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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE

SÍNTESES INTERPRETATIVAS NAS CIÊNCIAS SOCIAIS


consonâncias e dissonâncias entre Norbert Elias e Pierre Bourdieu1

GERHARDT, Cleyton Henrique2

Introdução
De certo modo, tanto o conjunto das obras escritas como as próprias experiências e
percursos que marcaram as trajetórias intelectuais de Norbert Elias e Pierre Bourdieu
poderiam ser abordadas como conformando uma espécie de laboratório empírico das tensões
interpretativas que, ininterruptamente, tem marcado a história das ciências sociais. De fato, os
procedimentos retóricos e práticas discursivas de ambos acham-se imersos em um campo
social caracterizado por modos de argumentação, muitas vezes, conflitantes, bem como por
uma competição endêmica entre distintas teorizações, metodologias e perspectivas heurísticas.
Por outro lado, estes autores também se preocuparam, ao longo de suas carreiras, em refletir
criticamente sobre alguns dos fundamentos (ou doxa, conforme Bourdieu) que compõem o
ambiente relativamente controverso e polêmico inerente às ciências humanas de um modo
geral.
Neste último caso, ler Elias e Bourdieu implica um convite implícito para pensar sobre
os limites de um fazer sociológico que aposta, por exemplo: em elaborações estanques que
separam, como se fossem realidades completamente dissociadas, contextos macro-sociais
(caracterizados pelas esferas institucionais mais amplas que garantiriam uma relativa coesão
social) de ambientes micro-sociais (associados à pequena política e ao espaço das interações
entre sujeitos sociais); na busca auto-excludente entre objetividades (fatos descritos de “fora”,
prontos para serem observados, coletados e que se explicariam por si mesmos) e
subjetividades (pulsões e conteúdos espirituais e anímicos de um ser-no-mundo); em
avaliações - normalmente etnocentradas - que investem na tentativa de classificar ou entender
comportamentos e práticas sociais através de esquemas herméticos do tipo racional (relação
lógica) versus irracional (relação afetiva); ou, ainda, na partição estéril entre natureza (tomada
como totalidade ontológica composta por objetos passivos a repetir um monótono movimento
circular) e culturas (vistas como a realização máxima dos únicos sujeitos ativos, conscientes,
transformadores e criativos deste processo, ou seja, nós humanos).

1
Uma primeira versão deste texto foi produzida em julho de 2003 como trabalho final destinado à avaliação da Disciplina
“Teorias Sociais” (CPDA/UFRRJ), cuja responsável havia sido Regina Bruno.
2
Agrônomo, Doutorando do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade – CPDA/UFRRJ. E-
mail: cleytong@terra.com.br.
2
Geralmente, sistemas de oposições binárias como estes tendem a funcionar como
princípios auto-evidentes de visão e de divisão lógicas, sendo usados como instrumentos de
classificação da realidade social. Já no campo da investigação sociológica propriamente dita,
tais polarizações se inserem em um contexto mais amplo normalmente identificado como
paradigma da estrutura/ação 3. Ocorre que, do mesmo modo que os pares indivíduo-
sociedade, macro-micro, racional-irracional, natureza-cultura, objetividade-subjetividade,
conceitos como estrutura e ação, embora apareçam no plano teórico como antagônicos ou
ambivalentes, subsistem como proposições categóricas as quais, por sua vez, estabelecem
inferências imediatas e correlações de significados necessários. Neste sentido, caso se aceite a
pertinência da polarização estrutura/ação (mesmo que com o intuito de negá-la ou superá-la),
a literatura sociológica achar-se-á circunscrita ao processo de indexação acima mencionado.
Além disso, as oposições acima tendem servir, também para cientistas sociais, como
referência tácita, melhor dizendo, como sistema semiótico (de significação) que direciona
nossas possibilidades cognitivas, nossa capacidade de observar, imaginar, representar,
presumir e julgar. Sendo que tais antagonismos - enquanto elementos constituidores da doxa
sociológica - direcionam, em parte, o estabelecimento de determinadas fronteiras não-
significativas, ou melhor, daquilo que não poderá ser observado, imaginado, presumido,
julgado, enfim, conhecido. Conseqüentemente, não será qualquer esquema dual que poderá
ser usado e aceito como sociologicamente pertinente.
Por outro lado, este tipo de nomeação dicotômica deriva de reflexões anteriores cuja
característica principal configura o que, em ciências sociais, se conhece como esforço de
síntese – síntese esta que, como afirma Bourdieu em Coisas Ditas (2004), poderia ser feita, ao
mesmo tempo, “com e contra” os autores com quem se pretende dialogar. Com efeito, para
além da análise, através da harmonização de significados até então dispersos, marginais ou
ocultos em áreas de investigação diferenciadas, cientista sociais buscam recompor e
reorganizar pensamentos, idéias, categorias, conceitos e/ou métodos originalmente
desenhados por outros autores ou por eles próprios no passado. Aqui, ainda que partindo de
totalidades textuais (ensaios, artigos, livros, teses ou outras publicações) escolhidas segundo
critérios e objetivos previamente estabelecidos, estes profissionais compõem outra totalidade
textual dotada de significação própria. Porém, mais do que simplesmente fazer sentido,
explicar a realidade e ser cientificamente pertinente (além de requisitos básicos como domínio
razoável sobre temas e autores tratados), estas sínteses visam - ao menos como intenção
implícita, o que não quer dizer êxito - propor olhares criativos e inovadores. Em outras
palavras, este tipo de mobilização reflexiva (em que comparação e confrontação

