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Tchaïka

ou
a casa das almas
Teatro

Luísa Monteiro

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2014
Tchaïka (a casa dos mortos)
Luísa Monteiro

Tchaïka
ou a casa das almas

Tchaïka (a gaivota), pode evocar em russo o verbo tchaïat’, esperar. Por


isso, este texto fala da decepção perante o rumo do devir, suportável
apenas pela espera irreal, alimentada pelo sonho e pelas ideias de amor e
de arte. Em Tchaika, o passado é todo ele simbólico: “todos somos
Anton”, deslocados do espaço ideal da individualidade e da
concretização do ser. Recordar é admitir a impossibilidade da
reconciliação.
Anton, médico e escritor, é um dos muitos imigrantes de Leste em
Portugal, disposto a uma vida nova, mas como refere Anton, é uma vida
de longa espera: “... não importa o quê nem quem; espero aqui, ali, em
lado nenhum; estou a prestar provas de que, afinal, ainda arrasto
correntes; a minha fronte é uma e só nota musical às voltas do meu
próprio vazio”. De resto, a narrativa segue de perto os conflitos da obra-
prima de Tchekov: independentemente do tempo e do espaço, cada qual
suporta medos e devaneios ancestrais.

Personagens

Anton, médico em Portugal, escritor na Rússia


Olga, mulher de Anton; tem os mesmos hábitos de Mascha
Lika, ex-enamorada de Anton; comporta-se como se fosse Nina
Eugénia, mãe de Anton; comporta-se como se fosse Arkadina
(Tchaika, uma gata de tecido que Anton tem por companhia)

Espaço cénico

Sala. Quatro cadeiras de jardim: uma delas tem uma perna mais pequena. Um
aquário sem peixes. Um bar. Há uma estampa com troncos de árvores.
Noite

Figurinos

As personagens deverão vestir-se de branco, mas terem casacos/túnicas pretas;


como gaivotas.

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Tchaïka (a casa dos mortos)
Luísa Monteiro

Olga sentada, com gripe: olhos e nariz congestionado. Tem o termómetro na boca; quando
o retira, espirra e depois utiliza o termómetro como se fosse um cigarro. Anton chega,
vindo do consultório.

OLGA Anton! Anton! Ainda bem que chegaste!...

ANTON (beija a testa de Olga) Então…? Não melhoraste? (senta-se)

OLGA Não, não, nada… Acho que não passo de hoje… (espirra) Estás a ver? Estás
a ver como estou mal?

ANTON Tiraste a febre?

OLGA 38! Nem me segurava nas pernas depois do almoço!

ANTON Labirintopatia idiopática, minha querida... Esse é o teu mal!

OLGA Grave?

ANTON São tonturas. Costumam aparecer depois de um almoço… molhado.


Quanto bebeste?

OLGA Outra vez, Anton? Pois fica a saber que estive todo o dia a chá de limão!

ANTON Pois sim… labirintopatia idiopática! Sem tirar nem pôr! Tanino aos
tropeções! Bebedeira! ... Labirintopatia idiopática… é bom de se dizer, não
é? Parece que estamos a cantar jazz… ou a esfarelar miolo de pão com a
língua… Labirintopatia idiopática… (levanta-se) Sabes onde deixei a Tchaika?

OLGA Não.

Anton procura Tchaika por todo o lado, chamando-a com sons sussurrantes, tipo bich-
bich

OLGA Já sabes?

ANTON O quê? Tchaika! Bich-bich…

OLGA A tua mãe. Telefonou há meia hora. Vem a Lisboa em trabalho e chega esta
noite.

ANTON Ah!... Bich-bich… Tchaika!... E sabes se traz aquele amante horroroso?

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Tchaïka (a casa dos mortos)
Luísa Monteiro

OLGA Disse que dormiria em qualquer sítio, até no sofá da sala… Deve vir
sozinha. Sozinha ou com a trupe dela, sei lá…

ANTON (encontra Tchaika debaixo da cadeira de Olga) Encontrei-te! Hum… menina feia!
A deixar-se esconder pela tigra… ainda por cima, uma tigra tanina com
labirintopatias idiopáticas… (senta-se) Menina feia! Mas o dono gosta muito
da sua Tchaika… Linda… (acaricia Tchaika)

OLGA Se soubesses o que me enfastias com esse boneco!

ANTON O que foi? A tigra está com ciúme da gata? O que é que te incomoda assim
tanto? (para Tchaika) Bichaninha linda… O amor é a capacidade de
sofrermos uma não-pertença, minha querida Olga... (outra vez para Tchaika)
Ui, que gatinha linda!...

OLGA O que me incomoda, Anton? O que me incomoda és tu! Desde que viemos
da Rússia que tens tido um comportamento completamente anormal…

ANTON É do trabalho, minha querida. Dizem que a função pública estupidifica e


são capazes de ter razão. E eu não consigo abrir um consultório médico por
enquanto. Bichinha gata… que papaste hoje? Sopinhas de mel… Sape-sape,
Miguel… Strogoff (ri)

OLGA Acho que estás a enlouquecer… Talvez fosse melhor regressarmos…

ANTON Na Rússia não tenho trabalho. E não suporto toda aquela máfia.

OLGA Lá, ao menos escrevias! Desde que aqui chegamos que não escreveste uma
única linha! Oh, Anton! Tu és um escritor antes de seres médico!

ANTON Isso é lá. Aqui, sou médico antes de ser escritor… E muita sorte tive em
terem reconhecido o meu pobre diploma! Sape-sape, Miguel!… E de resto
só sei escrever na minha língua. Nem o melhor tradutor do mundo, nem eu,
sequer, consigo traduzir o que penso em russo. A língua molda o sentido.
Por causa do ritmo, do som do verbo… Os malefícios da emigração, Olga.
Bichinha gata… que papaste hoje?...

