3 {voz da literatura} n. 10 fevereiro 2019 E m uma série de cartas enviadas por Anton Tchékhov ao editor Aleksei Suvórin entre os anos de 1888 e 1890, o escritor russo pondera sobre repreensões dirigidas a sua obra, acusada de ser indiferente quanto à valoração do bem e do mal e, ainda, de carecer de ideais. Em algumas dessas missivas, como as enviadas em 27 de outubro de 1888 e em 01 de abril de 1890, Tchékhov discorre sobre questionamentos relativos à ausência, em seus textos, de um engajamento categórico em questões políticas e sociais e sustenta que a função do artista não consiste em resolver problemas, mas em explicitá- los. (2002, p. 91) Em sua visão, não cabe ao artista conciliar o texto literário ao sermão, mas apontar perspectivas a partir das quais os problemas possam ser observados. (1966, p. 60; 64) O ofício do escritor abrangeria, assim, o desenvolvimento de um projeto estético capaz de anunciar possibilidades de construção de sentidos políticos para tudo quanto o rodeasse, sem que tal projeto viesse a implicar a sedimentação de quaisquer juízos éticos. Além de afirmar que a separação entre formulações éticas e composição artística consiste em imperativo de técnica literária, Tchékhov ressalta, ao refletir sobre seu processo de composição, que, “quando escrevo, eu conto inteiramente com o leitor para acrescentar, por si mesmo, os elementos subjetivos que não estão presentes na narrativa.” (1966, p. 64, tradução nossa) Na matriz das reflexões expostas por Tchékhov a Suvórin, encontram-se aspectos de uma questão que, remontando à Antiguidade Clássica, concerne à existência de pontos de contato entre significações associadas a pressupostos éticos e a possibilidades de criação artística liberadas do viés deontológico. Visitada por perspectivas críticas, filosóficas e históricas distintas, a interlocução entre ética e estética é retomada na contemporaneidade e se faz verificar em discussões acerca da existência de limites formais e materiais no processo criativo. Nem sempre a discussão sobre esse problema perene se realiza de maneira satisfatória, resvalando, como se verifica nos dias
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atuais, em terrenos perigosos como os que ensejam o fechamento de exposições e o apedrejamento simbólico de museus. Se de um lado a discussão sobre pontos de contato entre ética e estética é fragilmente conduzida, como atestam episódios ocorridos recentemente em Porto Alegre, São Paulo e no Rio de Janeiro, de outro é contemplada com maior acuidade. É o que se verifica, por exemplo, na atividade de escrita criativa do paulistano Ricardo Lísias, entrevistado no âmbito do projeto Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas, conduzido pelos professores Vitor Cei (UNIR), André Tessaro Pelinser (UFRN), Letícia Malloy (UERN) e Andréia Delmaschio (IFES). Na entrevista a seguir, concedida em dezembro de 2017 e revista pelo escritor em janeiro de 2019, Lísias avalia criticamente tanto a impossibilidade de uma ética artística, assinalando neste termo um oximoro, como questiona a maneira pela qual artistas contemporâneos têm se valido da imagem de bons moços e esvaziado, por consequência, as possibilidades de uma presença e de uma arte contestatórias o bastante para efetivamente provocarem desconforto ao establishment. Vencedor em 2012 do prêmio de Melhor Romancista concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) com O Céu dos Suicidas, Ricardo Lísias vem percorrendo os caminhos do conto e do romance a partir da publicação, dentre outros textos, de Cobertor de estrelas, Concentração e outros contos, Duas praças, O livro dos mandarins, Divórcio e A vista particular, além de ter publicado a série e-books intitulada Delegado Tobias. Em seu texto literário, Lísias combina a atividade de escrita criativa a inquietações possivelmente associadas ao trabalho de pesquisa, desenvolvido em pós-doutorado realizado na Universidade Federal de São Paulo. Dessa conciliação parece decorrer, em grande medida, a atenção do autor a aspectos formais pertinentes à construção do texto e a busca por uma narrativa dissociada de inclinações à representação e desembaraçada de parâmetros axiológicos estreitos. Com a palavra, o autor.