3
Modelo interpretativo que supõe, ainda que de uma forma relacional e fluida, a existência de estruturas sociais cristalizadas
e previamente construídas e ações coletivas/individuais contingentes ou criativas.
3
argumentativas são condições necessárias) pretende construir amálgamas semânticos que
combinem e introduzam abordagens inéditas ou até então não explicitadas de uma forma mais
sistemática.
Dito isso, a reflexão que aqui proponho desenvolver possui, ao menos como ambição e
meta, esta intenção sociológica. Evidentemente, estou ciente de que inúmeros outros trabalhos
sobre Elias e Bourdieu já foram experimentados. Porém, tentando distinguir-me destes
estudos, optei por uma abordagem comparativa que, a partir de uma leitura atenta e cuidadosa,
tentasse reunir posições e argumentos dos autores sobre determinados temas e questões
tratadas na literatura sociológica. De modo que, ao procurar contrastes, homologias e
variações, tanto dissonâncias como consonâncias entre ambos pudessem vir à tona em um
mesmo corpus interpretativo (um mesmo texto com início, meio e fim)4. Já outra opção
metodológica foi eleger Elias como referência central (como ponto de partida) e Bourdieu –
juntamente com contribuições pontuais de outros autores - como elemento problematizador
(como contraponto). Aqui, a idéia foi tentar perceber a polifonia de sentidos que surge
quando colocamos um frente ao outro, de modo que a simultaneidade de visões independentes
por eles sustentadas pudesse ser interpretada segundo uma mesma composição discursiva
unificadora.
Bourdieu, Elias e o caráter pendular das oposições sociológicas
Na década de 1980, Alexander (1987), em célebre trabalho - verdadeiro divisor de
águas nas ciências sociais -, demonstrou como, desde o surgimento e consolidação das
humanidades no campo científico, sistemas compreensivos e o tipo de leitura que cientistas
sociais estariam propondo com a finalidade de interpretar processos, fenômenos, problemas
ou fatos sociais tenderiam a seguir um movimento pendular – ora se dirigindo para um ora
para outro extremo dos pólos ideais aqui já citados5. Segundo Alexander, se, em determinados
momentos e contextos históricos, haveria uma tendência de enfatizar a autonomia original e
criativa que sujeitos sociais possuiriam frente às estruturas socialmente incorporadas no
sentido de exercerem sua plena liberdade de escolha, em outros, a ênfase dominante recairia
sobre determinações e coerções heteronômicas (fossem elas de ordem natural, geográfica,

