.
- Posso morrer antes do final? Morrer entre aspas...
Claro que podes. Mas vais ser infinito à mesma.
- E que mais posso eu fazer? Posso fazer mesmo tudo? Qual é o meu limite?
Eu fico contente por o autor me ter dado uma paciência de Jó. O teu limite, perguntas, é a imaginação
dele. Pensa que o autor é como fosse teu pai.
- Ahm, lamento interromper...
- Quem és tu?! – peregunta Sadix.
- Eu sou a representação literária do autor. Vim aqui só para vos dizer que o conto vai agora terminar.
Têm últimas palavras?
Eu não tenho. Gostei de narrar. Sinto que quem ler isto vai perceber o que estou a dizer, mesmo sem
nunca poder ter usado um travessão antes de ter falado. Se é que falei. Se é que me imaginaram a falar.
Sadix responde:
- Tenho uma pergunta, autor. Eu também me diverti, mas que vai ser de nós três?
- Não te preocupes. Ainda bem que gostaram, porque esta vossa aventura vai ser revivida outra vez,
outra vez e outra vez. A vossa infinitude será tão grande quanto o número de pessoas que vos lerem.
Nós não existimos e é exactamente por isso que nós não morreremos, nunca.

O elástico

Eu tinha um elástico. E queria, mesmo, era ter um elástico maior. O mesmo elástico. Mas maior.
Então, estiquei-o. Estiquei. Estiquei mais. Sabia que o elástico se podia partir. Ignorei isso. E continuei a
esticar. Até chegar a um ponto onde não podia esticar mais. Senão ele partia-se. Aí parei. E fiquei com o
mesmo elástico. Com o mesmo tamanho.
E com um sorriso na cara.

Ginja

Tenho pedido aos meus pais um Megazord pelo Natal, mas acho que eles compraram outra coisa feitos
parvos, porque a prenda que tem o meu nome está numa caixa demasiado grande para ser um
Megazord. Dá para perceber que é um brinquedo, mas não é o brinquedo que quero. Não me
compraram o Megazord, provavelmente, porque andam atados com o dinheiro, pois a minha mãe é
doméstica (logo, não trabalha) e o meu pai está desempregado. Mas claro que o meu pai está
desempregado: é preguiçoso e só joga bem à bola.
A minha mãe diz-me sempre que o meu pai não é jogador hoje porque chegou fora de horas a um treino,
e as oportunidades não são como os comboios ou os autocarros. Ele não a apanhou, alguém o fez por
ele e a mesma oportunidade nunca mais apareceu. A mãe também me diz para não ser assim e agarrar
as coisas quando elas aparecem, mesmo que sejam meras chances para fazer coisas más — pelo
mesmo motivo. Sinto que os meus pais se andam a trair um ao outro, e até tenho a certeza que isto seria
um óptimo tema de conversa para o jantar de logo à noite, onde vamos ter toda a família reunida. Pronto,
só os membros que interessam.
Acho que gosto mais do Natal que as outras crianças; não tenho a certeza, daí, só acho. Gosto porque
me trazem prendas e por causa dos doces, afinal, os Mon Chéri são a única oportunidade que tenho
para consumir álcool sem estar a infringir a lei. Não que goste do álcool — aquilo arde um bocadito —
gosto mais é do sabor a cereja, que é um sabor diferente do das cerejas que a minha mãe compra no
supermercado. Muito diferente, mesmo, mal percebo que são o mesmo fruto. Há outros doces e outras
coisas do Natal que também gosto de comer, mas a minha mãe diz que não me posso encher logo com
tudo só num dia. Assim, a comida do Natal costuma chegar até ao Ano Novo.
E bem, entretenho-vos com esta conversa há tanto tempo que o Natal deste ano já acabou. Vocês nem
deram pelo tempo passar, mas eu por acaso também não. Os meus pais ofereceram-me o tal Megazord
que pedi, mas hoje, dia 26, chamam-me à sala para falar comigo e anunciam que se vão divorciar. Aí,
perguntam-me se quero ficar com o meu pai ou com a minha mãe: nada em que não tivesse já pensado.
Foi por isso, desconfio, que me compraram o Megazord: para me despistar, para que a separação não
seja uma coisa tão difícil de digerir para mim. Porque na escola tenho sempre colegas que são filhos de
pais divorciados e acho-os meio esquisitos — diferentes de mim, não sei explicar — e agora parece que
muito em breve me vou juntar a esse clube. Resta, antes, escolher com quem quero ficar a morar,
sabendo, talvez, que tão cedo não volto a ver aquele dos dois que não escolher agora.