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1. Cada escritor possui um modus operandi, por 2. Nas suas obras, também chamam atenção os assim dizer. Em seu trabalho, é possível perceber narradores, que seguidamente refletem, em ritmo algumas características marcantes bastante frenético, sobre a sua própria situação e sobre o ato atreladas às poéticas da contemporaneidade, como da escrita. Até que ponto esses elementos dizem de a fragmentação narrativa, o diálogo com novas seu processo criativo? mídias e o aproveitamento de experiências do A autorreflexão faz parte da constituição do próprio cotidiano. Você poderia nos falar um pouco sobre narrador, pois não pretendo neutralizá-lo. Não quero as opções formais e temáticas que norteiam seu neutralidade em nenhum aspecto da minha criação. projeto literário? Acho que não é possível, na verdade, qualquer tipo Em primeiro lugar e há já bastante tempo estão para de neutralidade. O que se pode fazer é criar uma mim as questões formais. Procuro pensar nelas com máscara em que, através de alguns recursos narrativos intensidade e oferecer já conhecidos, sobra a para mim mesmo diversos desafios. Embora não seja uma tarefa fácil: a linguagem é porosa, traiçoeira e falha. “concentrado Eu estou muito em impressão de que o narrador é uma figura equidistante entre a obra e o leitor. Não é. Ele é tão artificial quanto Como ao mesmo tempo é qualquer criação e qualquer muito prazerosa, é o tipo de leitura. Por isso prefiro expor trabalho que gosto muito de compreender como o narrador frágil, construído fazer. Preciso evidentemente através da linguagem, ainda buscar algum tipo de posso evitar fazer a mais frágil que ele. correspondência (não sei se essa palavra é a melhor, arte curvar-se a uma 3. No que se refere à sua acho que não...) entre as trajetória literária, houve ferramentas formais que vou representação da um momento inaugural utilizar e a narrativa que será ou o caminho se fez produzida por elas. Aqui, realidade. gradualmente? Em que aliás, já não sei se a palavra momento da vida você se “narrativa” também é a melhor. Olha aí o problema da percebeu um escritor? linguagem insuficiente... Comecei a publicar muito cedo, aos 24 anos. Não acho A propósito, peço que essa entrevista seja publicada isso bom nem ruim, simplesmente é como se deu para com a data. mim. Do mesmo jeito, não tenho nenhum problema com Eu estou muito concentrado em compreender como os meus primeiros livros. Gosto deles, inclusive. Mas posso evitar fazer a arte curvar-se a uma representação com 42 anos tenho quase 10 livros publicados, o que da realidade. Não é isso o que eu quero. Portanto não significa que de fato passei por várias fases. No meu caso, posso descuidar desse tipo de preocupação. Acho que inclusive, acho que a palavra “crise” é mais adequada, a literatura pode ainda produzir muita coisa nova inclusive, que “fase”, mas as duas significam que com o se deixar para trás a ideia de representação, buscar passar do tempo tive diferentes impressões. O que não explorar a dificuldade conceitual que existe no interior mudou para mim foi sempre a dificuldade de expressão do termo “realidade” e com isso produzir objetos que e um estranhamento com a linguagem. Hoje, não vejo possam residir nessas dobras. Acho que aqui pode nenhuma necessidade de ser “escritor”. O que eu desejo residir uma possível força nova para a atividade de é poder continuar criando algo novo todos os dias. criação. Outro dia, por força da situação, estive em um evento
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em que algumas pessoas que publicaram livros se manifestaram. Pareciam deslumbradas com o fato de serem “escritoras”. Afirmavam inclusive a alegria de poder se cercar de amigos também escritores, em um grupo alegre e animado. Fiquei pasmo. Achei uma graça aquela felicidade juvenil. Mas prefiro manter uma relação tensa com todas as instâncias da produção e circulação artísticas. Então, não consigo me colocar à vontade com isso de ser “escritor”.
