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A PSICOTERAPIA
COMO APRENDIZAGEM
UM PROCESSO DINÂMICO DE
TRANSFORMAÇÕES
1998
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ÍNDICE
À LAIA DE EXPLICAÇÃO 7
INTRODUÇÃO 11
Enquadramento 13
Caso (Uma situação difícil - Olga) 15
O Processo de decisão 17
Caso (Extracto de 1ªConsulta - Gastão) 18
Caso (Ambiguidade - Antónia) 19
Caso (1ª Consulta - Joana) 21
O espaço e o tempo físico da entrevista 26
Caso (Exemplo de circunstância infeliz) 27
Caso (Um exemplo - Afonso) 30
Reflectindo sobre o acontecer 31
Casos (Exemplos) 33
A ESCUTA DO CONSULTOR 35
A dinâmica do encontro 37
Caso (Papeis trocados) 38
Problemas de treino 41
Conceitos subentendidos 45
Os recursos do procedimento dialógico 47
Caso (3ª Entrevista - Mª da Graça) 50
Caso (Extracto de Entrevista - Raúl) 56
Teoria aplicável 59
Caso (6ª Entrevista - Elsa) 60
Anotação teórica 66
Enquadrar - Traduzir 68
Caso (Formular a intervenção) 69
Continuação da Entrevista anterior 71
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OBJECTIVOS DO CLIENTE 73
Introdução 75
O percurso psicoterapêutico 76
Caso (4ª Entrevista - João) 77
Caso (5ª Entrevista - Cíntia) 80
O manejo criativo da ansiedade 83
Ponderação 84
Anotação teórica 87
Caso (Elaboração de associações - Rolando) 90
Teoria aplicável 92
A INTERPRETAÇÃO CONFIGURACIONAL 95
Introdução 97
A rede de significados 98
Exemplos de realce de aspectos formais 99
Caso (ansiedade de destruição - Luis) 101
Anotação teórica 106
A mente global psico-neuro-somática 107
Informação teórica 108
Finalizando 112
CASOS CLÍNICOS 113
Introdução 115
A relação dialógica numa primeira Consulta de Bebé 117
A relação dialógica em Ludo-terapia Grupanalítica 129
Um adolescente na emergência psiquiátrica 135
A relação dialógica na reunião de Grupanálise 145
GLOSSÁRIO 159
BIBLIOGRAFIA 167
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À LAIA DE EXPLICAÇÃO
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Bion, Eduardo Cortesão, Herbert Rosenfeld, Roberto Azevedo e tantos outros
exploradores dos automatismos das ressonâncias emocionais de que os
humanos se munem para lutar e para sobreviver aos desafios de cada hora.
A fim de não sobrecarregar o texto com demasiada teoria, esta é
colocada ou em Caixa (separada e emoldurada) ou em Notas de Glossário
(no fim). Procurei integrar, também, deste modo, informações oriundas das
pesquisas de campo que proliferaram no último decénio, e que podem
contribuir para esclarecer características da teorização "relacional
dialógica". Procedi da mesma maneira ao transcrever relatos de situações
concretas, dispersos pelo texto, e que podem ser lidos em separado.
Quero aqui agradecer de novo a todos os colegas que generosamente
cederam material por eles recolhido ao correr do seu trabalho, com que pude
ilustrar a exposição. Apenas não ficarão todos nomeados porque arriscaria
alguma quebra de confidência, se desse a conhecer os responsáveis de cada
actuação concreta. Nos casos citados, foram alterados todos os nomes e
circunstancialidades que poderiam levar à sua identificação, apesar de se
tratar de registos de situações vividas, dispersas por largos anos, e ocorridas
em diversas localidades e países. Agradeço de novo, também, de aos muitos
colegas que contribuíram para o meu labor ao longo do tempo com a sua
ajuda e o seu apoio. Muito especialmente, agradeço à Maria Teresa Pestana
Fagulha, à Maria Salomé Vieira Santos, e a todos os meus colegas de
trabalho, alunos e clientes, e também, em especial, à Maria Isabel Alves
Cruz, à Nina Lisa Diez dos Prazeres, ao Michael Knoch - o seu precioso
contributo.
Tendo apontado a filiação e os propósitos gerais, resta executar a
obra. Ainda que bebendo nas melhores fontes, ela não pode deixar de se
reconhecer insuficiente. Que outros venham, que a emendem, e avancem até
onde lhes for possível.
M.R.M.L.
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INTRODUÇÃO
Os conhecimentos que hoje temos da vida psicológica da criança e
do adulto humano levam-nos a encarar os problemas da adaptação pessoal,
frente às vicissitudes do dia a dia, de modo bem diferente do que acontecia
no tempo dos nossos avós. O sofrimento psicológico não tem, hoje, a
conotação de fraqueza (desprezível...). Pelo contrário, a experiência da
ansiedade é reconhecida, por muitos, pela sua ligação com a cultura e com
os arroubos da generosidade, de que dependem também algumas das
maiores riquezas de que os humanos dispõem nesta terra: nomeadamente,
a sensibilidade e a fantasia. Dela provêm tanto as grandes desarmonias da
sua existência, como, igualmente, as suas mais extraordinárias criações.
O profissional de psicologia que deseja ajudar alguém a encontrar o
caminho para promover dentro de si mesmo o seu potencial humano e que,
numa linha de isenção pessoal, assume o compromisso de acompanhar
pessoas na difícil busca de liberdade e de realidade interiores, irá ver
iluminarem-se territórios inesperados. Com a sua presença e olhar reflexivo,
ecoará cada passo a percorrer e percorrido, com isso sustentando a confiança
na compreensibilidade de vivências assustadoras e de riquezas inesperadas
ou encobertas, até então desconhecidos do Cliente, de que deverá
assenhorear-se.
Como interlocutor, como profissional, o psicoterapeuta não poderá
nesta caminhada exigente deixar de aprender a ser humilde e aceitante do
seu papel de apenas mediador, apenas instrumental - numa tarefa de
transformação e de construção. Então, reconhecerá que, apesar de todo o
seu empenho, apenas poderá ser útil na medida em que consiga assumir a
sua ignorância e a sua impotência face aos objectivos reais da auto
descoberta. Reconhecerá que este labor é pertença única e exclusiva do
Cliente como sujeito da experiência de aprendizagem emocional - que o
psicoterapeuta apenas acompanha e procura ajudar a clarificar. Nesse
sentido, muitas vezes lhe chamaremos Consultor, sem especificar se trata
de um licenciado em psicologia, ou se trabalha em instituição hospitalar ou
em consultório privado.
O Consultor de psicologia dinâmica engloba nas suas preocupações o
cuidado de esclarecer com o Cliente o carácter não-médico da sua
intervenção - quer a situação de consulta dinâmica surja dentro ou fora do
enquadramento psiquiátrico.
Mas, será que o Consultor, ele mesmo, aceita, no seu íntimo, as
potencialidades do «tratamento falado», centrado sobre a comunicação? Se
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quer assegurar-se de algum resultado benéfico dos seus recursos
profissionais de intervenção psicológica, pelo menos terá de acreditar neles.
A mensagem (sobretudo implícita) do chamado diletante, ou do falsamente
convencido, é extremamente insecurizante para quem sofre, sobretudo
quando se encontra desorganizado psiquicamente...
ENQUADRAMENTO
A consulta psicológica não ocorre num vácuo. Se acontece em
consultório privado, a iniciativa de procurar ajuda foi geralmente assumida
pelo queixoso e/ou por seus familiares. Então há muitas variáveis a vigiar,
como seja as relacionadas com o pedido de marcação. Quem apresenta o
pedido? Como? Com que urgência? Como emerge a constelação familiar?.
Se ocorre em instituição de saúde (Hospital, Clínica ou Centro) a
acção do psicólogo enquadra-se, necessariamente, no contexto da acção de
outros. Os trâmites que antecedem a Consulta devem ser considerados, pois
condicionam a primeira abordagem do Cliente. Por vezes, uma equipa
interdisciplinar orienta o 'caso' no seguimento da entrevista de acolhimento
feita pela assistente social. Noutros locais, pelo contrário, o diagnóstico
psiquiátrico antecede qualquer outra diligência. Se existir uma equipe
multidisciplinar, a entrevista psicológica do tipo associativo será o primeiro
acto profissional oferecido pela instituição, sendo da responsabilidade quer
do psicólogo, quer do psiquiatra ou de qualquer outro profissional de saúde
com competências para essa intervenção. No caso, a entrevista seria
complementada pelo preenchimento de questionários normalizados, o mais
das vezes executado pelo próprio Cliente e/ou seus familiares. Na falta deste
modelo mais diferenciado, o acto de acolhimento do paciente toma formas as
mais diversas.
As diferentes circunstâncias condicionam a intervenção do
profissional de psicologia, e ele deve estar preparado até para os imprevistos
- incluindo a situação extrema de receber no seu gabinete uma pessoa
desconhecida com indicação expressa do Serviço para imediata continuação
(...) de uma psicoterapia dinâmica (...). No contexto institucional (e também
fora deste...) acontecem percalços, de certa maneira imponderáveis,
necessitando grande flexibilidade da parte do Psicólogo, que tem de entrar
na situação sem mais formalidades, a fim de não deixar um paciente
desamparado.
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Só o treino básico da relação de entrevista associativa pode servir-
lhe de sustentáculo em situações atípicas (como a relatada a seguir), pois
pertence-lhe fazer sentido da experiência, no 'aqui e agora' e em contacto
com o Cliente.
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Psi. - "O seu marido não gosta muito. (Pausa) E a Senhora?" ...
(Etc.)
(Na situação, a psicoterapeuta está na atitude duma primeira
consulta perante o desconhecido. Assume uma posição de escuta, na
medida do possível, ao mesmo tempo ecoando o sentir que lhe está a
ser transmitido, e procurando obter dados de contexto da realidade da
paciente).
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haver acordo quanto ao tratamento psicológico a encetar, irão seguir-se os
acertos sobre horários, pagamentos, relações com familiares, instituições,
etc. Isto perfaz o que se designa de contrato de análise psicológica (ou
contrato psicoterapêutico).
Freud falou de um processo de decisão ao descrever a análise de
prova para estabelecer as condições de tratamento psicológico. Estas podem
ser expressas nos termos de elementos ou estruturas de elementos que
constituem a perturbação. (Daí provém a designação de 'análise'
psicológica, ou seja: desdobramento dos elementos constituintes da
reacção global do Cliente).
Ainda hoje as descrições de Freud fornecem um enquadramento
para o primeiro grupo de entrevistas que têm o propósito expresso de
conduzir a uma avaliação conjunta, englobando o parecer do Cliente e do
Consultor, acerca do trabalho efectuado e a efectuar. Uma análise chamada
de 'prova' poderá ter a duração de até dois meses, ocorrendo entrevistas
semanais, seguindo-se uma planificação ou uma interrupção das
entrevistas.
O PROCESSO DE DECISÃO
Na entrevista dinâmica, o Consultor apresenta-se expectante: tem
uma proposta e deseja que o Cliente possa aproveitar dela. Mas, neste
primeiro encontro, nada espera e nada promete. Assim, deve proporcionar
uma possibilidade de estabelecer conversação sobre a vivência concreta, de
modo a esclarecer os elementos da queixa apresentada pelo Cliente, dos
contextos em que ela se situa no seu dia a dia e, ainda, fornecer impressões
relacionadas com a atitude expressa perante o profissional com quem se
encontra (ver adiante a pormenorização dos requisitos).
Tudo isto, geralmente, não se faz num primeiro contacto, pois é
necessário atender ao próprio sofrimento do Cliente, que, por vezes, se sobre
põe a quaisquer outras considerações relacionadas com o diagnóstico e o
planeamento futuro.
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EXTRACTO DE UMA PRIMEIRA ENTREVISTA
O Sr. Gastão é enviado ao serviço de psicologia pelo psiquiatra
assistente. Entra, curvo e com passos pesados, o semblante
inexpressivo. Senta-se e mantém-se silencioso, olhando a parede em
frente.
A Consultora apresenta-se e acrescenta que percebe que o Sr.
Gastão se sente muito carregado. Faz uma pequena pausa. Em
seguida pergunta-lhe onde mora e elementos sobre a família: "Com
quem vive?" etc. Parecendo-lhe que a postura do seu cliente está
menos tensa, procura encetar uma conversa mais livre.
Psi. - "Sr. Gastão, conte-me um pouco o que o trouxe a esta consulta."
Gastão - "Oh! Senhora Dr.ª, eu não sei o que se passa; mas não me
lembro de nada."
Psi. - "Não se lembra de nada!" (Pausa) "Conte-me mais um pouco,
como acontece isso de não se lembrar de nada."
Gastão - "Saio da oficina para fazer um recado. Chego lá e não sei o
que vou lá dizer. Os meus vizinhos riem-se de mim e dizem que estou
'aluviado'..."
Psi. - "O Sr. G. trabalha numa oficina?"
Gastão - "Eu trabalhava, mas desde que me deram aquelas coisas, já
não sirvo para nada."
Psi. - "Deram-lhe coisas e sente que já não serve para nada. (Pausa)
Há quanto tempo isso aconteceu?"
Gastão - "Aconteceu o quê?"
Psi. - "Sentiu que já não serve para nada."
Gastão - "Foi quando me deram aqueles sonhos e eu desmaiava. Aí
percebi que já não prestava para nada."
Psi. - "Gostava que me contasse um pouco mais da sua vida, para eu
poder segui-lo melhor." (Etc. ...)
O ritmo do diálogo manifesta o sofrimento deste cliente (e a doença),
com o qual o profissional deverá lidar no seu papel de mediador, sem
se alhear da sua função de avaliador das possibilidades emocionais de
organização interna de que o cliente disponha.
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Mesmo que o Psicólogo, cautelosamente, vá formulando para si
próprio uma posição estratégica, a sua comunicação pode e deve apresentar-
se espontânea e humanamente comprometida, na medida em que se deixa
impregnar pela própria realidade do Cliente, conforme lhe é transmitida no
'aqui e agora' do encontro que decorre. Assim, o Cliente irá aprender um
processo novo de comunicar - a livre associação - e acontecerá
familiarizar-se, ao mesmo tempo, com a característica 'abstenção'
praticada pelo psicoterapeuta de orientação dinâmica, cuja atitude de
'observador-participante' dá um colorido especial ao convívio profissional
que está a ser encetado na consulta.
Sendo complexa a mensagem que passa entre Consultor e Cliente, a
transmissão tem de contar com os recursos da comunicação não verbal. Esta
decorre a todo o momento e em todas as circunstâncias do trato humano,
num campo ou numa rede de experiências em que os factos vivenciados ou
relatados tomam forma contra um fundo, e não podem ser descodificados
sem tomar em consideração esse fundo. Daí resulta o que nos habituámos a
designar a "linguagem silenciosa da psicoterapia" (Beier & Young, 1984),
que temos de aprender a cuidar, e a usar intencionalmente no manejo
profissional do relacionamento psicoterapêutico.
Assim, o primeiro treino do Consultor, ao iniciar-se no processo
dinâmico de intervenção psicológica, reside em tornar-se simples e directo,
não ambíguo, na situação de entrevista. Parece evidente, mas não é uma
atitude fácil de conseguir.
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Trata-se da primeira experiência de um iniciando. Está nervoso,
mas bem consciente de que deseja construir um espaço de iniciativa
para a Cliente. Pega no Processo (que pousara sobre a mesa), sem se
aperceber de que, naquela hora, se trata de um "bordão". É como que
um passaporte de acesso numa situação em que precisa legitimar-se:
("Faço parte deste Serviço. Tenho aqui o Processo da cliente!"). Mas,
para a cliente, o envelope representa um elo com a sua Médica
(conhecida) que a reassegura na presença do desconhecido. Então, a
mensagem resulta de duplo sentido: o Psicólogo segura-se ao
envelope do Processo (institucional) e, ao mesmo tempo, comunica
verbalmente que não vai ocupar-se do conteúdo médico desse mesmo
envelope ...
Entretanto, ao aperceber-se (ao ouvir a cliente) do outro significado
do sobrescrito em que tinha pegado distraidamente, o Consultor
poderá reconhecer a comunicação não-verbal e corresponder-lhe:
(Por exemplo: "Pois está! Foi a Dr.ª (...) que a encaminhou para vir a
esta consulta. Mas, se calhar, a Senhora sabe também de si mesma
tudo quanto está nesta carta. Gostaria que me falasse disso nas suas
próprias palavras."
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um desconhecido, mas manifestam seguidamente quanto isso lhes é penoso.
Pelo contrário, alguns dizem desejar abrir-se, para serem melhor
compreendidos ou para se entenderem melhor a si mesmos, e demonstram
uma expectativa quase irrealista de compreensão e de ajuda perfeitas.
Na verdade, cada Cliente lida à sua maneira com a sensação de o
Consultor ser um 'estranho' (um desconhecido, sentido como ameaçador) -
em relação ao qual experimenta uma variedade de expectativas boas e más.
Será que se pode confiar nele? Dado que detém um título profissional, há a
expectativa de que vai oferecer soluções ... Vai dar uma 'coisa' que não é
remédio de tomar pela boca, ou injectável ... Talvez directrizes, conselhos,
explicações? Ou será outra coisa? …Mas, o quê? Que vai ele/a dizer? Que
vai fazer? …
Imaginemos como é vivida esta situação pelo lado do profissional
que se expõe como 'Consultor'? Ele ... (mulher ou homem, novo ou velho,
branco ou negro) recebeu o pedido de marcação, predispôs o seu gabinete de
consulta (colocara já as cadeiras, a mesa, a estante, a decoração), levanta-se
para receber a pessoa marcada ... Vê o cliente atravessar o umbral da porta
e avançar para um dos lugares que estão à disposição ... (apressado ou lento,
decidido ou hesitante, alerta ou acabrunhado, vigilante ou disperso) ... e
cumprimenta. Se é sensível à mensagem não verbal, irá encontrar um
manancial de informação só neste primeiro momento do intercâmbio em
que os caminhos de dois estranhos se cruzam.
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Joana - "Os meus pais sempre se deram mal .. Batiam-se e tudo."
(Cala-se, e o Psicólogo espera. Antes da tensão crescer demasiado,
pergunta):
Psi. - "Tem irmãos?"
Joana - "Tenho. Tenho dois. Um tem vinte e oito anos, divorciado e
com uma filha. A miúda vive connosco. Este meu irmão tem sempre
tido uma vida confusa. É um malandreco, como dizem os meus pais.
Já no tempo do colégio ..." (Segue-se a troca pausada de informação e
a manifestação de ressonâncias do Consultor, conforme elas são
despertadas pelo relato. A informação é recolhida a par e passo da
livre associação da cliente e das suas pausas. Há a preocupação de
suscitar um 'convívio' verbal, que não desperte demasiada tensão,
nem se esboroe em mero relato factual, mas transmita o modo como
os factos são vividos e o posicionamento do Cliente no relato.
Próximo do termo da hora, com tempo bastante para encaminhar o
fim da entrevista, o Consultor irá fazer perguntas pontuais para, com
isso, elucidar aspectos circunstanciais que lhe pareçam necessários -
mas isto só depois de ter captado algo sobre o funcionamento situado
ou seja, contextualizado, daquela pessoa).
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interacção em que se manifeste o modelo de organização interna de que o
Cliente dispõe naquele momento de crise.
Quando se situa a intervenção numa área de significados definida
tecnicamente como transicional (em que são admitidas a fantasia e o 'faz
de conta', mas é mantido o contacto com as imposições da realidade -
Winnicott, 1971), assegura-se ao Cliente que é possível fazer 'um parêntese',
na consulta, entre o que se pode dizer e compreender 'aqui' (dentro da
situação) ... e o que 'lá fora' ... permanece - e não se vai escamotear.
Na circunstância, e apesar de tudo, o Consultor é aquele que ouve
e também traduz (traduz mais do que interpreta …). Tem um papel de
testemunha e de contentor da palavra e do símbolo do outro. Garante
para o Cliente que a sua experiência (falada, silenciosa, confusa, racional ...)
tem compreensibilidade. Garante isso na medida em que reconhece, repete,
ecoa, responde com acentuações globalizantes, assim manifestando de modo
pacifico que se pode esperar: aguardar e manter a esperança. Mostra
acreditar que, a seu tempo, o seu interlocutor encontrará a possibilidade de
formular o que vivência. Deste modo, mesmo nos primeiros contactos, o
Consultor encontra-se na posição de estabelecer uma ponte - constitui-se
como mediador de relações que abrangem interlocutores do passado e
convivas do presente, na medida em que ajuda o Cliente a mover-se mais
comodamente nessa rede de relacionamentos antigos e actuais.
O Consultor não se oferece como agente de 'adaptação' apontando as
circunstâncias 'do destino' ... Antes, representa a certeza de que é possível ao
Cliente mudar internamente os rumos do seu viver.
Uma parte dos Clientes atendidos na consulta psicológica poderá ter
sido enviada pelo Psiquiatra ou por um Serviço de saúde mental. Não
pensando só no apoio psicológico pontual (que poderia ser corrente em
serviços de urgência psiquiátrica), mas também nos contratos de tipo
dinâmico enquadrados como 'terapias breves', há que rodear estas dos
maiores cuidados diagnósticos. Quando ocorreu uma emergência
psiquiátrica e se efectuou tratamento e 'alta' de um hospital, a intervenção
psicológica analítica exige uma avaliação estrutural cuidada, para
identificar os recursos do Eu (estrutura organizativa dos actos e 'sentires'
próprios). Só assim se assegura a independência do contrato a formular.
Aliás, as entrevista englobadas na 'primeira' consulta tendem todas para
este objectivo de definir as condições possíveis de uma proposta de
intervenção psicológica, não medicamentosa. Elas terminam com a
'devolução' ou transmissão da informação organizada pelo Consultor com a
proposta para o Cliente.
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Se o Psicólogo constatou que não existem condições mínimas para
planear um tratamento psicoterapêutico, precisa dar notícia clara disso ao
requerente e seus familiares. Para isso, tem de contar com algum espaço
para desenrolar uma discussão do assunto e não deixar para um último
momento uma despedida sumária.
Nem sempre pode ser oferecido um tratamento psicológico e
(sobretudo quando se trata de Clientes vulneráveis e sem rectaguarda
suficiente de apoio). É preciso conduzir a pessoa no sentido das alternativas,
de modo a evitar-lhe 'mais uma' experiência de abandono ou desinteresse.
O procedimento de avaliação pode, mesmo, terminar numa decisão
de recusa de tratamento psicológico. Assim, compreende-se bem que nas
entrevistas iniciais fosse preciso evitar o livre curso das associações
emocionais, como as que resultam da investigação 'selvagem' das causas na
experiência infantil, ou das explicações dadas com falta de oportunidade
("timing" desadequado), e tudo o mais que não contribua directamente para
resoluções organizativas do foro intra psíquico. Quando falta o treino
básico de manejo da relação interpessoal, podem surgir modos de elaboração
das situações pseudo-dinâmicas, bem delicadas ...
Num serviço em que é institucionalmente assegurada a rectaguarda
médica, encontra-se, de certa maneira, minorado o risco da decisão a tomar
quando um Cliente é enviado à Consulta Psicológica, e alguma intervenção
dinâmica pode ser tentada, mesmo do tipo 'breve', pois é pressuposta uma
continuidade do apoio psiquiátrico. (Exemplo: Caso Adolescente, em Anexo).
No planeamento da intervenção dinâmica fora do contexto
hospitalar, normalmente, não são impostas delimitações muito rígidas na
duração do processo de intervenção psicológica, ou sequer da 'análise de
prova'. Também se pensa haver menor risco de situações de emergência do
foro psiquiátrico entre as pessoas que procuram a clínica privada. Nem por
isso se deve prescindir de averiguar se existe um mínimo de equilíbrio de
funcionamento mental, bem como as condições para enquadramento de um
trabalho psicoterapêutico. Aliás, salvo quando se verifica estarem em causa
problemas pontuais de característica claramente existencial, o Consultor de
orientação dinâmica recomenda sempre uma consulta psiquiátrica de apoio
para o Cliente (se esta não antecedeu o pedido de marcação), pois a
intervenção psicológica não é inócua, e deve estar-se prevenido para qualquer
emergência imprevisível relacionada com um surto ansioso.
Conforme foi dito, na entrevista associativa são recolhidos os
elementos de informação julgados suficientes para o objectivo de formular
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uma decisão sobre as indicações, ou contra-indicações de um tratamento
psicológico com orientação dinâmica. Há que acautelar, pelo menos, 6 tipos
de informação.
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que permitem prever alguns condicionalismos a ter em conta num
tratamento.
Em qualquer caso, uma intervenção psicológica, ainda que existam
indicações claras que a recomendem, tem encargos para o Cliente a colocar
na balança (tempo, custos económicos e outros). Conforme também já se
indicou, deve ser ponderada a chamada 'retaguarda de apoio'. É evidente
que deve haver um cuidado especial com os requisitos específicos de casos
onde não seja dispensável um suporte médico continuado, esclarecido e
independente (mesmo que o Consultor em causa seja formado em
medicina).
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exemplo, o Psicólogo poderá dizer: "Daqui a pouco vamos ter de interromper,
então vamos olhar só um pouco para..."
A interrupção é indicada por uma frase do tipo de: "Vamos terminar
por hoje e (...uma alusão ao que foi combinado...). O Consultor fará, ao
mesmo tempo, menção de se ir levantar.
Durante o período que lhes é atribuído, os Clientes têm o direito de
se perceberem como único foco de atenção do seu Consultor, e não sujeitos a
imperativos externos. Mesmo assim, se ocorrem interrupções não
controláveis, estas, quando manejadas com tacto, poderão dar azo a que o
Cliente observe no Consultor a capacidade de moderar e/ou evitar a invasão
do seu espaço. A interrupção deve ser englobada na situação como 'material'
que desperta reacções (por vezes diferidas no tempo) a analisar e ecoar...
Assim, é importante imaginar, antecipando, como lidar com interrupções,
ou com outros imprevistos que afectam a continuidade da Consulta.
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"Isto foi muito aborrecido. Desculpe. Fomos interrompidos e até
podemos retomar o fio da meada". (Pausa). Se o Cliente não retoma:
"Mas, para já, também gostaria de saber como reage habitualmente a
este tipo de imposições do meio. Por exemplo, como o que sentiu
quando ia a falar e lhe cortaram a fala?"
(Esta sugestão é relativamente inócua, mas alerta o paciente para a
tarefa que ali o traz, ou seja examinar o que sente, e o modelo ali
usado para lidar com 'coisas perigosas' ou com coisas más, até menos
candentes).
A pergunta anterior pode ser retomada, se o Cliente der sinal de
ter essa expectativa. Pelo lado do Consultor não deve haver iniciativa
clara nesse sentido, pois se arriscaria a desencadear um relato lógico
isento de ressonância dinâmica. No caso de uma sugestão posterior de
que se pode voltar ao assunto, este deve tomar uma forma bem aberta
e tentativa, deixando um pausa para o Cliente deliberar consigo
próprio. Por exemplo: "Estava-me a contar que os seus sustos, primeiro
aconteciam só em ... (o que fosse) e agora os sente a afectar outras
situações." (Pausa). Na continuação, deverá seguir a iniciativa do
Cliente, de acordo com as normas gerais e até poderá acontecer que a
análise da emoção fóbica possa ser retomada em seguida. O
importante é que esse relato (se aparecer) surja numa sequência
associativa espontânea e não como reconstituição lógica das causas de
estados de aflição.
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que a descansar, e a meter conversa ou a 'instruir' outros Clientes ou seus
acompanhantes que ali se encontrem.
Como a sala de espera não deve convidar a trocas de experiências
entre Clientes (ou pessoas que esperam ser atendidas por outros
profissionais), até se poderá recorrer ao estratagema de acender uma
televisão (regulável a distância, por exemplo por uma recepcionista de feitio
discreto). Assim, quando não haja outra alternativa, estabelece-se a relativa
distância que se recomenda. Temos o velho ditado: "Mais vale prevenir que
remediar".