OLGA Pára lá com essa merda! ... Eu tenho um cansaço enorme de ti, Anton. E
dói-me este amor feito de fadiga…

ANTON (levanta-se e vai ter com Olga) Está bem. Façamos de conta que ainda temos
tesão, para ocultar estes bocejos aos bocados espalhados aí pelo chão...
(afaga-lhe o cabelo) Pronto, deixa-me apenas beijar-te a boca e segurar-te a
testa enquanto vomitas dentro de mim... (beija-a; pausa) E sabes...? quando te
ouço vomitar ali na casa de banho parece-me sempre que é mesmo dentro
de mim ... talvez por não teres aprendido nunca a levantar a tampa da sanita
quando estás bêbeda, talvez só por isso: e olha só no que deu, olha a
dimensão do nojo crescente entre nós!... E depois, eu é que estou mudado!?
Já nem escovas os dentes depois do vómito!

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Tchaïka (a casa dos mortos)
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OLGA Bebo desde criança e tu sempre o soubeste. E tu? Há quanto tempo é que
não trocas as cuecas...?
(pausa)

ANTON Já foste mais criativa na tua boçalidade… (levanta-se e vai buscar à mala uma
garrafa pequena de vodka e entrega-lha) Toma o remédio. Pensei em trazer-te
rosas ou chocolates, mas isto é melhor para a gripe! (senta-se)

(silêncio; Olga bebe aos goles a vodka)

ANTON Acordei a pensar em gatos, em manchas gráficas e na durée, antes: nas


durabilidades: amor dura 2 meses; um amor, 2 anos; o amor, muda a vida
toda... oh, deveríamos conformar-nos, tranquilos e pulguentos, ao lado das
bestas, no emaranhado dos pêlos, na ruminação da erva, não era, Tchaika?
Sim, estancar a existência ao lado das bestas por mais um bom punhado de
milénios...
(pausa)
Esperar... não importa o quê nem quem; espero aqui, ali, em lado nenhum;
estou a prestar provas de que, afinal, ainda arrasto correntes; a minha fronte
é uma e só nota musical às voltas do meu próprio vazio -- as correntes,
curiosamente, suavizam este afundar... muito serenamente... E se depois de
morto ainda achares graça ao meu rosto, Olga, mete-o num frasco e deixa-o
a ganhar lodo no meu consultório; os olhos, tira-mos e dá-os aos pássaros
da noite: amaram as madrugadas; as mãos, corta-as e leva-as ao túmulo da
minha mãe, coloca-as a ladear-lhes a face porque sempre lhe pertenceram...
quanto ao resto, faz de conta que é teu, como sempre fizeste... mas queima
bem os cotos: incomoda-me saber do meu sangue nos teus lençóis...
(enternece-se)
Olga, minha querida… Oh, o que nós deixamos que a vida nos fizesse…
Minha pequena Tchaika, minha tigra… Vem, vamos dormir. Estás cansada,
estiveste todo o dia à minha espera…

OLGA Mas tens que admitir que fico muito mais polida quando bebo, querido
Anton… Sabes, descobri hoje que existe a palavra Tchaika em japonês, diz-
se da mesma maneira, só que não significa gaivota… em japonês quer dizer
caixão!...

(saem)

Som de campainha de porta; Anton vai abrir, pensando ser a mãe

ANTON Já vou, mamã… Tu?


(entra Lika)

LIKA É uma barbaridade, não é? Aparecer assim, sem avisar?

ANTON Entra…

LIKA Já entrei.

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Tchaïka (a casa dos mortos)
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(pausa)

LIKA Vim com a tua mãe. Ela ficou ainda a conversar com Bóris, o nosso
dramaturgo, e encenador e produtor e director da companhia… Sinais maus
dos tempos bons … Fazemos parte do mesmo elenco, sabias?

ANTON Que elenco? Ah!, sim, tu e a mamã, sim... Que bom… Que bom, então!
Senta-te!

LIKA (sentando-se) Dás-me água? (Anton está paralisado a olhar para ela) Nem um
pouco de água me dás? Anton…?

ANTON Oh, sim, desculpa… (vai ao bar) Lisa ou…?

LIKA Lisa.

ANTON Só tenho com gás…

LIKA Da torneira, então.


Anton sai

LIKA (olhando o espaço) Uma casa modesta… Onde não estamos é que estamos
bem. Já não estamos no passado, e então ele parece-nos belíssimo…
(entra Anton com copo de água)

ANTON Sabe um pouco aos desinfectantes…

LIKA (ri) Acho que é mesmo de desinfectante que preciso… (bebe) Nada má…
(olham-se em silêncio; subitamente abraçam-se energicamente)

ANTON (afastando-se) Deixa-me olhar-te! Vem cá, levanta-te! Estás crescida!... E


perdida ainda… Vejo-te a subir as escadas sem fim e a falar inutilmente da
lua, como…

LIKA (rindo) Oh, Anton, recordas ainda aquela noite em que fomos Kostia e
Nina? Sim, teve imensa piada! Um texto horrível…

ANTON (rindo) Sim, mas o próprio Tchekov admitia ser uma grande sorte ter muita
inteligência… porque assim pode-se dizer muitas asneiras!

LIKA Espera! Vou fazer como naquela noite!


(Lika regressa à porta, finge que entra novamente e sobe para uma cadeira)
“O Homem e o leão, a águia e a codorniz, veados, gansos, aranhas, os
peixes silenciosos que residem no fundo, estrelas-do-mar e pequenas
criaturas invisíveis aos olhos, estas e todas as formas de vida, todas as
formas de vida; todas as formas de vida acabaram a sua ronda de
arrependimento e tornaram-se extintas.”

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Tchaïka (a casa dos mortos)
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Entra Eugénia em silêncio, mãe de Anton, e fica alegremente surpreendida com Lika;
entra no jogo e reproduz o texto de “A Gaivota”)

EUGENIA “Com que então?! Um recitativo!”


