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{ENTREVISTA}

RICARDO LÍSIAS:
UM CONTRAPONTO AO ESTABLISHMENT

ANDRÉ TESSARO PELINSER E LETÍCIA MALLOY


* especial para a {voz da literatura}

foto: matheus dias (reprodução)


3 {voz da literatura} n. 10 fevereiro 2019
E m uma série de cartas enviadas por Anton Tchékhov ao
editor Aleksei Suvórin entre os anos de 1888 e 1890, o
escritor russo pondera sobre repreensões dirigidas a sua
obra, acusada de ser indiferente quanto à valoração do bem e do
mal e, ainda, de carecer de ideais. Em algumas dessas missivas,
como as enviadas em 27 de outubro de 1888 e em 01 de abril
de 1890, Tchékhov discorre sobre questionamentos relativos
à ausência, em seus textos, de um engajamento categórico
em questões políticas e sociais e sustenta que a função do
artista não consiste em resolver problemas, mas em explicitá-
los. (2002, p. 91) Em sua visão, não cabe ao artista conciliar o
texto literário ao sermão, mas apontar perspectivas a partir das
quais os problemas possam ser observados. (1966, p. 60; 64) O
ofício do escritor abrangeria, assim, o desenvolvimento de um
projeto estético capaz de anunciar possibilidades de construção
de sentidos políticos para tudo quanto o rodeasse, sem que tal
projeto viesse a implicar a sedimentação de quaisquer juízos
éticos. Além de afirmar que a separação entre formulações éticas
e composição artística consiste em imperativo de técnica literária,
Tchékhov ressalta, ao refletir sobre seu processo de composição,
que, “quando escrevo, eu conto inteiramente com o leitor para
acrescentar, por si mesmo, os elementos subjetivos que não estão
presentes na narrativa.” (1966, p. 64, tradução nossa)
Na matriz das reflexões expostas por Tchékhov a Suvórin,
encontram-se aspectos de uma questão que, remontando à
Antiguidade Clássica, concerne à existência de pontos de
contato entre significações associadas a pressupostos éticos e a
possibilidades de criação artística liberadas do viés deontológico.
Visitada por perspectivas críticas, filosóficas e históricas
distintas, a interlocução entre ética e estética é retomada na
contemporaneidade e se faz verificar em discussões acerca da
existência de limites formais e materiais no processo criativo.
Nem sempre a discussão sobre esse problema perene se realiza
de maneira satisfatória, resvalando, como se verifica nos dias

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atuais, em terrenos perigosos como os que ensejam o fechamento
de exposições e o apedrejamento simbólico de museus.
Se de um lado a discussão sobre pontos de contato entre
ética e estética é fragilmente conduzida, como atestam episódios
ocorridos recentemente em Porto Alegre, São Paulo e no Rio de
Janeiro, de outro é contemplada com maior acuidade. É o que se
verifica, por exemplo, na atividade de escrita criativa do paulistano
Ricardo Lísias, entrevistado no âmbito do projeto Notícia da atual
literatura brasileira: entrevistas, conduzido pelos professores
Vitor Cei (UNIR), André Tessaro Pelinser (UFRN), Letícia Malloy
(UERN) e Andréia Delmaschio (IFES). Na entrevista a seguir,
concedida em dezembro de 2017 e revista pelo escritor em janeiro
de 2019, Lísias avalia criticamente tanto a impossibilidade de
uma ética artística, assinalando neste termo um oximoro, como
questiona a maneira pela qual artistas contemporâneos têm se
valido da imagem de bons moços e esvaziado, por consequência,
as possibilidades de uma presença e de uma arte contestatórias
o bastante para efetivamente provocarem desconforto ao
establishment.
Vencedor em 2012 do prêmio de Melhor Romancista
concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) com
O Céu dos Suicidas, Ricardo Lísias vem percorrendo os caminhos do
conto e do romance a partir da publicação, dentre outros textos, de
Cobertor de estrelas, Concentração e outros contos, Duas praças, O livro
dos mandarins, Divórcio e A vista particular, além de ter publicado
a série e-books intitulada Delegado Tobias. Em seu texto literário,
Lísias combina a atividade de escrita criativa a inquietações
possivelmente associadas ao trabalho de pesquisa, desenvolvido
em pós-doutorado realizado na Universidade Federal de São Paulo.
Dessa conciliação parece decorrer, em grande medida, a atenção
do autor a aspectos formais pertinentes à construção do texto e a
busca por uma narrativa dissociada de inclinações à representação
e desembaraçada de parâmetros axiológicos estreitos.
Com a palavra, o autor.

