Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
OS AFECTOS DE DEUS
Começo a escrever este texto com a preocupação de ser o mais ecuménico pos-
sível. Que neste texto caibam muitas sensibilidades. Questiono a minha capaci-
dade para ser tão abrangente, porque é um tema sensível, delicado. Depressa con-
cluo que não vale a pena complicar o que será facilmente entendível, precisa-
mente por ser sensível, por se fazer sentir.
Falar de Deus, falar de uma crença, é sempre uma tarefa difícil. Tanto para
quem escreve como para quem lê. Sabemos de antemão que muitos discordarão,
porque falamos de experiência interior, diferente em cada pessoa, percebida, con-
struída, através de caminhos também diferentes.
OS AFECTOS DE DEUS - 45
crescer 23 por 20 FINAL(1).qxp 05-12-2005 17:05 Page 46
O ROSTO DE DEUS
"Porque a verdade essencial relativa a Deus é que Ele é bom. Acreditar que
Deus pode ordenar aos homens actos horrendos, de injustiça e de crueldade, é a
4
maior injustiça que podemos cometer a Seu respeito"4. IDEM, ibidem, p. 12.
Ser afectivo significa denotar afeição, ser afectuoso. Admitir um Deus afecti-
vo pressupõe a existência de uma relação de proximidade. Pressupõe acreditar
que Deus não está fechado nos templos ou, longe, no céu. Deus está, de facto,
5
próximo do homem. Acessível, disponível. Deus que se revela, em todas as "Com vínculos
humanos eu os atraía,
religiões, à pessoa humana, através de pessoas, gestos, sinais5. Até porque é de com laços de amor eu
rosto que aqui se trata. O rosto tem que ser visto. "O rosto fala-me e convida-me era para eles como os
que levantam uma cri-
a uma relação sem paralelo"6. Só desde a fé se pode ver o rosto de Deus, se pode
ancinha contra o seu
perceber este convite à relação. Para reconhecer a afectuosidade de Deus é rosto", Oséias 11, 4
necessário aceitar este convite, querer percorrer caminhos quase nunca lógicos,
6
LEVINAS, Emmanuel
quase nunca racionais. A relação com Deus, passa sempre pela vontade do ser - Totalidade e Infinito.
humano em querer encontrar-se com Ele. Haverá sempre um passo, indispensá- Lisboa: Edições 70,
vel, que a pessoa tem que dar como resposta à disponibilidade de Deus para o 1988, p. 176.
encontro7. Deus não se impõe, não se obriga8. Por ser O autenticamente livre, Vide Êxodo 3, 1-5;
7
OS AFECTOS DE DEUS - 47
crescer 23 por 20 FINAL(1).qxp 05-12-2005 17:05 Page 48
OS MOVIMENTOS DO CORAÇÃO
Não é possível continuar a querer fazer divisões dentro de nós, ou sequer pen-
sar partindo desse pressuposto. Eu sou um só, uma unidade. Sou constituído por
tudo o que sou, até pelo que desconheço, ignoro ou evito, de mim. Arrisco-me a
dizer que sou constituído principalmente por isso. Talvez eu seja muito diferente
de todas as outras pessoas, mas tenho uma capacidade imensa para negar o que de
mim não gosto, não entendo, ou simplesmente não conseguindo mudar me custa
suportar. Inclusivamente a minha exagerada tendência para o disparate, o que me
tem trazido alegrias mas também custado alguns dissabores. Em vão tento mudar
15
isso15, que me constitui, e que tantas vezes mascaro por detrás de uma postura Não pretendo aqui
entrar em discussões
mais ou menos séria. éticas ou morais sobre o
Tudo isto que se passa "dentro" de nós é "visível" principalmente em silêncio que deve ou não ser
mudado numa pessoa,
e em solidão. Os momentos de solidão são muitas vezes também, erradamente, de sobre o que é bem e o
sofrimento. É verdade que somos um ser comunitário, feito para a relação. Mas que é mal. Falo apenas
isto não pressupõe a incapacidade de estar sozinho, de fazer silêncio interior e ao nível da interiori-
dade e que não tem
exterior, para nos encontrarmos e descobrirmos em nós os outros. Em verdade consequências exteri-
ores significativas.