4
No presente estudo, os termos dissonância e consonância não indicam, respectivamente, um completo antagonismo de
idéias e uma total concordância entre os autores citados. Aqui, enquanto consonante tende a transmitir estabilidade, harmonia
e uniformidade de sentidos, seu par dissonante conduz a pensar a existência de tensões, instabilidades, enfim, uma sensação
de que algo parece estar em desacordo.
5
Embora Alexander concentre seus esforços reflexivos, sobretudo, na oposição entre estrutura e ação, esta característica
poderia ser estendida para oposições fundamentais que compõem não só a doxa sociológica, mas, também, outras disciplinas
afins. Por exemplo, no campo da lingüística, a clássica dicotomia entre “língua” e “fala”; oposição esta que, em certa medida,
reproduz o par estrutura/ação em outros termos e com outras implicações, visto que, conforme Maingueneau (1997, p.21),
opõe “um sistema de regras universais [língua] à liberdade de que goza o sujeito ao produzir enunciados contingentes [fala]”.
Como fica claro, estamos também aqui diante de um sistema estrutural referenciador (a língua) que, todavia, se transforma e
passa a ser criativamente apropriado pelos sujeitos sociais através de suas ações (mesmo que a ação se dê através de simples
“atos de fala”).
4
histórica, institucional, simbólica, cultural, social ou econômica) a que estes mesmos sujeitos
estariam submetidos.
Assim, se as décadas de 1930, 1940 e 1950 teriam sido marcadas pela consolidação e
preponderância de visões mais estrutural-funcionalistas, dos anos 1960 em diante uma
acirrada concorrência acirrada passaria a se constituir a partir de propostas interpretativas
muito diferenciadas, mas que, todavia, tenderiam a levar o pêndulo para o lado oposto
(Alexander, 1987). Daí por diante, cientistas sociais afinados com correntes mais
“coletivistas” (como o funcionalismo parssoniano, o behaviorismo skinneriano e o
neomarxismo althusseriano) passariam a conviver e concorrer com existencialistas,
fenomenólogos, etnometodologistas, interacionistas simbólicos, sociolingüistas, hermeneutas,
entre outros. Sendo que todas estas perspectivas explicativas – as quais poderiam ser
identificadas como integrando o campo discursivo construído a partir da dualidade
estutura/ação -, ainda que ancoradas em bases empíricas e eventos perceptíveis ou em teorias
histórica e logicamente fundamentadas, constituíram-se como esquemas compreensivos
abstratos orientados segundo objetivos específicos, problemas de pesquisa e hipóteses
mínimas de trabalho.
Sobre esta situação, Alexander argumenta que teria sido a inclinação das diferentes
correntes interpretativas para a “unilateralidade excludente” (ou estrutura ou ação) o que teria
gerado, tanto na tradição micro como na macroteoria, contradições cada vez mais
problemáticas (Alexander, 1987). Porém, aqui descobrimos um outro modo de olhar este
movimento pendular de que nos fala Alexander: para além da hegemonização do discurso
sociológico por um dos dois pólos referenciais – os quais teriam permanecido, segundo ele,
“unilaterais” -, temos, igualmente, dois movimentos que se dividem entre síntese e análise,
fechamento e abertura, hermeticidade e fluidez, sistematização e confusão. Quer dizer,
transversalmente ao movimento das duas forças unilaterais citadas – traduzidas através de
diferentes sistemas binários – se junta um outro ligado ao grau e a intensidade dessa
“unilateralidade”. Contudo, falar em grau e intensidade unilaterais subentende a presença do
seu contrário, isto é, que também estejam atuando forças “plurilaterais” ou que tendam a
conduzir a uma “plurilateralidade”. Com efeito, se a análise sociológica teria permanecido
presa e referenciada à polarização estrutura/ação, os limites, fronteiras e marcos desta
influência sempre variaram bastante6. Exemplificando: se, em alguns contextos e momentos
históricos, parece ser possível diferenciar claramente aqueles pontos de vista (e mesmo
autores) mais “estruturalistas” de outros mais “interacionistas” - e, igualmente, identificar se

6
Aqui caberia uma provocação: a década de 1980 não poderia ser vista justamente como um momento de inflexão desta
homogeneidade unilateral na direção de uma maior heterogeneidade de perspectivas interpretativas “plurilaterais” não tão
rigidamente alinhadas com determinadas escolas, correntes e autores? Não estaríamos hoje sobre o domínio da
“plurilateraliade” ao invés da “unilateralidade”?
5
algum deles estaria dominando o campo sociológico -, em outros, esta distinção torna-se mais
complicada de ser feita, tendo em vista o caráter interdisciplinar das reflexões e
procedimentos metodológicos7.
Aqui, é possível fazer um paralelo com reflexões trazidas por Louis Pinto (2000) sobre
“os pólos da produção filosófica francesa”. Afinal, este autor constrói sua argumentação
contrapondo o distanciamento teórico-filosófico reinante naquele país durante o século XX à
permanência de um movimento constante de “convergência” entre correntes interpretativas
aparentemente muito distintas. Segundo o autor,

uma vez assinalado o contraste entre os dois pólos da filosofia francesa, é inegável que houve
intercâmbios e empréstimos. Ainda que por razões negativas, as atitudes tendiam a se aproximar em
certos pontos (...). Enfim, nota-se que filósofos tão diferentes quanto Bachelard e Merleau-Ponty
compartilhavam até certo ponto de uma forma argumentativa que hoje chamaríamos de ‘holística’
(Pinto, 2000, p.25/26)