Chicha

O João e o José são irmãos. O pai falece quando os dois são pequenos. A mãe fica sozinha no sustento
das duas crianças. A mãe não tem grande sorte no emprego, mesmo licenciada. A mãe, em mais do que
uma casa, trabalha como empregada doméstica. A mãe não tem muito comer para pôr aos filhos;
literalmente, já vamos perceber porquê, ou como. Não neste parágrafo.
A mãe traz ao João e ao José o almoço e o jantar — para lanche ainda não há dinheiro: foco no ainda —
sempre, todos os dias. A mãe ao João traz carne e ao José traz vegetais, de manhã e à noite. O José,
um dia, está a comer os vegetais. O José olha para o prato do João. O João está a comer a carne.
— Sabes, isso que estás a comer, parece bom.
— Pede à mãe que também te traga.
Os dois irmãos costumam almoçar sozinhos. Os três só estão todos ao jantar.
— Não, eu gosto de comer os meus vegetais. Estava só a comentar.
— Certo.
O José continua a ruminar. Não nos seus vegetais: no assunto.
— Isso tem bom aspecto. Posso tirar um bocadinho?
O João franze a testa.
— Não! Não vês que até para mim é pouco?
— Mas e se eu te der um bocadinho dos meus vegetais?
— Os vegetais não me tiram a fome e não me deixam satisfeito. Zé, deixa-me comer em paz.
— Pronto, deixo.
O Zé continua a comer os vegetais. O Zé não resiste à carne, porém. O Zé, de garfo em riste, rouba um
cadecozeco do prato do João. Mas tão pouco que não encheria mais que uma colher de sopa.
— Ei!? Qu’é esta merda?
O Zé ri-se.
— Deixa de ser ganancioso, caraças. Só quero provar.
— Dá cá mas é isso! Põe de volta o que tiraste do meu prato.
O Zé, sendo o mais velho, considera que é ele quem tem razão, a juntar a uma curiosidade sua que
cada vez é maior. O Zé leva a carne da garfada à boca, sem pensar nos desejos egoístas(?) do irmão. O
Zé primeiro saboreia. O Zé trinca.
— João, epá, isto é bom!
O João continua aborrecido. Só meio aborrecido.
— Tanto que o como sempre, todos os dias.
O Zé devora o bocado de carne roubado. (Ou que consigo foi a ferros partilhado.)
— É mesmo bom!
O Zé levanta-se.
— Sabes, vou pedir à mãe para me trazer carne sempre, todos os dias, como te traz a ti.
— Tu é que sabes. O preço é o mesmo.
— Pois.
O Zé pede à mãe que lhe passe a trazer carne sempre, todos os dias, como traz ao João. A mãe não
questiona o Zé, sequer. A mãe passa a trazer carne ao Zé. Passam também duas semanas.
— Mãe…
— Diz, Zé.
— Volta-me a trazer vegetais.
— Então, não gostas da carne?
—…
— Tenho trazido peru. Queres antes frango?
— Não é isso.
— O que é, então?
— Mãe, eu até gosto de carne.
O Zé olha para baixo.
— Mais do que de vegetais até, mas é os vegetais que quero comer sempre, todos os dias.
— Mas há alguma razão para essa escolha?
— Não sei. Hábito, talvez? A carne é-me melhor, reconheço.
O Zé volta a olhar para a mãe.
— Mas são os vegetais que me preenchem, e não é só à barriga. Sou eu-eu. De inteiro.
— Está bem, filho, não penses mais nisso.
A mãe ri-se.
— Doravante, volto a trazer-te vegetais, e carne só para o teu irmão.
— Sim! Faz isso.
A mãe faz isso. A mãe volta a trazer vegetais ao José e carne ao João sempre, todos os dias. O José
fica radiante a comer os seus vegetais para o resto da vida, e o João também, mas radiante a comer a
carne, e também para o resto da vida. O João, ao contrário do José, não terá curiosidade alguma pelos
vegetais e o João não quererá provar vegetais, do José ou quaisquer outros. Nunca, em dia nenhum.

Arte suicida

Cá está. É isto de que toda a gente fala. As tuas amigas dizem que vão todas, naturalmente, estão te a
incluir a ti. Quando as outras cabeças se vão embora, aproximas-te e finalmente percebes. Miras o
poster de alto a baixo; nenhuma palavra em Português. Um DJ com um nome azeiteiro, escrito com
letras estrangeiras, e a entrada é 3 euros. Decides que vais. As tuas amigas também vão. Elas entram e
depois entras tu. Sorrateira, com a tua melhor maquilhagem - demorou mais de meia-hora a fazer - e o
teu vestido favorito, o vermelho. Está muita gente a dançar. A música parece ser Africana. É nova para ti.
A letra lembra algo que um rapaz de 12 anos usaria num engate, borbulhas e tudo. Esta repete-se e
repete-se. As pessoas esfregam-se umas nas outras e insistem que estão a dançar. Reviras os olhos.
Diriges-te ao balcão. Pedes uma amêndoa amarga. Não tens medo de estar sozinha. Continuas a olhar
as pessoas a dançar. Continuas também a beber.
Finda a noite, vão todos para casa. Despedes-te das tuas amigas. Entras pela porta. O álcool nem te
deixou zonza. Deitas-te na cama. Era esta a festa de que tanto se falava. Sentes-te apática. Adormeces.
Quando acordas de manhã, diriges-te à rede social mais próxima. As tuas amigas estão a dizer que foi
“tipo, alta noite”. Só sorris. E pões um like, para não parecer mal.

Devoção

Vou assombrar-te os sonhos seja noite ou dia e fazer dos teus nervos aquilo que que me apetecer: vai
ser o que mais queria. Vais perder e derreter tanto do teu tempo comigo, que sou egoísta e só vejo o
meu umbigo, que as virtudes deixarão de ser virtudes e nunca mais alcançarás a tua tão desejada
plenitude. Vou dar cabo de ti sem mexer um só dedo para esse fim e vais ficar perplexa de como isso
acontece e vai acontecer até ao fim dos teus dias. Não vais ter saída. Acharás que ninguém te merece
ou que és demasiado complexa, e isso nem está lá muito errado, enquanto nas sombras o teu ego vai
ficar derretido e sucumbido a uma tão simples e decadente dependência psicológica. A tua cara de
inocência nunca mais a verás, também, se calhar porque nunca existiu. E eu? Eu rio-me, claro, quando
sei que não estás a olhar.

Você também pode gostar