É muito importante que os profissionais façam pequenos intervalos
entre algumas das consultas, para se distender um pouco.
No caso de partilha de instalações, deveria haver um recinto
apropriado (distante dos gabinetes), onde colegas possam trocar dois dedos
de conversa ou tomar um chá ou um café. Também deveria ser previsto um
intervalo maior, de vez em quando, em que sossegadamente o Consultor
faria registos sobre o seu trabalho a partir de notas escritas ou recordadas.
Sem estes espaços abertos, é difícil criar a disponibilidade para aprender
alguma coisa na continuidade do trabalho - que venha a servir de espaldar
de experiência acumulada.
Por vezes, pergunta-se como devem estar dispostos os moveis e que
decorações são aconselháveis, o que apenas se aplica quando alguém parte
do zero e com plena liberdade decorativa. A resposta depende,
evidentemente das actividades que deverão ser abarcadas e do número de
pessoas a atender de cada vez (indivíduos, familiares, grupo).
Alguns psicoterapeutas sentem-se mais confortáveis sentados atrás
de uma secretária, estando os seus clientes sentados na sua frente. Outros
não se sentem bem tendo a secretária a separa-los dos seus interlocutores,
preferindo ter à disposição um pequeno móvel de apoio, junto da poltrona
em que se sentam, e colocando os seus interlocutores (ao seu nível) em seu
redor. Os analistas psicodinâmicos que trabalham com famílias e com
grupos de clientes ou que, na fase de diagnóstico psicodinâmico, recebem
famílias, podem precisar de ter duas salas, ou seja, um gabinete de consulta
individual e, ainda, uma sala de reunião. É importante prever como atender
mais pessoas frente a frente, todas acomodadas de modo análogo, evitando
uma disposição em que se realcem categorias de participantes, os melhor e
os pior sentados. A liberdade de manejo de situações de relação depende de
coisas tão simples como a colocação das cadeiras ou poltronas e também, por
exemplo, das características de insonorização da porta e da própria sala.
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A decoração das salas e gabinetes também levanta alguns
problemas. Mesmo quando se trate de um gabinete em contexto
institucional, podem-se colocar quadros ou plantas ou enfeites discretos.
Obtém-se um ambiente mais agradável e dele pode decorrer a mensagem de
estabilidade e contenção tranquila dos afectos. Uma sala completamente
isenta de decoração representa o ambiente impessoal, próprio de um
hospital ou serviço caracterizado de 'público', no mau sentido da palavra, o
que se interpreta como lugar de todos e de 'ninguém'... Em lugares de
'ninguém', quer o profissional, quer o Cliente, vão sentir-se muito pouco
estimados.
Dizia-se, antigamente, que o gabinete de consulta psicológica não
devia ter decoração, uma vez que esta poderia influenciar cada Cliente de
sua maneira, retirando objectividade ao procedimento do profissional. Esta
instrução pertence a outro contexto, distinto do psico-dinâmico. A entrevista
para aplicação de testes normalizados ou provas projectivas pretende
estabelecer um modo de relacionamento com o paciente diferente daquele
que neste texto se descreve. Trata-se de aplicar instrumentos de medida,
contendo em si mesmos um objectivo psicométrico, classificador,
completamente ausente da consulta associativa aqui em causa.
Um ambiente arejado, minimamente arrumado, e discretamente
personalizado, comunica ao Cliente que alguém está preparado para o/a
receber e deseja que ali se sinta à vontade. Apenas se devem evitar retratos
de familiares ou amigos, que iriam sugerir uma atmosfera de maior
intimidade. Isto iria contradizer a atmosfera profissional, em que deve
imperar apenas a preocupação que o Cliente traz com ele. Um armário
espaçoso ou uma estante, permitirão ao profissional manter uma certa
ordem nos seus pertences ou nos documentos de serviço, de modo que o seu
desalinho não invada o ambiente que se deseja liberto de outros
compromissos não abrangidos na consulta que vai ocorrer.
26
Psi. - "O Dr.(...) recomendou-lhe que faça psicoterapia."
Afonso - "É. Estive a pensar que, afinal, prefiro escolher uma
psicóloga para o tratamento."
Psi. - "Uma psicóloga..." (é o caso).
Afonso - "Pois, já fiz outras duas entrevistas. Na primeira era
também psicóloga e entendi-me bem... Mas achei-a pegajosa (Pausa)
"O segundo era um psicólogo, novo, e queria que eu me decidisse.
Conhecia a minha médica e tudo. Simpatizei. Mas tinha tantos papeis
na mesa, no chão e por toda a parte, que senti que ali não ia conseguir
respirar." (Pausa) "Agora estou aqui. Afinal o que eu quero é uma
pessoa que não me exija muito e que pareça ter a cabeça arrumada.
Para confusão basto eu."
(O resto da entrevista correu sem nada de in comum. Seja lá por que
for, a escolha recaiu no terceiro psicólogo, acaso uma mulher.
Mostrou-se um bom colaborador, com capacidade de análise afincada
e bons resultados).
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REFLECTINDO SOBRE O ACONTECER
Nas três entrevistas anteriores, um Cliente tinha chegado com 20' a
30' de atraso sobre a hora marcada. Também, no mês anterior,
faltara a uma das entrevistas sem avisar. Desculpou-se dizendo que
se tinha distraído. Na presente sessão, o Consultor deixa o Cliente
iniciar a comunicação. Tendo avaliado que esta, nesse momento, não é
premente, aproveita a primeira pausa possível:
Psi. - "Nos últimos dias tem-se atrasado. Acho que isto não acontece
por acaso. Que lhe parece?" (O tom da intervenção é amigável).
Cliente - "Desta vez esqueci-me e da outra vez tive um problema de
transporte."
Psi. - "Compreendo isso, e não quero minimizar as dificuldades do
dia a dia. Mas, parece-me que neste momento do nosso trabalho se
pode perceber que as suas faltas e atrasos exprimem alguma coisa do
seu sentir ..."
Cliente - "Você está-me a dizer que eu estou a fugir da conversa..."
Psi. - "Acho que devemos considerar essa possibilidade." (Pausa)
"Gostava de falar um pouco mais disso consigo." (Etc.)
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produzido, está-se a prestar atenção às resistências naturais que o ser
humano opõe ao auto-conhecimento.
Curiosamente, podemos encontrar pacientes que mostram desejar
encurtar a entrevista. Outros fazem por prolonga-la para além do seu
horário.
EXEMPLOS
Exemplo de uma situação em que um Cliente diz, depois de uma
pausa em que a tensão parece crescer: - "Bem. Penso que por hoje já
chega! Não lhe parece, Dr.?" (Move-se na poltrona como quem se
prepara para se levantar).
Psi. (suave, mas imediato e firme) - "Não acho! Ainda nos resta
algum tempo. (Pausa) Mas sinto que ficou inquieto. Talvez esteja
ansioso de partir. Poderíamos falar um pouco do que sentia quando
lhe ocorreu que era tempo de sair"… (Mas, se o/a paciente insiste, não
há senão que confirmar: que a hora é do Cliente, não do relógio... ou do
terapeuta...).
29
Ainda um exemplo do acontecer num momento de saída. O Cliente,
já estando de pé, recoloca o tema que se examinava. Então poderá
bastar um simples sorriso amável, como que realçando que ambos
sabem tratar-se de um estratagema de retardamento.
Outras vezes, o sorriso pode ser acompanhado de um
reconhecimento: "Está a custar sair"... (É que o Consultor sabe que o
acto de sair coloca em cena a experiência de abandonar ou ser
abandonado ...).
Ou então, poderá dizer: "Compreendo que está a precisar falar mais
... Mas terá que ficar para a próxima vez." (este final é acompanhado
de gesto a convidar a sair).
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A ESCUTA DO CONSULTOR
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32
A DINÂMICA DO ENCONTRO
Do ponto de vista do observador, a característica mais saliente da
entrevista dinâmica ou associativa é tratar-se de um encontro entre duas ou
mais pessoas até aí desconhecidas. A condução desta experiência candente
exige um rigoroso treino e o afinar de quantas capacidades de empatia e de
liberdade associativa o Consultor possa dispor. A atitude manifestada pelo
Cliente ao colocar-se em presença do Psicólogo, e o modo como mostra
apreender o papel deste, permitem perceber elementos importantes para
caldear os dados.
O aprendiz de psicoterapeuta treinou-se em promover a sua atenção
livre-flutuante, em observar ao mesmo tempo o detalhe e a configuração
global da situação (a "Gestalt", ou a forma/configuração olhada contra um
fundo), com a sua escuta fortalecendo a matriz de comunicação associativa.
Trata-se, para o Consultor, de ponderar o movimento psicológico no
contexto por ele criado, que Donald Winnicott (1941), designava de 'situação
padrão', em que a comunicação toma configurações bem características,
diferentes de pessoa para pessoa - a observar com toda a atenção neste
primeiro 'acto' no palco do 'encontro'.
Todos os profissionais se aperceberão de que devem contar com a
ansiedade que a situação de primeira consulta, à partida, provoca na/s
pessoa/s que vêm ao seu encontro. Observando o modo como o Cliente se
consegue desenvencilhar na circunstância, tem-se acesso aos seus modos
habituais de defesa face ao sofrimento psicológico que deu origem ao pedido
de consulta.
O modo como o Cliente lida com o natural constrangimento
provocado pela própria situação de consulta, assim como a sequência da
comunicação que pode ser observada e com a qual se trabalha, fornecem
preciosas indicações para auxiliar o Psicólogo presente na avaliação das
características do próprio pedido de ajuda.
Na circunstância, o Cliente precisa confiar no seu interlocutor para
se entregar à situação em que se encontra e exprimir a sua queixa...
Então, o Consultar poderá observar como é intenso, no Cliente, o desejo de
receber bons cuidados (desejo esse que pode ter ressonâncias gostosas ou
angustiantes); ou, pelo contrário, observa quanto aparece reforçada a
necessidade de autonomia do Cliente (esta cresce ao ser evocada uma
situação de dependência... com um medo de se sentir subjugado...). Estando
o Cliente aflito/a e procurando ajuda, poderá resultar (no seu mundo
emocional) uma sensação confusa de ficar 'por baixo' - na posição de
33
dependência... É que, recebendo ajuda de alguém que dela dispõe, pode
também atribuir a esse alguém a categoria de 'estar por cima'...
De certa maneira, o espaço e tempo internos revelados na situação
tipo da entrevista esclarecem-se quando repetidamente se observa a
dinâmica do encontro. Deve lembrar-se a importância das expectativas do
Cliente, mas igualmente alertar para a importância da atitude interna do
Consultor. Se, no momento, ele se encontra indisposto ou doente, tem de
avaliar se tem a disponibilidade requerida para uma consulta dinâmica.
Uma dor de dentes, uma gripe, uma perda importante, podem afectar um
profissional, que tem todo o direito de alterar o seu horário, sobretudo
quando é possível prevenir o seu Cliente. De toda a maneira, se resolve
atender a pessoa que o espera, pode (e talvez deva) comunicar a sua
dificuldade ao seu Cliente. Deixará cair esta mensagem discretamente,
sendo absolutamente inconveniente que se atarde em detalhes ou queixa,
mesmo que o Cliente o provoque. A posição de empatia por parte do cliente,
humanamente apreciável, produz uma mudança de papeis (entre quem
procura e quem fornece ajuda) que se repercute no relacionamento por largo
tempo, e muito para além do que é racionalmente explicável. Torna-se um
elemento de comunicação implícita, que é difícil de rastrear claramente.
34
comovido com o sorriso doce daquela criatura "sempre tão forte e
segura de si".
Diz estar muito contente de a ver forte e saudável. A Consultora não
interpreta o significado do sonho na comunicação corrente. Pelo
contrário, apenas agradece a preocupação dele.
Na segunda consulta depois desta, o Cliente diz que precisa
interromper a terapia, por ... (Refere uma condição, até
ultrapassável.) Acrescenta achar que já progrediu o que devia e que,
neste momento, as Consultas constituem uma sobrecarga. Acha que a
Psicóloga deve achar isso mesmo, pois ela não precisa mais ocupar-se
dele, uma vez que ele se encontra melhor.
O Cliente manifestara no sonho, que os papeis se tinham invertido:
Inconscientemente, o Cliente é a pessoa sã que visita a Psicóloga
diminuída e fraca, a quem deseja ajudar. Ao mesmo tempo, transmite
uma certa superioridade - mostra que, tem agora o papel de visita,
que já não necessita ser tratado...
Pode-se imaginar que o Cliente não teria abandonado a sua terapia,
como efectivamente aconteceu, se a Psicóloga tivesse podido trabalhar
com ele esta experiência emocional (inconsciente) de mudança do
posicionamento, de que o sonho dava notícia, e que a Consultora não
demarcou, nem antes nem agora, para trazer à consciência e
clarificar.
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A experiência continuada do Consultor permite-lhe diferenciar
significados distintos na correnteza das associações pessoais: significados
implícitos, que dão colorido à informação que estará a ponderar no seu foro
interior. As suas reacções estão relacionadas, não só com o conteúdo
material do relato do paciente, mas são respostas automáticas, que se
prendem com o processo de transmissão corrente. Trata-se de perceber
como isso está a afecta-lo. O Consultor irá tentar localizar o modelo de
relação implícito naquele momento do relacionamento presente,
(intercâmbio 'dual' ou 'triangular', directo; ou sedutor, indirecto; ou
intrusivo; ou passivo-agressivo; etc.). Será imperioso admitir ao trabalho
consciente a relevância das suas sensibilidades, para que possa procurar
avaliar o modelo em que se insere a comunicação, com as mensagens
perdidas de que as 'impressões' dão notícia.
A arte de condução da entrevista clínica associativa consiste no
afinamento dessa atitude de seguir os movimentos emocionais, mantendo a
argúcia crítica para a adequada percepção dos factores da realidade - pano
de fundo em que a compreensão de significados toma forma.
Postula-se que, deste modo, na entrevista, se obtém acesso a
amostras representativas do sentir e reagir do Cliente (por vezes
surpreendendo o próprio), amostras que irão revelar facetas desagregadas
da vivência do Cliente ou as repetitivas 1 no caso de perturbações
neuróticas muito estruturadas.
Na verdade, frequentemente vêm a surgir relatos em que se
manifestam sequências de reacções expressivas, configurações emocionais,
que parecem obedecer a uma espécie de 'compulsão de repetição' (a qual
caracteriza a vida emocional afectada de perturbações). Na visão de
Sigmund Freud (1920), a chamada 'compulsão de repetição' manifesta-se
tanto mais, quanto se possam encontrar presentes vivências conflituais que
impedem a 'livre circulação' da informação na mente. Na entrevista, pode-se
reconhecer esse aspecto recorrente - não tanto nos factos, mas nas
sequências que vão sendo relatadas. É como se se tratasse de tentativas
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repetidas de encetar uma resolução para um conflito interno premente
respeitando à pessoa total, solução que, também repetidamente, escapa ...
O papel do psicoterapeuta junto de cada Cliente irá aclarar-se aos
poucos. No início, apenas se podem estabelecer hipóteses do tipo das
afloradas. Em termos gerais, importa conhecer os aspectos intra-psíquicos
que podemos 'ler' na mensagem implícita - contida, esta, no modo como a
comunicação do Cliente surge e toma forma numa sequência característica.
Para além dos factos descritos, a informação mesmo bem concreta é
portadora de grande caudal de ressonâncias, de que é preciso inteirar-se.
Estas não só dão colorido emocional ao diálogo, mas enriquecem os próprios
factos com significados que, de outro modo, não seriam acessíveis.
Colocando-se sob esta perspectiva, e centrado nos relacionamentos
presentes, o Consultor encontra-se a estimular o movimento reflexivo, que
promove no Cliente a aceitação da vida mental própria e confere a esta o
estatuto de objecto valioso de investigação.
PROBLEMAS DE TREINO
O hábito de se manter numa expectativa empática na situação da
entrevista e, ao mesmo tempo, como cientista, manter-se atento a
esquemas e hipóteses (a comprovar ou invalidar) adquire-se com a
prática, e vem a ser quase um automatismo.
No início, a atitude a alcançar tem de ser pensada e repensada e
actualizada pela análise contínua dos registos de consulta que vão
sendo conservados. O estudo 'a posteriori', desses registos, usados
como texto de trabalho, permitem fazer 'exercícios' de compreensão
alternativa do ocorrer de cada momento - de preferência em situação
de supervisão. A discussão do texto registado tem como função
cimentar esta auto disciplina de análise constante do material, tal
qual aparece nas sequências do relato.
Servindo-se do enunciado no texto (então em análise), pergunta-se:
Como funcionou o 'convívio' ou o diálogo? qual a mensagem do
silêncio? Onde ficou perdido ou como se encontrou o contacto
implícito? Como se manifestou o bem estar? Etc., Etc.
No entanto, não se irá confundir a realidade da entrevista, como
vivência emocional, e o texto que se estuda. Este é, evidentemente,
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uma abstracção, com utilidade para o treino do raciocínio clínico do
Consultor (e apenas isso).
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O terceiro troço da entrevista visa (e de certa maneira prepara) a
interrupção da consulta. No caso do primeiro encontro, a introdução da
terceira parcela do tempo de consulta estará condicionada pela necessidade
de formular uma decisão (a transmitir ao Cliente) sobre o planeamento das
consultas e/ou de uma psicoterapia. No caso de um tratamento em curso,
trata-se, pelo contrário, de desprender o paciente da área imprecisa,
transicional de trabalho e apontar a realidade corrente 'lá fora', sem quebra
de à vontade com esse modelo transicional da experiência vivida.
O contacto estabelecido, tendo uma característica 'conversacional'
inserida na entrevista dinâmica (R.F. Hobson, 1985), permite deambular
pelos meandros da vida afectiva, dando acesso a sequências dispersas da
história do Cliente, cuja mensagem é apenas 'pré-consciente' e pouco
acessível ao pensamento lógico. Resultam, assim, relatos pouco organizados,
com uma característica muito individualizada, por vezes surpreendendo o
próprio Cliente com a sua riqueza. São fruto de um convívio, numa área
transicional de trabalho (entre facto e configuração emocional), e dão
notícia dos recursos de que dispõe o Cliente para se socorrer (ou não) de
estruturas organizativas próprias. Isto é importante para encaminha-lo no
sentido da aprendizagem emocional, de modo a poder servir-se da
experiência psicológica mediadora em curso para o desenvolvimento ou a
mudança.
Na escuta do Psicólogo está em causa, sobretudo, facilitar ao Cliente
o acesso a novos modos de interagir e de se aceitar, sendo-lhe facultado viver
a própria emoção nessa região fluida entre realidade e fantasia em que o
diálogo ocorre, e em que procedimentos estruturantes vão ser activados.
Desse modo, ao correr das entrevistas, ir-se-á delimitando o campo dos
significados em que o Psicólogo poderá inserir interpretações
transformadoras.
Na atmosfera tensa do 'tratamento falado' o convite de comunicar
faz emergir sequências de informação e de silêncios, em que se observam
estilos diferentes para cada tipo de Cliente e em cada momento da sua
evolução. No caso extremo, é de notar que é importante não deixar o Cliente
'a falar sozinho'. Conforme já se disse, a entrevista dinâmica é um processo
de intercâmbio, em que a reciprocidade do relacionamento e a alternância
das contribuições fazem parte de um modelo estruturante dialógico da
experiência.
Pode-se observar que os Clientes reagem, cada um a seu modo, à
estratégia do Consultor de criar ritmos de alternância nas comunicações.
Alguns sentem-se extremamente gratificados porque encontraram alguém
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que responde (corresponde) a par e passo, dando-lhes a sensação de
estarem a ser atendidos. Para outros, pelo contrário, este procedimento
apresenta-se como extremamente invasivo. Sentem que não os deixam
elaborar a seu modo ou que os criticam, ou os desorganizam. Mostram que
só se sentir confortáveis se os deixam falar "sozinhos" e manifestam uma
certa rigidez ou, talvez, dificuldade em distribuir a atenção.
Surgem, por vezes, situações em que o Cliente não tem pausas, não
'dando a vez' ao outro, como seria típico num qualquer outro convívio social
entre pessoas. Esta forma de se comunicar denota um alto grau de
ansiedade, e, ainda, uma compulsão de se projectar totalmente na situação
e/ou de não perder o controlo, controlo esse que o Cliente sente escapar-lhe
no intercâmbio.
Quando observa a falta de flexibilidade do Cliente nessa situação, o
Consultor pode concluir tratar-se de um modelo de comunicação perturbado,
talvez dando notícia de uma distorção na 'relação de objecto', e consequente
incapacidade para o diálogo.
Então, o Consultor tem de se introduzir na narrativa. Não poderá
colaborar com a tendência para o monólogo, quer pelo seu silêncio, quer pelo
seu cansaço. Esboroar-se-ia a possibilidade de criar uma atmosfera dialógica
na entrevista. Se tentar a todo o custo entender a substância do relato, se se
deixa afectar pelo conteúdo, não poderá aperceber-se desse aspecto 'formal'
que se evidencia quando se sente invadido. Nesse caso, acabará fazendo
interpretações intempestivas e atabalhoadas que, possivelmente, irão
'arrumar de uma vez' os significados de que o Cliente possa estar a querer
alhear-se.
Para interromper o discurso e contribuir para a reciprocidade e
alternância da interacção, podem servir interjeições várias: "Como isso foi
doloroso!"... ou: "Sentiu que isso foi simpático!"... ou: "Aonde é que isso
aconteceu?". Ultrapassam o clássico "Hum! hum!" ou "Pois! pois!" (que
apenas servem de bordão para o Consultor, mas nada adiantam para a
dinâmica da situação). Sem introduzir conteúdos diferentes, com os seus
comentários o Consultor irá colar-se explicitamente às associações do
Cliente. A função da interrupção da torrente narrativa, por parte do
Consultor, é a de se tornar presente como interlocutor: um interlocutor
válido, que responde. Com a sua intervenção, está a significar,
implicitamente, que o trabalho, ali, se faz em conjunto, por partilha e
análise dialogante.
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Nas formas contrastantes de actuação do Cliente vislumbram-se
modos opostos de se aperceber e de se posicionar frente às contribuições de
'outros', o que se supõe acontecer também noutros momentos da vida dele.
Tudo isto remete para as experiências precoces de 'relação de objecto'.
Hipotetiza-se que estas se repercutem na vida adulta. Revelam-se em
posturas automáticas que se manifestam de modo análogo às que se admite
terem sido modeladas então.
Neste formato teórico, a intervenção do Consultor visa aceder às
estruturas elementares de organização do 'Eu' na sua relação com o 'Outro',
e aclarar a posição relacional modelada e assumida internamente. Assim,
prepara o parceiro deste intercâmbio para o trabalho de construir ou
solidificar a instância 'Eu'.
CONCEITOS SUBENTENDIDOS
O termo 'Eu' é utilizado, neste texto, no sentido do 'Ego' da primeira
teorização de Freud, em que 'Ego' se contrapõe a 'Outro' (em que a
configuração 'outro' inclui a realidade externa, as pessoa e tudo o que,
na experiência, escapa ao seu controlo.
Mais recentemente encontra-se o termo 'Self' de Jung para
significar a entidade pessoal assim referida.
O 'Ego' da segunda tópica de Freud tem um referencial diferente:
fala-se, então, do 'Ego' da estrutura tripartida: 'Id' - 'Ego' - 'Superego'.
Na condução do procedimento associativo tendente a estabelecer, na
entrevista, um relacionamento dialógico está em causa enquadrar
o modelo espontâneo de regulação da vida emocional, presente nos
alvores da vida no interior do relacionamento genitor/filhote e que
assegura a primeira estruturação da mente, o Eu.
Apela-se para este modelo de elaboração espontânea do Eu, que se
perfaz pela construção de significados pessoais partilháveis assumidos
pelo próprio. No adulto capaz de espontaneidade, o Eu funciona a
nível pré-consciente (ou seja, encontra-se, em boa parte, acessível à
elaboração consciente).
Supõe-se ser este o paradigma da elaboração normal de informação
emocional, codificada a partir de elementos do chamado 'processo
primário' e transcritos de novo na mente, assumindo os parâmetros
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do código chamado 'secundário'. Para cada indivíduo, esta transcrição
depende da capacidade de gerar símbolos analógicos a fim de conter e
organizar facetas emocionais do vivido e, ainda, de usar os operadores
e símbolos abstractos encontrados no contacto com o espaço e tempo
real. Só assim pode apropriar-se da experiência, fazendo-a 'sua' (M.
Klein, 1926; W. Bion, 1962; 1965; Lacan, 1953; Hanna Segal, 1957;
Leal e Garcia, 1997).
42
Na verdade, o Consultor é apenas especialista na clarificação de
processos emocionais que impedem a luta saudável de implantação na
caminhada da vida. Compete-lhe clarificar os automatismos e apoiar a
aprendizagem num modelo de sobrevivência emocional, em que o Cliente
possa inscrever os seus valores e utilizar da melhor maneira os seus
recursos.
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Consultor. Outras vezes, ainda, o Cliente posiciona-se como se nada tivesse
ocorrido de novo no relacionamento.
Na prática, são tantas as variáveis quanto as pessoas, e o Consultor
observa qualquer delas com a mesma atenção, pois, neste começo, joga-se a
compreensibilidade do tratamento que se pretende desencadear.
É importante não argumentar com o acontecer do Cliente e deixar
que o próprio processo em curso o conduza a aperceber-se e a apropriar-se
do modelo de conversa associativa em que é convidado a participar.
Surpreendentemente para ele, toda a iniciativa vai-lhe pertencer, mas sem
que ela lhe seja imposta.
Ao alargar-se a sua percepção da mobilidade típica da vida mental,
será facilitada a sua aprendizagem de novas formas de relação intra-
psíquica e interpessoal. A aprendizagem resultará da possibilidade
fornecida ao Cliente de viver as suas emoções nessa região fluida entre
realidade e fantasia que lhe é proporcionado pelo Consultor no diálogo
terapêutico.
Na circunstância, o Consultor deve procurar colar-se à informação,
conforme ela vem acorrendo: conseguir cultivar a atenção 'livre flutuante' (e
suportar a possível sensação de confusão ...). Encontrará que os elementos
dispersos fornecidos ao correr da narrativa ritmada pelo diálogo irão
manifestando encadeamentos sensíveis mais ou menos inteligíveis.
Especialmente para o profissional iniciando, o esforço de aguçar a
sua capacidade de 'observador participante' deverá ser bem mais produtivo
do que a preocupação em analisar as defesas, em interpretar o processo
primário, em deslindar a transferência (coisas que lhe recomendam alguns
livros …). Todos esses procedimentos resultarão possíveis mais tarde,
quando já possua um bom domínio do modelo dialogante, reflexivo, e tenha
acedido a uma prática correcta de aplicação das regras base de condução da
entrevista semi-livre associativa (dialogante, conversacional) com que, no
imediato, se perfaz o acesso à dinâmica do discurso.
Colocando-se em ressonância emocional com o/a Cliente, na ida e
volta do convívio falado, terá ocasião para abranger e re-exprimir o
significado dinâmico que emerge, 'prenhe', na comunicação em curso.
Procurando certificar-se pelo diálogo, da viabilidade global do seu
entendimento acerca da vivência de que participa, o Consultor irá também
configurando mentalmente interpretações abrangentes incidindo sobre
aspectos da experiência que, de parceria, está a ser analisada . Algumas
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vezes, poderá até propor estas ideias ao Cliente que as poderá integrar - ou,
talvez, rejeitar.
Na orientação dinâmica focada no presente, utilizando o
procedimento acima esquematizado, o Consultor estimula a comunicação e
acompanha o deambular reflexivo que emerge e se irá estruturando, como
mediador de uma experiência psicológica organizativa. O registo que faça,
depois de cada entrevista, acabará bem mais rico (mesmo em factos) do que
o obtido numa anamnese clássica.