É claro que identificar esta característica pluri/unilateral (ou, com Pinto,


diver/convergência) implica propor outro sistema binário de visão-divisão da realidade.
Contudo, esta distinção nos permite estabelecer uma homologia com outra dualidade já
bastante conhecida: unidisciplinaridade (“um lado”) e interdisciplinaridade (“vários lados”).
Sabe-se que, ao longo de sua história, as disciplinas que foram compondo as ciências sociais
mantiveram-se sempre tensionadas por esta divisão epistemológica. Tomado por este ângulo,
nada garantiria que, estabelecido um determinado padrão de unilateralidade empiricamente
identificável (na forma de escolas, correntes, disciplinas e autores), este mesmo padrão se
perpetuasse indefinidamente. Quer dizer, devido à ação intrínseca de forças plurilaterais ou
convergentes atuando no sentido de desafiar fronteiras disciplinares, a percepção de
unilateralidade poderia vir a ser relativizada ao ponto de não mais ser relevante em termos
explicativos.
Ora, como não poderia deixar de ser, imersos neste movimento-contexto pendular -
entre análise (esforço de separação, segregação, decomposição e distinção) e síntese (esforço
de reunião, fusão, composição e aproximação) –, iremos encontrar Norbert Elias e Pierre
Bourdieu. E, como se tentará mostrar daqui para frente, ambos, ao se inserirem por dentro
desta plurilateralidade e convergência (abrindo, portanto, algumas “caixas-pretas”
disciplinares), terminaram, também eles, construindo suas próprias unilateralidades e

7
Um indício ou mesmo efeito desta situação pode ser percebido através da facilidade ou, ao contrário, da dificuldade de
pesquisadores se identificarem como “antropólogos”, “sociólogos”, “historiadores”, “economistas”, “lingüistas” ou
“psicólogos”. Quer dizer, se uns se reconhecem plenamente numa destas categorias disciplinares (reafirmando, assim, uma
identidade profissional específica), já outros têm sérias dificuldades de nelas se encaixar. Neste caso, um artifício recorrente
tem sido a adoção da expressão “multidisciplinar” em seus currículos, o que pode ser comprovado com uma simples consulta
à plataforma lattes. Além disso, não é incomum, no caso de cientistas sociais já consagrados que transitam por várias áreas
do conhecimento, que a identificação seja feita através de um termo guarda-chuva tão amplo como a de “filósofo”; expressão
que, por mais que indique um modo específico de olhar o mundo, adquire significados bem abrangentes em determinados
ambientes e situações.
6
divergências. Quer dizer, seus esforços teórico-metodológicos visando tentar quebrar o
monopólio de saberes polarizados entre isto ou aquilo (entre estrutura ou ação, sociedade ou
indivíduo e assim por diante) acabaram, paradoxalmente, disponibilizando outros parâmetros
sociológicos distintivos.
Sociedade ou indivíduos - sociedade e indivíduos
Entre tantas oposições já clássicas das ciências sociais Elias destaca uma em especial:
a dicotomia sociedade/indivíduos. Provocado pela ambigüidade de significados que marca o
uso destes conceitos também em contextos tidos como mais intelectualizados, Elias, ao longo
de sua trajetória acadêmica, retoma esta temática. Aqui, é fundamental a obra A sociedade dos
indivíduos (Elias, 1994)8. Neste trabalho, Elias chama à atenção de que muitos cientistas
sociais usam estas expressões como se representassem dois objetos-lugares concretos,
distintos, duas totalidades irreconciliáveis, antagônicas e que só seriam compreendidas se
vistas separadamente:

servimo-nos de conceitos diferentes para falar dos indivíduos e das pessoas reunidas em grupos. No
primeiro caso, dizemos que um fenômeno é individual; no segundo, social. Atualmente esses dois
conceitos, ‘individual’ e ‘social’, exibem conotações que sugerem que estejam sendo usados para
apontar não apenas diferenças, mas uma antítese (Elias, 1994, p.129).