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1. Cada escritor possui um modus operandi, por 2. Nas suas obras, também chamam atenção os
assim dizer. Em seu trabalho, é possível perceber narradores, que seguidamente refletem, em ritmo
algumas características marcantes bastante frenético, sobre a sua própria situação e sobre o ato
atreladas às poéticas da contemporaneidade, como da escrita. Até que ponto esses elementos dizem de
a fragmentação narrativa, o diálogo com novas seu processo criativo?
mídias e o aproveitamento de experiências do A autorreflexão faz parte da constituição do próprio
cotidiano. Você poderia nos falar um pouco sobre narrador, pois não pretendo neutralizá-lo. Não quero
as opções formais e temáticas que norteiam seu neutralidade em nenhum aspecto da minha criação.
projeto literário? Acho que não é possível, na verdade, qualquer tipo
Em primeiro lugar e há já bastante tempo estão para de neutralidade. O que se pode fazer é criar uma
mim as questões formais. Procuro pensar nelas com máscara em que, através de alguns recursos narrativos
intensidade e oferecer já conhecidos, sobra a
para mim mesmo diversos
desafios. Embora não seja
uma tarefa fácil: a linguagem
é porosa, traiçoeira e falha.
“concentrado
Eu estou muito
em
impressão de que o narrador
é uma figura equidistante
entre a obra e o leitor. Não
é. Ele é tão artificial quanto
Como ao mesmo tempo é qualquer criação e qualquer
muito prazerosa, é o tipo de leitura. Por isso prefiro expor
trabalho que gosto muito de compreender como o narrador frágil, construído
fazer. Preciso evidentemente através da linguagem, ainda
buscar algum tipo de posso evitar fazer a mais frágil que ele.
correspondência (não sei
se essa palavra é a melhor, arte curvar-se a uma 3. No que se refere à sua
acho que não...) entre as trajetória literária, houve
ferramentas formais que vou representação da um momento inaugural
utilizar e a narrativa que será ou o caminho se fez
produzida por elas. Aqui, realidade. gradualmente? Em que
aliás, já não sei se a palavra momento da vida você se
“narrativa” também é a melhor. Olha aí o problema da percebeu um escritor?
linguagem insuficiente... Comecei a publicar muito cedo, aos 24 anos. Não acho
A propósito, peço que essa entrevista seja publicada isso bom nem ruim, simplesmente é como se deu para
com a data. mim. Do mesmo jeito, não tenho nenhum problema com
Eu estou muito concentrado em compreender como os meus primeiros livros. Gosto deles, inclusive. Mas
posso evitar fazer a arte curvar-se a uma representação com 42 anos tenho quase 10 livros publicados, o que
da realidade. Não é isso o que eu quero. Portanto não significa que de fato passei por várias fases. No meu caso,
posso descuidar desse tipo de preocupação. Acho que inclusive, acho que a palavra “crise” é mais adequada,
a literatura pode ainda produzir muita coisa nova inclusive, que “fase”, mas as duas significam que com o
se deixar para trás a ideia de representação, buscar passar do tempo tive diferentes impressões. O que não
explorar a dificuldade conceitual que existe no interior mudou para mim foi sempre a dificuldade de expressão
do termo “realidade” e com isso produzir objetos que e um estranhamento com a linguagem. Hoje, não vejo
possam residir nessas dobras. Acho que aqui pode nenhuma necessidade de ser “escritor”. O que eu desejo
residir uma possível força nova para a atividade de é poder continuar criando algo novo todos os dias.
criação. Outro dia, por força da situação, estive em um evento