Poderiam ser escritos dois relatos distintos de uma entrevista -
ambos decorrentes dos interstícios da comunicação do Cliente. Ao Consultor
pertence assegurar a consistência na apreensão de qualquer dos dois
registos e respectivos entendimentos.
Existe na entrevista um encadeamento na ordem lógica dos factos.
É importante que este se mantenha como pano de fundo na memória a
longo prazo do Consultor. Mas existe outra sequência, esta de significado
implícito, e que segue as regras do processo primário que Freud descreveu
(1900), conforme já foi referido. O seu referencial imediato encontra-se na
ordem emocional., na sequenciação dos significados implícitos. É a estes que
o Consultor dedica a sua atenção 'livre flutuante', ou 'ressonante'.
Então, o principal factor a analisar no intercâmbio diz respeito à
ressonância emocional inscrita na movimentação associativa. Esta remete
para uma matriz interna (como que uma rede de relacionamentos
emocionais) realçada pelos rótulos de relação de objecto que se encontra
expressa em toda a interacção com alguma carga emocional.
Os termos relação de objecto designam o modo como cada um
experimentou a sua relação com as pessoas de quem, um dia, foi 'objecto'
de primeiros cuidados. Afirma-se que a relação de objecto originária
caracteriza fortemente a presente interacção e a comunicação actual com 'o
outro', pessoa ou pessoas de trato diário. Também se deseja descortinar na
relação que o Cliente estabelece com o Psicólogo (o 'outro' ali presente) - de
quem se sente depender para construir qualquer novo começo, ou seja, para
alcançar qualquer mudança e possível alívio do seu mal-estar.
Além disso, como dizia João dos Santos por boca de Eduardo
Cortesão (1962), a entrevista psicoterapêutico, a dois, deve sempre ser
analisada como encontro em grupo, englobando muitos outros
interlocutores que entram no discurso, e não só os dois que possam estar
fisicamente presentes. Salvo no caso de autismo pronunciado, por exemplo
em alguns psicóticos (em que os mecanismos de isolamento fazem
45
desaparecer artificiosamente quaisquer testemunhos implícitos da presença
do 'outro') - o diálogo no 'aqui e agora' com o paciente engloba (ou nega)
'outros' que estão implicados na experiência e dão sentido ao que ocorre.
É de notar que o conceito de 'grupo interno' usado por alguns
grupanalistas corresponde a esta observação geral acerca da manifestação
das 'relações de objecto'. (Conferir Leal, 1968 e respectivo comentário de
S.H. Foulkes, 1968). 2 A postura do/a Cliente perante o seu mundo interno
de vivências, conforme ali expressas, é um dado de peso para compreender a
dificuldade presente e, dentro desse contexto específico, ainda, avaliar os
modos de mobilizar os seus recursos adaptativos e criativos.
Se, por um lado, não é imediatamente evidente quem ou quais são
os interlocutores internos que darão sentido à mensagem de cada hora, por
outro, é certo que o posicionamento e a resposta por parte do
psicoterapeuta privilegiarão esta ou aquela organização do discurso
subsequente. Por isso, sem crítica, nem sinal de promoção, regulando as
orientações expressivas que decorrem da sua presença activa, o Consultor
cuidará de conseguir devolver para o Cliente a iniciativa de conduzir o rumo
da comunicação, sempre que possível., mesmo que isso o deixe perplexo por
algum tempo e sem entender os rumos lógicos do discurso.
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hora, e sugerira a conferência dos relógios respectivos, verificando-se o
avanço do relógio dela. É apresentado o relato da 3ª entrevista após o
contrato de 'análise de prova'.
A Cliente trás um semblante muito carregado e emite suspiros,
mantendo-se em silêncio. Fora bastante verbosa nas consultas de
avaliação e também nas duas que precederam a que aqui se
transcreve:
Psi. - "Parece estar a sentir-se muito carregada..." (Pausa) "Será que
poderíamos falar um pouco sobre o que lhe está a pesar."
Mª G. - "Na segunda-feira (a véspera) foi tudo uma droga! Preferia
esquecer tudo o que aconteceu. Fui para casa e fiquei com muita dor de
cabeça."
Psi. - "Gostava que contasse um pouco mais do que aconteceu, para
eu poder entender melhor."
Mª G. - "Que é que adianta. Já aconteceram!"
Psi. - "Para mim parece-me importante entender o que aconteceu."
Mª G. - "O Joaquim não me atendeu. Nem me entendeu!"
Psi. - "Como foi isso?"
Mª G. - "Na segunda feira, quando ia a sair, a porta do escritório dele
estava aberta. Perguntei-lhe se, quando ele não estivesse, eu poderia
ficar lá. Levou um susto! Não entendeu nada. Sem saber o que
respondia, disse: Mas como é que a Graça sabe isso?..." (Pausa) "Sei
que ele não quis agredir-me; mas recebi isso como agressão."
Psi - "Foi claro para si que, do ponto de vista dele, ele não a estava a
agredir; mas, lá por isso, não deixou de se sentir agredida!"
Mª G. - "Foi." (Pausa) "E aquele negócio de ficar lá, no escuro - foi
bobagem." (Silêncio) "Gostei do que ele me trouxe (um pregador de que
falara depreciativamente em ocasião anterior). Tudo o que fiz foi
bobagem..."
Psi. - "Está-me a dizer que as coisas que contou eram bobagens?..."
Mª G. - "Acho louco o que me está a acontecer ..."
Psi. - "Sente-se mal com as coisas que lhe estão a acontecer. Parecem-
lhe loucas."
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Mª G. - "Pois. Como no outro dia que tivemos de acertar o relógio e eu
achava que me roubava no tempo."
Psi. - "Sentiu muita raiva ..."
Mª G. - "Não! Estava muito triste." (Volta ao assunto do Chefe.
Conta o episódio de novo, mas como se não lhe dissesse respeito). "Ele
não entendeu nada." (Volta a não ser claro de que se trata).
Psi. - "Tem a sensação de não ser entendida. Será que também sente
não poder ser entendida, aqui, por mim?"
Mª G. - "É mesmo! Ele não deve ter entendido nada. Joguei nele... e
ele nada podia fazer. Mas eu só queria ir lá para a foto."
Psi. - "Ficou complicado, quando, afinal só queria ir lá por causa da
foto."
Mª G. - "Nem na Escola (é trabalhadora-estudante) eu consigo tirar o
retrato da Orientadora." (Pausa). "Não gosto que tirem o retrato de
mim." (Pausa). "Só se fosse às escondidas. (Respondendo a uma
expressão de perplexidade do Consultor) Como? (encena, com ar
sabido).
Psi. - "Sente que as pessoas tiram coisas de si - até lhe 'tiram'
retratos e não lhos dão de volta. Exigem-lhe coisas... Entretanto, pode
sempre brincar..." (Terreno escorregadio... A análise psicológica 'tira o
retrato' das pessoas ...).
Mª G. - "São exigências de todo o lado. Não, mas na 2ª feira foi
horrível." (Pausa). "Mas também toda a história da minha avó. Era
muito para mim."
Psi. - "Não sei se estou a seguir ...?"
Mª G. - "É que o meu pai ligou para a casa da minha avó." (Casa da
avó materna onde a Cliente mora já depois de adulta, quando o Pai a
'abandonou por uma mulher'.(A mãe morreu cedo e os irmãos, mais
velhos, emigraram há muito). "Falou que tinha saudades. Ela disse-
lhe: 'Então venha almoçar comigo'. Mas não me disse nada. Então,
quando entrei, ele viu-me primeiro. Estava toda pintada e arranjada
porque vinha do escritório." (Pausa) "Tenho saudados dos manos, mas
dele não tenho. Pôs-se logo a mandar vir: que me estava a armar em
madame." (Pausa)
Psi. - "Não esperava vê-lo ali"
48
Mª G. - "Fui logo para o meu quarto; nem almocei."
Psi. - "Quer distância dele." (Pausa) "Ainda tem de procurar o seu
lugar". (É uma alusão à 1ª Consulta, em que se falava de procurar a
própria identidade e de não ter um lugar desde que o pai a 'traiu' e a
abandonou).
Mª G. - "É muito difícil. (Pausa) Quer que lhe conte os meus sonhos?
(O Consultor não responde, mas mostra ar expectante): Convidei-a
para passear no meu carro. Você e meu pai. Você disse que não podia.
Fui embora sozinho. - Outro: Fui a sua casa. Eram todos filhos. Havia
festa. Você não me ligava. E outro: Vestia uma camisola em que estava
bordado HAVE NO TIME. É assim que a vejo, sem tempo para mim."
Psi. - "Os sonhos mostram que se sente sem contacto comigo. Não
consegue sentir-se próxima."
Mª G. - "É isso. Com o Joaquim é diferente. A ele encontrei-o e ele até
me chamou para a sala dele."
Psi. - "Sente que não tenho tempo para si. Queria mais e queria
pertencer mais."
Mª G. - "É. Não tem tempo para mim. Só a sessão."
Psi. - "Seria bom se isto aqui fosse família ou convívio em que a sua
presença contasse. Parece-me que está a falar, bem mais fundo, de um
desejo de se sentir a pertencer a uma família e de a sua mãe, quando
era viva, estar consigo e ocupar-se mais de si."
Mª G. - "É! É igual. Estava sempre a sair. Não tinha tempo senão
para os outros." (Conteúdo novo...).
Psi. - "Nós vamos ter ainda muito tempo para falar disso e doutras
coisa importantes, de que precisa de falar para se encontrar. Vamos
fazer isso juntas."
Mª G. - "Não sei... (sorrindo).
Psi. - "Hoje vamos ter de interromper. Vamos ficar por aqui.
Encontramo-nos na 5ª feira. (Pausa) Até lá! (A cliente sai, meio
embaraçada, mas sem resistência).
49
cadências e a qualidade do relacionamento que se estabelece na
situação de convívio terapêutico, e formular hipóteses tentativas (daí
decorrentes) acerca do que se vislumbra quando se ponderam os ritmos da
interacção e o conjunto do 'material' recolhido.
Ao lançar-se na via da comunicação associativa, estabelecendo para
isso uma atmosfera conducente ao convívio falado, o Consultor irá
acompanhar as reflexões do Cliente através dos relatos de acontecimentos
presentes, das suas recordações, e das fantasias que despontem - sem lhes
impor qualquer rumo.
Entretanto, não ouve passivamente. Pelo contrário, utiliza
sabiamente a sua capacidade de diálogo como intervenção reguladora,
prevenindo surtos de reacção ansiosa que possam ser disruptivos. Poderá
introduzir comentários, como que pensando em voz alta, e/ou dando 'verbo'
ao que é expresso não-verbalmente pelo seu Cliente. Poderá também (nisso
interrompendo o curso associativo), pedir especificações ou descrições mais
claras.
Introduzirá esse tipo de intervenções com uma reflexão apropriada,
como: "Não estou a entender..." - Ou: "Quer dizer que..." (Por exemplo:
"Quer dizer que havia outras pessoas presentes?...") Com isso, estará a
mostrar que se empenha em seguir rigorosamente o relato que ouve.
Cuidará de não inserir experiências próprias ou 'viéses' pessoais que
ultrapassem a informação recebida. Mas é natural que o Consultor, como
ouvinte, espontaneamente organize reconstituições mentais do que lhe
parece fazer parte da situação que lhe descrevem. São pistas importantes
mas que ele não poderá aplicar sem verificar o acerto da sua intuição
(analisando para isso a informação que se segue, a qual irá comparar com o
cenário que imaginou ...). Terá algumas surpresas, se for fiel a esta
orientação de manejo...
Por vezes, o que está em causa é compreender como o relato se
insere num tempo e num espaço concretos (do ponto de vista do Cliente) ou
se, pelo contrário, se passa numa zona fluida da fantasia, que o Consultor
deverá diferenciar rigorosamente dentro de si mesmo. (Exemplos de pedidos
de esclarecimento, que não põem em causa o direito de fantasiar, mas
mostra a necessidade que o Consultor tem de distinguir: "Essa é a irmã de
que falava ao princípio?" - Ou: "Percebo que nessa altura viviam em casa
dos seus pais!?")
Na medida em que o Consultor reflecte simultaneamente para o
Cliente o seu direito de vaguear na fantasia e a capacidade de reconhecer as
50
fronteiras da realidade (o que corresponde a não perder contacto com ela), o
Consultor pode-se designar 'guardião da realidade'. Isto implica que pode,
igualmente, enquadrar a fantasia. Deve ter-se a liberdade de dizer como as
crianças: "Isto é 'faz-de-conta'...". Se o 'faz de conta...' for integralmente
permitido, podem descobrir-se outros, novos modelos de realidade ...
Feitas algumas ressalvas (como as acima colocadas a título de
exemplo), o Consultor irá cingir-se às associações do Cliente. Irá regulando
os ritmos da comunicação, sem introduzir raciocínios ou factos
suplementares (ainda que possa fazer comentários ou perguntas para
circunscrever mais rigorosamente a sequência associativa).
O Consultor servir-se-á da sua ressonância pessoal, do eco
emocional que experimenta e que, por vezes, poderá traduzir para o Cliente
em palavras simples que façam parte do vocabulário expressivo comum, e
que designem os movimentos internos emocionais que pressente. Nesse
aspecto, cada um tem as suas idiossincrasias expressivas e o Cliente
rapidamente se habitua a elas.
Se é certo que o Consultor, deve cultivar a espontaneidade, não se
pode esquecer de que deve, também, fazer um esforço para conseguir um
grau relativo de adaptação às características culturais e pessoais do seu
interlocutor do momento. Com este cuidado manifesta aquele mínimo de
delicadeza que se deve esperar de um profissional que se ocupa da vida
emocional dos outros.
Os conteúdos latentes da comunicação abrigam significados
pessoais, tal como em qualquer outra conversa. A sua carga dinâmica, não
imediatamente compreensível, é característica de uma história pessoal,
assim como o são os encadeamentos de factos que acaso entram nos relatos.
No convívio falado da consulta psicológica o Cliente dará a (re)conhecer a
persistência dos significados individuais ligados a acontecimentos vividos
(desde sempre lembrados ou não ...). Ao Consultor pertence o cuidado
constante de ponderar a sua importância para a organização emocional do
Eu - assim obtendo novos dados sobre a estruturação interna da
personalidade do seu Cliente. Toma parte activa na produção da
informação, fazendo perguntas e sugerindo rumos de pesquisa. Mas, terá de
perguntar ao Cliente só coisas que este sabe, e não pedir-lhe explicações de
significados implícitos (imaginados pelo Consultor) e de que o Cliente ainda
não pode aperceber-se. Evitará colocar o Cliente na posição de 'quem ignora'.
(De facto, o paciente ignora a informação inconsciente, ainda que pareça
utiliza-la). Com o tempo, a espiral associativa poderá tornar acessível (ou
pré-consciente) o material que o Consultor procura compreender.
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Mas, há coisas que, parecendo evidentes para o Psicólogo, não se
encontram disponíveis, à mão do Cliente, pelo menos na hora que passa.
Fora do tempo propício, a descoberta de certos laços associativos pode
tornar-se um artifício racionalizador. A premência de encontrar os elos
lógicos ou os elos inconscientes da comunicação (desenquadrada do 'timing',
tempo dinâmico) só pode promover maior dificuldade para a análise
psicológica. Por vezes, até pode ser útil tornar explícita a intenção de
respeitar o estado de não saber. Bastará anotar simplesmente: "Parece que
falta aqui um elo qualquer para a gente entender o que se passa consigo. Não
nos vamos preocupar com isso. O elo aparecerá no seu tempo próprio." (Esta
anotação, se feita com simplicidade, não levará a nenhuma confusão com a
descrição de um fenómeno, bem diferente, de perda de elos entre
experiências, em que se supõe uma rotura - "splitting" - de significados.
Esta ocorre em personalidades ou em momentos de experiência de
desintegração dos laços de compreensibilidade da própria experiência, o que
foi estudado por W. Bion, num trabalho genial: "Attacks on linking" (1959).
Além de pedir informações ou elucidações, o Consultor também pode
sugerir comparações concretas, as quais o Cliente pode confirmar ou negar.
Pode pedir especificações para tornar mais explícitas, ou mais presentes, as
circunstancialidades de fenómenos a que o Cliente se esteja a referir.
Igualmente, pode realçar, como quem sugere, a qualidade da emoção que
lhe parece estar a captar na comunicação. Chama-se a isto ecoar (ou seja,
ao nomear a emoção, dar a este acto o tom da ressonância): ao procurar
escutar a tonalidade da vivência, para o Cliente se pronunciar sobre ela,
reconhecendo-a, repudiando-a, poderá contribuir para elucidar os afectos
mobilizados.
O Consultor também pode simplesmente repetir o que o paciente
está a dizer, como quem reflecte em voz alta, ou como quem pergunta (pela
inflecção de voz, ou a direcção do gesto, ou pela expressão do rosto). , Deixa,
assim, transparecer que está seguro de que o seu interlocutor pode, depois,
retomar a comunicação interrompida.
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Raúl - "Continuo na mesma. Acontecem-me estas coisas, sempre."
Psi. - "Que coisas?".
Raúl - "Aquilo que lhe contei. Continuo a ver caras quando estou a
adormecer, e tenho medo que tudo volte outra vez (enchem-se-lhe os
olhos de lágrimas).
Psi. - "Tudo?..."
Raúl - (Dá um suspiro forte, leva a mão à cara, e olha-me com os
olhos húmidos): "Custa-me a falar disto. Tenho medo que volte a sentir
aquela voz grossa que me apertava a garganta; e dava saltos e batia
com a cabeça nas paredes. Nessa vez, em Fevereiro, estive dois dias no
hospital e deram-me uma injecção. (... O paciente continua a falar e
termina mencionando a opinião de outras pessoas acerca dos seus
problemas).
Psi. - "As outra pessoas dizem isso ... E o Senhor o que acha?"
Raúl - "Bom. Às vezes também penso que é da imaginação; outras
vezes, julgo mesmo que tenho um espírito mau. E é por isso que tenho
medo. Mas deve ser da minha imaginação. Porque, dantes, não
conseguia vencer esse medo, ao adormecer, e tinha de abrir os olhos.
Agora, já me compenetro que é tudo da minha imaginação e não abro
os olhos. Depois adormeço logo, sem mais nenhum problema. E hei-de
vencer isto. (Pausa) O meu medo é voltar a ouvir aquela voz, que sai
dentro de mim."...
(Neste ponto, o modo como o psicólogo encara o seu papel vai ser
decisivo. Na ida-e-volta do intercâmbio, cabe-lhe expressar a sua
presença: é a sua vez ... Perante o crescendo da ansiedade do Cliente,
que retoma o discurso (..."o meu medo é voltar a ouvir aquela voz ..."),
que fazer? Encorajar verbalmente? Exprimir solidariedade ou pena?
Convidar, gestualmente, a continuar a falar? Sugerir uma explicação
mais elaborada? Ou simplesmente confirmar?...).
Psi. - "Está-me a dizer que percebe que é a sua imaginação. Mas, ao
mesmo tempo, lembra-se de coisas que se passam dentro de si e lhe
fazem medo. (Pausa).
(Nota: O Psicólogo decidiu que o mais importante, no momento, era
sublinhar os dois pólos do sentir do Cliente. Agora, se o Cliente
retoma a palavra, há que segui-lo de novo.
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Mas, se a ansiedade não se esbatesse, haveria que o ajudar a
distanciar-se, ecoando a dificuldade e (depois de uma pausa) sugerir
que falasse de . . . . . Deveria ser algo bem concreto, que fornecesse
um novo fio de conversa, uma pergunta sobre informação já
partilhada acerca de circunstâncias vividas, ou a referência a algum
acontecimento concreto e bem comum (por exemplo: "O que fez neste
fim de semana?").
Em tudo isso, o Consultor mostra poder sustentar para cada
experiência o seu tempo, e testemunha que está presente,
também, para não deixar crescer a ansiedade para além do nível
médio em que a elaboração é possível..
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TEORIA APLICÁVEL
Quando o bebé tolera o afastamento do cuidador por períodos curtos
e, na ausência dele, pode manter-se dialogante dentro de si mesmo,
diz-se que se sente 'na presença de..., '(internamente) na companhia
do seu cuidador primário.
Experiência inversa, igualmente comum, mas destruidora, é sofrida
pelo bebé em circunstância paralela: no instante em que o bebé tem a
percepção de que a fonte de vida se encontra fora dele e que essa fonte
de vida se encontra na posse do 'objecto' (pessoa) de quem depende, a
sua ira será sem limites (entendida como resultante de frustração
narcísica). Esta experiência ataca traiçoeiramente a mãe se esta se
sente insegura.
O laço de amor (atracção, reconhecimento doce e excitante) deve
contrabalançar aquela força de repulsão em que se revela a emoção
de ira, que estilhaça qualquer laço.
Melanie Klein descreveu pela primeira vez o 'automatismo'
primitivo de dissociação destas duas experiências primárias, sob a
metáfora do 'peito mau' e do 'peito bom' - 'peito' que é vorazmente, ou
absorvido como alimento maravilhoso, ou expelido como
excremento e vómito - que devem ser conservados separados para a
vida se suster e construir.
Winnicott descreve como este desenvolvimento ocorre na condição
em que o cuidador principal consegue gerir um 'meio sustinente' -
que fornece o amparo seguro ("holding") em que o bebé (atravessando
as vicissitudes do dia a dia) pode aprender a manter o contacto com o
seu cuidador: a sua mãe que se aceita como apenas 'suficientemente
boa'. Trata-se de uma mãe que não é perfeita, mas é atenta e
ressonante, capaz de manter algum vai e vem de intercâmbio não
verbal e verbal com o bebé, reconhecendo a existência das suas
necessidades e das suas frustrações e partilhando-as sem demasiada
angústia.
55
acontecer (como ele ali é colocado ...) e de poder participar do processo de
elaboração que o Cliente vai conseguindo, em diálogo com ele.
Para significar esta atitude ressonante, os brasileiros usam a
expressão: "estar junto" - colocar-se próximo daquilo que o Cliente
expressa, aquilo que ele relata e o que vivência. Ao mesmo tempo, acautela-
se em manter a atitude profissional. Está presente, mas na sua posição de
ajudar o Cliente a entender e de o conduzir no sentido de aprender a
mover-se no vai e vem das experiências emocionais, que se estruturam na
medida em que se expressam.
Entretanto, as expectativas e atribuições implícitas no discurso
do Cliente podem afectar o movimento da entrevista, e o Psicólogo precisa
estar atento para não se antecipar à mensagem do Cliente.
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Elsa - "Pois. Deve ter pensado que eu já estou melhor e que já podia
deixar de vir." (Pausa não muito longa). "Eu já estou farta de cá vir.
Isto não me faz bem. Nunca mais me curo. Estou saturada de cá vir."
Psi. - (tendo captado o duplo registo - já não ser esperada... e já
nada esperar... - e sentindo, no ritmo temporal do diálogo, que é a
sua "vez"): "Percebo que a Elsa sente que é difícil vir aqui falar de si e
de coisas que a fazem sofrer. Este "tratamento" é difícil e às vezes
apetece desistir." (Pausa) "Quando a Elsa chegou aqui disse que está
melhor. Mas sente-se desanimada. E nós sabemos que não está assim
tão bem como tenta mostrar." (O Consultor valida a ambivalência,
mostrando os pólos do sentir e não comenta a contradição).
Elsa - (Baixa os olhos, silêncio) "Talvez seja isso". (Silêncio) "Agora
tenho sentido o nó na garganta mais vezes..." (Pausa) "Se não fosse o
problema do meu marido podia estar tudo bem" (Breve silêncio).
Psi. - "Podia estar tudo bem. Mas esse problema está aí". (Confirma a
informação, não comentando a projecção ou o deslocamento).
Elsa - "Quando eu era pequena fui privilegiada, porque os tempos
eram outros. Não tenho razão de queixa. Ele acha que eu preciso de
riqueza, mas eu só preciso é de carinho."
Psi. - "Percebo que é um problema entre vocês, mais do que o
problema do dinheiro."
Elsa - "Pois é! (Exprime zanga) Penso que podíamos viver felizes se
ele quisesse".
Psi. - "Sente que bastaria ele fazer um esforço".
Elsa - "Depois da operação correu tudo bem!. (Refere-se a uma
operação à vesícula, feita de emergência, que aconteceu, depois de
grande alarde e interrompendo uma excursão de autocarro, em que
iam de passeio). Mesmo logo no princípio, quando fui para casa,
estava tudo bem. O meu marido estava muito satisfeito. Fazia tudo em
casa. Tratava de mim. Só que isso só aconteceu oito dias. Depois
enfastiou-se de mim. E eu não tenho ninguém (quase a chorar)... A
chamar-me má doente, egoísta, que não podia estar ali... que tinha que
fazer... E eu calada, calma, a pensar: "o que é que ele terá que fazer?...
Está é farto de estar comigo"..."
Psi. - "Soube-lhe a pouco..."
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Elsa - "Depois, quando sai, fica lá com os amigos a conversar, e
depois chega a casa a cheirar a tabaco e eu não suporto o cheiro".
Psi. - "Ele fica a conversar com os amigos e a senhora fica sozinha
em casa.(Pausa) Foi sempre sensível ao cheiro do tabaco?"
Elsa - "Não! Foi só desde a altura da operação. Antes era só quando
ele cheirava a alcool. Aí é que eu ficava para morrer".
Psi. - "Ficava para morrer?!"
Elsa - "A seguir, começou a gritar comigo. (Volta ao cenário anterior)
Só me dizia: 'Põe-te mas é boa, que tens de ir trabalhar'!"
Psi. - "Isso magoava-a..."
(O Consultor julga que se trata de uma ofensa para ela. Vem a
perceber-se, mais tarde, no contexto, que ele podia estar a tentar
animá-la para se restabelecer, e, assim, não ficar fechada em casa e 'a
enervar-se'... com ele. Ela gosta do trabalho de 'Pronto a Vestir' e ele é
que está magoado, porque não consegue emprego e só faz as
cobranças e a contabilidade dela. No momento, é difícil seguir a
associação, mas a própria Cliente dará as deixas seguintes):
Elsa - "Ele vai fazer as cobranças e confunde tudo. e chega a casa a
cheirar a álcool..."
Psi. - "Aí, a Elsa fica 'para morrer'..."
Elsa - "Ah! Coitado!. Ele também tem varizes nas pernas e, se calhar,
tem de ser operado. Eu também compreendo, porque ele não arranja
emprego aos 53 anos. Vamos a ver se consegue ser reformado, porque
ele ainda trabalhou no século uns trinta anos e isso conta. Ele tem
desculpa. Eu perdôo-lhe. Ele precisa de carinho e eu... (chora) às vezes
não lho dou ... (continua a chorar, parecendo descarregar ... O
Consultor espera um pouco).
Psi. - "Custa a falar disso. Mas é bom poder chorar..."
(No exemplo apresentado, o Consultor poderia ter-se fixado, logo à
partida, na afirmação da Cliente de que se acha melhor... Ou poderia
sublinhar a insegurança da paciente quanto às expectativas de ser
aguardada … Em ambos os casos, lhe escaparia a informação
emocional mais importante, de ambivalência, que a entrevista
encerra, e também a possibilidade de acompanhamento concreto na
continuação dos deslocamentos da queixa (que a sequência mostra).
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Vislumbra-se a postura de desencanto e estrago da Cliente:
...decerto não é esperada ...; "está farto de estar comigo" ...