Riem ambas; Anton continua a olhar somente para Lika)

ANTON “Continua”.

LIKA “Onde é que eu ia?”

ANTON “(dando-lhe a deixa) Durante milhares de…”

LIKA “Milhares de ...?”

ANTON “Durante milhares de séculos...”

LIKA “Durante milhares de séculos a terra não pariu nenhuma criatura viva. Em
vão agora esta pobre lua acende a sua lâmpada. Não mais os grous acordam
e gritam no prado; e nos bosques de tílias o zumbir das abelhas não é mais
ouvido. Tudo é frio.”

EUGÉNIA “Decadência!”

ANTON “Chhhh.”

LIKA “E vazio, terrível.” (começa a espirrar de modo teatral e Eugénia acompanha-a,


tentando criar uma composição sonora com os espirros, jogo ao qual Lika corresponde;
enquanto isso, Anton repara que estão a brincar e que o regresso ao passado terminou.
Fala para si)

ANTON Eu e tu, Lika: dois grandes silêncios; tu chegaste ao topo da escadaria como
uma flor silenciosamente branca, e eu tive vergonha porque aquela gente, o
país, a história deveriam ter-se curvado para te verem chegar; depois da
vergonha a imensa timidez, e então quis lembrar-me de alguma coisa serena:
lembrei-me de uma buganvília; mas uma buganvília decresce na parede,
cresce cheia de peso contra o céu... eu pensei em céu? (é um sítio que me
invade e a que tive de dar nome, e é sempre o mesmo); sentaste-te e eu
ruborizei, quis dizer o teu nome, mas a voz não era minha; dizer-te apenas:
eu sei o teu nome; mas depois olhei um por um daquela gente, todos eles
um nome - nomes que eu queria que ficassem de pedra e cegos; o projector
de luz cegava-me e eu já não te via; és mais que um nome, disse-te sem
mexer os lábios: a voz teima em calar-me; talvez a mesma voz que te cala...

(Lika e Eugénia terminam a composição com espirros, alegres; Eugénia parece só agora
notar a presença do filho)

.EUGÉNIA Anton! Então já não se beija a própria mãe?

ANTON Mamã! (pouco entusiasmado; beijam-se)

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EUGÉNIA Estás mais magro, filho.

ANTON A mamã também está mais elegante. Mas… que roupa é esta, mãe?

EUGÉNIA (senta-se e estranha o facto da cadeira mancar; bebe a água de Lika) Roupinha à
Merkl, meu filho, roupinha à Merkel…

Lika e Anton também se sentam

ANTON Não há uma única mulher alemã decentemente vestida, mamã. A falta de
gosto deprime-me. Amanhã compro-lhe um vestido novo.

EUGENIA Olha, olha… e desde quando é que tu te vestes decentemente? Achas que
eu não sei que aqui em Portugal vocês vão todos à loja do chinês?

ANTON Isso era antes de eu ter arranjado trabalho no centro de saúde!

EUGÉNIA Sim, sim… então não se vê que essa camisa é made in china? Sinto o cheiro
daqui! Tudo nesta casa, aliás, cheira a chinês, àquele cheiro de plástico e de
pés mal lavados…

ANTON Oh mãe, não comece a implicar!... Vou chamar a Olga!

(sai)

EUGENIA (para Lika) Quando disse que estava cansada, pensei que quisesse ir para o
hotel… mas encontra-se em casa do meu filho.

LIKA Vim apenas cumprimentar Anton, não fosse não ter tempo nos próximos
dias… E eu combinei com Bóris fazer o percurso turístico de Lisboa de…
daquele poeta que é muito conhecido, que usa uns óculos redondinhos…

EUGENIA Fernando Pessoa. Combinou isso com Bóris, foi? Ah!... Sabe, Lika, eu
conheço muitas pessoas que querem enganar as outras, mas nenhuma delas
quer ser enganada; e querendo enganar sem ser enganado, ama-se a verdade
quando ela se descobre e odeia-se quando ela, a verdade, as descobre… O
castigo é este: estas pessoas não querem ser desveladas por ela, pela
verdade, mas ela desvela-as, ficando assim e para sempre velada, a verdade,
para elas...

LIKA Não entendi nada do que disse, Eugénia.

EUGÉNIA (rindo) Minha querida Lika… não podem apreender-se aqueles que vivem
juntos numa memória; a mortificação da boca elimina-lhes toda a
multiplicidade e mexem-se em poucas linhas mestras; eu sei que a Lika e o
Anton têm uma paixão de um pelo outro desde a adolescência. Anton é
louco por si e você sabe. Você precisa da paixão de Anton para ser quem é.
E foi por ser tão apaixonado por si que Anton casou com Olga, essa
bêbeda. A dor, de facto, não é lógica: é histórica, minha menina!

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LIKA Eu amo o Anton; e não sei como se ama, Eugénia, quando o amor é isto o
que somos; Tchekov dizia que aquilo que provamos quando estamos
apaixonados é que talvez seja esse o nosso estado normal. O amor mostra
ao homem como é que ele deveria ser sempre…

EUGÉNIA O vosso mal foi ler Tchekov, muito Tchekov e ainda com cabecinhas
frescas…Eu, quanto a mim, tenho medo de Tchekov…

LIKA Pois eu, de bom grado, seria apenas uma personagem de Tchekov… Sabe,
na vida tive já sucessos e grandes, grandes fracassos, Eugénia; mas amei
sempre e incondicionalmente as pessoas que estiveram na minha vida;
mesmo quando partem, sinto a alegria de saber que procuram a felicidade e
que essa pode não ser encontrada a meu lado; a dor... é uma coisa de osso:
para se crescer melhor a partir da medula; isso faz-me gostar de estar no
teatro… assim preservo a minha quietude de pessoa

(entram Anton e Olga)

OLGA (estupefacta, vendo Lika) Que faz aqui?