4. Alguns de seus textos geraram controvérsias que
extrapolaram o âmbito literário. Como você avalia a recepção de sua obra? Em que medida a inclusão de seu nome na lista de vinte melhores jovens escritores do Brasil, publicada pela revista Granta em 2012, e os prêmios literários influenciaram o reconhecimento da sua literatura? Vou começar pelo final, porque a pergunta é sintomática: curiosamente, muitos intelectuais do meio acadêmico acham que eu ganhei muitos prêmios. do pseudônimo”, ao passo que a Livraria Martins Ao contrário, ganhei pouquíssimos: uma vez fiquei em Fontes, em São Paulo, acabou dispondo esse livro terceiro lugar no extinto Portugal Telecom e depois e o restante do seu trabalho na mesma prateleira, ganhei um prêmio da Associação Paulista de Críticos contrariamente ao que você queria. Por que você de Arte. Nada mais. Tenho muita dificuldade para sentiu essa inquietação? Não seria uma maneira de frequentar espaços do establishment literário, não controlar a recepção da obra? consigo agradar maiorias e muito menos cumprir certos Na verdade, minha irritação se deve exclusivamente protocolos. Dessa forma, por que o meio acadêmico ao problema judicial. Se não tivesse havido ingerência acha que eu ganhei prêmios? Porque esse lugar estuda jurídica sobre o projeto, até hoje ninguém saberia que muito meus trabalhos e me dá muita atenção. Aqui sou o criador do “Eduardo Cunha (pseudônimo)”. já se vê que meio acadêmico e establishment literário Talvez desconfiasse, mas a revelação se deu não são a mesma coisa... exclusivamente por conta de uma ação na justiça A recepção da minha obra, portanto, é essa: muita conduzida pelos advogados do ex-deputado federal. atenção do meio acadêmico e uma certa repulsa, mal A ação foi bem sucedida em primeira instância disfarçada, do establishment. Estou razoavelmente exclusivamente porque esses advogados ocultaram satisfeito com isso. do juízo uma série de informações. Quando essas informações (sobretudo o caráter ficcional da obra, 5. A publicação de Diário da Cadeia (2017) faz parte que estava expresso no exemplar do volume) chegaram de um projeto literário mais amplo, que, pelo uso à justiça, permitiu-se que o livro fosse distribuído de pseudônimo, de certa maneira dissocia a autoria sem nenhuma ressalva. Já perdi a conta de quantos daquele livro da figura pública de Ricardo Lísias. recursos ganhei. Em novembro de 2017, aliás, a 1° Recentemente, no Facebook, você comemorou turma do Supremo Tribunal Federal confirmou, por que a Festa Literária de Cachoeira, na Bahia, unanimidade, a decisão da ministra Rosa Weber a respeitou o seu desejo e separou os seus livros “dos favor do livro. 7 {voz da literatura} n. 10 fevereiro 2019 Ou seja: houve uma medida de censura que modificou mais detidamente a autoficção? Além disso, você meu trabalho. Isso independe tanto da minha vontade considera que ainda persiste, no âmbito da crítica de criação quanto do empenho de interpretação dos especializada ou fora dele, certa confusão entre leitores. Algumas livrarias evitaram identificar o livro escritor, autor e narrador? Seus livros contribuem comigo, talvez por respeitar minha opção autoral e para diluir essas fronteiras ou para explicitá-las? reconhecer o abuso da ação na justiça. Outras, porém, São muitas questões em uma só, vou tentar lidar incorporaram o livro à minha obra. Pior que essas sem separadamente com cada uma delas. A recepção do dúvida são aquelas que até hoje não vendem o livro, Divórcio foi de fato marcante. Eu imaginava algumas por receio sei lá eu do quê. das reações, mas em nenhuma hipótese a forte tentativa de despolitização que o livro sofreu. Muita 6. O romance Divórcio (2013) teve sua recepção gente simplesmente ocultou que o livro se refere ao marcada por algumas polêmicas. Logo em seguida, jornalismo cultural. Não é um livro sobre adultério, você publicou a série de e-books Delegado Tobias mas sim um livro sobre adultério ocorrido no Festival (2014), que explorou os limites da autoficção, de Cannes para que um jornal soubesse antes dos incluindo a criação de um perfil fictício no Facebook outros quem iria receber o prêmio principal. Isso está e a incorporação das reações do público à narrativa. claro no livro, mas muita gente oculta. Ou melhor: isso A Polícia Federal chegou a abrir um inquérito contra aconteceu mais durante o lançamento e nos meses você, o qual também acabou sendo posteriormente seguintes. Hoje o romance é bem mais aceito. ficcionalizado. Em que medida a recepção de Como o livro foi alvo de muita fofoca, resolvi assim Divórcio desencadeou um desejo de explorar fazer um trabalho sobre fofoca. Para mim os ebooks da