Lembrando a história do seu casamento, em sessões anteriores, o
sentimento de 'estrago' ou perda parece ter característica triangular
e estar enraizada numa deficiente identificação feminina (...precisa de
ser acompanhada e cuidada como uma criança...). Mas a capacidade
que o Consultor demonstra de apenas seguir e respaldar a
comunicação da Cliente, no seguimento, levará a Cliente a analisar o
laço parental/filial/sexuado que estabeleceu com o marido. Percebem-
se, desde já, as necessidades narcísicas de posse exclusiva com facetas
de uma vivência regressiva dita 'persecutória' da fase 'pré-genital'
(com fases de depressão incapacitante) em que se enraizarão as
'somatizações' sucessivas que a conduzem, em ida e em volta,
caminhando das consultas de saúde para as consultas de psiquiatria.
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Ao correr das entrevistas, com um procedimento em que o estilo
conversacional ao mesmo tempo induz e condiciona a livre-associação, pode
resultar um ritmar do intercâmbio, pelo qual o Consultor irá, no seu foro
interior, configurando a compreensão dos elementos que parecem faltar ou
que perfazem as estruturas de regulação emocional utilizadas pelo seu
Cliente. Assim, ao mesmo tempo que apreende o sentir do Cliente, com a
sua circunstância, projectados na comunicação, esclarece também para ele o
estilo da sua gestão emocional inserida no viver antigo e actual.
É neste contexto que se pode aplicar a curiosa recomendação de
Wilfred Bion (1969) para o psicoterapeuta trabalhar no presente, 'aqui-e-
agora', 'sem memória, nem desejo'. Afirma ele que só tomando esta básica
atitude de abertura se pode estar disponível para apreender as informações
estruturais verdadeiramente pertinentes. (Veja-se, acima, o exemplo do
'caso Elsa', que poderia ter confundido um iniciando, se ele não tivesse esta
regra em mente). 4
O Psicólogo que trabalha na linha dinâmica não pode colar-se aos
factos, misturando-os com as suas lembranças e a sua
identificação/projecção. Nem pode aplicar directamente o próprio
entendimento à informação que escuta. Também pode deixar-se enlevar
pelo desejo de ser útil. No imediato, nem sempre é possível. Mais realista
será a sua preocupação de um trabalho rigoroso, procurando desligar-se dos
envolvimentos (naturais) com o sofrimento que acompanha, e centrar-se
sobre a configuração do acontecer no 'aqui-e-agora' da comunicação. Por si,
na consulta, não pode modificar os acontecimentos, e nem é com eles que
deve preocupar-se. Apenas pode ajudar o Cliente no que respeita à sua
integração interna, ou seja, no que respeita à mobilização de novos modelos
de elaboração mental para lidar com a sua vivência, tal como se apresenta.
Abrindo um espaço para o Cliente se exprimir, em que irá formular
significados da vivência própria (conforme se lhe apresenta), o Consultor
tem alguma probabilidade de escutar o verdadeiro motor profundo da
dificuldade. No desenrolar da entrevista, os significados aparecerão
traduzidos por meio de palavras, ou nas sequências narrativas; noutras
vezes, apenas estarão 'por ali' procurando uma formulação partilhável ...
A atitude que se prescreve, assim como a correspondente actuação
ressonante, não prescinde da riqueza das descobertas psicanalíticas sobre a
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vida dos impulsos, mas viabiliza a intervenção psicológica como processo
'dinâmico-relacional' ('não-directivo') centrado nas emoções e seus
significados. 5 Subentende que estes são uma construção do indivíduo, que
se inserem na sua história e que se organizam no contexto das suas
convicções pessoais. O Psicólogo vai reflectindo isso mesmo para o seu
interlocutor. Então, esta proposta define-se pelo estilo de comunicação
semi-livre associativa, entendida como instrumento de intervenção capaz
de mobilizar forcas do "Eu" e de promover um processo de mudança
estrutural da pessoa do Cliente.
Em conformidade, situa-se cada vivência como sendo 'isto' (e não
'aquilo'), como fazendo 'tal' sentido (e não 'tal outro'). Delimitam-se, muitas
vezes e por modos variados, aspectos dos conteúdos do relato e dos
procedimentos de resolução de problemas. Os significados descobertos
poderão permanecer, por algum tempo, apenas implícitos entre os
interlocutores, aguardando ser explicitados. Deste modo, abrem-se
caminhos à aprendizagem de novas soluções, a serem construídas em
alternativa às velhas.
É também possível modular o discurso em termos de reflectir sobre
o que pertence e não pertence ao real e ao possível: o que só pode ser
sonhado; ou o que pode ser concebido e posto em acção; ou, ainda, concebido
e também adiado, etc. Trabalha-se o material da experiência do ponto de
vista formal, de certa maneira independente dos conteúdos (dizendo
respeito aos desejos e aos impulsos despertados e às situações narradas ou
vividas, os quais serão, também, noutros momentos, assunto de análise e de
interpretação.
O Cliente pode, então, reflectir com o Psicólogo, por exemplo, sobre o
que se entende e o que ainda não se entende no que respeita à informação
produzida. Poderá comentar o que demonstra procurar ou o que parece
sentir que perde. Poderá verbalizar uma destrinça entre o possível e o
impossível, ou o gostoso e o lesivo que transparecem na comunicação. O
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próprio Cliente irá intercalar anotações, por exemplo, sobre o longe e o
próximo, o que cabe e o que fica de fora da emoção, o que é passiva ou é
activamente alcançado ...
No convívio terapêutico, vão-se analisando os movimentos de
equilibração da mente expressos não só pelo modo como formalmente se
delimitam os ritmos do intercâmbio falado, mas também pelo modo como
evoluem as primitivas estruturas emocionais categorizadas em termos pré-
verbais: o encontrar-se perto ou longe; o dentro ou fora; o apertado ou
solto; o doce ou amargo; o áspero ou o suave; o contido ou que não
cabe; etc. Está sempre em causa, a distância do Eu em relação às possíveis
descargas emocionais explosivas e ponderando as ressonâncias na rede dos
afectos (pré-conscientes ou inconscientes).
Para vir a embraiar o impulso do Cliente para a mudança, o
Psicólogo observa os aspectos formais da comunicação. Examina e relaciona
os ritmos da associação, as alternâncias, as colocações de parcelas da
informação, os acréscimos e apaziguamentos da reacção ansiosa, fazendo-
lhes o devido eco e acompanhamento assegurador, escutando as descargas
em catadupa, os silêncios, as comunicações feitas como que aos soluços, etc.
Conservando na mente o conteúdo imediato do acontecer, ao mesmo tempo
que o conteúdo latente, e sendo sensível a aspectos repetitivos da
comunicação, o Consultor poderá também mostrar para o Cliente a riqueza
de significados de vida contida nesse múltiplo referencial, observando como
se encadeiam num contínuo de sugestões que serão cada vez mais
interpretativas. (Note-se que, a todo o momento, mantém igualmente o
alerta face aos aspectos psicopatológicos que já reconhecem ou a acautelar,
numa atitude preventiva de qualquer surto emocional que possa
ultrapassar as fronteiras da entrevista associativa).
Sumariando, pois: Na linha de conduta exposta, o Consultor dá
corpo, mas, de certa maneira, também limita a livre associação, baseado na
intuição sobre o movimento emocional em curso. Trata-se de criar e manter
um laço frágil, num espaço fluido, em que só a delicadeza ou sensibilidade
natural servem de guia no percurso entre o início e o fim da entrevista, para
que esta se constitua como lugar de vida e de autonomização.
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ANOTAÇÃO TEÓRICA
O procedimento de atenção às características formais da
comunicação que se procurou ilustrar reflecte a visão da vida mental
como construção individual partindo de padrões inatos de relação que
têm nos humanos um formato dialógico (Leal, 1975/85, pág. 33 e
seguintes). Esta perspectiva assenta na pesquisa rigorosa do
desenvolvimento precoce do bebé no que respeita à comunicação, e
adapta-se rigorosamente à teoria da relação de objecto entendido
como dado primário - e não fruto de condicionamento de padrões
humanos no correr do primeiro ano de vida.
A teorização acerca do carácter originário das relações de objecto, que
a recente pesquisa rigorosa parece confirmar, põe em causa a teoria
dos instintos de Freud (que data do século passado), mas não é aceite
por todos os psicanalistas. Permanece a distinção entre 'processo
primário' e 'processo secundário'. O 'processo primário' foi explicitado
por Freud em termos da linguagem dos sonhos (interpretados em
termos do prazer/desprazer) mostrando vivências expressas em
'flashes' ou sequências de imagens sensoriais. Os recursos fornecidos
pela linguagem (que permite a simbolização dos significados da
experiência) abrem caminho ao processo secundário.
Colocando os elementos novamente em cena e evitando
intencionalmente a terminologia clássica, Bion (1962) descreve esse
processo como transformações dos 'elementos beta' (elementos
sensoriais dispersos) em 'elementos alfa' (elementos enquadrados em
significados relacionais) com os quais o psiquismo adquire capacidade
de sonhar e de distinguir o consciente do inconsciente. A elaboração
dos impulsos, a 'fantasmatização' da experiência emocional (tradução
em imagens) - assim como a progressiva diferenciação dos processos
de equação e de simbolização dos intercâmbios e das interacções com
a realidade - surgem com matizes muito diferentes nesta visão
originada em Melanie Klein.
A análise psicológica centrada no formato dialógico de construção
emocional modela-se neste processo em que os significados sofrem
uma tradução simbólica enraizada num novo relacionamento com os
objectos. O 'Eu' - como estrutura reguladora das relações com a
realidade - assegura, quer a validade e consistência da vida de
fantasia (movida pela elaboração 'fantasmática'), quer a objectividade
do tempo e do espaço concretos.
63
Resulta, assim, uma técnica de intervenção psicológica nas
perturbações neuróticas, psicóticas e 'borderline' (Roland Fairbairn,
1949; Melanie Klein, 1946), que assenta na preocupação com a
estrutura Eu, como instância organizativa e sujeito do
desenvolvimento libidinal.
ENQUADRAR - TRADUZIR
Mesmo que seja claro que a última palavra pertence sempre ao
Cliente, é natural que o terapeuta iniciando se sinta pouco à vontade
quando, no concreto, pretenda formular a sua intervenção reguladora. Tem
de saber o que pretende quando se arrisca a traduzir algum significado do
acontecer (presente na situação ou no relato) - em lugar do simples
contributo conversacional em que sabe poder enquadrar a comunicação.
A 'tradução' supõe que se pode entender o conteúdo implícito no
discurso verbal e não verbal do Cliente. É trazido à luz, ou posto a claro algo
que ali se encontra 'conotado', ainda que não denotado claramente na
verbalização. Logo, a tradução poderia ser feita pelo próprio Cliente (o que é
suposto não poder acontecer quando se trata de uma verdadeira
'interpretação', em que se supõe estar a ser descoberto algo que, por
definição, é inacessível ao Paciente). Ao falar de 'tradução' refere-se a
proposta de trabalhar com instâncias pré-conscientes da psique, área de
64
tradução espontânea do material inconsciente 6 em conteúdo verbalizável.
Tem um lugar importante no trabalho de análise psicológica 'relacional'.
Nesta concepção do funcionamento, supõe-se um circuito
preferencial de ligação pré-consciente com a movimentação inconsciente
(digna de respeito e que se pretende preservar como fonte secreta de
vitalidade, mas de que não se percebe conscientemente os meandros), num
terreno fronteiriço em que se passa espontaneamente de um código de
funcionamento para um outro, sob a regulação da instância 'Eu'.
A tradução do significado emocional do acontecer (conforme relatado
pelo cliente) pode ter diversos formatos. Pode consistir num eco emocional
(... constata-se uma emoção ...), numa re-expressão (... constata-se uma
emoção e dá-se-lhe um nome, e um contexto ...) ou num simples
reconhecimento (... a confirmação do que o Cliente caracterizou e a que
se atribui um lugar no espaço transicional de trabalho …), estando
sempre implícita a referência à situação, logo ao Consultor. Qualquer destes
formatos resulta, na prática, na conjugação ou em comparação entre
associações, e devem ser rodeados das maiores cautelas.
Para o Cliente, pode decorrer das sugestões uma ilação explicativa
que não estava na mente do Consultor, o que pode ser evidente na
continuação das comunicações. Tal como na interpretação clássica lançada
de modo 'selvagem', também podem assim ser desencadeadas forças
emocionais não manejáveis pelo sujeito. Neste sentido, pode-se lembrar a
máxima do povo de que 'o silêncio é de ouro': mais vale calar do que dizer
coisas sem contexto, nocivas para o sujeito da terapia ou sem vigiar os
significados subsequentes. Entretanto, se é verdade que o silêncio pode ser
de ouro, também é certo que o Consultor não pode ficar-se inactivo, mas
deve poder regular cuidadamente a sua intervenção.
65
FORMULAR A INTERVENÇÃO
Primeira entrevista de professor de meia idade, enviado por um
Serviço depois de sucessivos ataques de pânico de que resultaram
internamentos curtos. Aparência cuidada, cabelo cortado, camisa
aberta, pasta de papeis; distingue-o apenas o olhar cansado,
contrastando com os gestos decididos. Enviuvou recentemente.
Descreve os seus acessos de angústia, brevemente, em termos
intelectualizados e exprime surpresa face a uma sintomatologia não
ego-sintónica. Vive com um filho de 15 anos. Dois outros (22 e 20 anos)
estão fora a estudar, só convivem nas férias. Uma empregada antiga
vem pela tarde, limpa, trás as compras e prepara o jantar para ele e o
filho.
Fala espontaneamente do seu viver actual e progresso e mostra-se
aceitante de um tratamento psicológico, que fica combinado. Após o
contrato, na segunda consulta, retoma o relato sucinto acerca do
manejo da sua vida de viúvo, aceitando, novamente, sem aparente
custo, o ritmo conversacional e as contribuições do Consultor. A morte
da mulher, por doença curta, já não ensombra a sua vida; mas há
nele uma grande saudade, que 'esconde para poupar os filhos'. Os
filhos 'foram óptimos' quando dos seus 'ataques', mas 'têm a sua vida'
e ele não quer 'atrapalhá-los'.
Fala a seguir do filho mais novo, com quem tem tido problemas. "Ele
sai e diz que vai para as aulas..."
O tom de voz baixa, interrompe-se... ganha fôlego respirando fundo,
e repete a frase, deixando-a de novo suspensa... Os olhos estão
húmidos e olha para o chão.
Perante a evidência desta ansiedade, o Psicólogo tem alguma coisa a
fazer. Dependendo da avaliação que faz do momento do percurso, ele
irá:
Ecoar a emoção; ou re-exprimir o conteúdo latente, com o sentir
associado.
Ecoar, no caso, poderia ser: ... "É uma situação dolorosa, de que custa
a falar ..."
Re-exprimir, poderia ser: ... "Falar aqui da dificuldade que está a
ter, neste momento, com o seu filho desperta um monte de lembranças,
e, então, sente-se muito desamparado..." (No caso, tal intervenção seria
uma afirmação no escuro - a evitar - pois afirma que a dificuldade
66
se relaciona com a ausência da mulher, o que pode não ser exacto.
Exemplo alternativo: o rapaz poderá estar em risco de se drogar, e
isso afecta a auto-estima do pai ... Ou ..., ou ... Se fosse outra a
questão, a intervenção do Consultor estaria completamente errada
…).
A re-expressão, sendo um instrumento poderoso de dinamização da
elaboração necessária, é arriscada. Sem suficiente informação,
comporta o risco de abandonar o concreto do Cliente, ou seja de
abandonar o Cliente..., assim afectando o relacionamento.
(Continuação):
Psi. - "É uma situação dolorosa de que custa falar ..."
Cliente - (suspira ... )
CONTINUAÇÃO DA ENTREVISTA
(...) Colocado o eco emocional, pode-se dizer que o momento tensional
ficou tratado, e a comunicação poderá prosseguir. Depois de um curto
silêncio, uma vez que o Cliente não retoma:
Psi. - "O seu filho estuda no Liceu onde ensina, ou noutro?" (Não se
propõe mudança de assunto, mas há a proposta de distanciamento do
'Eu' em relação à emoção ansiosa. Pode-se retomar o contacto depois).
67
Cliente - "Estuda no mesmo. Mas eu só dou aulas no décimo
primeiro ano, então nem nos vemos lá".
(Depois de alguns momentos em que o Cliente conta pormenores do
liceu e de casa, de como não sente dificuldades económicas, conta que
lhe pesa a responsabilidade de não entender o que se passa com o
filho mais novo depois da morte da mulher):
Cliente - "O Pedro discutia muito com a mãe. Era da idade. A minha
mulher era muito exigente. Estavam sempre a brigar (a voz inflecte
com tom de saudade )...
Psi. - (É a sua vez de falar ... Poderá:, agora com mais consciência de
causa:
ECOAR (a experiência emocional subjacente) - "Está lembrar como
era antes e a pensar como é agora ..."
RE-EXPRIMIR - "Antes podia estar de fora quando percebia que
havia briga, porque não tinha importância ... Mas agora ...".
FOCALIZAR - "Sente a responsabilidade a pesar-lhe e sente-se
muito só..."
FOCALIZAR E RE-EXPRIMIR - "Antes, a sua mulher
assegurava o contacto afectivo com o Pedro e defrontava-se com as
atitudes agressivas dele. Então era o apaziguador (falando que 'era da
idade'). Está a contar como ficou difícil e como se sente sem recursos
agora que ela lhes falta."
Psi. - "Está a lembrar como era antes e a pensar como é agora..."
Cliente - "Ele só gostava de música moderna e tocava aquilo muito
alto. O Pedro não percebeu que a mãe estava tão doente e agora culpa-
se por isso. Foi um choque. Nunca mais tocou aqueles discos". (Etc.)
68
OBJECTIVOS DO CLIENTE
69
70
INTRODUÇÃO
Se um paciente aceitou a proposta, de análise psicológica supõe-se
que está convicto de que esta poderá conduzi-lo no caminho de satisfazer as
suas necessidades básicas: a necessidade de amar e ser amado; a
necessidade de se encontrar valioso perante si mesmo e perante outros; e a
necessidade de fazer sentido da vida, da morte, da cultura, da fantasia.
Para quem sofre psicologicamente, é importante reaprender a
alegria no encontro com as compulsões dominadoras da líbido, sustentadas
na partilha e no intercâmbio, e poder confiar nas forças criativas expressas
no prazer de função e de fruição.
Apresenta-se uma proposta de acompanhamento psicológico, que se
acredita poder ajudar algumas pessoas a alcançar estes objectivos utilizando
o modelo da entrevista associativa, dinâmica, estruturada pelos ritmos do
diálogo conversacional. Seguindo a par e passo e realçando o curso da
associação espontânea do Cliente, expõe-se um procedimento que se
designou de semi-livre associativo. Contrastou-se este com o procedimento
freudiano de absoluta não-restrição do livre curso das associações a
verbalizar. Descreve-se um processo técnico de intervir no discurso
espontâneo da entrevista dinâmica de modo a que possa vir a emergir uma
estrutura dialógica, e prevê-se um encadeamento de entrevistas em que este
modelo se vai tornando aplicável e natural. O percurso que se enceta deste
modo pode ser examinado e caracterizado, na sua organização global,
distinguindo-se, na sequência, uma apresentação inicial, uma percurso
central, e um período final a acautelar.
O PERCURSO PSICOTERAPÊUTICO
Tal como a entrevista pode ser sujeita a um entendimento quanto à
sua estrutura no tempo, assim também o percurso global de uma terapia
psicológica pode ser descrito como abarcando um período inicial um
percurso central e um tempo final em que se prepara a interrupção do
trabalho em curso. Tem-se comentado que o modo como se desenham os
primeiros passos de uma psicoterapia condiciona de algum modo o finalizar
da caminhada. Isto entende-se quando se pensa na importância da
avaliação da tarefa profissional que o Psicólogo assumiu quando sugeriu o
contrato psicoterapêutico.
Colocados os princípios e aceite o modelo, há que meter-se ao
trabalho. O processo de análise psicológica considera-se em pleno curso
71
quando o Cliente aplica pela primeira vez a sua atenção interrogativa ao
que acontece 'dentro dele' e (mesmo sem palavras) dá mostras de reconhecer
a entrevista como um espaço de trabalho distinto do 'lá fora', e também
distinto de outros espaços de privacidade.
Isto acontece frequentemente no momento em que o Psicólogo, pela
primeira vez, focaliza uma comunicação emocional latente, acessível à
consciência, por meio de uma re-expressão ou de um eco pelos quais localiza
um significado na sequência do acontecer. Na análise psicológica, de certa
maneira, parte-se do princípio de que o Cliente terá de mudar o modo de se
entender com os seus 'objectos internos'. Só assim poderá ultrapassar os
sintomas e gozar de melhor saúde mental.
Sempre se colocaram dúvidas quanto às potencialidades do
conhecer para modificar o agir e, no caso das terapias psicológicas, quanto
às potencialidades da análise do inconsciente (o funcionamento intra
psíquico) para modificar os comportamentos.
Entretanto, sabe-se que todos os actos ou reacções adaptativas e a
capacidade para qualquer aprendizagem dependem, em larga medida da
satisfação alcançada por cada um na sua organização emocional, ou seja,
dependem da equilibração conseguida na vivência subliminar e consciente
dos afectos e significados pessoais.
A análise das movimentações da experiência ansiosa tem sido
denotada como motor da mudança. Eduardo Cortesão dizia que o trabalho
de análise psicológica acontece numa atmosfera em que vibra um mínimo
de ansiedade, mas em que esta não se adensa tanto que impeça a produção
e a elaboração de informação transmitida verbal e não verbalmente.
Conhecem-se algumas vicissitudes dessa experiência comum e que,
de certa maneira, dá notícia das estratégias de equilibração do Eu ao
defrontar-se com as frustrações e os aliciantes da vida. Trata-se de uma
dinâmica de acção/reacção/defesa que pode ser observada nos contextos em
que a carga emocional se adense.
Na psicoterapia dinâmica associativa, o Psicólogo tem de se ocupar,
principalmente, das condições para manter o fluxo da comunicação, muito
para além da preocupação com a tradução dos significados implícitos na
comunicação que deseja descodificar no seu foro interno.
Há uma situação característica em que o fluxo estanca ou em que o
relato se organiza como um ciclo repetitivo em que fica abafada a
significação própria dos conteúdos transmitidos. Excluída a possibilidade de
72
se tratar de um fenómeno pontual ou passageiro, percebe-se, assim, no 'aqui
e agora' a resistência contra o desenvolvimento da relação terapêutica.
Trata-se de lidar, sobretudo, com o aspecto comunicativo dessa
resistência. A resistência apresenta-se muitas vezes como estrutura de
oposição à mudança - mas também pode ser a forma possível de um apelo
para aprender a confiar, e a aceitar as oscilações da comunicação. Neste
caso, uma cuidada e atenta focalização poderá esclarecer a característica de
comunicação associativa tal como se processa naquele momento, visando
clarificar as fronteiras do relacionamento terapêutico, que irão remeter para
significados inconscientes.
73
João - "Pois! Punha todos os meus cartuchos nesse entendimento, e
depois: puff! ..."
Psi. - "Pode estar a acontecer o mesmo aqui. Também vem com uma
grande expectativa de ser entendido e estimulado. Mas quando conta
coisas da sua intimidade, pode sentir-se ameaçado de que aqui
também não vai dar certo - não vai obter nada em troca, como lhe
aconteceu lá fora com as moças de quem se está a lembrar..." (Silêncio)
João - "Se calhar ...(Pausa) Mas sabe, eu acho que me está a ajudar
a reflectir, e a Luísa (a Companheira) diz que eu estou menos calado."
74
de sobrepor uma explicação 'de livro' ou uma opinião pessoal àquilo que
realmente é vivido pela pessoa do seu Cliente ... Por isso, se aconselha ao
iniciando a não emitir logo opiniões ou explicações, e a limitar-se ao mais
exacto ecoar das descobertas emocionais feitas pelo Cliente, oferecendo-lhe a
entrevista apenas como um lugar de encontro consigo mesmo, e uma
ocasião para expressar as próprias mensagens e clarificar os seus
contornos.
Mas, entrando no que se descreve como o troço central da viagem de
análise psicoterapêutica, o Consultor deverá aventurar-se a mostrar
algumas associações entre os elementos expressos na situação. Mesmo que
apenas use re-expressões focalizantes, em que algum significado revelado
pelo Cliente seja realçado contra o fundo da comunicação global, estas
poderão encontrar-se a funcionar como interpretações, e até como
interpretações transformadoras no sentido 'mutativo' de James Strachey
(1934), citado por E.L. Cortesão (1971).
A informação recolhida na entrevista dinâmica não tem sempre a
mesma força 'relacional', nem se abre sempre igualmente à interpretação de
significado. O momento em que ela ocorre, no ritmo cadenciado da
entrevista, também caracteriza a sua oportunidade (do ponto de vista do
Cliente). Por isso, o Psicólogo abre a sua mente ao desenrolar de cada
sessão de consulta - esta é, de cada vez, um novo começo - esforçando-se
por trabalhar no 'aqui e agora' de uma escuta: 'sem memória nem desejo'.
Na prática, cada entrevista deverá funcionar como uma unidade -
constituindo-se como episódio único e completo de convívio com 'objectos
internos' numa zona de trânsito mental, pré-consciente (a área transicional).
Só raramente, e por excepção, o Consultor retoma por sua conta um
conteúdo referido em entrevista anterior (ainda que aceite retoma-lo, se o
Cliente fizer menção de desejar reconstitui-lo; nesse caso esforça-se por
contribuir para a retomada dinâmica em causa).
Deve ficar evidente que não espera uma continuidade de progressão
do Cliente, no sentido de lhe exigir mudança nem que seja de automatismos
desadaptados e perfeitamente desadequados. Está em causa a construção
paulatina de estruturas emocionais que enquadrem um manejo pessoal
mais satisfatório do próprio viver. O que importa é o lento desbravar do
terreno da compreensão do funcionar da mente - no caminho da
clarificação para o Cliente da experiência psicológica como tal. Na análise da
comunicação que decorre na entrevista dinâmica (ao contrapor a sequência
das associações que antecederam e continuam ou cessam, com a evidência
75
da ansiedade que parece condensar-se) assinalam-se as emoções primárias
que se movimentam em busca de um significado.
76
Psi. - "Talvez tenha receio que eu a ache mal educada e não a
aprove..."
Cíntia - "Pois, são palavras assim mais vulgares. Uma vez estava lá
com a minha mãe, na aldeia, com um grupo, e passou um homem que
eu tinha ouvido umas coisas, e disse: Oh, Paneleiro (voz baixa). Só que
a minha mãe ouviu e disse-me que eu já não dizia mais nada naquele
dia e levou-me para casa e lá deu-me tanta tareia com uma vara, que
me deixou o corpo todo negro. Eu sei que a preocupação de uma mãe é
ensinar um filho, mas em certas coisas deu-me um certo atraso. Nas
coisas da sexualidade".
Psi. - "Sente que ela é um pouco responsável de lhe não ter ensinado
essas coisas..."
Cíntia - "Sim. Sofri estes atrasos e estes traumas todos; mas também
foi o que nos fez estudar. Mas ainda. Sabe, as palavras... Às vezes digo
palavras da aldeia que, aqui, têm outro significado. Disse uma vez a
uma senhora lá do 'lar' (pensão onde mora), que trazia um alfinete
muito grande, que tinha um lindo 'broche'. Ficaram escandalizadas.
Só depois me explicaram o que era. Houve também outra palavra que
eu disse, mas agora já não me lembro".
Psi. - "Sente que não sabe comportar-se e que não é bem aceite. Mas
também diz que foi sua mãe que a fez estudar..." (Em causa o papel
feminino...).
Cíntia - "Sim. E eu como queria vingar na vida de estudos e tirar o
curso... Ainda lá tenho os trabalhos que fiz. Não os trouxe para ver
porque estão todos amontoados. Mas o que eu sinto, agora, é um
declínio muito grande na minha vida. Eu sei que cada fase da vida
tem o seu declínio, mas, nesta altura, é pior". (Começou a falar muito
depressa. Suspira fundo, no fim. É um misto de cansaço e de tristeza.