LIKA Vim com Eugénia, fazemos parte da mesma peça.

OLGA Peça? Que peça…? (silêncio embaraçoso entre os quatro)

EUGÉNIA Tchaika.

OLGA Ainda Tchekov? Parece praga! Persegue esta família, como se escrevesse
anteriormente o destino que nos cabe agora no presente desta vida…

EUGÉNIA Ora, deixemo-nos disso. (mudando o tom) Olhem só a minha querida nora!
(beija-a) Como está linda!!!

OLGA (hipocritamente) E a minha sogra, como está bela!! E jovem! Sempre foi bela!
E é certamente a mais encantadora e talentosa actriz do elenco! Mas sente-
se… Anton, vai fazer um chá para a mamã, por favor…

ANTON A mamã já bebeu água da torneira…

OLGA Ai, querido, que azedo! Vá lá preparar um chá!


(Anton sai. Sentam-se)

LIKA Têm uma casa muito bonita, Olga. Parabéns.


(pausa)

OLGA Porque veio aqui, Lika? Porquê?, depois de tudo?


(Lika fica em silêncio, embaraçada)

EUGENIA A Lika sempre foi amiga da família, Olga, bem o sabe… Brincou em criança
com Anton.

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OLGA Ora, mamã… Eu vi Lika nos braços de Anton na minha cama. Tínhamos
apenas um mês de casados…

LIKA Eu já me arrependi, querida amiga…

OLGA Não me chame querida e muito menos amiga!

EUGÉNIA Então, não se zanguem, não por causa de Anton! A culpa é toda dele!...
Vocês são já umas senhoras. Isso pertence ao passado e nunca sabemos
bem ao certo que passado, ou parte do passado, é que verdadeiramente nos
pertence… Mudemos de assunto. Têm uma casa muito bonita, Olga.
Parabéns.

OLGA Pois, mas esta não é a minha casa, Eugénia. É apenas a casa, a tal, a outra
onde nos criamos por força de tanto nos imaginarmos. O Anton é que é a
minha casa. Não sei se será a minha última casa, do mesmo modo que fui
casa de mim mesma no passado primeiro. Desse, já a mamã não se deve
recordar…

EUGÉNIA Só nos sonhos, Olga, e no pó... na poalha da madeira carcomida pelo


caruncho… Tenho muitas saudades da Rússia, dessa Rússia que não existirá
jamais…

OLGA Pois o Anton é que é a minha casa, agora... moro na sua cabeça... na dos
livros, não, já não moro: acabei-me lá... E aqui, agora, faço-lhe muito
barulho… Ontem, por exemplo, descobri um novo texto numa gaveta
aberta e ele só falava de si, mamã; a mamã estava lá entre as meias. Às vezes,
Anton estica-se…

EUGENIA Estica-se, é? E que dizia de mim?

OLGA (sorrindo) Eu guardei o texto aqui entre os seios! (tira o papel e lê) “... a minha
boca está a rasgar-se de tanta terra, da tua terra, mãe; os olhos aferrolham-
me a tua ausência e abre-se um silêncio de ferro na morgue sob a língua; o
desejo e um dente morto; nada mais é voz em mim: tenho a boca cheia de
terra, da tua terra, e tenho medo e tu não me salvas...”

EUGENIA (interrompendo; nessa altura entra Anton com chá para os quatro) Essa mãe é a mãe
pátria, rapariga! (Para Anton) Que bem que cheira, meu filho… às ervas da
terra!

ANTON Mais do ar, mamã. É de tília.


(em silêncio bebem o chá)

EUGÉNIA Mas diz-me, Anton, como te sentes?

ANTON Sinto-me… um homem entre três mulheres.

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EUGÉNIA Só três? Não estás mal… Há quem viva com dezenas delas, como Bóris,
por exemplo. Embora ele saiba perfeitamente distinguir de entre as pedras
quais as que são preciosas…

ANTON … as jóias, queres dizer, mamã.

EUGÉNIA (insinuando-se) A jóia, meu filho. A jóia!

ANTON E depois de Lisboa, para onde segue a digressão?

EUGÉNIA Terminamos aqui em Lisboa. Bóris entendeu ser uma boa aposta, na
medida em que esta cidade acolheu tantos conterrâneos nossos…

ANTON E depois, que farão?

LIKA Eu talvez vá para a Roménia por uns tempos... (pausa) Os romenos têm uma
crença interessante: a de que a criação e o pecado são a mesma coisa;
criação e acusação... isto fascina-me: pois, o que é a tragédia grega senão a
constante queixa do coro, ou seja, do povo contra o Destino?... e, de resto,
Dionísio veio da Trácia, não é...?

OLGA Não foram as mulheres da Trácia que arrancaram a cabeça de Orfeu? Sente
certamente alguma cumplicidade, não, Lika?

LIKA (desafiadora) Hum… sim, acho que sim, que tenho alguma cumplicidade
com… com esse diálogo da mutilação... que é também um diálogo de amor,
porque a dor faz-nos acarinhar um pouco mais de nós... não é? (nostálgica) O
que eu não dava só para regressar à sala onde cheirava a comida após o
almoço e os cheiros dos chás se entranhavam nas almofadas das cadeiras
com pelo de gato… Não havia sempre um cheiro a casa e a mulher – a
pernas de mulher que se descruzam revestidas a nylon das meias
transparentes - um cheiro que era de um outro passado, na casa que já não
existe? Lembras-te, Anton? ... E ouvíamos aquela música…

ANTON Ainda a tenho, Lika! (levanta-se e agitadamente coloca o cd no leitor) Comprei no


bazar chinês, tinham uma colecção fantástica de valsas (o ambiente fica mais
intimista e Anton e Lika dançam; Olga vai buscar uma garrafa de vodka e começa a
beber do gargalo, de pé, enquanto olha, desagradada, para eles; passados minutos,
Eugénia levanta-se e pára a música)

EUGÉNIA Portugal não deveria ter tantos chineses, meu filho… É preciso termos os
nossos cuidados, os nossos brios, Anton. (dirige-se a Olga e tira-lhe a garrafa da
mão; volta-se novamente para Anton) Ainda não tive ocasião de ver as fotografias
do vosso décimo aniversário de casados.