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em que algumas pessoas que publicaram livros se
manifestaram. Pareciam deslumbradas com o fato
de serem “escritoras”. Afirmavam inclusive a alegria
de poder se cercar de amigos também escritores, em
um grupo alegre e animado. Fiquei pasmo. Achei uma
graça aquela felicidade juvenil. Mas prefiro manter uma
relação tensa com todas as instâncias da produção e
circulação artísticas. Então, não consigo me colocar à
vontade com isso de ser “escritor”.

4. Alguns de seus textos geraram controvérsias que


extrapolaram o âmbito literário. Como você avalia a
recepção de sua obra? Em que medida a inclusão de
seu nome na lista de vinte melhores jovens escritores
do Brasil, publicada pela revista Granta em 2012, e os
prêmios literários influenciaram o reconhecimento
da sua literatura?
Vou começar pelo final, porque a pergunta é
sintomática: curiosamente, muitos intelectuais do
meio acadêmico acham que eu ganhei muitos prêmios. do pseudônimo”, ao passo que a Livraria Martins
Ao contrário, ganhei pouquíssimos: uma vez fiquei em Fontes, em São Paulo, acabou dispondo esse livro
terceiro lugar no extinto Portugal Telecom e depois e o restante do seu trabalho na mesma prateleira,
ganhei um prêmio da Associação Paulista de Críticos contrariamente ao que você queria. Por que você
de Arte. Nada mais. Tenho muita dificuldade para sentiu essa inquietação? Não seria uma maneira de
frequentar espaços do establishment literário, não controlar a recepção da obra?
consigo agradar maiorias e muito menos cumprir certos Na verdade, minha irritação se deve exclusivamente
protocolos. Dessa forma, por que o meio acadêmico ao problema judicial. Se não tivesse havido ingerência
acha que eu ganhei prêmios? Porque esse lugar estuda jurídica sobre o projeto, até hoje ninguém saberia que
muito meus trabalhos e me dá muita atenção. Aqui sou o criador do “Eduardo Cunha (pseudônimo)”.
já se vê que meio acadêmico e establishment literário Talvez desconfiasse, mas a revelação se deu
não são a mesma coisa... exclusivamente por conta de uma ação na justiça
A recepção da minha obra, portanto, é essa: muita conduzida pelos advogados do ex-deputado federal.
atenção do meio acadêmico e uma certa repulsa, mal A ação foi bem sucedida em primeira instância
disfarçada, do establishment. Estou razoavelmente exclusivamente porque esses advogados ocultaram
satisfeito com isso. do juízo uma série de informações. Quando essas
informações (sobretudo o caráter ficcional da obra,
5. A publicação de Diário da Cadeia (2017) faz parte que estava expresso no exemplar do volume) chegaram
de um projeto literário mais amplo, que, pelo uso à justiça, permitiu-se que o livro fosse distribuído
de pseudônimo, de certa maneira dissocia a autoria sem nenhuma ressalva. Já perdi a conta de quantos
daquele livro da figura pública de Ricardo Lísias. recursos ganhei. Em novembro de 2017, aliás, a 1°
Recentemente, no Facebook, você comemorou turma do Supremo Tribunal Federal confirmou, por
que a Festa Literária de Cachoeira, na Bahia, unanimidade, a decisão da ministra Rosa Weber a
respeitou o seu desejo e separou os seus livros “dos favor do livro.
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Ou seja: houve uma medida de censura que modificou mais detidamente a autoficção? Além disso, você
meu trabalho. Isso independe tanto da minha vontade considera que ainda persiste, no âmbito da crítica
de criação quanto do empenho de interpretação dos especializada ou fora dele, certa confusão entre
leitores. Algumas livrarias evitaram identificar o livro escritor, autor e narrador? Seus livros contribuem
comigo, talvez por respeitar minha opção autoral e para diluir essas fronteiras ou para explicitá-las?
reconhecer o abuso da ação na justiça. Outras, porém, São muitas questões em uma só, vou tentar lidar
incorporaram o livro à minha obra. Pior que essas sem separadamente com cada uma delas. A recepção do
dúvida são aquelas que até hoje não vendem o livro, Divórcio foi de fato marcante. Eu imaginava algumas
por receio sei lá eu do quê. das reações, mas em nenhuma hipótese a forte
tentativa de despolitização que o livro sofreu. Muita
6. O romance Divórcio (2013) teve sua recepção gente simplesmente ocultou que o livro se refere ao
marcada por algumas polêmicas. Logo em seguida, jornalismo cultural. Não é um livro sobre adultério,
você publicou a série de e-books Delegado Tobias mas sim um livro sobre adultério ocorrido no Festival
(2014), que explorou os limites da autoficção, de Cannes para que um jornal soubesse antes dos
incluindo a criação de um perfil fictício no Facebook outros quem iria receber o prêmio principal. Isso está
e a incorporação das reações do público à narrativa. claro no livro, mas muita gente oculta. Ou melhor: isso
A Polícia Federal chegou a abrir um inquérito contra aconteceu mais durante o lançamento e nos meses
você, o qual também acabou sendo posteriormente seguintes. Hoje o romance é bem mais aceito.
ficcionalizado. Em que medida a recepção de Como o livro foi alvo de muita fofoca, resolvi assim
Divórcio desencadeou um desejo de explorar fazer um trabalho sobre fofoca. Para mim os ebooks da