Cresceu a ansiedade...).
Psi. - "Fala de um sentimento de declínio na sua vida, mas, a
verdade é que está a viver uma grande frustração e esta faz reviver
ansiedades muito fundas que a põem em causa como mulher. Duvida
se sabe comportar-se. A mãe, na aldeia, não a ajudou a sentir-se bem
como mulher, mas só a criticou, como sente que eu acabei de fazer. Aí
fica cansada".
Cíntia - "Sim. Então falo muito rapidamente, para dizer tudo, para
me ouvir... Mas aqui posso descarregar. É como se fosse de um pai
77
para um filho. E eu acho esse curso tão bonito e útil (psicologia).
Medicina também é giro e ajuda as pessoas: vê os problemas deles e
dá-lhes apoio".
Psi. - "É importante sentir que é ouvida..." (...trazendo a comunicação
para o 'aqui e agora').
Nos quinze minutos finais, o diálogo continua, mais distendido,
apoiado pelo 'eco' de reconhecimento oferecido. O Consultor não volta
a apontar para áreas mais profundas da experiência da Cliente,
reconhecendo, com isso, tratar-se do troço final daquela entrevista.
78
MANEJO CRIATIVO DA ANSIEDADE
É facto bem comprovado que todo o relacionamento, mesmo entre
adultos, comporta matizes transferenciais. Em certos momentos da vida,
um patrão é sentido como figura parental; um marido ou uma mulher
atribuem ao seu parceiro características que foram pertença de figuras
parentais e que remetem para desejos e/ou revoltas face a circunstâncias
que se esvaíram no tempo; um aluno pode perceber a sua difícil relação com
a matemática como tendo a ver com experiências infantis de desconexão.
No intercâmbio terapêutico, a figura do Consultor vai tomando
relevo para o Cliente ao desencadearem-se ressonâncias antigas que dão
colorido às associações. Quase-lembranças expressam-se em atmosferas
sentidas como quentes e fortes ...; doces ou azedas ...; líquidas, pastosas ou
ásperas ...; libertadoras ou subjugantes ... - numa mistura estranha de
sabores, difíceis de articular no presente e sem lógica palpável. Podem ser
evocadas experiências dolorosas ou gostosas, de modos inesperados,
relacionando episódios e figuras importantes da infância.
Quando estas 'lembranças' se tornam, de repente, difíceis de
partilhar com o Consultor (por vezes, até, fazendo-se longos e inesperados
silêncios), percebe-se um envolvimento de apego emocional que Freud
(1925) designou de 'transferência' - um movimento forte, de sinal negativo
ou positivo, que, ao bloquear a espontaneidade e a livre associação, revela as
suas facetas arcaicas.
Na proposta dinâmica 'relacional' pretende-se organizar o espaço da
entrevista de modo a tomar contacto com a ansiedade do Cliente e com as
possíveis estratégias de gestão por ele usadas ao associar um seu momento
existencial com os conteúdos relatados Procura-se não potenciar a
condensação do elemento desencadeante da compulsão transferencial, que
tão naturalmente se desencadeia na situação de entrevista 'abstinente' e
semi-livre associativa (tal como acontece no tratamento livre-associativo
psicanalítico).
É impossível viver intensamente uma experiência de interacção
emocional, como sucede no decurso de uma terapia psicológica, sem ser
desencadeado um processo transferencial, em que o diálogo interno com
personagens actuais e antigos se confundem por momentos. Em
consequência, o Consultor não necessita exercer qualquer arte para
mobilizar essa experiência (que acontece sem deliberação), mas necessita de
arte para evitar que as emoções transferenciais, normais, se estruturem e se
79
solidifiquem como 'neurose de transferência'. Como se disse, os aspectos
compulsivamente repetitivos deste modelo de reacção podem ser difíceis de
desmontar, sobretudo se o processo de intervenção psicológica se definir
como relativamente curto e/ou relativamente afectado por contingências
restritivas ...
O mesmo raciocínio se aplica, com ressalvas, quando se discutem as
características da 'psicose de transferência'.
PONDERAÇÃO
No neurótico clássico, o 'inconsciente' está, por definição, fora do
alcance da narrativa corrente. Ainda que se conheça como, a cada
momento, a dinâmica inconsciente sinaliza o seu rasto (pelos
'sintomas' e as 'defesas' inconfundíveis, mesmo para o leigo), a sua
acção não pode ser descodificada sem cautelas. Para se lançar a
descobrir o inconsciente (conforme Freud mostrou ser importante
para debelar os sintomas neuróticos), é preciso também colocar nas
mãos do Cliente possibilidades de manejo da pulsão: é preciso que o
'Eu' possa integra-la, ao mesmo tempo que vai dispensando as
'defesas antigas'.
Aqui surge a compreensão genial do emprego do fenómeno
transferencial como instrumento curativo. A concentração da
experiência emocional no âmbito da entrevista torna possível a sua
análise, na medida em que se concretiza como movimento de
intercâmbio corrente. Além de primeiro descrever a comunicação
transferencial comum, Freud mostrou como no processo de
psicanálise se pode gerar, artificialmente, uma 'neurose de
transferência' para ser interpretada e removida, ao mesmo tempo que
se observam e analisam os níveis de fixação libidinal e os mecanismos
inconscientes de defesa que os suportam.
As considerações sobre os objectivos da psicanálise freudiana em
descobrir o inconsciente (usando a livre-associação verbal como
instrumento único de trabalho, e centrando-se nas evidências da
'neurose de transferência') dificilmente se aplicam ao tratamento de
crianças pequenas ou de psicóticos. Também o trabalho com pacientes
de estrutura psicológica pouco organizada (que, hoje, tão
frequentemente aparecem na consulta psicológica) necessita de estilo
80
e ritmos de descoberta analítica bem circunscritos e delimitados (M.
Balint, 1968).
Supõe-se que tais Clientes se encontram de certa maneira em
contacto directo com o 'inconsciente' - não dispondo de estruturas
mediadoras do 'Eu' suficientemente consistentes ... Por isso, se torna
necessário promover antes de mais a construção ou diferenciação
dessas estruturas.
Não se contando com instâncias reguladoras, 'pré-conscientes', dos
impulsos e da fantasia inconscientes, focam-se as perplexidades da
estruturação simbólica da mente. Importa fazer emergir a capacidade
de produzir traduções criativas e flexíveis da experiência primordial
('processo primário'), promovendo o processo de simbolização, ou, em
linguagem de Bion (1962) a função alpha da mente.
Para estes casos, note-se: quando o fenómeno transferencial chega a
estruturar-se, ele vai apresentar as características de uma 'psicose de
transferência', modelada por fórmulas de resolução a diferenciar das
descritas como 'neurose de transferência'.
81
intrínseca de manejo desta situação artificial, assimétrica, de modo a
garantir que a experiência de dependência (de certa maneira por ele criada)
possa desenvolver-se meio caminho entre a realidade e a fantasia ...
naquela região transicional em que é legítimo e eficaz a interpretação da
transferência, por definição um fenómeno inconsciente (mesmo quando
se manifesta por meio de comportamentos de que o Cliente se apercebe).
Como já se comentou, pertence ao Consultor, criar uma situação de
comunicação em que observe a personalidade do Cliente em pleno
funcionamento. Só assim poderá entender o sistema de relações dinâmicas
entre as estruturas da mente, e diferençar as suas disfunções. Ao promover
a concretização do material, o alargamento da 'amostragem', e o
enquadramento da narrativa do Cliente (sempre acautelando o nível de
ansiedade a que esse trabalho se pode realizar), está a criar condições para
analisar os elementos de consistência e de discrepância encontrados nas
associações sobre as quais, se debruçam simultaneamente os dois (ou
mais...) interlocutores. Então, quer fazendo comentários discretos, quer
interpretações mais incisivas, o Consultor coloca o Cliente na via da
resolução de problemas de que decorrerá a nova construção de modelos
de relação mais libertos da compulsão de repetição.
Eduardo Cortesão lembrava constantemente que o fenómeno
transferencial inerente a todo o relacionamento humano (e matriz de
qualquer comunicação) pode tornar-se no maior obstáculo do percurso
produtivo numa terapia psicológica - a evitar ou a desobstruir, na medida
do possível, e logo que possível.
Assim, sem rejeitar a comunicação do Cliente e as carências por ele
expressas, mas ressoando ao nível profundo em que se encontra mobilizado,
o Psicólogo está atento para se distanciar e diferenciar das figuras parentais
de identificação primitiva sobre ele teimosamente projectadas: os chamados
'imagos' parentais (com os quais o Cliente, na circunstância, não está a
poder romper).
82
objecto expressas ou transferidas (deslocadas), isto poderá reduzir essa
experiência envolvente a um expressor simbólico. Então, poderá
alcançar o fenómeno em curso: perceber que a força da emoção relacional
corresponde a lembranças que a memória não alcança, que
permanecem 'inconscientes', ou seja, que se encontram desagregadas e
dispersas, fora do alcance da 'narrativa' consciente - mas nem por isso
perdidas. Também compreenderá que essas lembranças e experiências
poderão encontrar novos contextos de aceitação, ao serem reelaboradas no
presente.
ANOTAÇÃO TEÓRICA
Todos os observadores realçam o carácter expressivo e comunicativo
dos automatismos do fenómeno ansioso. Na linha de Freud (1915),
alguns neo-freudianos investigaram-no sob o ângulo das primitivas
'relações de objecto'.
Em alternativa, nalgumas correntes de pensamento, quando se
constata a característica repetitiva das emoções de dependência e
filiativas deslocadas no tempo, refere-se o fenómeno da redundância e
realçam-se as leis dos sistemas fechados, e procuram-se indicadores
para descrever estes estranhos automatismos da vida emocional.
Nenhum modelo explicativo se tem mostrado inteiramente
satisfatório para justificar como aparece deslocada a carga
impulsiva que adere a estes comportamentos de repetição, que
surgem ubíquos, projectados sobre figuras importantes na relação
interpessoal, parecendo reproduzir modos de se referenciar ao outro -
que fariam mais sentido num relacionamento com figuras primordiais
de filiação e dependência do que no trato adulto.
Nalgumas correntes de acção psicoterapêutica ocorre uma certa
prevenção face ao uso terapêutico indiscriminado deste fenómeno de
deslocamento (fora do contexto e com as ressalvas da terapia
psicanalítica clássica).
Na verdade, o que está em discussão é apenas a operacionalidade do
conceito de transferência quando ele é associado à teoria das
vicissitudes da libido e dos estádios de fixação libidinal. O fenómeno
em si não pode ser posto em dúvida.
Adiante se tratará deste assunto quando se descrever a dinâmica
das posições na relação de objecto, na senda de Melanie Klein e
83
bebendo em Wilfred Bion. Estes abrem distintas perspectivas ao
manejo terapêutico da entrevista quando centrada na análise
psicológica da comunicação de Clientes que apresentam fragilidades
na organização da personalidade (endémicas no nosso tempo).
Pensa-se numa estratégia diferente da introduzida nos anos
sessenta pelos neo-freudianos da 'ego-psicologia' - que definiram os
parâmetros a respeitar no trabalho dinâmico com pacientes 'pouco
estruturados' - os quais, segundo eles, não deveriam ser submetidos
a uma análise clássica das estruturas defensivas do Eu nem serem
sujeitos a uma análise das transferências. Nessa conceitualização, tais
pacientes deveriam aprender a solidificar 'as defesas' para se
promover a sua 'adaptação' à vida social evitando a emergência da
'neurose de transferência.
Daí proveio a clássica distinção das psicoterapias chamadas de
apoio, que, ao contrário das análises, deveriam evitar qualquer
propósito de reestruturação de personalidade, o que só faz sentido,
tomando em consideração os conceitos trabalhados.
Se a reestruturação supõe que se arrisque a regressão ao 'nível de
fixação libidinal' e que, nessa base, se promove e interpreta a neurose
artificial resultante, a 'neurose de transferência', o objectivo de
reestruturação só pode ser oferecido a quem disponha de estruturas
sólidas de funcionamento do 'Ego' que suportem a regressão sem
desagregar. Esta argumentação não faz qualquer sentido fora de tal
enquadramento teórico.
84
alavanca de mudança estrutural que permite ao Cliente sarar feridas
básicas.
Freud assemelhou o sofrimento psicológico a uma perda de um ente
querido, sobretudo quando descreveu a depressão extrema, a 'melancolia'
patológica. Mostrou, então, que o modelo do luto por um 'objecto interno
morto' é o único modelo viável para entender e analisar a tristeza mortal
que certos Clientes transmitem através da sua experiência de profunda
tristeza (e suas máscaras). Se o Cliente não está, de momento, atingido por
uma tragédia real, esta reacção deve ser referida a perdas antigas e vitais,
do foro psicológico, sentidas como tão irremediáveis quanto a morte.
Uma perda psicológica insuportável é aliviada no decorrer do tempo,
quando se processa um demorado trabalho análogo ao do luto. Nele se
sucedem os momentos de aproximação e de afastamento da lembrança
destruidora. Deste modo ocorrem sempre renovados embates parcelares
com a dor, ao se reconstituírem sempre de novo a perda e a saudade
relacionadas com os mais diversos tempos e lugares. Este lento percurso
concede o campo necessário para se retomarem os laços com o impulso de
vida e se afirmarem as necessidades de sobrevivência própria.
Na entrevista associativa, pode-se observar um movimento de
aproximar e afastar, sempre renovado, do foco da queixa - ligando-a a
este e aquele contexto no tempo e no espaço interno e externo, e
desligando-a de novo - estruturando-se deste modo uma experiência que
ultrapassa largamente os conteúdos conceptuais em causa. No que relata e
no que está implícito, à medida que o Cliente vai discorrendo, (por analogia)
pode imaginar-se o movimento que Freud descreve como processo de 'luto',
luto apropriado às perdas que manifesta ou que permanecem implícitas.
Assim, e generalizando, a partir da genial hipótese do criador da
psicanálise (ao descrever a depressão melancólica), propõe-se que o Cliente
aprende um modelo básico para sarar feridas psicológicas ao envolver-se
no processo de análise associativa. Segundo este modelo, a remissão da
ferida psicológica, seja ela qual for, depende da possibilidade de 'ligar' a
queixa presente numa rede associativa de relações múltiplas e 'desliga-la' de
novo, para um dia vir a integrar aquilo que o Cliente conhece do passado,
com o que sente ser vital para a própria sobrevivência.
Não sendo feito este trabalho de 'luto', irá prevalecer na vida de cada
um a dor das feridas narcísicas e edipianas universais (quer expressas na
vida real, quer carregadas sobre as relações 'de objecto'), sem transposição
simbólica, e prevalecerá o sentimento de destruição, designado na literatura
85
como 'impulso de morte'. Pelo contrário, perfazendo-se o trabalho de luto
psicológico, acaba por vencer o amor à vida (tal como pode acontecer no
trabalho interno de luto pela morte física de uma pessoa amada).
Assim, enquadra-se na entrevista associativa um modelo dinâmico
para lidar com os estragos psicológicos. Entende-se o procedimento
terapêutico como aplicação desse trabalho doloroso de 'luto' reparador, agora
realizado adentro do novo relacionamento cuidador, assente no vai-vem de
mensagens pelas quais a comunicação se vai construindo. Neste modelo, é
criada uma rede sustinente para elaboração dos lutos necessários, e podem-
se criar condições para recuperar o contacto com a vida e com experiências
benéficas ...
A experiência mental do Cliente (implícita nas associações) pode ser
clarificada nalguns aspectos, ao correr da entrevista. Se há circunstâncias e
momentos dinâmicos em que parece impor-se desde logo a interpretação do
significado implícito (Melanie Klein, 1960), pode também ser necessário
aguardar que em entrevistas posteriores o vai-vem do intercâmbio facilite o
contacto com os contextos 'pre-conscientes' que podem evidenciar a
verdadeira configuração global dos dados.
86
impulsiva, fazem faltar 'fogo' ... submetem ... deixam-no balofo ...
Entretanto, espera cautelosamente para clarificar o entendimento).
Rolando - "Eu sei que não está bem... Não sei o que se passa comigo...
Só me apetece ir procurar o António (da turma da droga)... Sinto-me
parado..." (Isto não contradiz o entendimento do Consultor, pois
continua implícito que se sente diminuído: balofo, parado ...).
Psi. - "Como é sentir-se parado? Pode descrever um pouco esse sentir
para mim, para eu o poder seguir melhor?
Rolando - "Não me apetece fazer nada! Eu acho que fiz mal em ir
para arquitectura. Afinal para que serve ter ideias e depois não
encontrar... Não (Pausa) Eu queria era sentir aquele fogo, aquele
entusiasmo... (Pausa) A Joana diz que não faz mal, que espera. Mas
eu não aceito isso; e ela vai acabar por se fartar. (Pausa) Também não
aceito que venha um parvo e me diga que escreva isto ou aquilo...
(alusão a um episódio da realidade, ocorrido na Escola).
Psi. - "Percebo que há em si muitas necessidades diferentes. (Pausa)
Também percebo que não acredita que possa arranjar lugar dentro de
si para as coisas boas que a Joana lhe diz. (Pausa) Duvida se pode
segurar as suas ideias boas dentro de si, quando vem 'um parvo' e as
põe em causa. (Pausa) Por isso disse que se sente balofo, que é como
estar cheio de ar, ou de nada.
Rolando - "Não entendo onde quer chegar..." (Nota-se um alerta.)
Psi. - "Não quero chegar a nada. (Pausa) Só me parece que me está a
dizer que não consegue guardar ou confirmar dentro de si as suas
ideias e o seu 'fogo'. Quando descrê de si e dos outros, deita-os fora e
fica sem nada, balofo... E apetece-lhe procurar o seu amigo António.
Porque a 'droga' pode servir-lhe, ao menos, para fantasiar, em lugar
de confiar nas suas coisas - que até podem ser postas em causa ..."
Rolando - "Acha que descreio de mim e que isso é como deitar fora
coisas boas?"
Psi. - "Acho! As experiências precisam de um tempo... (Pausa). Como
'deita fora' o que é seu, também 'deita fora' coisas boas da Joana, e do
seu curso, e da sua análise aqui comigo. Acha que não lhe dou nada
que lhe sirva. (Pausa) E acha que eu me vou fartar das suas queixas."
… (Etc.)
87
Observa-se que, ao serem apreendidos elementos da experiência
profunda que estão longe da consciência, estão a ser acompanhados na
comunicação corrente na consulta associativa, mas cuja manifestação se
pode vir a tornar acessível ao próprio Cliente em determinadas
circunstâncias conversadas.
O tipo de relançamento expressivo exemplificado funciona de certa
maneira como interpretação (ou, pelo menos, como indicação para vir a
elucidar a experiência profunda), uma vez que se selecciona uma parte do
conteúdo do acontecer para realçar a sua contextura. No entanto, isto
acontece de modo bem diferente do que se esperaria num processo
psicanalítico, em que se iriam privilegiar os significados que abrissem
caminho à compreensão da vida dos impulsos (as 'vicissitudes da libido' de
que falam os textos).
Por analogia, pode dizer-se que na orientação relacional da
intervenção psicológica a vida dos impulsos é estudada como fenómeno
ligado às 'vicissitudes do desenvolvimento do Ego'. São estudadas as
posições do Eu ao lidar com os absolutos da realidade e as imposições das
energias vitais, em busca de significados pessoais e de realização de
projectos de vida.
TEORIA APLICÁVEL
Na linha de teorização Kleiniana, diz-se que o 'Eu' cria símbolos
para conter a sua experiência, que é originariamente movida em
busca do 'objecto' de relação.
Dentro desta linha evolutiva, está suposto que o 'Eu' se diferencia e
se organiza progressivamente, partindo de um padrão de
relacionamento originário, revelado na 'relação de objecto'. Esta é
entendida como vinculação mental imprescindível ao crescimento
socio-psicológico do infante, que os investigadores identificaram e
estudaram detalhadamente a partir dos anos setenta.
A teorização implícita liga-se ao conceito das primitivas 'relações de
objecto' estudadas pelos psicanalistas 'Kleinianos' a investigações
experimentais realizadas desde os anos setenta.
Verifica-se que, desde a primeira hora de vida, a criança procura
um interlocutor válido, que faça sentido dos seus impulsos e
88
desejos, para se construir como alguém: alguém que se vive como
polo de um dialogo - 'Eu'.
Anota-se aqui, quanto é problemática esta experiência ou
constatação de que o saber e o agir e todo o suceder é referenciado pelo
humano a Eu - Me - Meu. Trata-se de uma afirmação: assertiva (eu),
reflexa (me) e possessiva (meu). Os pensadores têm testemunhado
através dos séculos este insólito, que é o encontro com a identidade
pessoal, que aqui se postula como sendo uma construção progressiva e
originária (J.S.Watson, 1967: M.R.M.Leal, 1975/85; 1989; 1993).
Alguém (diferente de alguma coisa) define-se como polo de um
relacionamento em que o "proprius" se configura reflexivamente: é
objecto de um conhecimento, e sujeito de uma vivência adentro de
um vai-vem de mensagens no qual o eu se define pelo outro, na
medida em que este completa (confirma) a sua intenção ...
A teorização nova acerca das originárias relações de objecto, é
confirmada pela pesquisa rigorosa. Põe em causa a teoria dos
instintos de Freud (que data do século passado), que ele próprio
superou parcialmente, como decorre de textos básicos, por exemplo,
"Luto e melancolia" (1917).
Argumenta-se que o 'processo primário' revela primitivas 'teorias'
sobre o significado da experiência emocional expressas em imagens
que sofrem uma tradução na passagem para um código simbólico,
pré-consciente (transpondo a fantasmatização do impulso e as
equações da fantasia - relegados para o trabalho do sonho e da
elaboração criativa).
O 'Eu' - como estrutura reguladora das relações com a realidade -
assegura quer a validade e consistência da vida de fantasia (movida
sempre pela ideação 'fantasmática'), quer a objectividade do tempo e
do espaço concretos. Este trabalho deve manter-se activo ao correr de
toda a vida, de modo a assegurar que continue a ser reconhecida, no
dia a dia, a acção do impulso criativo, sem que seja impedida a
complexidade do seu afluxo que emerge lado a lado com as tarefas
produtivas.
Resulta uma técnica de intervenção psicológica nas perturbações
neuróticas e psicóticas (Roland Fairbairn, 1949; Melanie Klein, 1946),
cuja consistência é testemunhada no presente texto e que assenta na
preocupação com a estrutura Eu, definida como instância
organizativa e sujeito do desenvolvimento libidinal.
89
A INTERPRETAÇÃO CONFIGURACIONAL
90
91
INTRODUÇÃO
Ao acompanhar o relato das vivências, na entrevista, o Consultor
configura espontaneamente significados que relacionam os dados entre si,
podendo formular no seu foro interior interpretações abrangentes. Algumas
vezes, estas ganharão convicção e, então, irá propor as suas ideias ao Cliente
que as poderá integrar - ou, talvez, rejeitar. Na interpretação não se trata
de circunscrever as realidades do Cliente melhor do que ele sabe, mas de
focar significados da experiência subjectiva que ele não está a poder
configurar, embora os possa expressar.
O acto de pesquisar e diferenciar na entrevista o sentido emocional
que se desprende da narrativa (ou da trama-drama) resulta do pressuposto
teórico de que o significado subjectivo (mesmo nos aspectos conscientes) que
modela as experiências de vida faz sentido a partir do que se construiu no
intercâmbio bio-psico-social nuclear originário do Cliente - no contexto do
acontecido ou imaginado na primeira relação parental/filial - e que se
repete como modelo de interacção no presente, de modo mais evidente
quando surgem perturbações psicológicas. Entretanto, trata-se de ponderar
hipóteses que possam ajudar a elucidar significados actuais das
experiências. Quando se pretende deduzir acontecimentos ocorridos lá nas
origens a partir de comportamentos e comunicações que pertencem ao
tempo presente, ocorre um salto perigoso de abstracção, que não pode ser
empreendido sem grande reserva.
A interpretação surge como sugestão para o Cliente de um
significado menos aparente, que o Consultor propõe estar contido na
experiência subjectiva, e que supõe poder-se tornar palpável. Assim, porque
se trata de recolher um significado a manusear de novo, mentalmente, a
interpretação deve inscrever-se na experiência concreta, mas numa área de
trabalho vivida como 'transicional', antes que possa ser assumida por
inteiro. As melhores interpretações operam nessa área entre a realidade
(presente ou lembrada) e a fantasia (elaboração subjectiva do sentir) - por
analogia definida como área do brincar e do experimentar: da criatividade e
da cultura (Winnicott, 1971). Só neste contexto pode existir uma atmosfera
de partilha em que Psicólogo e Cliente se aliam para alcançar a
compreensibilidade da vivência de que se ocupam.
92
A REDE DE SIGNIFICADOS
A primeira regra da interpretação na entrevista 'relacional'
(referenciada à estrutura das relações de objecto) diz respeito a que a
interpretação se deve inscrever numa atmosfera de intercâmbio emocional,
em que a realidade está, de certa maneira, posta entre parênteses.
Observa-se, por vezes, no Consultor iniciante uma de duas reacções
espontâneas: ou medo de interpretar; ou avidez de interpretar logo que um
conteúdo dinâmico se lhe torna evidente. Existem algumas regras simples
para evitar que no decurso de um trabalho de análise psicológica surjam
interpretações intempestivas que prejudiquem as diligências construtivas
do Cliente.
O medo de interpretar que o Psicólogo por vezes sente pode estar
relacionado com o seu próprio desconforto em trabalhar nesta área
'transacional' de relação, descomprometida quer com as leis da realidade
espaço-temporal, quer com as leis do processo primário - uma região em
que é possível o devaneio ou o brincar com as ideias, experimentativo,
'tentativo' (a "rêverie", de Bion, 1965).
Note-se que, ao falar de atmosfera de intercâmbio emocional, não se
trata necessariamente da chamada 'aliança terapêutica', chamada positiva.
A literatura está cheia de exemplos do manejo criativo da chamada reacção
terapêutica negativa (Rosenfeld, 1969), em que se trabalham fortes
desconfianças e ataques à consistência do trabalho interpretativo, que se
supõe resultar como rescaldo de uma relação de objecto vivida como
destrutiva. É duvidoso que as dificuldades de clientes que manifestam
fragilidades de organização do 'Eu' possam ser tratadas, sem que esta
reacção defensiva seja analisada e interpretada, e assumida pelo próprio
como automatismo a acautelar e a transformar (dentro do possível). Aqui se
originam algumas das maiores dificuldades na condução da psicoterapia
assente na entrevista dinâmica.
A segunda regra orientadora da actividade interpretativa respeita
ao cuidado de focar os aspectos formais da experiência relatada, antes de
investigar mais atentamente os conteúdos (são 'conteúdos' dinâmicos os
desejos e os impulsos expressos directamente ou em imagens).
Quando se referem os aspectos formais do relato associativo, não
estão em causa apenas as clássicas resistências e defesas, mas os
automatismos mais elementares de construção da vida mental, que se
sinalizam pelos ritmos, as alternâncias, as colocações de parcelas da
informação dentro das sequências, os acréscimos e os apaziguamentos da
93
reacção ansiosa. É difícil exemplificar as intervenções em que se iluminam
estes aspectos descritivos, por exemplo: o dentro e o fora, o que pertence e
não pertence (à vivência em causa), o que está confundido e o que está
separado (ou cindido) na lembrança produzida, etc. O uso corrente destes
descritores para sinalizar o conteúdo conversacional, permite respaldar a
movimentação da mente, e também alerta para aspectos organizativos
sinalizados na narrativa, cujas funções podem não se tornar claras para o
Cliente.
94
Psi. - "Acho! As experiências precisam de um tempo... (Pausa).
Como 'deita fora' o que é seu, também 'deita fora' coisas boas da
Joana, e do seu curso, e da sua análise aqui comigo".