ANTON (voltando-se para Olga)… Podes ir buscá-las, querida?...

OLGA Deveremos ter fotografias disso, sim... se é que não as puseste a segurar a
perna manca da cadeira da tua mãe... que também manca... como as
cadeiras...

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(sai com fúria; momento de tensão)

EUGÉNIA Eu manco…?

LIKA Vou-me embora. Chega! Adeus, Kóstia.


Anton fica perturbado; ajoelha-se com a cabeça sobre as pernas da mãe

ANTON Tudo se repete, mamã, tudo se repete…

EUGÈNIA Não, meu filho, não… De uma vez por todas, meu filho, vocês não são
personagens de Tchekov, não são, meu filho… Tu és apenas Anton…

ANTON Todos somos Anton, mamã… (muito perturbado) Todos somos Anton…

EUGENIA Tchekov não é a tua pátria, Anton; não é passado…

ANTON Talvez tenhas razão: não deverei esperar mais por Tchekov… Toma os
meus olhos, mamã: já não prestam; dou-te as mãos para os calços da tua
cama: estão mudas; os tímpanos põe no lixo: partiram-se; as veias podres:
não proves ---- e os óculos dá-os à ferrugem dos peixes...quanto ao resto,
ah, o resto entrega à lavadeira morta, e põe a secar entre as páginas dos dias
sujos. Já não sabes refazer-me com as contas do teu primeiro colar, mãe.
Melhor: tu não sabes nada, minha mãe, minha pátria, língua…

EUGÉNIA Maldito Tchekov! Lembro-te perfeitamente de quando o teu tio te falou


d’O Cerejal. Quiseste também escrever logo o teu “Cerejal”… Tu e Lika.
Duas crianças ainda a brincarem com as palavras… uma brincadeira
perigosa…

(recuo no tempo; entra Lika, traz um grande chapéu enfeitado com cerejas)

LIKA Trouxe cerejas para te inspirares e fazeres o teu “Cerejal”. Já tens uma ideia?

Anton vai ter com Lika e sentam-se no chão

ANTOM Sim, já tenho uma ideia (ficam ambos muito felizes)! … Uma solidão, cansada de
tanto inverno, voltou-se para uma outra solidão e perguntou: tens fome?; a
outra solidão tinha aprendido o silêncio e a paciência; desistido também; e
era já uma árvore sem pressas, como se não voltasse a haver verão; nada
disse, assim como nada respondeu às três perguntas seguintes: se tinha sede,
se tinha sono, se gostava de música; até que passados uns meses, a solidão
que tinha já desistido de tudo, voltou-se para a outra solidão e perguntou: -
já não tens mais perguntas?; a outra não agitou um ramo sequer: e dessa
quietude entre duas solidões o verão chegou, bem mais cedo que o
previsto…

LIKA …E com sol a cavalo em lombadas de livros…! E depois?

ANTON depois, uma outra cena: a do anjo e o círculo. O anjo desenhava círculos e
círculos no céu e nunca outra coisa fizera na sua longa vida milenar; numa

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primavera mandaram-no vir no momento em que uma rapariga recebia de


um amigo um ramo de flores de cerejeira e ia agora atravessar a rua; o anjo
viu que as rodas do carro não eram perfeitas e fechou os olhos; nesse
instante, a rapariga ficou sob os quatro círculos; ao abrir os olhos, viu já no
céu o mais perfeito círculo de luz; no regresso circular, as flores de cerejeira
não fazem falta; mas o amigo continua naquela rua de ramo na mão, porque
há primavera, verão, inverno, outono, primavera… até que uma árvore se
aproximou e perguntou: tens fome?

LIKA O anjo não poderia ser uma gaivota?

ANTON As gaivotas cagam tudo, Lika… Este anjo é o da morte, o da espera.


Espera-se a morte, não é?

LIKA A morte de quê?

ANTON Da espera…

LIKA Não acordamos já que a espera é a casa dos mortos?

(pausa)

ANTON Sim, poderia ser uma gaivota. E depois, num terceiro acto, um ser bêbedo
bebia, porque queria ver o rosto da amada e ao ver o rosto da amada viu
nele o mundo, mas ao querer beber o mundo, a amada fez-se em nada e
com ela o mundo foi todo para o fundo…; no fim, há uma não legitimidade
para perguntas; por isso o ser bêbedo escreve e escreve como quem
desenha círculos…

LIKA … talvez um dia um dos seus livros chegue ao sol e aí, de asas queimadas,
ofereça finalmente o ramo de flores de cerejeira à amada; aí ela irá dizer-
lhe…

ANTON … Eu sei que já não tens mais perguntas…

Separador musical que indique mudança de espaço e avanço no tempo: Lika sai e entra
Olga, vestida de modo juvenil, muito irada e empurrando-o enquanto fala; Anton não
reage

OLGA ... como foste capaz?; vá, pensa e diz-me com esses olhos condescendentes
com a mentira...; Lika, uma rapariguinha vulgar da classe média?... Poderias
ter dormido com pedintes, com prostitutas, com assassinas, tuberculosas,
bêbedas, com todas as sujas das esquinas, as putrefactas, as desdentadas,
as… mas com uma mulherzinha da classe média? Uma bonequinha
adorável e doce, criaturinha insignificante de vidinha limpa que quer fazer
pezinho de meia, que põe desodorizante nas axilas, que tira fotografias às
viagens inúteis que planeia e frequenta pastelarias como quem mergulha
numa aventura dos sentidos…; e magra e com chocalhos brilhantes ao
pescoço...?; diz-me: e ela treme o labiozinho inferior aquando do
orgasmo...? hum...?, e geme fininho quando lhe saltas em cima, porque na

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verdade, ela gosta é da força rústica e javarda, ah gosta!...; mas acreditaste na


tua mentira, não foi?, achaste mesmo possível que eras feliz se tivesses um
lar?...e filhinhos, também?... és uma besta!... fizeste-te uma grande besta...
Achas que ainda tens remédio?