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a partir dessa chave. Isso é observado na recepção de
Divórcio em razão de certa tendência a indagar se o
que o narrador relata sobre a esposa corresponde à
realidade. Como você analisa a permanência desse
tipo de leitura em face do romance e, especificamente,
em relação a Divórcio?
Sim, isso aconteceu. Há, como está embutido na
pergunta, um aspecto regressivo nesse tipo de
leitura. Algumas pessoas, com ou sem um doutorado,
recusam-se a enxergar qualquer literatura que não
seja a mimética. Para esse tipo de leitor, a literatura
representa a realidade e pronto. Nada além disso poderá
existir. Há nisso tudo uma segunda consequência:
qualquer aspecto político possível do texto literário
fica reduzido, para não dizer completamente apagado.
No caso do romance Divórcio isso é muito claro.
Houve uma série de tentativas de despolitizar o livro,
sobretudo com a operação que a pergunta descreve. E
as leituras continuaram: “se for tudo verdade, então
esse livro não serve para nada, já que é antiético.”
Não sei muito bem o que isso quer dizer, mas foi
série Delegado Tobias eram sobre fofoca. Mas me enganei: falado muito mais de uma vez. Até hoje muita gente
eles diziam respeito às instituições brasileiras. Fiquei se recusa a aceitar que Divórcio é uma denúncia sobre
bastante perplexo quando a notícia do inquérito o jornalismo ainda praticado no Brasil e no mundo.
chegou. É uma confusão que impressiona até hoje. Não é literatura de representação da realidade, mas de
Eu acho que a confusão entre escritor, autor e intervenção na realidade.
narrador ainda existe sim, mas dá para colocar no Algo interessante de analisar seria a origem do
meio disso outras confusões: com personagens, obras, discurso despolitizador da literatura.
realidade etc. No meio especializado (o acadêmico)
isso ocorre menos, ainda que ocorra. Fora dele, é algo 8. Nas últimas décadas, é provável que você tenha
quase incontrolável, embora eu ache que esteja aos sido o escritor que mais protagonizou embates
poucos diminuindo. Acho que não apenas os meus, judiciais desencadeados pela ficção. Como vê a
mas muitos livros estão ajudando a fazer com que as relação entre a arte e o aparato judicial do Estado?
pessoas parem de ficar vidradas nessas confusões e Deve haver uma ética artística?
por fim construam seus sentidos para a arte com que No mundo inteiro a arte sofre assédio, muitas vezes
se defrontam. jurídico. No entanto, há limites e ponderações. No
meu caso, acho que uma parte dos problemas se dá
7. O efeito de autenticidade e a autoridade do por certas “particularidades” da sociedade brasileira
narrador costumam ser associados às origens do e consequentemente de seu poder judiciário. Sendo
gênero romanesco a partir da análise de textos claro: o caso com o Delegado Tobias jamais poderia
como Robinson Crusoé (1719). Três séculos depois da ter acontecido, foi um engano triste e sintomático.
divulgação do romance de Daniel Defoe, é possível Quanto a Diário da cadeia, parte dos problemas se
verificar que parte da crítica literária continua a ler dá por conta de o livro lidar com alguns políticos que
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tentam instrumentalizar o poder judiciário. Como