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a partir dessa chave. Isso é observado na recepção de Divórcio em razão de certa tendência a indagar se o que o narrador relata sobre a esposa corresponde à realidade. Como você analisa a permanência desse tipo de leitura em face do romance e, especificamente, em relação a Divórcio? Sim, isso aconteceu. Há, como está embutido na pergunta, um aspecto regressivo nesse tipo de leitura. Algumas pessoas, com ou sem um doutorado, recusam-se a enxergar qualquer literatura que não seja a mimética. Para esse tipo de leitor, a literatura representa a realidade e pronto. Nada além disso poderá existir. Há nisso tudo uma segunda consequência: qualquer aspecto político possível do texto literário fica reduzido, para não dizer completamente apagado. No caso do romance Divórcio isso é muito claro. Houve uma série de tentativas de despolitizar o livro, sobretudo com a operação que a pergunta descreve. E as leituras continuaram: “se for tudo verdade, então esse livro não serve para nada, já que é antiético.” Não sei muito bem o que isso quer dizer, mas foi série Delegado Tobias eram sobre fofoca. Mas me enganei: falado muito mais de uma vez. Até hoje muita gente eles diziam respeito às instituições brasileiras. Fiquei se recusa a aceitar que Divórcio é uma denúncia sobre bastante perplexo quando a notícia do inquérito o jornalismo ainda praticado no Brasil e no mundo. chegou. É uma confusão que impressiona até hoje. Não é literatura de representação da realidade, mas de Eu acho que a confusão entre escritor, autor e intervenção na realidade. narrador ainda existe sim, mas dá para colocar no Algo interessante de analisar seria a origem do meio disso outras confusões: com personagens, obras, discurso despolitizador da literatura. realidade etc. No meio especializado (o acadêmico) isso ocorre menos, ainda que ocorra. Fora dele, é algo 8. Nas últimas décadas, é provável que você tenha quase incontrolável, embora eu ache que esteja aos sido o escritor que mais protagonizou embates poucos diminuindo. Acho que não apenas os meus, judiciais desencadeados pela ficção. Como vê a mas muitos livros estão ajudando a fazer com que as relação entre a arte e o aparato judicial do Estado? pessoas parem de ficar vidradas nessas confusões e Deve haver uma ética artística? por fim construam seus sentidos para a arte com que No mundo inteiro a arte sofre assédio, muitas vezes se defrontam. jurídico. No entanto, há limites e ponderações. No meu caso, acho que uma parte dos problemas se dá 7. O efeito de autenticidade e a autoridade do por certas “particularidades” da sociedade brasileira narrador costumam ser associados às origens do e consequentemente de seu poder judiciário. Sendo gênero romanesco a partir da análise de textos claro: o caso com o Delegado Tobias jamais poderia como Robinson Crusoé (1719). Três séculos depois da ter acontecido, foi um engano triste e sintomático. divulgação do romance de Daniel Defoe, é possível Quanto a Diário da cadeia, parte dos problemas se verificar que parte da crítica literária continua a ler dá por conta de o livro lidar com alguns políticos que 9 {voz da literatura} n. 10 fevereiro 2019 tentam instrumentalizar o poder judiciário. Como não podem praticar assédio diretamente à figura do artista, fazem de forma indireta, como se dissessem: quem tentar me incomodar através da literatura vai ser processado. Enfim, deveria haver algum tipo de mecanismo do poder judiciário que evitasse esse tipo de coisa. Quanto à proibição do livro por um mês, isso eu acho lamentável e inadmissível. Acho no geral que o poder judiciário deveria se afastar da arte. Há muita jurisprudência nesse sentido, mas acredito que deveria haver algo mais concreto e radical, do tipo: “Isso é arte, então o poder judiciário não tem nada a dizer”. Um juiz muito conservador nos Estados Unidos, muito mesmo, defendia esse princípio e dizia que, quanto à arte, se não houver dinheiro público, o artista que faça o que bem entender. Quanto à segunda pergunta, não a compreendi muito bem. No geral, “ética” é um conceito que impõe limites. muitos ingleses logo após aprovar nas urnas a saída Arte não pode ter nenhum limite, portanto são dois da União Europeia foram à internet para descobrir o campos que não se tocam. que afinal de contas é União Europeia... Não acho por exemplo que as redes sociais são a origem e o maior 9. A vista particular (2016) tem como personagem responsável pelo que está acontecendo. Enfim, elas principal um artista plástico que faz do cotidiano tiveram excelente papel durante a Primavera Árabe, brasileiro de violência e abusos a matéria-prima de por exemplo. Infelizmente, muitos países árabes suas obras. Porém, as demais personagens parecem tiveram depois um retorno à velha ordem. não perceber o absurdo da situação e a força da No recente filme de João Moreira Salles, o crítica. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos extraordinário No intenso agora, há a sugestão de a ascensão de uma onda reacionária que traz em si que grupos regressivos sempre reagem a qualquer matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. movimento de conquista mais visível. A todo grande Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: levante se sucede uma manifestação conservadora. A onde estava guardada tanta monstruosidade? propósito, vejamos sobre isso o que aconteceu depois Houve um ponto ou marco crucial para a detonação das belas Jornadas de Junho de 2013 aqui no Brasil. de uma circunstância como esta que vivemos hoje? Acho que nesse momento vivemos riscos gigantescos. O que você imagina ou espera como coda do atual Donald Trump por exemplo está minando os já estágio da humanidade? bastante frágeis acordos de paz entre Israel e a Seria muito arriscado responder diretamente a essa Palestina. Há poucos meses, gente com cartazes pergunta. Ou melhor: só acho possível uma resposta louvando o torturador Brilhante Ustra resolveu incompleta, já que não vejo chance de enxergar com aparecer na Câmara Municipal de São Paulo. Enfim, clareza nem o que está acontecendo e muito menos parece que o pior do ser humano decidiu aparecer tudo onde tudo isso pode chegar. Acho que o único junto, de uma vez só e com bastante potência. aspecto claro da realidade contemporânea é que o Não sei onde isso vai terminar. Mas posso dizer pensamento regressivo chegou a espaços de poder em que o meu lugar eu conheço: estou contra todo esse muitos lugares do mundo. Sabe-se por exemplo que
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discurso regressivo, contra os ataques aos acordos bem o que dizer. O barco vai andando, muita coisa de paz, contra a dissolução dos acordos em defesa acaba sendo publicada sem que a gente possa alcançar. do meio ambiente e contra a destruição de todos os Não tenho nenhuma empolgação: ainda enxergo poucos e tímidos direitos que tínhamos conquistado. muito bom comportamento, falta de ousadia e alguma E sobretudo torço para que quando isso passar, não acomodação aos moldes que o establishment pede. Por reste a ruína dos nossos prédios e, mais ainda, a nossa. sua vez, esse inchaço tem oferecido espaços paralelos Acho possível sim... muito estimulantes. Outro volume que me agradou Como se sabe, uma onda ultraconservadora está muito foi Sessão, de Roy David Frankel. Vivemos um chegando ao poder em vários países. Por aqui, já grande momento da poesia brasileira, eu acho. derrubou tudo... Talvez estivéssemos despreparados para enxergar as coisas em sua dimensão real. Ou será 11. Você tem participado de festivais e feiras que vivemos um típico mecanismo de negação? De literárias. Que avaliação crítica você faz a respeito uma forma ou de outra, e com amargura, agora estou da contribuição desses eventos para a divulgação na resistência. do trabalho de novos escritores e para o fomento à leitura no país? 10. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? “(....) o meio literário São muitos eventos acontecendo por todo o Brasil e eles são muito diferentes. Para os mais Gostaríamos que você brasileiro continua com famosos e muito ligados nos falasse um pouco ao establishment, nunca sobre suas principais inquietações e estímulos suas preferências voltadas fui convidado. Tenho a impressão de que resta em face da produção literária brasileira para uma literatura para eles uma obrigação de boas maneiras no trato contemporânea. Há alguns anos, eu lia “meio-termo”, sem grandes das ideias que não parece ser o que os organizadores regularmente o que era publicado. Mas não faço radicalismos. identificam em mim. Se fosse convidado, aceitaria, mais isso. Os motivos são desde que eu pudesse falar vários: necessidade de o que quisesse. No final buscar outras tradições, falta de tempo, gosto pela das contas, não seria nada muito diferente do que falo não-ficção, filosofia e livros de geopolítica. Mas não a aqui. decepção, já que do que escolho, tenho achado coisas Há eventos organizados por bancos, por exemplo. Têm muito boas. Recentemente, li a poesia de Marilia Garcia, um bom café e trazem críticos importantes. Estive duas que é excelente. Um livro de Paloma Vidal, Plano de voo, ou três vezes nesses e foi muito produtivo. O público também