ANTON: Tenho alguns, lá no centro de saúde…

LIKA Passas o teu tempo a mentir, a dizer que me amas… Mentes, mentes,
mentes... que incontinência, Anton! E já nem te dás conta!... Vou comprar-
te fraldas para a boca!... e eu finjo que te ouço e que te creio... mas agora,
depois disto, já mal te suporto... tenho centenas de mentiras tuas a
entupirem-me os ouvidos, estou quase surda por tua culpa!!

ANTON Perdoa-me, Olga… Foi um impulso… foi por…

OLGA Por culpa de Tchekov, eu sei… Vocês vivem como se personagens fossem,
uma vida plenamente literária… Isso vem de longe. A tua mãe é outra
fantástica…

ANTON A culpa é da Rússia, é deste país… Olga, partamos… Aqui, já perdemos


tudo, só as palavras nos restam… e essas invadem tudo, perturbam-me a
lucidez, o discernimento… partamos, minha querida, para um outro país
qualquer…

OLGA (triste) Não podemos! Nenhum outro país é casa, nenhum outro é o nosso
país!!!

ANTON Querida, olha no que tudo se transformou à nossa volta! Tudo em ruínas!
Eu sou o meu país, tu és o teu país, Olga… Teremos que sair daqui para o
salvar, para o preservar em nós… não podemos ficar a assistir…

OLGA Anton… levemos então connosco a ideia intacta da Rússia; a ideia é o que
há de mais belo em nós… (bebe, ziguezagueia) As trevas, novamente a Idade
das trevas… Depois da Grégia, da Europa velha, esta Europa decepada…

Toca o telemóvel de Eugénia; Olga sai; regresso ao ambiente anterior; Anton está de pé,
perturbado; Eugénia levanta-se para atender a chamada

EUGÉNIA Bóris, meu querido! Mas estás a passar mal? Foi do bacalhau, pois… Eu
também acho que deverias reclamar, só nos dão bacalhau neste país…
Não, para amanhã não combinei nada com Anton… Claro que vou
convosco fazer o circuito turístico de Fernando Pessoa… Sim… A sério?
Mas que bom! (voltando-se para Anton) Vão publicar o Bóris aqui em
Portugal… Uma excelente proposta de uma editora… (novamente para Bóris)
Qual, qual deles, querido? Ah, sim, é um excelente livro… Mas cuidado,
querido, ainda te põem a fotografia nas canecas ou nos pacotes de açúcar
(ri)…. Eu também nunca vi, tratarem os rostos da cultura como se fossem
utensílios domésticos. Uma tolice, sim, pôr a imagem de Belém no saco da
criada…Sim, Anton está aqui, comigo, sim… Oh, continua uma bêbeda!
Sim, vou passar… (para Anton e entregando-lhe o telemóvel) É Bóris. Quer saber

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Tchaïka (a casa dos mortos)
Luísa Monteiro

o que achas desse novo escritor português que faz best-sellers… e põe a
capa dos livros em camisolas de fim de semana…

ANTON (um pouco contrariado) Bóris! Sim… Sei…. sei, sei…Que bom para si. Não.
Não, nunca me fizeram nenhum convite para publicar… Pois não sei… O
mais provável é porque não ando aí a fazer aquilo a que chamam
networking. Eu nem as minhas botas engraxo… Olhe, Bóris, não vou
escrever porra nenhuma de crónica para jornais e muito menos colaborar
nessas revistinhas de impressão digital de grupos de esgazeados….Quem?
… Sei lá quem é! Ouça, Bóris quanto à tropa que anda por aí entre a
livralhada, não sei quem são, nem os quero perto de mim! Parecem-me
todos uns figurantes dos velhos filmes do Kusturica. Sim, gato preto/gato
branco... dá-me a impressão que têm ouro nos dentes... Pois é. Adeus.

(Estende o telemóvel a Eugénia)

EUGÉNIA Estou…? Estou? Oh, desligou… Eu poderia convencer Bóris a encenar um


texto que tu escrevesses. (senta-se)

ANTON Mas porque te sentas sempre na cadeira que manca? Que mania a tua, mãe!

EUGÉNIA Achas que nesta casa é a cadeira que manca?

ANTON Acho, acho. É a cadeira que manca. Eu não, nem Olga, andamos
direitinhos, ora vê (enceta passos para trás e para a frente, em linha recta)

EUGÉNIA Não sejas parvo. Não à minha frente. Eduquei-te no caminho do


discernimento…

Anton começa a procurar Tchaika por baixo dos móveis

ANTON Sim, nos escassos intervalos das tuas lides intelectuais… Bich-bich

EUGÉNIA Pelo menos aprender a distinguir o que é burguesia de classe da burguesia


intelectual…

ANTON Só conheço quatro classes sociais… Tchaïka, Tchaïka… quatro. A dos que
perseguem as ideias e são honestos, a dos que perseguem os que perseguem
as ideias e são uns tolos, bich-bich… Tchaïka!... a dos imbecis, que é a terceira
classe… que geralmente são contra as classes anteriores e que pensam terem
a Razão e Deus do seu lado… a mamã sabe muito bem que para esse gente
a Razão é uma gravidez celestial… e depois a quarta classe, a grande
procissão dos espectadores que aplaude aquele que do momento fizer mais
barulho… ai a minha Tchaïka…

EUGÉNIA (animada)… a dos cadáveres adiados que procriam. É de Fernando Pessoa.