95
enquadra-se a movimentação da mente na rede ou contexto vivencial
(endereçando ou não, a cada momento, o 'teste da realidade').
4ª Consulta Psicológica
(...) Psi. - "Cá estamos. Passou uma semana depois de termos estado
juntos". (Pausa)
Luís - "Pois. E muita coisa aconteceu. Os meus pais já sabem e foi o
Professor Joaquim que primeiro lhes disse, assim ao de leve. Depois,
eu é que lhes contei tudo."
Psi. - "Os teus pais já sabem"... (Pausa)
Luís - "Até fiquei espantado com a reacção deles. Parece que
aceitaram muito bem. Até lhes mostrei como é que era 'snifar' à frente
deles, para saberem."
Psi. - "Ficaste espantado... Parece que até ficaste um pouco incrédulo.
Mostraste como era. Talvez também estivesses a testa-los" (posição
dual - 'é preciso desconfiar'; 'vão querer a paga'...).
96
Luís - "Pois é! Acho que é esquisito e estou à espera que, qualquer dia,
me mandem à cara e me chamem de drogado. Não sei. Não percebo
bem."
Psi. - "Não percebes bem..." (Pausa)
Luís - "É como se me tratassem como uma criancinha, assim tão
compreensivos. Sabe: eu até acho que eles já deviam saber, para
reagirem desta forma".
Psi. - "Não percebes bem. É como se, aceitando tão bem, estejam a ser
muito permissivos, como se faz com as criancinhas".
Luís - "Hum... Ou talvez me estejam a dar uma oportunidade, como
se quisessem depois uma coisa em troca... (Pausa) Não os entendo bem.
Agora, até já me deixam sair, às vezes, à noite... Cá para mim, é tudo
aceitação 'de vista'!"
Psi. - "Não entendes bem. Mas, sentes que coisa boa não é! "...
(Consegue focar o sentimento de estrago em elaboração: ou seja, a
ansiedade de destruição).
Luís - "Por exemplo. No outro dia, apeteceu-me 'snifar' quando
estava em casa e comecei a fazê-lo. Mas a minha mãe veio falar
comigo e disse-me que, lá em casa, não devia 'snifar', porque ela não se
sentia bem. Não conseguia aguentar ficar ali a ver-me drogar. E eu
parei!" (Movimento reparador: lembra um momento de ressonância
emocional, que permitiu o 'teste de realidade', e o controlo interno).
Psi. - "Talvez estivesses a tentar ver até que ponto ia a aceitação
deles, e o facto de a tua mãe te por limites permite-te melhor perceber a
posição dela. Fica mais claro" (Focaliza o aspecto de elaboração).
Luís - "É. Acho que para mim foi melhor assim. (Breve silêncio.
Pondo a cabeça entre os braços, continua): A melhor experiência
que tive com a 'cola' ultimamente foi à noite, na cama, antes de
dormir. 'Snifei' e senti-me a voar sobre um grande campo de neve, a
pairar. Foi uma sensação muito boa". (A impressão de coisa 'boa'
despertou a lembrança da vivência maníaca: bom <----->
maravilhoso).
(Levanta a cabeça e pede para ir à casa de banho. Quando volta, fica
em silêncio).
97
Psi. - (Limite-se a relançar a comunicação): "Estavas a falar de uma
boa experiência que tinhas tido: a sensação de voares, de planares bem
longe de tudo o que te rodeia".
(Comentário: A Psicóloga não interpreta o súbito surto pulsional
(uretral) que se revela na ida 'à casa de banho' e acompanha a
lembrança maravilhosa ... Antes se concentra na defesa maníaca -
uso da droga para se evadir. A droga está ao serviço da defesa
maníaca, como polo (denegado) da posição esquizo-paranoide e
encaminha a desagregação. Assim, dificulta, também, a elaboração
por via da fantasia criadora.
A forma de proceder foi a de ecoar a emoção e abrir o caminho para
a fantasia).
Luís - "Pois é... Sabe. Eu, às vezes invento histórias, mas não as
escrevo. Por exemplo, uma delas é assim: 'Eu estava deitado num
campo de trigo, no meio de espigas douradas, muito altas. Só via o
céu, muito azul, todo traçado pelas espigas e a luz do sol a atravessa-
las. Depois aparece uma pomba no céu, toda branca, com uma flor no
bico. Era a pomba da paz. Era muito bonita. De repente, ouve-se um
tiro. Um estrondo vindo de longe. A pomba cai, pesada como chumbo,
e eu desato a correr para o sítio onde ela caiu. Quando lá chego, o que
está no chão é uma ave toda preta, de olhos vermelhos e grandes
garras, com espinhos a saírem do bico. Ela está viva e levanta voo,
velozmente, riscando o céu como um bombardeiro negro prestes a
largar bombas. É assim a história".
Psi. - "Não precisaste de te drogar para criares fantasias tuas, boas e
más. (Pausa). Estamos a ver que, nessa história, algo belo e bom
transforma-se em algo temível e ameaçador". (Aponta indirectamente
a mobilidade do automatismo esquizo-paranoide: entre 'maravilha
(mania) e destruição e novamente mania e destruição'. Um dia poderá
esclarecer estes parâmetros repetitivos que agora apenas aflora.).
Luís - "As minhas histórias são assim, meio malucas. Quase sempre
metem bombardeiros ou aviões de guerra".
Psi. - "Esses bombardeiros e essas guerras representam coisas que
sentes como destruidoras dentro de ti, com as quais te é difícil mexer,
mas estás a conseguir falar delas".
98
Luis - "Eu gostava de ser instrutor da Força Aérea, fazer acrobacias,
e os soldados que estavam a aprender ficavam todos encolhidos lá
atrás, a tremer de medo".
Psi. - "Gostarias de ser instrutor em altos voos; ias ver-te muito
diferente dos soldados rasos que até tremem de medo".
Luís - (Sorri) "Pois é! Ia ser bom".
(Comentário: O aspecto defensivo contra o sentimento de desamparo
desagregador - tremem de medo - é captado; mas não pode ainda
ser interpretado. Para isso, tem de haver um longo exercício analítico
de aproximação/afastamento do 'Eu' , tocando ao de leve nas
evidências da alternância entre a 'destruição' e a 'maravilha').
Luís - Mas, há outras coisas que gostava de fazer, principalmente
relacionadas com a música. Gosto muito da música pesada, daquela
do tipo da "Sex-Pistols". Olhe, eu classifico os tipos de música, como se
fosse um termómetro (...faz uma longa descrição de músicas cada vez
mais "hot"...) e o que eu gosto ainda é mais forte, mais pesado, não
existe ainda, e na escala ficava mesmo em cima. Rebentava a escala".
Psi. - "Algo muito forte. rebentava tudo..." (a externalização da
ansiedade destruidora é apenas aflorada: será ecoada daí a duas
sessões).
Luís - "Gosto de coisas malucas, de fazer disparates. Tenho um tio
que é assim... (Conta o desregramento divertido do tio). (Novamente a
fuga maníaca). (Etc.)...
99
A quarta regra para orientar a inserção das interpretações está
muito próxima das anteriores, mas essencialmente diz respeito à
recomendação de Bion (1965) de caracterizar o tipo do pensar (ou o
modelo), usado pelo Cliente - no seu estado de maturação emocional -
antes de arriscar interpretações de significados.
Na situação de relacionamento dinâmico, alguns Clientes
despertam uma impressão (incómoda) de estarem a projectar coisas para
dentro da mente do Consultor, como que introduzindo-se de um modo
concreto - não como representações de vivências partilháveis para serem
ponderadas e manuseadas. Nesta experiência de 'cousificação' (o
'concretismo' das descrições psiquiátricas) reconhece-se um elemento da
posição esquizoide. Acordam no profissional atento uma impressão de
estranheza e de invasão. Nos pacientes com esta característica foi estudada
a dificuldade de operar a dupla passagem entre as visões abstracta e
concreta dos factos vividos (K. Goldstein & Scherer, 1966). Tipicamente, ao
abordarem na mente a realidade concreta, perdem a possibilidade de
alcançar a respectiva captação abstracta. Ou, na inversa, a visão abstracta
veda a possibilidade de operar concretamente, ou seja, de passar da visão
interna para a realidade externa. Talvez esteja em causa a dificuldade
de criar estruturas simbólicas (para conter as movimentações emocionais
demasiado ansiogéneas) que poderiam mediar o encontro entre esses dois
mundos - o concreto, palpável, e o abstracto, apenas interno.
Usando outra linguagem, Bion (1965) descreveu as funções mais
primitivas da mente, operando com elementos 'beta' - precipitados internos
de eventos e de sensações. Trata-se de unidades estanques de impressões,
não agregadas em conteúdos ou sequências consistentes, e não permitindo
elaborações flexíveis. A função 'beta' apreende e solta experiências - que se
mantêm sem nexo: quando muito, são aglomeradas numa 'tela-beta'
gerando os chamados 'objectos bizarros'.
Face a este tipo de funcionamento mental, que se encontra em
psicóticos e também em personalidades 'fronteiriças', descritas "como se"
tivessem identidade própria, (Helen Deutsch, 1934), terá pouco sentido a
tentativa de integrar os relatos que se ouvem, por meio de interpretações de
significados ...
Trata-se, então, de procurar circunscrever e promover a visualização
mental, concreta, da vivência abordada, ensaiar um nome para encabeçar a
respectiva imagem, e ir em busca de uma qualquer metáfora abrangente.
Este tipo de focalização, se feita num vai-vem de comunicação verbal e não
verbal, poderá fornecer um modo pertinente de localização da vivência, e um
100
caminho apropriado de busca de significados. O facto de se circunscrever a
experiência concreta até pode ser qualificado, por analogia, com o rótulo de
interpretação ...
ANOTAÇÃO TEÓRICA
Depois do trabalho de Melanie Klein "Notas sobre alguns
mecanismos esquizoides" (1946), Wilfred Bion foi o Psicanalista que
mais se expôs no trabalho com psicóticos e pacientes com estruturas
'fronteiriças'.
Para Bion, o funcionamento da mente humana resulta normal
ou patológico consoante as distintas vicissitudes sofridas pelas
sensações e emoções que emergem da primeira experiência imediata.
Esta comporta elementos beta e tela-beta, barreira de contacto
e elementos alfa. Inicialmente, a mente opera só com elementos
'beta' que são como que precipitados de vivências internas, sem
tendência própria para construir consistências. Eles vêm a ser
transformados, de acordo com o grau e forma de operatividade da
'função alfa'. Esta função opera integrações, na medida de um
intercâmbio sustinente internalizado, vivido no relacionamento
primordial com um cuidador respondente. Sob a acção desta função
propulsora, os elementos 'beta' podem ser enquadrados no sonho, no
imaginar e no recordar. Assim, o sujeito conseguirá superar as
frustrações por um processo novo (se até ali tiver sido capaz de um
mínimo de tolerância à frustração) ao construir um 'aparelho com
que pensar pensamentos'.
Esses 'pensamentos' dão consistência ao mundo interno e, na
continuação, sustentam a capacidade de formular pré-concepções e
construir símbolos que representam significados vivenciais.
Falhando a função 'alfa', predominarão os 'elementos beta' - que se
coadunam com as passagens a acto, com o chamado pensamento
concreto, e com o aumento dos objectos 'bizarros' que se propagam na
mente por meio da identificação projectiva (que é o oposto do pensar),
impondo-se ao entendimento do "proprius" e da realidade externa.
As teorizações de Wilfred Bion sobre os múltiplos passos da
organização da mente ajustam-se aos estudos mais recentes do
desenvolvimento precoce dentro da união-dual, em que se prevê a
101
diferenciação (separação/individuação) do filhote, quando enquadrado
pelo suporte parental ressonante.
A construção da função 'alfa', que acontece no contexto da primeira
relação de objecto - cuidador-bébé - pressupõe-se, igualmente, na
relação terapêutica dinâmica, se o Consultor poder estar atento ao
ritmo de vai-vem da comunicação. Então, num reencontrar das
relações em espelho, será permitido construir o 'aparelho com que
pensar pensamentos'.
102
linguagem metafórica da emoção reprimida de algumas úlceras
gástricas, de fenómenos respiratórios, etc. que são mensagens do
corpo exprimindo uma queixa psicológica. Avança-se para as defesas
imunitárias, humorais e celulares alteradas por força de um stress
crónico quando vivido como inevitável.
Irrecusáveis, os liames psico-somáticos alargam-se à descrição
dos meandros do sistema nervoso vegetativo e do sistema endócrino e
circunscrevem um feedback múltiplo ou rede de comunicação fluida
do organismo consigo mesmo. Então, o sistema global resulta "da
acção de um conjunto de mensageiros solúveis, suportes da
comunicação celular". 9
INFORMAÇÃO TEÓRICA
Posta em causa como classe psicopatológica nos anos
cinquenta, a chamada faceta subjectiva da doença somática foi
desmascarada e eliminada nas classificações internacionais,
sendo recusado estatuto científico aos seus descritores - uma
vez que esses deviam assentar em relatos (subjectivos) dos
significados do viver pessoal.
Mais próximo dos nossos dias, reapareceram nos catálogos de
sintomas psiquiátricos sob o título de desordem da classe
somatoforma. Aí, os sintomas físicos da dinâmica mental (não
escamoteáveis), sendo realçada a faceta biológica desses
fenómenos, passaram a ser arrumados como comportamentos
observados.
Nesta fase da discussão teórica, os sintomas enumerados para
serem incluídos na classe psiquiátrica somatoforma são
relacionados com as alterações do humor, com a depressão, o
alheamento, a ansiedade e tristeza, ou as reacções físicas
associadas ao stress. Situam-se aquém da fronteira do
verdadeiro mistério da regulação das íntimas relações
entre
psique e soma que caracterizam, por exemplo, os fenómenos
alérgicos, as doenças do colageno, as alterações da imunidade e
da estruturação da identidade bio-psicológica, para os quais
não existe lugar apropriado nas listagens alinhadas nas
103
modernas classificações. Dificilmente se verificará tão cedo um
diálogo construtivo entre a psiquiatria, psicoterapia, neuro-
biologia, e mais recentemente, a psico-neuro-imunologia
(Biondi, et al, 1987). Entretanto, sabe-se, por exemplo, que uma
situação de stress crónico (seja qual for a sua definição) ou um
acontecimento de vida com repercussões afectivas
permanentes, alteram a competência defensiva das células
imunitárias para protegerem o organismo, e isto para além do
tempo de incidência do respectivo sofrimento mental. Também
foi possível estabelecer por meio de estudos rigorosos que existe
melhor prognóstico para a recuperação de doenças físicas bem
identificadas, como a tuberculose, herpes genital,
mononucleose, quando se conta com as chamadas «forças do
Eu» dos pacientes em causa. A incidência de sofrimento
psicológico também foi estabelecida univocamente numa
população com doença ulcerativa necrótica da gengiva em que
se verificam competências linfocitárias diminuídas.
104
vida dolorosas, como seja a morte de um cônjuge ou os cuidados
prestados a familiares com doenças terminais (Jacobs, S.C., J.W.
Mason, T. R. Kosten, 1986).
105
Quando se ponderam os problemas da intervenção clínica
(psiquiátrica, psicoterapêutica e psico-social) nas desordens de
adaptação que, hoje, se apresentam nos hospitais ou na consulta
privada para alívio e tratamento, verifica-se a urgência de recolher
mais dados de investigação acerca das complexas contingências entre
eventos e vidas e esclarecer melhor o que se entende actualmente por
perturbação da transacção emocional intra e inter-organismos
humanos em convívio social e familiar.
É um terreno movediço em que imperam modelos mais
doutrinários do que científicos, por vezes dificultando a decisão no
planeamento da intervenção psicoterapêutica dinâmica, a realizar de
parceria com a intervenção psico-farmacológica.
106
De todos os modos, o paciente é o único condutor na progressão para
a configuração dos significados e o único garante do seu acerto.
Na ida e na volta da comunicação, há padrões que se revelam,
reflexos cuja carga repetitiva se vai tornando clara para o Cliente, deixando
para o Consultor o papel natural de testemunhar e de dar voz ao que o
Cliente vai descobrindo para ele mesmo - o que fará, se tiver espaço para
isso ...
FINALIZANDO
Colocados alguns critérios essenciais para o exercício da actividade
interpretativa, reconhece-se que se trata de uma tarefa complexa, sobretudo
para o Consultor iniciante.
Nesta exposição está contida uma pesada carga teórica sobre o
suporte a dar ao Cliente, para que ele empreenda a tarefa de terminar o
luto, e deixar sarar a ferida narcísica ou edipiana - que exprime
indirectamente no seu agir desadaptado e nos seus sintomas ansiosos -
mas até consegue (melhor ou pior) afastar da sua consciência. Mas, deve ser
evidente que, empregando a metáfora de sarar uma ferida, está implícito o
pensamento de no seu rasto ficar sempre uma cicatriz a sinalizar o mal
antigo.
Termina aqui a viagem do Iniciando, mapeada no presente texto,
talvez já demasiadamente extenso.
Quem quiser caminhar além, tem estudos consagrados que o
poderão orientar. Citamos na bibliografia preciosos textos, como por
exemplo: Giovachini, 1975; Hobson, 1985; Greenson, 1985; que avançam
com denodo sobre estes territórios desconhecidos.
107
CASOS
108
109
INTRODUÇÃO
Cada situação é um mundo. Então, pensou-se que poderia ter
interesse, talvez até ser útil, fornecer alguns exemplos distintos de registos
informais de entrevistas ou sequências de entrevistas, para ilustrar melhor
a aplicação do modelo discutido no corpo deste trabalho. Tendo-se fornecido
tantos pequenos excertos de intervenção psicológica, estes exemplos
poderiam ter aguçado o apetite para observar o desenrolar dos encontros em
situações de atendimento psicológico na linha dinâmica descrita.
Os casos adiante transcritos são entrevistas correntes, acontecidas
na clínica comum de profissionais inseridos no terreno, cada uma
mostrando manejos diferenciados, de acordo com a situação e com a
condição dos respectivos clientes.
Não são modelos acabados de intervenção. Trata-se de percursos
reais, afectados de imperfeição como tudo o que é humano, mas que se
ajuizou oferecerem bons exemplos do movimento dinâmico que se procura
reflectir. Foi-me sugerido que, nesta segunda edição do texto de " A
psicoterapia como aprendizagem", acrescentasse comentários ao casos
apresentados, tal como acontece no corpo do trabalho. Assim, nalguns locais,
coloquei uma coluna para apontamentos, à margem, com o intuito de
suscitar as reflexões do leitor.
110
111
RELAÇÃO DIALÓGICA NUMA PRIMEIRA CONSULTA DE BEBÉ
Na consulta ludoterapêutica a comunicação assenta nos códigos
simbólicos do brincar. O ludo-diagnóstico tem o objectivo de compreender a
organização de personalidade em estado nascente, e é praticada por
psicoterapeutas treinados na orientação dinâmica, e também treinados no
emprego da comunicação lúdica abstinente. Deverão poder instituir uma
presença securizante para a criança e, ao mesmo tempo, focalizar a sua
atenção nos modos como o pequeno Cliente regula os seus actos expressivos.
Assim, observa os seus ritmos quando são espelhados pela resposta
contingente do Consultor e/ou quando, pelo contrário, são interferidos de
modo intrusivo.
Na situação de análise psicológica que vai ser ilustrada o
procedimento de observação assenta no princípio de que o acto lúdico se
constitui como forma de intercâmbio num espaço transicional (Winnicott,
1971). Procura-se avaliar na criança a constituição do padrão de vigilância
sobre a 'contingência do ambiente externo às próprias iniciativas' - que todo
o bebé emocionalmente saudável pratica constantemente, ao contrário da
criança com evolução atípica que nem sempre manifesta este básico reflexo
de presença (John S. Watson, 1967; Leal, 1975/85; 1983; 1988; 1993a).
O episódio ludo-consulta aqui transcrito serve para ilustrar o uso da
associação emocional semi-livre, na primeira entrevista diagnóstica com um
bebé e sua mãe. Se, como no caso presente, o objectivo imediato da
entrevista é o diagnóstico, a entrevista contem (implícita) a seguinte
prescrição: O Consultor irá criar condições para se colocar na posição de
responder à criança apenas de modo contingente - (meramente como
objecto das iniciativas do outro).
Então, irá encontrar lugar para reproduzir (imitar) qualquer acto do
seu pequeno Cliente que lhe apareça no 'aqui-e-agora, não como reacção
imediata a um estímulo externo, mas como emissão de uma conduta
espontânea circunscrita, mas aparentemente aleatória (e caracterizável em
linguagem comum). Irá esperar a repetição da mesma sequência.
Em todos as outras circunstâncias, irá permanecer deliberadamente
abstinente, até que observe alguma mudança de posicionamento da atenção
em que possa ser encadeada nova sequência de imitação-emissão.
Num momento da parte central da consulta associativa, promoverá
uma interrupção controlada e passageira desta fórmula de intervenção, por
meio de uma actuação intrusiva pertinente, no sentido de obter informação
112
suplementar sobre as estruturas de reacção de personalidade do pequeno
sujeito.
13 Agradeço o uso deste material à Doutora Maria da Graça Andrada, Directora Clínica do
Centro de Paralisia Cerebral de Lisboa, e à Enfermeira Maria Janeiro, então responsável do
Serviço em que o Fábio recebeu apoio psicológico.
113
de uma grande sala polivalente típica de
brincar: um pequeno tapete quadrado
encostado à parede, um espelho grande, um
caixotinho com brinquedos comuns ('caixa-tipo'
padronizada) e uma bacia com água. Com um
gesto largo e preciso, deposita o menino no
tapete, aos pés dela, e diz, sorrindo: "Aqui está
o Fábio". A Ludoterapeuta ajoelha-se junto
dele. Face ao diagnóstico
médico, a psicóloga prevê
Com olhar vago, Fábio encara o 'horizonte' negativismo e denegação
(uma outra parede, que tem uma janela). da realidade., Em
Ludoterapeuta: - (falando intencionalmente conformidade, evita
não para o Fábio, mas na direcção da Mãe que invadir o espaço do Fábio,
não olha directamente e
se mantém em pé junto deles): "Há aqui muitas
não requer nada dele.
coisas". Faz um gesto largo, rasante, ao nível Fala-lhe através da mãe.
dos olhos do bebé, indicando os objectos sobre o
tapete.
Entra a Enfermeira Maria, que do
Indirectamente, engloba
fundo do corredor presenciara a iniciativa de a Enfermeira Maria na
súbita entrada dos Clientes na sala dela. situação, dando-lhe as
Senta-se no tapete. A Ludoterapeuta repete a dicas quanto ao
sua informação, falando para o espaço, mas procedimento que elegeu.
tocando passageiramente em cada objecto
lúdico, e nomeando um por um, falando como
que distraída. O diagnóstico a
estabelecer engloba o
Fábio - Começa a chorar sem olhar nem sistema mãe-filho.
para Ludoterapeuta nem para a Mãe. A Mãe
ajoelha-se junto da criança e fala-lhe dos
bonitos brinquedos, dando abanõezinhos no
filho. Ele não reage e continua a chorar. A Confirma-se que a
Ludoterapeuta. apenas espera. A Mãe segue o criança reage aos
estímulos por uma
exemplo e fica quieta durante uns dois
tentativa de se ausentar.
minutos. Fábio para de chorar. A Mãe
recomeça a dar-lhe toquezinhos e a apontar os
brinquedos, tentando interessa-lo neles. Ele
recomeça o choro. Posturalmente, parece ter-se
imobiliza-do, ou retesado.
O Fábio precisa de
Ludoterapeuta. - (falando para o tempo para encontrar os
114
espaço) "Vamos esperar um pouco e não fazer seus próprios ritmos.
nada. Vamos ver o que acontece a seguir"...
…A mãe parte logo para a
Mãe - "E eu, o que faço? Vou-me sentar acção e tem dificuldade
além?" - Acto contínuo, levanta-se e vai-se em parar e observar.
sentar no outro lado, junto a outra parede
(distante mais de três metros), enquanto a
Ludoterapeuta acena afirmativamente com a
cabeça.
Fábio continua o seu choro solitário.
Depois para, e fica olhando fixo para a janela
(quase em frente), onde brilha o sol entre as A Ludoterapeuta toma a
folhas. Depois levanta um braço, meio tapando dica da mãe que conhece
os olhos com as costas da mão. "Isso é o que ele os gestos habituais do seu
filhote como a informação
faz quando está assustado", diz a Mãe. Fábio
orientadora.
não parece ter escutado o falar da Mãe e
mantém-se com aquele gesto. A Ludoterapeuta
retoma: "Ele está assustado! Mas não faz nada. Devolve, logo a seguir,
Ele não sabe que fazer!..." A Mãe parece muito uma informação para a
tensa, mexe-se na cadeira Mãe com o intuito de a
desconfortavelmente. A Ludoterapeuta diz securizar e ensinar-lhe o
para a Mãe: "Não se preocupe. Podemos modelo.
esperar. Sabe! Para nós é habito esperar. Só o
Bebé pode dizer-nos do que precisa - por isso
Vai modelar o vai-e-vem
aprendemos a esperar por ele." Enquanto a das águas (paradigma do
Ludoterapeuta e a Mãe comunicam, Fábio vai-e-vem do intercâmbio
parece menos tenso, e a Enfermeira pressente dialógico primitivo - Leal,
que pode introduzir-se na situação lúdica: com 1975).
a mão chapinha distraidamente na água.
David olha na direcção da água, e deita um
olhar de relance para os brinquedos. A
Enfermeira repete o seu gesto; Fábio meio
Ensaia um gesto
estende o braço em direcção da água; ela
prazeroso e logo desiste,
empurra de vagarzinho a bacia em direcção espreitando a Mãe.
dele e chapinha de novo com a mão, olhando-o
apenas de relance. Fábio faz um gesto a tentar
chapinhar; repete, salpicando, e para. Levanta
o braço para a testa, no gesto anterior
defensivo, mas um pouco modificado,
parecendo talvez espreitar a Mãe por de trás da Ambas profissionais
mão colocada em posição esquisita. A acautelam-se para não
115
Ludoterapeuta pergunta para o ar pelas olharem a criança
panelinhas, depois, dizendo à Enfermeira não directamente ou aproxi-
encontra-las (conteúdo standard da caixa de marem-se dela, para não
desencadearem o negati-
brinquedos). A Enfermeira levanta-se para as
vismo.
procurar no armário. Fábio parece seguir os
seus movimentos, pelo que a Ludoterapeuta
verbaliza: "Que terá acontecido aos nossos
potinhos e às nossas panelinhas? Pertencem
aqui (com a gesticulação expressiva exagerada
apropriada à situação) e não estão cá!". A
Enfermeira encontra-os (comentando também Instrumento mobilizador:
com gestos expressivos apropriados). A Alternar o 'vai-e-vem' de
Ludoterapeuta deita as panelinhas para dentro encher e vazar água, de uma
para outra panela (até três
da bacia da água e, com elas, começa a fazer o
vezes apenas).
jogo de 'dentro-fora-dentro' Fábio parece um
pouco mais à vontade (deixou de estar 'na
berlinda' ?). Estende a mão para a água, quase
pega numa das panelinhas e para -
imobilizado de novo. A Ludoterapeuta espera e, Não se dirigem à criança,
olhando a Mãe, acena com um sorriso mas uma à outra em diálogo
securizante. A Mãe corresponde, mas com Estimulam, mas nada
sorriso amarelo. A Enfermeira mostra um pedem ou exibem ao Fábio.
bonequinho que guincha na direcção da
Ludoterapeuta, que comenta os guinchos e a Primeira intervenção directa
seguir, também dirigindo-se para ela, remexe Modelo mobilizador (Leal,
nos brinquedos em geral. Fábio chapinha com a 1975/85). Fábio corresponde.
mão e a Ludoterapeuta imita passados três Mas logo se contém e se
segundos (dentro do intervalo da 'percepção de mostra 'em defesa'
contingência'). Como que sem reparar, Fábio Faz uma tentativa de dar
retoma no mesmo intervalo. Imediatamente a acesso ao 'negativismo' de
seguir levanta o braço, em gesto defensivo. A Fábio, ainda que não espere
compreensão.
