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OS AFECTOS DE DEUS

CARLOS JOÃO DIOGO


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DENTRO E FORA DA CATEDRAL - AS PERCEPÇÕES

Começo a escrever este texto com a preocupação de ser o mais ecuménico pos-
sível. Que neste texto caibam muitas sensibilidades. Questiono a minha capaci-
dade para ser tão abrangente, porque é um tema sensível, delicado. Depressa con-
cluo que não vale a pena complicar o que será facilmente entendível, precisa-
mente por ser sensível, por se fazer sentir.
Falar de Deus, falar de uma crença, é sempre uma tarefa difícil. Tanto para
quem escreve como para quem lê. Sabemos de antemão que muitos discordarão,
porque falamos de experiência interior, diferente em cada pessoa, percebida, con-
struída, através de caminhos também diferentes.

"Pensemos naquilo que acontece com dois grupos de pessoas que se


encontram dentro e fora de uma catedral, e que tentam comunicar-se uns
aos outros o que vêem. Olhando para os vitrais, os que estão dentro con-
templam cores brilhantes, flores, animais, personagens. Os do exterior só
vêem a superfície opaca e cinzenta dos vidros. Quando uns descrevem a sua
experiência, os outros pensam que são doentes ou mal-intencionados. No
entanto os dois grupos têm razão: estão a contar aquilo que realmente per-
1
cepcionam"1. MARINA, José
António - Ditame Sobre
Deus. Lisboa: Fim de
É com esta consciência que parto. Provavelmente estarei num dos lados da Século, 2003, p. 15.
realidade, com uma visão sempre incompleta, sempre necessitada de ser comple-
tada com a experiência do(s) outro(s), sempre diferente(s). Não é, portanto, de
afirmar uma verdade que aqui trato. Será, quando muito, a minha verdade de
hoje, consciente de que a "verdade é o que se acredita de todo o coração e com
2
toda a alma (...) É agir em conformidade com isso"2. Acrescento também que UNAMUNO, Miguel
de - Solidão. Coimbra:
abordo este tema de jeans, t-shirt e sapatilhas. Ariadne, 2005, p. ?.

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O ROSTO DE DEUS

A primeira ideia que me ocorre é a imagem de Deus que me foi transmitida


por (infeliz) tradição. Um Deus exigente, castigador, manipulador, castrador, com
o dedo apontado à sua criatura. Esse "Deus" é para mim, hoje, claramente, uma
criação do homem, uma projecção daquilo que algumas pessoas precisaram em
determinada época - ainda precisam? - para manter situações muitas vezes injus-
tificáveis. Dias, meses, anos perdidos em tentar perceber como é que Deus podia
ser, por um lado, bom, misericordioso, amor, e, por outro, castigador, mau.
Muitos dos que tiveram formação católica, como eu, costumam afirmar "fui à
missa sempre com os meu pais, até começar a pensar por mim". É natural, digo
eu. É impossível conciliar estas duas imagens de Deus. Acresce a esta dificuldade
o facto de não haver quem nos responda à questão, tantas vezes levantada pelos
acontecimentos que surgem na nossa história e da humanidade: afinal, onde está
Deus? Porque permite que haja dor, sofrimento, guerra? Entre muitas outras
questões que nos levantam dúvidas sobre Deus. No momento em que a vivência
espiritual exige mais um passo, é raro haver quem ajude a continuar a crescer
interiormente, acompanhando o crescimento exterior. Pelo contrário, a expli-
cação é tantas vezes velada porque a maturidade não é ainda suficiente para poder
entender. Não amadureço porque sou imaturo...
A relação com a dúvida nem sempre (nunca?) é pacífica em religião. A reacção
3
"Como dizem os é, habitualmente, como se a dúvida fosse já negação daquilo que se duvida. E no
Hindus, Deus é ao entanto é a dúvida que faz avançar, que faz actualizar aquilo que é transmitido
mesmo tempo pessoal e
impessoal. É impessoal
por todas as religiões há séculos. A dúvida é sempre provocadora de crescimento,
no sentido em que a quando é permitida a sua existência e apoiado o seu esclarecimento, confirman-
forma infinitamente mis- do ou infirmando o que lhe deu origem. Esta procura tratará de criar em nós algu-
teriosa de ser Pessoa
difere infinitamente da
mas certezas, pelo menos até à dúvida seguinte. O esclarecimento provoca cresci-
forma de ser humana. mento, o desprezo pelas dúvidas provoca retrocesso e incapacidade de diálogo.
Não podemos abarcar
Penso ser importante chegar a uma ideia, tão clara quanto possível, de Deus, ou
este mistério, a não ser
que apliquemos simul- simplesmente chegar à conclusão que não se quer ter ideia nenhuma. Creio que será
taneamente (...) estas do acordo de todos que o mais importante é aprender a não reconhecer em Deus
duas noções contrárias,
incompatíveis para nós,
unicamente características, critérios, julgamentos que são humanos, no sentido em
compatíveis só para que Deus não é apenas o melhor homem que podemos conceber3. É a maior dis-
Deus." WEIL, Simone - torção que podemos fazer do rosto de Deus, pensar que ele cabe nos nossos critérios.
Carta a um homem reli-
gioso. Coimbra: Ariadne,
Daqui à manipulação do que é a "vontade de Deus" é um passo muito pequeno. Já
2003, p. 37. temos muitos exemplos do que isso pode provocar, no oriente e no ocidente.