Estou encantando com este poeta. Tem imensa piada… Atrevo-me mesmo
a dizer que é o escritor com mais humor de todos os tempos…

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Tchaïka (a casa dos mortos)
Luísa Monteiro

ANTON (aborrecido) Tchaïka! Humor e amor, mamã, mais amor… Todo aquele sono,
aquela vontade de aconchego que nos dá o sono, é amor, ou a falta dele, a
infantocracia do sono… e sim, muito humor… Bich-bich… Mas olha que
aqui os académicos, os da terceira classe, e os intelectuais, não pensam
isso… Vêem-no como um ressentido da vida, um frustrado que se
masturba nos intervalos da escrita… Menina, bich-bich…

EUGÉNIA Intelectuais neo-burgueses, então…

ANTON Sim, da quarta classe.

EUGÉNIA Então, tudo perdido também neste país… Que falta nos faz ao espírito a
disciplina da aristocracia rural…

Entra Olga com ar severo, um pouco embriagada e traz Tchaïka e uma garrafa na mão;
estende-lhe a garrafa

OLGA É isto que procuras?


(olham-se em silêncio no olhos por escassos segundos)

ANTON É um coração literário o que procuro.

OLGA (estende-lhe a gata) Toma! (Anton acarinha o brinquedo; Olga senta-se; dirige-se a
Eugénia) Mas porque é que a mãe se senta sempre na cadeira que manca?

EUGÉNIA Porque sou mãe, Olga. Um dia, vai entender o que lhe quero dizer…

OLGA (para Anton) A outra…?

ANTON Tchaïka, marota, a fugir do seu Kóstia… Deixou-se apanhar pela tigra, não
foi?… A tigra (a silabar) se-ques-trou a me-ni-na…

EUGÉNIA Lika já saiu. Amanhã saímos cedo, vamos conhecer Lisboa a partir do
roteiro turístico de Fernando Pessoa. Mas recuso-me a comer outra vez
bacalhau.

OLGA Oh, o bacalhau… para os portugueses o bacalhau não é um paladar; é um


afecto!... Tchaïka também é um afecto, Anton?

ANTON (fica perplexo)… é patriotismo.

OLGA Há patriotismo no amor que se possa ter a uma mulher?

ANTON Creio que sim. Há quem ame as mulheres por amor à pátria.

OLGA Amar por patriotismo cansa, como sabes; passado pouco tempo, e um mês
basta, já se deseja amar o que é estrangeiro…

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Tchaïka (a casa dos mortos)
Luísa Monteiro

EUGÉNIA Oh crianças, tantas paixões!, parem lá com isso! Começo a ficar entediada!
(para si) Fodam-se, mas é! Vou à casa de banho e… e depois vou-me
embora (sai).

OLGA Temos convite para jantar amanhã em casa do João. A Rita ligou-me hoje.
Fazem 11 anos de casados.

ANTON Onze? Mau número. Torre gémeas… Não sei se vou.

OLGA Não sejas desagradável, Anton. O João é teu colega lá no centro de saúde…

ANTON Um casamento de fachada. Toda a gente sabe que ele e a mulher são
homossexuais…

OLGA Lá estás tu com os teus preconceitos!

ANTON Não são preconceitos! Ele é que me disse: Eu e a minha mulher somos
homem.

(pausa. Subitamente irrompem em gargalhadas. Olga vai ao bar buscar nova garrafa)

OLGA Isso tem piada… Eu e a minha mulher somos homem… (estende-lhe a


garrafa) Abre, não consigo… Acho que a Tchaïka também deveria começar
a beber…

ANTON Nem penses em meter a minha Tchaïka em álcool. Bem bastou de quando
ma escondeste num frasco com formol…

OLGA Para conservar, meu querido… Conservar essa espera… (bebe)

Anton volta a por a valsa que dançou com Lika e começa a dançar com Olga

ANTON Mesmo quando bebes, danças bem, tigra querida…

OLGA Danço bem a tua música e a de Lika?

ANTON A Lika que conservo na memória não é a Lika que há momentos esteve
nesta sala…

OLGA É como um fantasma do futuro, minha Tchaika… ? És a minha Tchaika.

ANTON Acho que sim, um fantasma do futuro… Tivemos em tempos corações


literários

OLGA Eu sei. E isso causa-me uma infinita piedade por ti…

ANTON Piedade?

OLGA Sim, piedade. É assim como beijar as tuas mãos na bebedeira dos nomes…
e abrir portas nas tuas pestanas quando me possuis, e então ensurdecer nas

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Tchaïka (a casa dos mortos)
Luísa Monteiro

cortinas gémeas dos nossos olhos… Piedade como quando rimos das asas
sujas dos nossos pés que ainda cheiram à nossa terra… e hipotecar por isso
o nó do nosso corpo fendido... Regressemos à Rússia, meu amor, mesmo
estando lá esse ditador, esse Putin horroroso… a pátria é uma coisa mental,
mas tem cheiro… e aqui só cheira a fado, o fado que não me perfuma o
corpo, nem o de fora nem o de dentro… Pára. (param de dançar).

Anton dá a mão a Olga e desliga o som, pousa os copos e senta-se. Olga ajoelha-se a seus
pés

ANTON Olga… o meu amor por ti será sempre uma extensa labareda que se beija a
si própria, sem qualquer possibilidade de realidade, de corpo, de ser...
... o amor é uma coisa verbal, e nunca o é se o não for assim: os amantes são
criaturas de papel com a ilusão de serem barco... quase Ulisses... e quase
Penélope

OLGA Penélope, a espera em forma de mulher. A mulher que não sabe escrever, a
que pertence à ordem das rendilheiras e como tal, o amor, esse teu estranho
amor, Anton, é outra coisa que nunca se entenderá... o amor não pica os
dedos: consome-os como lenha... Qual de nós, eu ou Lika, somos
Penélope? Qual de nós mais espera, Anton?