Ludoterapeuta comenta para a Mãe: "Ele fica
muito inquieto quando sente uma coisa boa.
Isto assustou-o mesmo!" A Mãe faz um meio
sorriso, mas a afirmação não parece fazer-lhe
sentido ... (como é natural). A Ludoterapeuta Desta vez o 'vai-e-vem'
espera de novo. Então Fábio chapinha e ela completa-se, e aparece a
repete. Fábio chapinha, excitado, molhando atitude do brincar experi-
com salpicos o tapete de plástico. A Enfermeira mentativo, conforme se
produz logo um pano. Seca a água, sorrindo, e desejava ver aparecer.
fazendo gestos largos, expressivos, como se
116
entrasse num jogo (molha-limpa), enquanto ele
vai chapinhando excitadamente e salpicando
cada vez mais. Aí, as costas da mão tocam
numa panelinha, que ele agarra, brincando
com ela na água, depois remexe e brinca com os
brinquedos espalhados no tapete, para isso,
dobrando-se e estendendo o braço. Sem o olhar Até aceita a colaboração
directamente, a Ludoterapeuta oferece-lhe um (não intrusiva).
e outro, cuidando de não se aproximar
demasiado. Fábio pega num boneco guinchador
e larga-o, como sem reparar. A Ludoterapeuta
ecoa o guincho que este faz ao cair no chão - e Retoma-se outro 'vai-e-
espera. Por duas vezes, ele agarra-o de novo, vem', com as mesmos
cadências, e enriquecendo-se
deixa-o cair e ela ecoa, imitando de cada vez o
de formas diferentes..
som que vai sendo diferente (sempre no
intervalo apropriado). Fábio pega numa das
panelinhas, encaixa-a noutra, tira-a, retoma, e Começa o verdadeiro
tenta enfiar uma maior (na mais pequena). Vai experimentar exploratório,
com ela para a bacia de água e brinca a encher brincando o 'dentro-fora'
e vazar. Então, de repente, mergulha em
direcção de um carrinho miniatura (que a
Ludoterapeuta mostrara e largara momentos
atrás), apropriando-se dele. Olha-o com
atenção, estende e encolhe o braço e olha-o de
novo quase com expressão de interesse. Depois A leveza experimentativa
move as rodas com o indicador da outra mão. cessou e reaparece a rigidez
Muda de mãos e retoma o gesto de rodar, muito
atentamente. Esta sequência é repetida mais
vezes e desemboca numa actividade de Intuitivamente, não imita.
intensidade compulsiva, que começa a Sente que não se trata de um
preocupar a Ludoterapeuta. (Não está a gesto espontâneo. Também
não é uma estereotipia já
conseguir inventar nesse momento um
dela conhecida ...
procedimento resolutivo apropriado). A
Enfermeira consegue interromper a conduta
fixa comentando para a Ludoterapeuta os
guinchos dos dois bonecos com que brinca e
larga na bacia de água.
Fábio retoma o brincar na água, tocando
brevemente nos animais guinchadores. Para.
Levanta o braço sobre a testa, quase sobre os
117
olhos, pingando-se e mostrando desconforto
com isso. Nenhum comentário é feito. Daí a
pouco, volta para a água, para as panelinhas de
tamanhos diferentes, para o carrinho e as
rodas. Segue-se alguma actividade (talvez a
A Ludoterapeuta está a
definir de exploratória: pelo menos há olhares referir-se à evidência de que
exploratórios pela sala), entrecortada pelo jogo o pequeno não mantém o
de chapinhar e do 'cabe e não cabe' das prazer de função ou sensual -
panelinhas. o chapinhar - sem logo se
preocupar. Mostra que
Depois de ter observado uma certa interpreta isto como um indi-
estabilização destas acções, a Ludoterapeuta cador da 'posição de relação'
comenta para a Mãe, em tom de informação: "É interna destruidora - o
muito difícil para o Fábio deixar-se a gozar os negativismo.
acontecimentos prazerosos. É por isso que o
braço dele se levanta a meio tapar os olhos.
Temos de lhe ensinar a segurar o que sente de
bom." A Mãe confirma com um gesto da cabeça,
mas os olhos mostram a sua incompreensão.
A Ludoterapeuta não volta a inscrever
o seu 'jogo' de contingências mútuas (que não
deve ser usado como entretém repetitivo, mas
só como estímulo pontual). Em vez disso,
coopera discretamente. Ao mesmo tempo 'dá
verbo' a alguns dos feitos. Por exemplo (como
que falando em nome do Fábio): "Olha! Um
potinho!" - "É o carrinho!" - "As rodas andam à
roda, à roda!" - "Puumm!" (quando ele atira um
brinquedo com estouro) - "Olha Mãe, todas Fábio mostra-se capaz
estas coisas..." (quando ele deita um olhar em de brincar com a bola …
volta). Em breve, o Fábio encontra-se a brincar
pacificamente como qualquer pequeno de um
ano de idade num lugar familiar.
Em certa altura, a Enfermeira produz
uma bola vermelha. Ele dá-lhe uns empurrões,
depois agarra-lhe e solta-a. A bola salta e rola Parece perceber-se uma
certa estagnação.
em direcção à Ludoterapeuta, que a rola de
volta, em direcção a ele. Fábio repete e fica a (É a hora de intervir para
olhar, como que expectante. A Ludoterapeuta esclarecer melhor o
corresponde ao convite, e isto repete-se duas diagnóstico.
118
vezes. Depois Fábio retoma as sequências Depois da observação
anteriores, mas estas estão já como que fixadas essencial no que respeita
em estereótipos (com certa rigidez …) às capacidades básicas de
Fábio, a Ludoterapeuta
Aos 30 minutos de duração da consulta, precisa de saber com que
a Ludoterapeuta pega na bola e bate-a com recursos de recuperação
força no chão, com um estalo. O Fábio levanta a ele conta. Intencional-
cabeça, assustado, olhando para o seu lado mente introduz uma forte
esquerdo onde talvez ainda veja a bola a saltar. frustração.
Dá um grito agudo (parece raivoso), mas logo
retorna ao seu choro gemido e inexpressivo do
início da ludo-consulta. A Mãe mal se mexe e
ele também não olha para ela. Depois de uns
minutos, o braço eleva-se até à altura dos olhos
e baixa de novo e o seu gemido desenvolve-se
num chorar normal. Nesse ponto, a
Ludoterapeuta diz (demonstrativamente): "Que
estoiro horrível" - "Olha o que ela fez! Aquele (O objectivo é observar
como funciona o Fábio, e
estoiro horrível." - "Ela é horrível"
sobretudo como reage o
Tudo fica igual. A Ludoterapeuta par mãe-filho.)
repete para a Mãe, dizendo o que se passou em
termos do susto do Fábio. A Mãe está imóvel e
a Enfermeira parece inquieta. O choro aquieta- A intenção é de enca-
minhar a compreensão da
se, depois aumenta e reduz de novo. Há um
Mãe para o problema de
momento em que levanta o braço para a testa, 'relação de objecto' que
e parece à Ludoterapeuta que ele espreita por começa a evidenciar-se.
debaixo do braço, para a Mãe.
Com expressão de quem explica
(diferente da voz usada antes), a
Ludoterapeuta diz para a Enfermeira: "Ele não
parece ter recursos nenhuns para se consolar e (A Ludoterapeuta sabe que
acalmar. Nem apela de qualquer maneira Fábio não pode corresponder
concreta para a Mãe o ajudar. Então ambos a este convite, mesmo que o
ficam sem saber que fazer ..." A Mãe exclama: entenda, mas está atenta à
"É isso! Exactamente!" com voz de muita reacção da Mãe, querendo
preocupação. analisar melhor a situação
global do relacionamento.
A Ludoterapeuta diz para Fábio (com Anota, que nada acontece.
voz de quem explica): "Mas tu sabes! Tu sabes
dizer para a Mãe para te vir buscar."
119
Passado um minuto, diz directamente
para a Mãe: "É claro que a Senhora sabe que
pode vir para junto dele, ou falar com ele." Ela … vê-se que ela se
vem imediatamente, com um movimento encontra incapaz de o
volante mas brusco e senta-se desajeitada- fazer … Mas, logo imita o
mente junto do Fábio. Depois pega nele e gesto aconchegante.
deposita-o no colo, outra vez como quem pega
num pequeno embrulho. Ele chora mais alto,
sem se aninhar, chegando a gritar, enquanto
… Torna-se possível
ela tenta aquieta-lo com pancadinhas. A mostrar-lhe que, sendo ela
Ludoterapeuta diz-lhe que apenas espere e o naturalmente rápida e tendo
afague. E de contínuo afaga a Mãe, pondo um movimentos muito precisos,
braço em redor dela, como que a ilustrar um ultrapassa o ritmo de reacção
toque aconchegante. dele nesta altura do seu
desenvolvimento.
Enquanto isto, inicia-se uma conversa (Não se fala de pertur-
entre os adultos presentes, comentando o que bação, mas de necessida-
se passara e como a Ludoterapeuta se encontra de de aprender o vai-e-
apenas a estudar as reacções de Fábio. Diz que vem dos intercâmbios
está a compreender a dificuldade da família em humanos.
lidar com elas. No contexto em que a
Ludoterapeuta modelara o gesto da mãe para
afagar Fábio como faria com um bebé mais
novinho, torna-se possível também explicar-lhe
que deve aprender a esperar pelo Fábio. Por
exemplo, estender os braços e esperar antes de
pegar nele, para lhe dar espaço para ele poder
exprimir, às vezes, a parte dele de ser pegado.
Ele não irá aprender a abrir os braços para ela.
Isto não pode acontecer se ela não esperar A mãe parece satisfeita
todas as vezes, indo ao encontro dele e com a capacidade dos
esperando sempre de novo ... Parece fazer-lhe dois, e também com o
gesto dele de lhe segurar
sentido. O Menino deixou de chorar, mas não
na mão.
quer ir para o tapete 'brincar'. Passaram-se, ao
todo, uns oito minutos.
Então, a Ludoterapeuta indica à Mãe
como pode, ir induzindo que o Fábio fique
sentado junto dela no tapete (sem o
'despejar'...). Ele 'autoriza' a mudança, ainda
que segurando a mão da mãe, e segue o gesto
120
(demonstrativo) da Enfermeira, que
aproximara a bacia, chapinhando na água.
Entretanto, a Mãe e a Ludoterapeuta
continuam conversando, fazendo, aqui e ali,
comentários sobre o que vai ocorrendo. Fábio
recomeçara a brincar pacificamente com a
Ludoterapeuta. A Mãe exprime surpresa,
dizendo nunca tê-lo visto brincar assim como
faz ali. O brincar alcança de novo o momento de
rolar a bola, de ida e de volta, Aos 50 minutos, a
Ludoterapeuta dá por finda a Consulta, ao
mesmo tempo que junta todos os brinquedos
(sublinhando isto com mais conversa).
121
mudanças relacionais e cognitivas imediatas no seguimento da activação
dinâmica, interpessoal, experimentada.
Os Pais foram atendidos dez dias mais tarde, e contaram ter
assistido a uma mudança radical nas condutas de Fábio. O comportamento
mais saliente é de ele passar o tempo a engatinhar de sala para sala, a
partir do corredor que dá para todas as dependências, parecendo querer
tomar contacto com todos e em todas as situações.
Seguem-se cinco consultas ludoterapêuticas, intervaladas de dois a
três dias, após o que começam as férias. Ao todo, regista-se um novo estilo
de comunicação na família, e uma nova capacidade exploratória e resolutiva
no plano cognitivo. O trabalho é retomado depois de férias e são logo
relatados mais sucessos no campo relacional e cognitivo.
122
123
A RELAÇÃO DIALÓGICA EM LUDO-TERAPIA GRUPANALÍTICA
Grupo S. Bento-Lisboa -
Grupo de cinco crianças (três rapazes, duas meninas) de 5 a 6 anos
de idade, com queixas neuróticas diversas, mais ou menos graves, que reúne
duas vezes por semana.
Neste exemplo pretende-se mostrar como os actos lúdicos
(expressivos) podem ser entendidos como equivalentes de comunicação
verbal.
(...) Durante as últimas três sessões em que as crianças brincavam
sem qualquer planificação prévia, a actividade mais constante e procurada
pela maioria tinha sido a fabricação e a mistura de tintas e o pintar (a partir
de anilinas e de cola líquida disponibilizadas). No contexto, resultavam
sempre, grossas papas castanhas, variando em tonalidade, pastosidade e
dispersão. No fim, limpava-se um pouco (para não mostrar o que fazemos
aqui). Neste dia, a Consultora sublinha: ..."Acaba sempre castanho!"
Então, repentinamente o cenário muda. Uma das crianças, a
Margarida, enfia o casaco e declara que se vai embora. A Consultora ecoa a
necessidade evidente de evasão comunicada por este acto, e, de seguida,
ajuda-a a despir o casaco, correspondendo ao pedido da Menina
(confirmando o sustento securizante recebido), para regressar ao terreno.
Esta sequência é repetida por duas vezes. Ela permanecerá na sala até ao
fim da hora, virada para uma parede, afogando (miniaturas de) figuras
humanas em potinhos de iogurte cheios de líquidos de cores diversas, mas
sempre vigiando de esguelha o acontecer.
Duas crianças, Menino e Menina, começam a brincar com uma bola
num dos lados mais livres (menos sujos) da sala. Daí a pouco, dois Meninos
(um saído do par, e um que desafiava o mais 'sujador compulsivo' - aliás
124
encoprético) saíram da sala. Jogam à bola fora de portas... muito
energicamente. Só o acto de fuga e os olhares muito brilhantes dão notícia
da ansiedade latente.
O Consultor (Grupanalista) permanece dentro da sala, mas vai
repetidamente visitá-los no limiar da porta que dá para o recinto onde eles
brincam. Comenta em dado momento, que estão a jogar de fora da sala de
brincar deles, porque não querem jogar dentro, porque dentro há pastas
castanhas que voltam sempre de novo. Um dos Meninos diz que dentro não
há espaço para jogar à vontade. O Consultor diz que não está de acordo e
compara os dois espaços, detalhando verbalmente as respectivas dimensões.
Tendo feito estes comentários, vai ajudar a outra Menina que está a pôr um
pouco de ordem na sala de brincar , como que a limpar o terreno.
Os Meninos que estão fora entram e saem de novo depois de uma
olhadela. Entram de novo e continuam a jogar à bola dentro.
Um Menino faz um ensaio de recomeçar a pintar, mas é logo
chamado, amavelmente, pelos outros para vir jogar à bola.
A reunião está próximo do fim e termina sem mais novidade.
125
pela Consultora, Grupanalista, que vai junto dela admirar o resultado e
ajuda-a a limpar-se quando ela mostra desejá-lo. Entreabre os olhos. Nas
reuniões posteriores recomeça a experimentação de sujar e sujar-se (Nesta
altura, a Consultora é informada do seu sintoma de encoprese, que
desconhecia). Na quinta sessão, a Lina estira-se sobre o divã (desmontável),
depois salta e balouça-se de tal forma, que este desmorona - conforme lhe
estava a ser anunciado que iria acontecer se continuasse a agitar-se daquela
forma - mas a Consultora está próximo dela e acompanha-a no susto da
queda. Deixa-se ficar estirada no cátere (no chão) e daí a momentos fecha os
olhos e finge dormir, vigiando se a olham. Mantém-se tensa e o corpo rígido.
A Consultora encontra-se, entretanto, a meio caminho entre o divã e a mesa
onde duas (10 e 12 anos) pintam as bonecas (de plástico) como a Lina fizera
na vez passada. A Tina (10 anos), por sua vez, limpa o chão com perícias de
dona de casa. Atenta às expressões de Lina, a Consultora faz ecos verbais ao
que capta das expressões de Lina que se sucedem:
Lina - Abre os olhos e fixa a Consultora ("Assustaste-te..."). Fecha
os olhos ("Estás com sono..."). Olha e sorri. ("Gostavas de dormir aqui...").
Diz que não dormiu de noite e por isso tem sono. Fecha os olhos. Espreita de
novo. ("Tens companhia aqui. Por isso, podes dormir..."). Fecha os olhos.
("Aqui não tens medo. Ontem não podias dormir porque tinhas medo..."). A
cor da pele muda; quase fica rosada. Adormece durante instantes
(respiração funda, regular). Depois, levanta-se e vai brincar com cubos.
Constrói uma torre, que deita abaixo (sem comentário verbal ou não-verbal)
e de novo, vezes sem conta, com apoio directo da Consultora.
À saída, todo o seu porte está mudado e custa-lhe a desprender-se.
Vai e volta duas vezes, mas acaba por ir lanchar (no mesmo edifício).
A verbalização, toda entregue à Grupanalista, era necessária à
comunicação. Dava resposta claramente contingente à expressão
estampada no rosto da criança, ainda que não unívoca - mas interpretada,
mais do que traduzida (com risco...). Entretanto, só depois da 'dica' concreta
de que não pudera dormir na noite anterior, foi possível confirmar o
conteúdo do vaivém estruturante, a transpor simbolicamente.
126
COMENTÁRIO
Na análise psicológica com crianças a actividade lúdica é o principal
mediador da comunicação e da acção terapêutica. Na movimentação
do brincar (acompanhada ou não de verbalização), o profissional
treinado descortina significados simbolizados que se organizam na
sua presença e pode traduzir os mesmos para a criança quando
oportuno. Esta exprime-se naturalmente com o seu corpo e pelo uso
que faz dos objectos que se encontram ao seu alcance. Olhando esta
realidade, verifica-se que não faz sentido, neste contexto, o conceito
clássico de "acting-out" (traduzido como a 'passagem a acto') conceito
oriundo da psicanálise 14 e que é entendido como forma de se
defender de comunicar. O 'agir' contínuo, a que se julga poder
restringir o brincar da criança, engloba todo o seu sentir. O 'brincar'
olhado com atenção, não esconde as suas significações simbólicas
expressivas.
Assim, os conceitos são reformulados para ter em consideração os
modos de se exprimir da criança e a situação grupanalítica ou o
padrão de interacção que aí se estabelece. No padrão de comunicação
de grupo, livre 'flutuante', os actos e os factos são englobados como
significados a integrar na dinâmica e a descodificar sempre que
oportuno.
Por exemplo, distinguem-se entre si, e descodificam-se como tal: as
comunicações verbais e não-verbais que ocorrem fora ou dentro da
matriz de grupo e que podem ter sido relatadas pelo próprio ou por
qualquer um;
127
- a localização e direcção das comunicações;
- os mecanismos: de 'bode expiatório', ou o do 'estrangeiro', da
'monopolisação', do 'subgrupismo') que, por definição, atacam o padrão
de interacção livre-flutuante e a possibilidade das reacções em espelho
múltiplo, que dão contexto à percepção das emoções emergentes. Etc.
128
129
UM ADOLESCENTE NA EMERGÊNCIA PSIQUIÁTRICA
Comentários
1ª Consulta (após o 'contrato' feito na presença do
médico assistente). O Psiquiatra indicou a
Psicoterapia.
António - "Hoje sinto-me muito melhor. A medicação continua a
Ontem fui ao cinema com o meu Pai e senti-me ser ministrada.
bem. Depois, também passeei com o meu avô e
passei, assim, bem o dia. (Pausa) às vezes é que
me vêm uns pensamentos esquisitos que me O Consultor movi-
preocupam". menta-se cautelosa-
mente. Apenas confir-
Psi. - "Há coisas que , por vezes, pensas. mando.
Sentes que te preocupam, mas que não
compreendes."
António - "É. São coisas esquisitas que
não sei explicar bem. É uma sensação de mal-
estar. Mas depois passa-me."
Trata-se de pedir
Psi. - "Se percebi bem, houve coisas que informação e, também
aconteceram na tua vida, o que mudou um pouco (por um procedimento de
a tua maneira de estar e de ser." modelagem) de assegurar
indirectamente a regra da
António - "Sim. Porque eu era um rapaz confidencialidade entre
alegre. Gostava de brincar e de conviver. Eu era ele e o Psiquiatra e o mais
'baterista', suplente de um conjunto. Gostava de das pessoas.
ir ao Clube, estar nos ensaios, beber uma
cervejinha de vez em quando ... e, agora, tenho
130
esta sensação de mal-estar, uma sensação
esquisita na minha cabeça; de repente, parece
Continua a confirmar
que vou cair. Apetece-me dormir... o que ouve, mas, com
Psi. - "A partir de determinada altura, tu que isso, estabelecendo, as
cadências da mensagem
eras uma pessoa alegre, que gostavas de que vai e que vem (no
conviver, , começaste a perder o interesse por modelo "turn-taking") e,
conviver com os outros e sentiste-te estranho. ao mesmo tempo,
Queres-me contar como é que isso começou?" pedindo informação.
Psi. - "Foi difícil para ti, sentires que tua Procura fazer
Mãe já não se preocupava contigo como antes..." reparação da figura da
mãe
António - "Ela também é um pouco
131
nervosa e, às vezes está doente na cama e não se Suporte emocional
feito por eco à perda que
levanta."
está em causa.
Psi. - "De qualquer forma, as coisas
mudaram muito desde que aquele Senhor foi lá
para casa.
António - "Logo um homem daqueles, lá Consegue descarregar
a sua aflição e zanga.
para casa! Jogava com um pau de dois bicos,
dizia que era um homem sério, depois apareceu-
me um homem daqueles!. Às vezes, dizia que me
batia, mas nunca chegou a bater. Mas eu tinha
medo dele. É um marginal, como se costuma
dizer. Um monstro daqueles, alto, forte, de
barbas... (Silêncio) A polícia foi lá várias vezes: Indirectamente, lança
ele comprava coisas, e depois só as pagava.(...?...). uma interpretação -
Eram tantos problemas, que eu não sei como não como 'balão de ensaio' (a
aferir a resiliência e
dei em maluco...
capacidade associativa
Psi. - "Era como se fossem teus os do Cliente).
problemas - e demasiados para aguentares
…Não se percebe o que
sozinho!" captou, mas continua a
António (Em silêncio, acena com a cabeça falar e aparece um certo
colorido de fantasia
que sim, com ar pensativo) - Houve um dia em persecutória …
que ele tentou fazer-me mal. Eu estava na
varanda com o meu gato e ele estava com um
"spray" e fez assim... (exemplifica o deitar um
jacto) para a minha cara. Pensei que ele me
O Consultor ecoa
quisesse cegar ou fazer qualquer coisa!... também o sentimento de
…e fugi para casa da minha Avó. Fiquei meio segurança que se
associou logo ao medo
tonto e cheio de medo." (Há alguém em quem se
Psi. - "A casa da tua Avó é um lugar onde pode confiar …)
te sentes seguro e protegido." Mas logo continuará a
António - "Sim. A minha Avó tem feito tanto focar o pólo mau da
situação e do sentir.
pelos netos e pela filha e, agora, apareceu um
ladrão daqueles!..."
O António consegue
Psi. - "Sentes que esse Senhor veio
descarregar outro susto
perturbar a harmonia boa que havia na vossa … e também recorda, de
família." novo, que pode confiar.
António - "O meu Avô anda um bocado nervoso.
132
Diz que se tivesse uma pistola que o matava.
Mas, ele está sempre a animar-me. Ontem foi
comigo ao futebol. Há poucos netos que tenham
uns avós como aqueles. Tratam-me bem, dão-me
tudo o que preciso, a mim e ao meu Irmão. Inicia-se o processo de
Nunca me falta nada. (Silêncio) análise em busca de
clarificação ("insight").
Psi. - "Sentes-te cuidado..." O problema está nele,
não só nas coisas …
Eu agora sinto-me melhor. Já não tenho
as preocupações lá de casa. O que me preocupa
agora é aquelas coisas que às vezes sinto. - às
vezes estou tão bem disposto, a falar com o meu
O papel do psicotera-
Irmão ou com o meu Avô, e de repente sinto-me peuta não é o de
triste, tonto... Eu era um rapaz saudável, encorajar (Como, por
alegre... Nunca tive doenças... E, agora, como me exemplo: "Mas tu agora
acontece isto por causa daquele homem ?!" estás melhor" …). O
papel dele é de analisar
Psi. "Estás preocupado se voltas a ser o 'estrago' …
como eras antes, ou não!..."
António - "É! às vezes penso se me curo …A reflexão do
ou se fico sempre assim. (Pausa) E tanto que Consultor permite ao
uma criança gosta de brincar na rua... e eu cliente tocar ao de leve
metido dentro de casa... Gostava de estar com
eles ..." (mentalmente) no que é
bom e no que é mau no
Psi. - "Às vezes olhas para os teus amigos seu sentir, sem dar uma
e pensas que talvez não voltes a ser como eras saída fácil …
antes... … Devolve para o
Cliente (deixando
António - "É disso é que eu tenho medo! - implícito que a reacção
O Sr. Dr. o que acha? Acha que eu me ponho dele é o que importa).
bom?" Na despedida, aponta o
próximo encontro.
Psi. - "Qual é a tua ideia?"
. António - "Eu agora sinto-me melhor..."
Isso é importante. (Pausa). Ainda iremos
No início de uma nova
conversar muito sobre isso. Por hoje ficamos por Entrevista, um
aqui. Encontramo-nos na ... (...). Consultor apenas ouve.
2ª Consulta
(No caso, sente que se
133
estabeleceu um bom
António -- "Estou muito melhor. Já fui à contacto entre os dois).
escola. Estive a falar com os meus colegas e os
meus professores. Senti-me muito bem. Estava a
ver que nunca mais me punha bom. Só o Sr. Dr.
é que faz coisas destas!..." (Alerta …)
Psi. - "Estás contente porque estás
melhor." Apenas acompanha o
António - "Claro. Quantas vezes! Fui à discurso do seu Cliente.
escola e gostei de ver os meus colegas. Eles
foram muito simpáticos para mim. De noite O Consultor não está
também durmo bem. - Às vezes, há assim uma iludido, mas deve
coisa passageira, que não me aflige muito." acompanhar a par e
passo.
Psi. - "Está a ser mais fácil para ti falar
com os teus amigos e conviver com eles."
António - "Dantes, era um medo!... Medo Apesar de evidente o
meio parvo ... Medo de quê ? (Sorri) fundo ansioso, o Consultor
apenas ecoa o que é
Psi. - "Como se já não houvesse razão expresso no 'aqui-e-agora'.
para teres medo..."
António - "Já falo com as miúdas..."
Psi. - "Isso é uma coisa que te agrada. É
uma coisa importante para ti." O eco ao susto …
António - "Não é assim tão importante.
Precisa de se mostrar
Há coisas mais importantes na vida. (Pausa) Já responsável … (Mas não
estava com saudades de estar bom." soa a muito convicto …)
134
António - "A gente tem de resolver
aquilo! A ver se ela o tira de lá! Antes era uma
vida normal."
Psi. - "Sentes que, neste momento, é
difícil para ti viver normalmente, como antes." O eco ao outro pólo do
sentir que o António
António - "Eu agora já estou mais ou expressa
menos como dantes. Na quinta-feira fui à minha
Mãe ..." (Um pólo de cada vez
- mas sempre atento
Psi. - "Foste ver a tua Mãe... aos dois pólos do sentir)
135
O meu Irmão está mais alegre por estar bom.
Dantes, ele era muito importante para mim.
Agarrava-me a ele."
Psi. - "Antes, sentias-te seguro com ele;
mas agora já não precisas de te agarrar com ele." … Falar de homem
António - "Pois - como dantes. (Pausa) para homem …
Os meus colegas ficaram contentes de me ver."
Psi. - "Gostaste de voltar à escola."
O Consultor não
António - (entusiasmado) - "Ainda tenho embarca no "está tudo
hipóteses de passar." bem". O seu papel é
analítico - não de mero
Psi. - "Estavas com medo de reprovar." encorajador.