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"Porque a verdade essencial relativa a Deus é que Ele é bom. Acreditar que
Deus pode ordenar aos homens actos horrendos, de injustiça e de crueldade, é a
4
maior injustiça que podemos cometer a Seu respeito"4. IDEM, ibidem, p. 12.

Ser afectivo significa denotar afeição, ser afectuoso. Admitir um Deus afecti-
vo pressupõe a existência de uma relação de proximidade. Pressupõe acreditar
que Deus não está fechado nos templos ou, longe, no céu. Deus está, de facto,
5
próximo do homem. Acessível, disponível. Deus que se revela, em todas as "Com vínculos
humanos eu os atraía,
religiões, à pessoa humana, através de pessoas, gestos, sinais5. Até porque é de com laços de amor eu
rosto que aqui se trata. O rosto tem que ser visto. "O rosto fala-me e convida-me era para eles como os
que levantam uma cri-
a uma relação sem paralelo"6. Só desde a fé se pode ver o rosto de Deus, se pode
ancinha contra o seu
perceber este convite à relação. Para reconhecer a afectuosidade de Deus é rosto", Oséias 11, 4
necessário aceitar este convite, querer percorrer caminhos quase nunca lógicos,
6
LEVINAS, Emmanuel
quase nunca racionais. A relação com Deus, passa sempre pela vontade do ser - Totalidade e Infinito.
humano em querer encontrar-se com Ele. Haverá sempre um passo, indispensá- Lisboa: Edições 70,
vel, que a pessoa tem que dar como resposta à disponibilidade de Deus para o 1988, p. 176.

encontro7. Deus não se impõe, não se obriga8. Por ser O autenticamente livre, Vide Êxodo 3, 1-5;
7

Lucas 19, 1-5; Mateus 6,


respeita, até ao extremo das consequências, a liberdade do outro. Não poderia ser 6
de outra forma. Não revogará nunca essa liberdade. Aguarda e aceita completa e 8
"Eis que estou à porta e
totalmente o sim ou o não e assumirá em si as consequências dessa resposta. E bato: se alguém ouvir a
minha voz e abrir a
mais facilmente lhe imputamos as culpas do mal do que a proveniência do bem. porta, entrarei em sua
Mas o fundamental é que Deus deseja para a pessoa o mesmo que Ele próprio casa e cearei com ele, e
vive, atribuindo-lhe a sua mesma dignidade9. Não há distância entre Deus e a pes- ele comigo."; "Eis que
pus à tua frente uma
soa, porque o seu maior desejo é ser um com aquele que ama e, por essa razão, porta aberta que
não desiste de se relacionar com ele. Não consegue afastar-se, porque quem ama ninguém poderá fechar"
Apocalipse 3, 8.20.
deseja profundamente a comunhão total, completa com o amado. Procura-o 9
"Eu declarei: Vós sois
incansavelmente10. O sofrimento de Deus é que o homem escolha ignorá-lo. Não deuses, todos vós filhos
como alguém a quem prestar contas, mas sim como alguém que ama até ao do Altíssimo", Salmo 82,
6; também Genésis 1,
extremo do amor. Deus não espera nada do homem, apenas ama. É a única coisa 26; João 10, 34; Actos
que ele sabe fazer - amar, sempre. Independentemente do que o homem possa dos Apóstolos 17, 28;
fazer ou dizer. Com fé ou sem ela. Cada pessoa é incondicionalmente amada. A Sabedoria 2, 23; 1.ª
Epístola de João 3, 1-2.
tantas vezes referida passagem sobre o amor na Carta de Paulo aos Coríntios capí- 10
“Eu mesmo cuidarei
tulo 13, não é mais do que o próprio Deus. Não são atitudes que aí se descrevem, do meu rebanho e o
como o caminho ideal de ascese. Deus é amor11. O amor é, Deus é. procurarei." Ezequiel
34, 11.
11
1.ª Epístola de João 4,
8; Salmo 103