não podem praticar assédio diretamente à figura do
artista, fazem de forma indireta, como se dissessem:
quem tentar me incomodar através da literatura vai
ser processado. Enfim, deveria haver algum tipo de
mecanismo do poder judiciário que evitasse esse tipo
de coisa. Quanto à proibição do livro por um mês, isso
eu acho lamentável e inadmissível.
Acho no geral que o poder judiciário deveria se afastar
da arte. Há muita jurisprudência nesse sentido, mas
acredito que deveria haver algo mais concreto e radical,
do tipo: “Isso é arte, então o poder judiciário não tem
nada a dizer”. Um juiz muito conservador nos Estados
Unidos, muito mesmo, defendia esse princípio e dizia
que, quanto à arte, se não houver dinheiro público, o
artista que faça o que bem entender.
Quanto à segunda pergunta, não a compreendi muito
bem. No geral, “ética” é um conceito que impõe limites.
muitos ingleses logo após aprovar nas urnas a saída
Arte não pode ter nenhum limite, portanto são dois
da União Europeia foram à internet para descobrir o
campos que não se tocam.
que afinal de contas é União Europeia... Não acho por
exemplo que as redes sociais são a origem e o maior
9. A vista particular (2016) tem como personagem
responsável pelo que está acontecendo. Enfim, elas
principal um artista plástico que faz do cotidiano
tiveram excelente papel durante a Primavera Árabe,
brasileiro de violência e abusos a matéria-prima de
por exemplo. Infelizmente, muitos países árabes
suas obras. Porém, as demais personagens parecem
tiveram depois um retorno à velha ordem.
não perceber o absurdo da situação e a força da
No recente filme de João Moreira Salles, o
crítica. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos
extraordinário No intenso agora, há a sugestão de
a ascensão de uma onda reacionária que traz em si
que grupos regressivos sempre reagem a qualquer
matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos.
movimento de conquista mais visível. A todo grande
Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender:
levante se sucede uma manifestação conservadora. A
onde estava guardada tanta monstruosidade?
propósito, vejamos sobre isso o que aconteceu depois
Houve um ponto ou marco crucial para a detonação
das belas Jornadas de Junho de 2013 aqui no Brasil.
de uma circunstância como esta que vivemos hoje?
Acho que nesse momento vivemos riscos gigantescos.
O que você imagina ou espera como coda do atual
Donald Trump por exemplo está minando os já
estágio da humanidade?
bastante frágeis acordos de paz entre Israel e a
Seria muito arriscado responder diretamente a essa
Palestina. Há poucos meses, gente com cartazes
pergunta. Ou melhor: só acho possível uma resposta
louvando o torturador Brilhante Ustra resolveu
incompleta, já que não vejo chance de enxergar com
aparecer na Câmara Municipal de São Paulo. Enfim,
clareza nem o que está acontecendo e muito menos
parece que o pior do ser humano decidiu aparecer tudo
onde tudo isso pode chegar. Acho que o único
junto, de uma vez só e com bastante potência.
aspecto claro da realidade contemporânea é que o
Não sei onde isso vai terminar. Mas posso dizer
pensamento regressivo chegou a espaços de poder em
que o meu lugar eu conheço: estou contra todo esse
muitos lugares do mundo. Sabe-se por exemplo que