ANTON Eu não tenho a coragem de Ulisses para o regresso.

Pausa. Anton afaga a cabeça de Lika

LIKA Afagas-me a cabeça, deixas-me deitar a cabeça sobre as tuas pernas, sobre
esse teu corpo grande que eu amava e que era o meu. Não gosto do corpo
que agora tens – e que sou eu que tenho que suportar. Como anseio a
reunificação, a partícula que fui, que foste, única, primordial...

Lika adormece. Volta-se a ouvir a valsa anteriormente dançada. Entra Eugénia

ANTON Mamã, por favor, desliga a música. Começou a tocar sozinha…

EUGÉNIA Sozinha? Estranho… e nós a pensar que controlamos tudo. Há na vida, de


facto, coisas que agem sem a nossa vontade; coisas com vida própria…
como se a vida imitasse o teatro… Adormeceu? (senta-se)

ANTON Sim… Não te sentes na cadeira manca.

EUGÉNIA Não poderia ser noutra, meu filho… Porque não a vais deitar? É tarde e eu
também tenho que me ir embora…

ANTON Não está a partilhar os mesmos aposentos que Bóris…?

EUGÉNIA Não se pode prender quando se quer capturar.

ANTON Sempre a caça, mamã. Isso é muito aristocrático da tua parte. Um pouco
devasso, também… o que não deixa ainda de ser aristocrático…

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Tchaïka (a casa dos mortos)
Luísa Monteiro

EUGÉNIA Tens escrito, Anton?

ANTON Só mentalmente.

EUGÉNIA Que desperdício. Desperdiçar o espírito por causa de uma renda de casa ao
fim do mês…

ANTON Nem todos podemos ser estrelas em elencos itinerantes… Não me coube
em sorte… Mas uma ou outra coisa, vou apontando…

EUGÉNIA Não me podes mostrar?

ANTON Posso. Está aí. O que escrevo coloco sob essa cadeira que manca. Mas por
muito que escreva, nunca se equilibra…

EUGÉNIA Debaixo da cadeira? Não tens dinheiro para comprar gavetas…? (começa a
ler) “Viver é fingir esta cegueira; mentes e eu ouço; fico esta coisa a
extravasar de todas as drogas da solidão [as do mundo são demasiado
brandas para esquecer-te]; mentes e eu aniquilo o amor em mim [o amor
deveria ser apenas o encontro de duas salivas], subtraio o meu lugar entre as
pessoas [o absoluto dos sentimentos deveria ser apenas uma mera
consequência da miséria das glândulas]; mentes-me todos dias e eu sorrio
por negação das paisagens aniquiladas [o amor não deveria ser esta
transformação em planeta de um pedaço de carne]; só este grão de loucura
me faz prosperar no vazio: há uma voz [oh, sede mortal das ficções]: e isso
me basta; porque te permites mentir assim tanto?” Isto é dirigido a Olga?

ANTON É dirigido a ti, mamã.

OLGA Há gavetas à venda no chinês, meu filho.

ANTON A arte deve fustigar feridas, mamã, ou criá-las ou cravar-se lá no centro de


onde germina a infecção, enterrar-se no coração e ficar lá a destilar uma
doce ferrugem por toda a vida... sim, fustigar!; a arte, especialmente a
literária, tem que ser um perigo até para a saúde, caso contrário é mais um
bloco de folhas com desenhos de artistas na primeira página, que é mais
grossa… e palavras e falhas e tentativas de evitar a corrupção do tempo nas
seguintes, que são mais finas... Um livro não é um tijolo para construir-se o
que quer que seja, mamã: está tudo excessivamente construído e por isso,
mal estruturado.

EUGÉNIA És um cobarde. É preciso continuar a cortar cerejais ainda em flor, sim,


meu filho, e algumas línguas bífidas. Esqueceres todas as camisas velhas que
por qualquer motivo envergaste. Seres semente de algo. Queima alguns
livros também, cospe nalgumas portas… e ama ainda mais os teus amigos.

ANTON O meu único amigo aqui é o João, um colega de trabalho. E ele e a mulher
dele são um homem… É o que ele diz…

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Tchaïka (a casa dos mortos)
Luísa Monteiro

EUGÉNIA … Não sei se já te tinha dito, mas talvez aceite o pedido de casamento que
me foi feito hoje...

ANTON Não quero saber de quem, mamã.

Som de mensagem no telemóvel de Eugénia

EUGÉNIA A esta hora…? Uma mensagem da Lika. “Eugénia, hoje não vou convosco
fazer o percurso de Fernando Pessoa. Vou apanhar sol na boca: a voz dos
olhos de Anton silenciou-me como uma flor de cerejeira; vou tirar os
parêntesis da boca para guardar a espera na casa dos mortos ou no papo de
uma gaivota; e nesse papo redondo imaginar que beijo isto e beijo aquilo e
também isso do corpo do seu filho... antes que a flor se feche...” (olha Anton,
que se encontra triste)

ANTON Vou deitar Olga. (levanta-se e sai com Olga nos braços) Boa noite, mamã.

EUGÉNIA (suspira) Aqui não há noite que me proteja desta noite que a sombra ilumina;
estou parada no seu interior como na dispersão; tenho medo, medo de
morrer no interior deste cansaço: e é um medo tão grande que me exclui...
uma voz elástica multiplica-se em várias línguas dentro dos meus ouvidos,
perfuram-me o cérebro, saem-me pelos dedos... Tchekov está aqui.
Tchekov ocupou tudo, está dentro das paredes: e olha-me; tenho medo, um
silencioso medo.
(sai)

FIM

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Tchaïka (a casa dos mortos)
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