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OS MOVIMENTOS DO CORAÇÃO

O aparecimento das primeiras dúvidas coincidiu, em mim, com o início da


procura de um sentido, interior ou exterior, para a vida, para o quotidiano.
Mesmo que talvez não conscientemente. Mais uma vez, própria do crescimento.
Esta procura é, antes de mais, uma necessidade. Nuns surge mais cedo do que
noutros, mas acaba por surgir, seja expressa ou não. É necessidade de percepção
daquilo a que eu chamo os movimentos do coração. São muitas vezes pequenos,
imperceptíveis. Mas são reais. Desconhecidos mas reconhecidos. Durante a ado-
lescência começamos a sentir estes movimentos, sem saber o que lhes fazer.
Encontramo-nos tantas vezes com sentimentos, moods como tão bem definem os
ingleses, com a dura realidade até então não completamente perceptível e que se
nos revela (ou é revelada) de repente. Cresce em nós a noção de que "lá fora o
vento nem sempre sabe a liberdade. A gente finge, mas sabe que não é verdade.
12
VEIGA, Mafalda - Foge ao vazio, enquanto brinda, dança e salta"12. Nem tudo é o que parece, nem
Gente Perdida.
Tatuagens. tudo é tão colorido como pensávamos. Entramos no mundo dos adultos. Nu e cru.
Assim, sem aviso, sem nos perguntarem se queremos, se estamos preparados.
Apercebemo-nos que são muitas as vezes que não entendemos o que nos acon-
tece. Pensamos ser completamente livres, mas, no sossego do nosso quarto, sen-
timo-nos presos, prisioneiros. Uma melancolia... talvez noutra altura alegria,
noutra paz... A maior parte das vezes não sabemos de onde vem. Muito do que se
passa na nossa interioridade é-nos estranho, desconhecido. Por falta de tempo,
por medo. Medo do silêncio, medo do que podemos encontrar; medo do descon-
hecido - estes movimentos são, hoje, o grande desconhecido. Não só desconheci-
dos - ignorados, como algo a que não devemos dar importância. Faço o paralelo
(bastante livre) com o momento em que os portugueses se encontravam a bordo
das caravelas para sair à descoberta, mar adentro, com muito receio do que se
13
CAMÕES, Luis Vaz de poderia encontrar. Hoje, como então, lá continua o "velho, d'aspeito venerando,
- Os Lusíadas. Lisboa:
que ficava nas praias, entre a gente, postos em nós os olhos, meneando três vezes
Instituto Camões,
www.instituto- a cabeça, descontente, a voz pesada um pouco alevantando, que nós no mar ouvi-
camoes.pt/escritores/ca mos claramente"13, avisando que dessa jornada só poderá vir desgraça. Hoje, como
moes/canto4.htm
14
CAMÕES, Luis Vaz de
então, é necessária coragem, certeza de que percorrendo caminhos interiores
- Os Lusíadas. Lisboa: também poderemos dar "novos mundos ao mundo"14. E, no entanto, o medo de
Instituto Camões, percorrer o caminho até esse lugar interior e de, ao chegar, deixarmo-nos estar,
www.instituto-
camoes.pt/escritores/ca
vem de pensar que aí encontraremos desolação, solidão. E haverá alguma coisa
moes/canto2.htm que hoje evitamos mais do que a solidão?

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A SOLIDÃO: O MAIS IMPORTANTE ENCONTRO