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discurso regressivo, contra os ataques aos acordos bem o que dizer. O barco vai andando, muita coisa
de paz, contra a dissolução dos acordos em defesa acaba sendo publicada sem que a gente possa alcançar.
do meio ambiente e contra a destruição de todos os Não tenho nenhuma empolgação: ainda enxergo
poucos e tímidos direitos que tínhamos conquistado. muito bom comportamento, falta de ousadia e alguma
E sobretudo torço para que quando isso passar, não acomodação aos moldes que o establishment pede. Por
reste a ruína dos nossos prédios e, mais ainda, a nossa. sua vez, esse inchaço tem oferecido espaços paralelos
Acho possível sim... muito estimulantes. Outro volume que me agradou
Como se sabe, uma onda ultraconservadora está muito foi Sessão, de Roy David Frankel. Vivemos um
chegando ao poder em vários países. Por aqui, já grande momento da poesia brasileira, eu acho.
derrubou tudo... Talvez estivéssemos despreparados
para enxergar as coisas em sua dimensão real. Ou será 11. Você tem participado de festivais e feiras
que vivemos um típico mecanismo de negação? De literárias. Que avaliação crítica você faz a respeito
uma forma ou de outra, e com amargura, agora estou da contribuição desses eventos para a divulgação
na resistência. do trabalho de novos escritores e para o fomento à
leitura no país?
10. Diante do panorama
da literatura brasileira
atual, o que você vê? Que
autores você tem lido?
“(....) o meio literário São muitos eventos
acontecendo por todo o
Brasil e eles são muito
diferentes. Para os mais
Gostaríamos que você brasileiro continua com famosos e muito ligados
nos falasse um pouco ao establishment, nunca
sobre suas principais
inquietações e estímulos
suas preferências voltadas fui convidado. Tenho a
impressão de que resta
em face da produção
literária brasileira
para uma literatura para eles uma obrigação
de boas maneiras no trato
contemporânea.
Há alguns anos, eu lia
“meio-termo”, sem grandes das ideias que não parece
ser o que os organizadores
regularmente o que era
publicado. Mas não faço
radicalismos. identificam em mim. Se
fosse convidado, aceitaria,
mais isso. Os motivos são desde que eu pudesse falar
vários: necessidade de o que quisesse. No final
buscar outras tradições, falta de tempo, gosto pela das contas, não seria nada muito diferente do que falo
não-ficção, filosofia e livros de geopolítica. Mas não a aqui.
decepção, já que do que escolho, tenho achado coisas Há eventos organizados por bancos, por exemplo. Têm
muito boas. Recentemente, li a poesia de Marilia Garcia, um bom café e trazem críticos importantes. Estive duas
que é excelente. Um livro de Paloma Vidal, Plano de voo, ou três vezes nesses e foi muito produtivo. O público
também me impressionou muito, bem como o volume era o especializado. Eventos em universidades são os
de contos de Allan da Rosa, Reza de mãe. Acho que há que geram a melhor discussão. Gosto muito deles,
uma produção interessante surgindo no contraponto embora não haja o mais remoto sinal de cachê. Não
ao establishment. Esse, para ser sincero, decepcionou- me importo.
me um tanto. Dos lançamentos mais badalados, gostei Também fui a várias “festas”, “bienais” e “feiras”
bastante de Pai, Pai de João Silvério Trevisan. pelo Brasil. São encontros muito variados. Posso
Quanto às inquietações e estímulos, não sei muito testemunhar ótimas discussões, bem como sair com a
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impressão de que me levaram para o lugar errado. Estive Por sua vez, se edição quiser dizer a publicação
em uma feira impressionante no interior da Bahia, de algo novo, pessoal e com força estética, acho
cheia de estudantes e professores, com perguntas que nada mudou. Os projetos mais persistentes e