me impressionou muito, bem como o volume era o especializado. Eventos em universidades são os de contos de Allan da Rosa, Reza de mãe. Acho que há que geram a melhor discussão. Gosto muito deles, uma produção interessante surgindo no contraponto embora não haja o mais remoto sinal de cachê. Não ao establishment. Esse, para ser sincero, decepcionou- me importo. me um tanto. Dos lançamentos mais badalados, gostei Também fui a várias “festas”, “bienais” e “feiras” bastante de Pai, Pai de João Silvério Trevisan. pelo Brasil. São encontros muito variados. Posso Quanto às inquietações e estímulos, não sei muito testemunhar ótimas discussões, bem como sair com a 11 {voz da literatura} n. 10 fevereiro 2019 impressão de que me levaram para o lugar errado. Estive Por sua vez, se edição quiser dizer a publicação em uma feira impressionante no interior da Bahia, de algo novo, pessoal e com força estética, acho cheia de estudantes e professores, com perguntas que nada mudou. Os projetos mais persistentes e complexas e muita atenção do público. Por sua vez, fui complexos continuam encontrando as resistências a uma feira em uma grande capital. No evento, havia de sempre: o meio literário brasileiro continua com apenas uma pessoa na plateia: o organizador. suas preferências voltadas para uma literatura “meio- No geral, acho-os muito importantes e é preciso que termo”, sem grandes radicalismos. Talvez seja assim haja cada vez mais. Dali sai algo para o livro. Os livros no mundo inteiro (deve ser), mas aqui isso é mais forte precisam circular. por conta das próprias opções da sociedade brasileira: Lancei meu primeiro livro muito jovem. Desde então um lugar em que não se resiste a quase nada, vide a e muito aos poucos comecei a ir nesses eventos. Devo passividade com que a população está assistindo à ter quase vinte anos participando deles. Quanto aos perda de todos os seus direitos. No caso, a literatura autores, notei uma mudança radical na tendência. brasileira contemporânea não é uma literatura com Antes, os escritores, como grupo coeso, faziam questão que, no geral e dadas as exceções de sempre, resista à de representar o papel de transgressores. Faziam cara sociedade. Ao contrário, está afinada a ela. de bravos, iam bêbados, diziam não se preocupar com política e muitas vezes eram grosseiros. Não digo 13. Você está escrevendo algum livro no momento? todos, é óbvio: sempre há quem não se preocupa com Possui projetos que envolvam outros gêneros o grupo. Mas se houvesse uma característica marcante, literários? era essa. Exatamente na noite do segundo turno da eleição De uns tempos para cá, isso mudou: agora estamos na presidencial, a data da nossa catástrofe, comecei era do moço bem comportado e ético. São engajados, um diário. Ele será feito e refeito até o final do novo falam de política (sempre de um jeito comedido), governo. Chama-se Diário da catástrofe brasileira. O nunca desrespeitam ninguém, preocupam-se com primeiro volume está disponível na Amazon. o que o público vai pensar deles e há até os veganos. Dizem também que a literatura lhes deu muitos amigos. Nenhum dos dois grupos incomoda, de forma concreta, nenhum poder estabelecido. Vez ou outra, porém, testemunho alguém mandando a letra e tentando agredir de fato o establishment. Aí vale a pena.
12. Quais os principais desafios para a edição de
Referências: novos escritores no Brasil de hoje? Se do ponto de vista da edição estivermos pensando na CHEKHOV, Antón. Letters on the short story, the drama, and other literary topics. Seleção de Louis S. Friedland. Nova Iorque: Dover, 1966. possibilidade de publicar, acho que as facilidades hoje LÍSIAS, Ricardo. O livro dos mandarins. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2009. são muito grandes. Com o barateamento dos meios de _______. O céu dos suicidas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. produção, os autores parecem conseguir ultrapassar _______. Divórcio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. _______. Concentração e outros contos. Rio de Janeiro: Alfaguara, com mais facilidade a tradicional barreira do primeiro 2015. livro. Há também meios virtuais, embora esses últimos _______. A vista particular. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016. _______. Inquérito policial: família Tobias. s/l.: Lote 42, 2016. não sejam bem utilizados ainda em sua especificidade TCHÉKHOV, Antón P. Cartas a Suvórin. 1886-1891. Introd. Trad. e Notas formal. Confesso, porém, que não sou muito íntimo Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: desse aspecto da literatura. Editora da Universidade de São Paulo, 2002.