Não é possível continuar a querer fazer divisões dentro de nós, ou sequer pen-
sar partindo desse pressuposto. Eu sou um só, uma unidade. Sou constituído por
tudo o que sou, até pelo que desconheço, ignoro ou evito, de mim. Arrisco-me a
dizer que sou constituído principalmente por isso. Talvez eu seja muito diferente
de todas as outras pessoas, mas tenho uma capacidade imensa para negar o que de
mim não gosto, não entendo, ou simplesmente não conseguindo mudar me custa
suportar. Inclusivamente a minha exagerada tendência para o disparate, o que me
tem trazido alegrias mas também custado alguns dissabores. Em vão tento mudar
15
isso15, que me constitui, e que tantas vezes mascaro por detrás de uma postura Não pretendo aqui
entrar em discussões
mais ou menos séria. éticas ou morais sobre o
Tudo isto que se passa "dentro" de nós é "visível" principalmente em silêncio que deve ou não ser
mudado numa pessoa,
e em solidão. Os momentos de solidão são muitas vezes também, erradamente, de sobre o que é bem e o
sofrimento. É verdade que somos um ser comunitário, feito para a relação. Mas que é mal. Falo apenas
isto não pressupõe a incapacidade de estar sozinho, de fazer silêncio interior e ao nível da interiori-
dade e que não tem
exterior, para nos encontrarmos e descobrirmos em nós os outros. Em verdade consequências exteri-
ores significativas.
Como é natural excluo
"não há diálogo mais verdadeiro do que aquele que estabeleces contigo deste meu raciocínio
mesmo, e este diálogo só pode ser estabelecido quando estás sozinho. Em tudo o que leva à vio-
solidão, e apenas em solidão, podes conhecer-te a ti mesmo como próximo; lência, que é claramente
reprovável.
e enquanto não te conheceres como próximo, não poderás chegar a ver nos
teus próximos outros eus.(...)a voz de Deus no nosso coração, o eco do
silêncio sossegado, não é mais do que a voz dos séculos e dos homens. A
nossa vida íntima, a nossa vida de solidão, é um diálogo com todos os
homens"16. 16
UNAMUNO, Miguel
de - Solidão. Coimbra:
Há sempre um movimento que nos leva para dentro. É sempre necessário sair Ariadne, 2005, p. ?.

de onde nos encontramos e pormo-nos a caminho. Nos dias de hoje talvez seja o
movimento que mais tempo nos pode levar a executar, habituados que estamos a
viver no imediato, na superficialidade. Fugimos do isolamento, do silêncio, pelo
susto de correr o risco de cair numa qualquer depressão, assustados pela possível
incapacidade para lidar com o que encontraremos.
A descoberta de que o nosso interior é habitado, que há vozes, olhares, senti-
mentos, calor, conforto, faz com que passemos do medo à necessidade de percor-
rer constantemente o caminho para esse lugar. Gosto de pensar nesse lugar de

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encontro comigo, com o mundo, com Deus, tão bem expresso nos versos "quan-
do chego a casa, cansado e abatido, eu vou para onde o ar é fresco e doce. Afasto-
17
"Up on the Roof", de
me da multidão barulhenta e da correria da cidade"17. É para mim o lugar de
Gerry Goffin e Carole
King, do álbum "Flag" de encontro com Deus cujo rosto, para os cristãos, se tornou bem mais claro com as
James Taylor. "So when I palavras reveladoras de Jesus. Não posso aqui deixar de referir a tão conhecida e
come home feeling tired
and beat, I'll go up
ao mesmo tempo tão mal interpretada parábola do filho pródigo18. A começar pelo
where the air is fresh título. Esta é claramente uma parábola sobre o Pai e não sobre o filho, pródigo ou
and sweet. I'll get far não. Aí se revela o coração do Pai, que não julga, não condena, antes espera, sofre,
away from the hustling
crowd and all the rat- ama, devolve a dignidade de filho, sem perguntas. Acompanho estes pensamen-
race noise down in the tos com a fantástica representação desta
street."
18
cena por Rembrandt19. O rosto, o corpo
Lucas 15, 11-32
19
REMBRANDT, do pai, cansado, desgastado pela vida, as
Harmenszoon Van Rijn - suas mãos que abraçam, acolhem, o pé
The return of the prodi-
do filho descalço, o calçado gasto pelo
gal son. c. 1662; Oil on
canvas, The Hermitage, caminho. Depois há a aparente cegueira
St. Petersburg. do pai, que me impressiona porque vê,
vê muito para além do que o filho
mostra. Diríamos que é um amor muito
pouco exigente, até irresponsável. Sai da
nossa lógica, como atrás referi. Por
detrás da solidão, do silêncio, estão estas
mãos, este olhar cansado mas que ama
profundamente, sem fazer perguntas,
que apenas diz para descansar, que está
tudo bem. Um olhar que me restaura,
que me devolve a tantas vezes perdida
dignidade de ser pessoa. Deus não espera nada da pessoa, não quer nada dela.
Apenas espera, com o olhar posto no caminho, que alguém surja no horizonte,
alguém a quem possa abraçar, colocar as mãos sobre os ombros, alguém a quem
descansar, a quem amar. Estes são os afectos de Deus para com a pessoa humana.
Nada mais. Nada mais simples.

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