complexas e muita atenção do público. Por sua vez, fui complexos continuam encontrando as resistências
a uma feira em uma grande capital. No evento, havia de sempre: o meio literário brasileiro continua com
apenas uma pessoa na plateia: o organizador. suas preferências voltadas para uma literatura “meio-
No geral, acho-os muito importantes e é preciso que termo”, sem grandes radicalismos. Talvez seja assim
haja cada vez mais. Dali sai algo para o livro. Os livros no mundo inteiro (deve ser), mas aqui isso é mais forte
precisam circular. por conta das próprias opções da sociedade brasileira:
Lancei meu primeiro livro muito jovem. Desde então um lugar em que não se resiste a quase nada, vide a
e muito aos poucos comecei a ir nesses eventos. Devo passividade com que a população está assistindo à
ter quase vinte anos participando deles. Quanto aos perda de todos os seus direitos. No caso, a literatura
autores, notei uma mudança radical na tendência. brasileira contemporânea não é uma literatura com
Antes, os escritores, como grupo coeso, faziam questão que, no geral e dadas as exceções de sempre, resista à
de representar o papel de transgressores. Faziam cara sociedade. Ao contrário, está afinada a ela.
de bravos, iam bêbados, diziam não se preocupar com
política e muitas vezes eram grosseiros. Não digo 13. Você está escrevendo algum livro no momento?
todos, é óbvio: sempre há quem não se preocupa com Possui projetos que envolvam outros gêneros
o grupo. Mas se houvesse uma característica marcante, literários?
era essa. Exatamente na noite do segundo turno da eleição
De uns tempos para cá, isso mudou: agora estamos na presidencial, a data da nossa catástrofe, comecei
era do moço bem comportado e ético. São engajados, um diário. Ele será feito e refeito até o final do novo
falam de política (sempre de um jeito comedido), governo. Chama-se Diário da catástrofe brasileira. O
nunca desrespeitam ninguém, preocupam-se com primeiro volume está disponível na Amazon.
o que o público vai pensar deles e há até os veganos.
Dizem também que a literatura lhes deu muitos
amigos. Nenhum dos dois grupos incomoda, de forma
concreta, nenhum poder estabelecido.
Vez ou outra, porém, testemunho alguém mandando
a letra e tentando agredir de fato o establishment. Aí
vale a pena.

12. Quais os principais desafios para a edição de


Referências:
novos escritores no Brasil de hoje?
Se do ponto de vista da edição estivermos pensando na CHEKHOV, Antón. Letters on the short story, the drama, and other literary
topics. Seleção de Louis S. Friedland. Nova Iorque: Dover, 1966.
possibilidade de publicar, acho que as facilidades hoje LÍSIAS, Ricardo. O livro dos mandarins. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2009.
são muito grandes. Com o barateamento dos meios de _______. O céu dos suicidas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
produção, os autores parecem conseguir ultrapassar _______. Divórcio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
_______. Concentração e outros contos. Rio de Janeiro: Alfaguara,
com mais facilidade a tradicional barreira do primeiro 2015.
livro. Há também meios virtuais, embora esses últimos _______. A vista particular. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.
_______. Inquérito policial: família Tobias. s/l.: Lote 42, 2016.
não sejam bem utilizados ainda em sua especificidade TCHÉKHOV, Antón P. Cartas a Suvórin. 1886-1891. Introd. Trad. e Notas
formal. Confesso, porém, que não sou muito íntimo Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo:
desse aspecto da literatura. Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

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