Como é natural excluo
"não há diálogo mais verdadeiro do que aquele que estabeleces contigo deste meu raciocínio
mesmo, e este diálogo só pode ser estabelecido quando estás sozinho. Em tudo o que leva à vio-
solidão, e apenas em solidão, podes conhecer-te a ti mesmo como próximo; lência, que é claramente
reprovável.
e enquanto não te conheceres como próximo, não poderás chegar a ver nos
teus próximos outros eus.(...)a voz de Deus no nosso coração, o eco do
silêncio sossegado, não é mais do que a voz dos séculos e dos homens. A
nossa vida íntima, a nossa vida de solidão, é um diálogo com todos os
homens"16. 16
UNAMUNO, Miguel
de - Solidão. Coimbra:
Há sempre um movimento que nos leva para dentro. É sempre necessário sair Ariadne, 2005, p. ?.
de onde nos encontramos e pormo-nos a caminho. Nos dias de hoje talvez seja o
movimento que mais tempo nos pode levar a executar, habituados que estamos a
viver no imediato, na superficialidade. Fugimos do isolamento, do silêncio, pelo
susto de correr o risco de cair numa qualquer depressão, assustados pela possível
incapacidade para lidar com o que encontraremos.
A descoberta de que o nosso interior é habitado, que há vozes, olhares, senti-
mentos, calor, conforto, faz com que passemos do medo à necessidade de percor-
rer constantemente o caminho para esse lugar. Gosto de pensar nesse lugar de
OS AFECTOS DE DEUS - 49
crescer 23 por 20 FINAL(1).qxp 05-12-2005 17:06 Page 50
encontro comigo, com o mundo, com Deus, tão bem expresso nos versos "quan-
do chego a casa, cansado e abatido, eu vou para onde o ar é fresco e doce. Afasto-
17
"Up on the Roof", de
me da multidão barulhenta e da correria da cidade"17. É para mim o lugar de
Gerry Goffin e Carole
King, do álbum "Flag" de encontro com Deus cujo rosto, para os cristãos, se tornou bem mais claro com as
James Taylor. "So when I palavras reveladoras de Jesus. Não posso aqui deixar de referir a tão conhecida e
come home feeling tired
and beat, I'll go up
ao mesmo tempo tão mal interpretada parábola do filho pródigo18. A começar pelo
where the air is fresh título. Esta é claramente uma parábola sobre o Pai e não sobre o filho, pródigo ou
and sweet. I'll get far não. Aí se revela o coração do Pai, que não julga, não condena, antes espera, sofre,
away from the hustling
crowd and all the rat- ama, devolve a dignidade de filho, sem perguntas. Acompanho estes pensamen-
race noise down in the tos com a fantástica representação desta
street."
18
cena por Rembrandt19. O rosto, o corpo
Lucas 15, 11-32
19
REMBRANDT, do pai, cansado, desgastado pela vida, as
Harmenszoon Van Rijn - suas mãos que abraçam, acolhem, o pé
The return of the prodi-
do filho descalço, o calçado gasto pelo
gal son. c. 1662; Oil on
canvas, The Hermitage, caminho. Depois há a aparente cegueira
St. Petersburg. do pai, que me impressiona porque vê,
vê muito para além do que o filho
mostra. Diríamos que é um amor muito
pouco exigente, até irresponsável. Sai da
nossa lógica, como atrás referi. Por
detrás da solidão, do silêncio, estão estas
mãos, este olhar cansado mas que ama
profundamente, sem fazer perguntas,
que apenas diz para descansar, que está
tudo bem. Um olhar que me restaura,
que me devolve a tantas vezes perdida
dignidade de ser pessoa. Deus não espera nada da pessoa, não quer nada dela.
Apenas espera, com o olhar posto no caminho, que alguém surja no horizonte,
alguém a quem possa abraçar, colocar as mãos sobre os ombros, alguém a quem
descansar, a quem amar. Estes são os afectos de Deus para com a pessoa humana.
Nada mais. Nada mais simples.