136
ansiedade persecutória que desponta - mas sem
a conseguir elaborar. Mostra não conseguir
emancipar-se dos 'imagos parentais'. Tenta
passar num salto para a fase adulta sem
elaboração da ambivalência própria da
adolescência.
. Na 6ª Sessão, o António fala das suas O papel do Consultor,
preocupações de férias e, ainda, dos seus nesta fase do
acompanhamento é
projectos de futuro, depois de já se ter sabido que
apenas trabalhar com o
passou de ano, e da possibilidade de continuar a Cliente, verbalmente, o
estudar. percurso que ele vai
fazendo.
Então, também fala da Mãe, do seu
estado de saúde, evidenciando uma saudável
distância afectiva da Mãe e do companheiro O apoio psicoterapêu-
desta). tico nesta situação
raramente é
interpretativo no sentido
psicanalítico do termo.
7ª Consulta Não deixa por isso de
ser um trabalho sobre
António - "Para mim, as coisas têm
os significados do
corrido bem. Vou à praia passear. Estou-me a Cliente e seu
sentir como antigamente, sem nada que me enquadramento.
preocupe.
Trata-se de
Psi. - "Se estou a perceber bem, a relação restabelecer o contacto
com os outros, com os teus amigos, está a ser do "Eu" com a sua
normal. Passeios. Conversas." função reguladora,
alertando o Cliente para
António - "Sim. Agora tenho muito os recursos do próprio.
tempo. Tenho pouco que fazer; é só andar com os
É uma espécie de
avaliação que o Cliente
faz por sua própria
amigos, ir até à praia, às vezes. Eu, se calhar, já conta.
não vou trabalhar."
Se isto não
Psi. - "Gostavas de ir trabalhar, mas por acontecesse, teria que
outro lado agrada-te poder estar com os teus ser proporcionado pelo
amigos, com rapazes e raparigas da tua idade." Consultor.
137
tomar responsabilidades."
António - "Ainda tenho muitos anos à
minha frente para arranjar emprego. (Pausa)
Agora prefiro andar com os colegas da minha
É importante
idade. Eu dantes estava doente, depois comecei a continuar a captar a
ir para a rua estar com os meus colegas. Antes, mensagem de perigo e
nem sequer queria ir para a rua; não me falar dele …
interessava por brincar. Gostava mais de estar
em casa com a minha Mãe. Depois comecei a
gostar de estar com os meus colegas da minha
rua, com os meus amigos. Agora gosto de andar
com eles."
Psi. - "Isso leva-te a querer gozar este O António percebe que
tempo, esta idade em que estás com os teus não tem poder para
amigos." modificar a vida da Mãe
e que tem de lhe deixar
António - "Acho que tenho tempo de a ela a responsabilidade
arranjar dinheiro quando for mais velho e tiver de a resolver.
emprego. (Silêncio) Ontem fui ver a minha Mãe.
Agora está sempre metida em casa. Está muito
magra. Ele nem sequer trata dela."
Psi. - "Se percebo bem, pensas que ele
tem contribuído para que a tua Mãe esteja
assim."
António - "Sim. Ela está cada vez pior.
Ele não faz nada para ela ir ao médico ou tratar-
se como deve ser. Ele diz que ele é que a quer
tratar."
Psi. - "Tens-te preocupado com isso!..."
António - "Agora também não vou estar-
me a preocupar sempre com isso. Também tenho
os meus problemas. E não é da minha conta."
(Etc.) (A sessão prolonga-se por mais um
pouco, mas segue sempre as mesmas cadências
dialogantes e tendentes a captar os significados).
138
139
A RELAÇÃO DIALÓGICA NA REUNIÃO DE GRUPANÁLISE
140
141
O ENCONTRO X - No dia/mes/1991, às ... horas.
142
Regina (corada, mostrando empenho em
dar razão à Ana Maria) - "E não os mandaste 'à Afirmar-se …
fava' ? Que grandes parvos! Espero que os tenhas
posto na ordem. Olha. Eu dava-lhes um estalo!"
Ana Maria - "Não soube o que fazer. Fiquei
enojada. Não sei se sou eu que tenho cara de
parva... Nunca sei com quem estou a lidar; se
posso ou não confiar nos outros. E isto é muito
mais com os homens. Nunca sei se as suas
intenções são boas ou más. No fundo, acho que
continuo a sentir que os homens não são de
confiança..."
Luísa - "Não sei se não estão a dramatizar
Nem todos alinham
muito. Eu às vezes também digo coisas picantes
necessariamente na
aos meus colegas. Claro, aqueles com quem tenho problemática a ser posta
mais confiança. Esse teu colega e o tal professor …
não tiveram graça nenhuma, mas, no máximo,
foram 'pirosos', nada mais. Acho que deste
importância demais a isso...
Grupanalista - "Parece que a Ana sente A Grupanalista alerta
que, na vivência destas situações, está a reviver para que naquela reacção
emoções de significado especial." nem tudo está à vista …
143
vergonha!» com aquele ar de moralistas, como a
minha Mãe."
Luísa - "O Francisco faria a mesma coisa.
São todos assim. Não se interessam."
Ana Maria - "Sinto sempre o João
indisponível. Faz esforços, mas não consegue.
Trabalha... Trabalha... naquela porcaria dos … ("Ai os homens !…)
projectos... que não me interessam nada."
Luísa (rindo) - "Eu também acho que a
porcaria do doutoramento do Francisco é uma
verdadeira seca. Não me consigo interessar por
aquelas coisas estranhíssimas com as quais vive
24 horas por dia. Olha, Ana Maria, vê se arranjas
--- (Vale brincar …)
outro com uma vida profissional mais
interessante. Um Bailarino, por exemplo."
(Riem)
Duarte (um pouco a medo) - Sinto sempre
aqui um enorme afecto por todos, mesmo quando (A relação analítica é
vem o 'chuleco' à baila (sorri para a Luísa). É como um convívio quente.
se fosse uma amizade muito profunda, muito Será que produz um
intensa. Mas continuo a pensar se não devo verdadeiro compromisso
desistir - até por causa do problema concreto que analítico ?)
já sabem (trata-se do dinheiro). Mas parece que o
principal é sentir que não estou a fazer análise,
que é só o afecto que me trás cá ..."
Grupanalista - "Por qualquer motivo, o A Grupanalista chama
de novo a atenção para o
Duarte quer desistir - num seu gesto costumeiro,
que está implícito,
como se esta ligação a mim e ao Grupo o
perturbasse ..." neste caso - o receio do
compromisso analítico …
Teresa (à beira das lágrimas) - "Sabes bem
como me custa ires-te embora. És o meu irmão
preferido. Esta situação de te ires embora ou não, As dependências e as
de achares que não há nada a fazer, de carências revividas ...
desistência, magoa-me muito... E irrita-me!... Vivo
nesta despedida/não despedida do Duarte, lenta e
mortificante, a minha separação com o António e a
incapacidade de ele achar que alguma coisa podia
144
ser feita, podia mudar. As incapacidades dos
homens sem tomates... Estou farta de homens
sem tomates... ou estou farta dos meus ..."
Duarte - "Bem. O ataque aos homens está
cerrado (olhando e esboçando um sorriso para o (O levar para a piada
Fernando e Zé Manel)". como defesa contra a
ansiedade)
Zé Manel - "Não. Não me sinto atacado
(sorri contrafeito). "Pelo menos... (agitado,
revolvendo-se na cadeira, não escondendo a
irritação - fala num discurso rápido e
ininterrupto) Bom! Tenho que explicar a falta de
sexta-feira passada. Esta altura do ano é, de facto, Comunicação
muito complicada. As féria estão quase aí e o expressiva (não-verbal) a
contradizer o verbo …
trabalho é mais do que muito. É difícil ter horários
na minha (profissão liberal), como é difícil aturar a
cretinagem dos juristas e dos funcionários ... Não
leves a mal, Ana Maria (que é funcionária
pública). É tudo uma cambada, Enfim!... E depois,
como sou um bom rapaz, um tipo porreiro, levo
barato ... Foi lá ter comigo um gajo da Moita, por
causa de um negócio em que foi roubado por um
agente predial. O tipo disse-me logo que não tinha
dinheiro, mas que tinha ouvido dizer que eu era
uma pessoa muito acessível ... Quer dizer, vou
receber as massas quando andar de bengala!. Ou
nem isso! Mas não faz mal... - Bom. Em resumo!
Isto vai impedir a minha vinda também na
próxima sexta-feira ..."
Fernando - "Porque carga de água é que te
dispões a trabalhar de borla e ainda por cima
atrapalhando a tua vida ? Que motivação terás?" São as resistências ou a
realidade que se impõem?
Zé Manel - "Profissional com certeza não é.
Parece-me ser moral."
Luísa - "Eu também não venho sexta nem
segunda. Já tinha falado aqui. Sempre decidi ir a
Londres."
(Murmúrios de entusiasmo. Ela continua,
sorridente)
145
Luísa - "Deixei-me de 'Moral' (olhando com
olhar de gozo para o Zé Manel) e vou aproveitar.
Vou com uma amiga que é impecável. E a minha
Filha vou pô-la ao meu marido e à minha Sogra,
ou seja a Ex.- . Estão lá no Algarve. - Mas, estão a
ver ? Porque é que não é ele a vir busca-la ? Lá vai
a desgraçada, a parva da Luísa na camioneta, com
esta caloraça, ir e vir no mesmo dia ... - Mas está
tudo bem! Tenho estado só com a miúda desde a
semana passada, e tenho estado melhor que
nunca. Não tenho lá aquele chato, aquele peso ... -
É! Já deu o que tinha a dar. Vai ser mesmo o
divórcio. Mas agora sinto uma grande calma ... Já
vai longe a época dos preservativos... (Esboça um
sorriso. Fica pensativa).
Zé Manel - "Essa dos preservativos é
demais!... (rindo) Só tu!... (Ela olha-o, com um ar
entre divertido e admirado). - A propósito de
divórcio, tema que me toca muito como sabem ...
Ando a aturar um amigo meu desde há não sei
quantos dias, que se está a divorciar ... O tipo anda
mesmo por baixo. Ela anda a sacanea-lo, vende
quadros lá de casa, e outras coisas ... E depois há o
problema dos miúdos ... - Aparece-me lá em casa
às onze, meia noite ... Mas eu tenho sempre a
porta aberta para os amigos ... E lá fica a
desabafar, até às tantas ... No outro dia,
começamos ao meio dia e acabamos ao meio dia do
dia seguinte ... - Mas eu não tenho horas para os
amigos e este é um tipo porreiro e está
desesperado!..."
Um tema recorrente
Regina - (Ar sacudido, um pouco áspero) - neste grupo: quem ganha
"E depois andas para aí a cair aos bocados ... e e quem perde com (e no
faltas aqui ... - Ouve uma coisa: tu já tentaste Grupo?) …
perceber porque tens essa necessidade de ser tão
bonzinho, de andares a ajudar o mundo inteiro ? É
o amigo, os amigos, o desgraçadinho da Moita …
O que ganhas com isso ?"
Zé Manel - "Eu nada! às vezes até me
146
revolto!"
Fernando (acenando que sim com a
cabeça) - "Olha, pá! Eu também passei por isso (ri-
se. Fazia cada uma!... (Dá alguns exemplos da sua
conduta dita 'altruísta')."
Zé Manel - "Não me lixes, pá!… Há coisa
que uma pessoa não pode negar. E este tipo é
mesmo bom. Tem classe!"
Fernando - "O que é isso de ser bom, ter
classe?"
Zé Manel - "Do ponto de vista humano,
claro (com ar aborrecido, irritado, levantando um
pouco a voz)."
Fernando (insistindo) - "Ter classe é
chagar-te o juízo à meia-noite ? Não achas que
isso, por sistema, é um abuso ? E que tu te pões a
jeito, por um ganho qualquer, como diz a Regina ?"
(O Zé Manel está visivelmente agitado). "Olha que
eu não te estou a agredir, pá. Estou a fazer-te
pensar. Acalma-te! Sabes o que me estás a
lembrar? ...Quando eu era muito miúdo, lá na
minha terra, à vezes abríamos as gaiolas para
deixarmos voar os pássaros em liberdade. ...Mas,
havia um ou outro que, mesmo com a porta
aberta, andavam por ali a esvoaçar,
excitadíssimos ... mas não saíam lá para fora!
Olha, tu pareces um desses pássaros que, mesmo
com a porta aberta, como estamos aqui, não voam.
E ficam para ali a gastar energias, inutilmente ..."
Zé Manel - "Talvez... Isso é giro, o que
disseste... (Pausa. Mais calmo). Mas, não te A Grupanalista alerta
esqueças que ainda há pouco tempo cheguei aqui!" para que também ali se
pedem e dão coisas …
Grupanalista - "E aqui, Zé - como sente
estas pessoas?..."
Zé Manel (olha em redor e parece acalmar-se) -
"São bons também. Também têm classe! (sorri)
Gostava de os ter como amigos, tal como gostava
147
de ter tido irmãos. São como os irmãos que não
tive. ...Lembro-me de ter pedido muito à minha
Mãe para me dar irmãos. Era chato ser sozinho...
ainda por cima sem o meu Pai que só vinha aos
fins de semana... Só mais tarde soube que quando
nasci ela ficou doente e foi operada e não pôde ter
mais filhos... Quando, no outro dia, Você me
perguntou o que esse facto representa para mim,
apercebi-me que, se calhar, ainda agora o sinto
Comunicação a um por
como um peso ..." um, mas não-verbal
Grupanalista - Olha atentamente o grupo
em redor.
Ana Maria - "Este peso dentro de nós... -
que nos leva a arcar com o peso dos outros... -
estás a ouvir, Zé Manel? - é o que trouxe comigo a
vida inteira (gesticula expressivamente): a minha
Mãe, sempre presente, ou aquilo que eu carrego
da minha Mãe, a impingir-me o seu modelo de
desgraçada, a obrigar-me a sacrificar, a humilhar-
me... ('facies' de enjoo)... E, depois, este peso da
minha origem..."
Luísa (interrompendo) - "Lá estás tu com a
tua origem! O que queres dizer é que a tua origem
é a tua Mãe, no fundo. E é disso, dela, que te
envergonhas e te inibes!... Por isso, por ela, te
inibes de teres prazer nas coisas - livremente e
sem dares cavaco! Ainda na última Sessão, falavas
das tuas dificuldades em teres orgasmo com o
João e nos teus prazeres individuais! - Porque te
escondes, Ana? da tua origem, ou seja da tua Mãe?
(Pausa) Eu pensei, durante muito tempo, que era
o meu Pai o causador das minhas inibições, mas
fui-me apercebendo que foi aquela estuprada e Porque não sair do
infeliz senhora que envenenou a minha vida." passado para o presente?
Grupanalista - "Parece que alguns de Vós
sentem ressentimentos, pesos, venenos na relação
com as 'figuras' parentais. E aqui?..."
Ana Maria - Se calhar ainda me escondo
148
aqui um pouco de vocês. Ainda receio os juízos da
(Grupanalista). Ainda a sinto, às vezes, 'moralista'
como a minha Mãe. Mas, já é diferente (olha na
sua direcção, sorrindo, e fica em silêncio)."
Regina - "Eu também sinto a minha
relação consigo diferente (olha longamente nos A matriz de grupo em
olhos), Acho que, antes, Você personificava a que se gera um espaço
sabedoria, a verdade, qualquer coisa de inatingível para reflexão …
e distante. Mas, foi-me dando espaço, ou tempo,
não sei bem explicar. Mas sinto que me respeitou,
não me empurrou, não me invadiu - e isso tem-
me organizado, estruturado. Apesar dos meus
medos, estou mais sólida. E vejo-a, já não como a
sabedoria, mas como uma pessoa com saber, que
me apoia, que está aqui... Mesmo quando estou
muito zangada consigo, tenho imensa ternura por
si!..."
Grupanalista - Olha-a e sorri.
Teresa - "Sinto, por momentos, como
agora, a Regina mais crescida e muito próxima de
(Grupanalista)... Mas, continua a reagir de uma
forma muito infantil, eu diria histérica (ri-se) ao
que sente como intrusão, invasão do seu território.
Por exemplo, quando o Zé Manel entrou no
Grupo..." Associação múltipla livre-
flutuante …
Duarte - "Estava a pensar nisso mesmo,
...da forma como ela reagiu e do sonho, Regina,
que contaste na outra Sessão. Eu acho que está
tudo relacionado. Lembro-me que te disse achar o
teu sonho óbvio: interpretei o teu medo... - posso
Regina? (pausa atenta e continuação) - de seres
violada, de um homem te violar, te fazer mal..."
Fernando - "Eu não te disse, na altura,
mas o teu sonho, Regina, acho que parece o teu
desejo de ter um pénis no grande carro militar que
tu pões no campo de guerra, com um enorme
pau..."
Regina - "Sim! É capaz de ser verdade... E
149
depois ?? (com ar despachado). A (Grupanalista) já
sabe isso muito bem! Que mal tem desejar ter
pénis ?? (Pausa) Agora, magoar ? Só por
vingança! (com raiva): Sim! Por vingança! Talvez
tenhas razão, Fernando... E tu, não gostas de ter o
teu (em tom de desafio)?"
Fernando (em tom sereno e sorrindo) -
"Eu, antes, tinha a fantasia de ter um pénis
enorme - que alternava com a terrível imagem, já
vossa conhecida, de ter um pénis pequenino e
podre. Acho que agora vou sentindo que tenho o
meu pénis de tamanho normal. O que é bom!
(Olha a Grupanalista).
Regina - "Estava a olhar para aquela taça
da (Grupanalista) e, não sei porquê, lembrei-me
da taça do Aladino, da história - já não me lembro
bem..."
É evidente, que, na
Duarte - "Não era taça nenhuma, Era uma
lembrança da Regina se
lâmpada. Quando o Aladino a esfregava, saía lá de confundiram as duas
dentro um génio..." lendas, uma em que
Regina - "É verdade! Era um génio mau e existe um génio perigoso
o Aladino tinha de ter muito cuidado para não e outra com um servo
bom e poderoso, que
tirar a tampa..."
gratifica, o que é
Sorrisos. assumido pelo grupo
como importante para a
Luísa - "O génio da lâmpada do Aladino Regina com o seu
era um génio que satisfazia desejos... Achas que sentimento de estrago.
isso era ser mau, Regina?"
Regina - (espantada e divertida) - "A sério
? Ele não era mau ?" (Fica a pensar um pouco). É
engraçado como a gente deturpa as histórias ... as
coisas ..."
Duarte - "As nossas vidas... (Em tom
sonhador): Davas-me a mão e passeavas
comigo?..."
Regina (seca e abruptamente) - "Não!"
… realce para esse senti-
Ligeira pausa. mento sempre negativo e
150
de estrago.
Grupanalista - "Tal como sente o génio que
satisfaz os desejos do Aladino como um ser
maléfico, também sente o convite imaginário do Capacidade de poder
Duarte como uma ameaça, e corta-lhe o sonho..." recuperar lembranças
boas, apesar do que
Zé Manel (em tom baixo, suave) - "...como
continua por resolver ...
se fosse proibido... (Pausa) Na minha vida, acho
que me foi permitido sonhar... A minha Mãe
ensinou-me, ou pelo menos deu-me espaço para
isso. Era muito meiga... Muito afectuosa...
Contava-me histórias (do Aladino e outras...)
Ouvia as minhas... (Pausa) É uma mulher
pequena, por fora, mas com muita força interior.
Era ela que me entendia - a revolta na minha
adolescência - e me estimulava. O meu Pai, esse
ameaçava-me com o corte da mesada. Com ele
nunca nos entendemos. O trabalho era a vida,
para ele. Era do género, quando eu me queixava
Reflexão como tentativa
ou revoltava: "Alguma vez te faltou alguma
de explicação e interro-
coisa?..." gação
Teresa - "Não entendo porque a Regina
corta o sonho. Ela deve ter tido alguém, na sua
infância, como a Mãe do Zé Manel: alguém do
mundo do sonho! Como ela fala da Mãe, de facto, é
do género: "Come o caldinho, Filha, que isso
passa" - quando ela tinha era fome de suporte e
de amor. Mas o Pai, se bem que militarão e
bota da tropa, aparece, pelo menos para mim,
como um homem diferente, mais sensível, mais
sonhador... Se não, nunca se lembraria de se
apaixonar (aos 70 anos) e recriar a vida aos
setenta anos e? E, depois, como é que teria
aparecido o lado artístico da Regina e a sua
criatividade? (Pausa) Comigo também foi um
pouco assim. A Mãe pragmática e o Pai sonhador.
Acho que foi nos braços do meu Pai que eu passeei
nos jardins do Luxemburgo em Paris... E nos seus
(para o Grupanalista). Foi com Vocês (para o
Grupo) que me apaixonei e fui feliz com o
Tomás..." (sorri, caindo-lhe lágrimas).
151
Grupanalista - "Faz bem sentir que aqui
há a possibilidade de sonhar, de imaginar, de
desejar, de deixar sair o génio do Aladino dentro
de Vós, realizando e criando novos desejos e
descobertas..."
152
153
ALGUMAS NOTAS EM FORMATO DE GLOSSÁRIO
154
dificulta a sua inscrição em linguagem proposicional. Por exemplo, um
encontro expressivo face a face caracteriza-se pela simultaneidade não
pela sequência de dois olhares.... Assim, verifica-se que o significado da
comunicação não-verbal emerge de um envolvimento directo dos
intervenientes
155
ESPELHAMENTO MÚLTIPLO
Instrumento fundamental da
Grupanálise como psicoterapia
dinâmica em que se mobilizam as
emoções mais primitivas de
pertença e de diferenciação da
identidade e se espelham na
comunicação múltipla.
A comunicação múltipla permite
uma forma de 'espelhamento', na
medida em que dá acesso à
No esquema encontram-se desenhadas
percepção das contingências entre
às próprias iniciativas de busca de as linhas de comunicação possíveis entre
confirmação pelo 'outro' e as pessoas num grupo.
respostas desse 'Outro' ao 'Eu'.
156
FORMATOS DE INTERVENÇÃO VERBAL NA ENTREVISTA
- Ecoar - 'Apalpar' e enquadrar a sensibilidade emocional.
- Re-exprimir - Reconhecer a reacção emocional e integrá-la no discurso.
(Necessita de 'chão', ou conhecimento partilhado de circunstâncias de vida
do Cliente).
- Focalizar - Conduz a um estreitamento do campo de atenção, em
direcção àquilo que é suposto ter maior relevância para a compreensão
dinâmica do Cliente. Necessita de um fundo comum de experiência
partilhada e um grau mínimo de avaliação da flexibilidade emocional do
Cliente. (Nas circunstâncias do relacionamento acima transcrito, não há
condições para qualquer focalização).
- Generalizar - Funcionando esta estratégia em sentido inverso ao da
focalização, aparece a sugestão de distanciamento da pessoa em relação à
vivência ansiosa. Segue a linha de fazer enquadramentos, que, de sua
natureza, são estruturantes, na medida em que colocam em mente ligações
abstractas com conceitos e circunstâncias gerais. Na focalização procura-se
uma aproximação das emoções no seu aspecto vivencial, e dirige-se o Cliente
no sentido de concretizar as descrições. No alargamento, pelo contrário, no
imediato, conduz-se o Cliente a afastar-se momentaneamente das emoções
directamente vividas. Na medida em que conduz a generalizações a
partir dos elementos do discurso, sai-se do que 'é só meu', para o que 'é de
todos'...)
- Interpretar - Remeter o conteúdo do acontecer para significados
implícitos da experiência. Este significado assim apontado pode considerar-
se subjacente ou pode funcionar como uma nova criação, na medida em que
comporta uma configuração nova em que os factos narrados se integram.
157
"LOCUS" DE ANSIEDADE - No discurso ou narrativa, o fenómeno
indicador do contexto conflitual em que emerge a mensagem ansiosa
encoberta.
158
PARÂMETROS - Nos anos cinquenta, os neo-freudianos definiram
restrições a respeitar no trabalho psicanalítico, quando se tratasse de
populações especiais, por exemplo, de personalidades 'pouco estruturadas'
ou de crianças, (em que o contexto de aplicação, ou seja os 'parâmetros'
introduzidos exigiam uma mudança radical da técnica).
Baseando-se no diagnostico de que não se conta nesses pacientes
com 'estruturas sólidas do Ego', era considerado que não deveriam ser
submetidos a uma análise clássica. Ao contrário do pensamento e prática de
Melanie Klein (1943), eles afirmaram que deviam ser introduzidos
critérios diferentes de actuação, adequados aos parâmetros
introduzidos sobretudo relacionados com a prática da descoberta do
inconsciente e da análise das defesas e resistências, em especial da
transferência. Assim, esses pacientes deveriam apenas aprender a
solidificar 'as defesas', para se promover a 'adaptação' à vida social e
evitar a regressão.
Daí proveio a clássica distinção entre as psicoterapias chamadas
de apoio, e as análises que deveriam ter o propósito de reestruturação
da personalidade e não da mera adaptação.
Dados os conceitos trabalhados, a reestruturação impunha que se
arriscasse a regressão ao 'nível de fixação libidinal' e, nessa base, se
promovesse a interpretação da neurose artificial resultante, designada de
'neurose de transferência'.
Esta argumentação não faz o mesmo sentido fora do seu
enquadramento histórico e tendo em conta os novos conhecimentos sobre os
mecanismos psicóticos e os desenvolvimentos atípicos nas crianças.
159
Os investigadores do desenvolvimento precoce da memória
produziram recentemente mais uma informação pertinente para a
compreensão da primitiva organização da mente (que Freud apenas pudera
deduzir de relatos dos seus pacientes adultos).
Freud falava da amnésia infantil (ou seja o esquecimento total de
quanto se passou com o indivíduo antes dos 4 a 5 anos de idade). Chamava-
lhe um fenómeno misterioso, dada a vivacidade, e a absorção omnívora que
se observa em todas as crianças saudáveis. Explicou esta falha da memória
pela repressão levada a efeito contra as energias sexuais que aderem às
recordações infantis, tornando-as, assim, inconscientes ("Três ensaios para
uma teoria da Sexualidade", 1905).
A pesquisa experimental mais recente, confirma a chamada
amnésia infantil, mas atribui-lhe outra causa, que talvez nem contradiga o
essencial da posição freudiana.
Verifica-se que o modo como a criança, antes dos três para quatro
anos, organiza as experiências na memória, difere do processo mais tardio
de memorização dos episódios da sua vida. No dizer de Josef Perner (1992),
isto acontece: "porque lhe falta uma teoria da mente" (ou seja um
entendimento do seu pensar e sentir, que lhe permita assumir a própria
experiência como sua), ao contrário do que sucede mais tarde. Assim,
embora tenha conhecimento do que ocorreu e dos eventos em que
participou (e se observe que funciona de acordo com isso), não emprega a
memória chamada 'episódica', como quem têm consciência da sequência do
suceder (E. Tulving, 1985). O conhecimento do passado é feito de elementos
dispersos e desagregados na sua mente. Pode ser produzido como
recordação, só quando correctamente enquadrado pelo seu interlocutor, de
modo a ter um rótulo mental.
Os psicoterapeutas que trabalham na análise da vida emocional de
crianças menores de três anos atestam que, no brincar, elas põem em cena
os modos como concebem a sua experiência, embora não saibam narrar
(reproduzir) os eventos que a compõem. O que é mostrado ou contado
aparece cheio de fendas, feito de elementos desagregados, ou num código
diferente da esperada narrativa de episódios da experiência. Assim, pode-se
compreender que a amnésia infantil seja suprível, quando se alcança acesso
ao código de registo vigente no período da infância precoce, revivendo então
as recordações na rede de ressonâncias emocionais.
160
RESSONÂNCIA - O espelhamento psicológico múltiplo da reacção
emocional própria e do outro.
161
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