Em síntese, Elias sustenta que, se tanto sociedade como indivíduos podem ser
adotados visando explicar e perceber fenômenos sociais, esta distinção implica uma operação
que tende a naturalizá-los como se dissessem respeito a realidades completamente
dissociadas. Neste sentido, argumenta que, do ponto de vista sociológico, sociedade e
indivíduos precisariam ser vistos relacionalmente. Embora não aprofunde tanto a questão da
forma como operacionalizar metodologicamente este caráter relacional, ele insiste para que
não lhes seja conferido significados contrários excludentes, mas, sim, que se procure somar
suas capacidades explicativas aproveitando, justamente, a ampliação de sentidos (portanto, do
espaço hermenêutico) da própria oposição9.
De outra parte, as considerações de Elias sobre esta questão – algumas delas feitas já
nos anos 1930 - não estão muito distantes daquela característica pendular e paradoxal
identificada por Alexander (1987). Ora, quando o primeiro analisa o caráter problemático da
relação entre identidade-eu e identidade-nós (Elias, 1994, especialmente a Parte III), ele está

8
Este texto se divide em três partes escritas e reescritas pelo autor em épocas diferentes (respectivamente, 1939, final da
década de 1940 e 1983). Quem sabe um pouco por isso, A sociedade dos indivíduos possua, sobretudo nas duas primeiras
partes, trechos que se sobrepõem, inclusive, com frases e parágrafos repetidos literalmente (porém, esta afirmação precisaria
ser considerada com certo cuidado, visto que, por limitações minhas, se baseia na leitura da tradução brasileira e não na
versão original alemã).
9
Eis aqui a razão do título deste item. Lingüisticamente, a expressão ou, enquanto operador argumentativo, reforça, em um
contexto sintático particular, a idéia de conceitos e argumentos alternativos os quais levariam a conclusões auto-excludentes.
Já a expressão e não exclui a possibilidade de que haja uma soma operada a partir da justaposição destes mesmos conceitos,
argumentos e conclusões. Neste último caso, em um determinado trecho discursivo, o efeito conotativo conduz o leitor não a
uma idéia de incompatibilidade, mas de intercâmbio, complementaridade e compartilhamento ampliados (Koch, 2004, p.33 e
35).
7
chamando a atenção para os riscos (epistemológicos, teóricos, interpretativos e
metodológicos) que um crescente distanciamento compreensivo a respeito destas duas formas
de reconhecimento - de si (eu, indivíduo, sujeito da ação) e do outro (eles, sociedade,
estrutura, ordem invisível) - poderiam acarretar10. Elias argumenta que individualidades e
identidades coletivas só se afirmariam (enquanto agentes ou grupos singulares)
relacionalmente, isto é, a partir do estabelecimento de trocas (simbólicas, afetivas, materiais,
etc.) com outras individualidades e identidades coletivas (outros eu’s). Porém, se, por um
lado, aquilo a que chamamos sociedade constitui-se a partir do conjunto de interações
desiguais e assimétricas resultantes deste inter-relacionamento - destas interações -, por outro,
suas fronteiras e o modo como elas se realizam e se concretizam no cotidiano acham-se
vinculadas, sincronicamente, com determinados padrões sociais internos já estruturados
(portanto, como aparece de forma recorrente nos trabalhos de Bourdieu, funcionando como
referências anteriores socialmente já incorporadas na forma de habitus11). E, embora tais
padrões sejam dinâmicos – ou seja, uma dada organização social muda com o tempo -, eles se
objetivam no presente através de procedimentos e ações sociais específicas.
Caso concordarmos com a possibilidade destes dois pontos de vista (sobre ação
individual/coletiva e estrutura/organização social) serem integrados em um mesmo corpus
interpretativo, não bastaria apenas circunscrever um conjunto de “atores” como fazendo parte
de um “coletivo” com identidade própria ou, ao contrário, que este coletivo ganharia forma
através da atuação individual de seus “protagonistas”. Mais do que isso, seria necessário
internalizar – enquanto prática sociológica – a relação intrínseca e simultânea entre, de um
lado, (inter)ações contingentes compartilhadas e realizadas por e entre sujeitos sociais
criativos que pensam o mundo vivido, os outros e a si mesmos (os indivíduos) e, de outro, um
relativo condicionamento destas mesmas (inter)ações segundo padrões mínimos de conduta
orientados no sentido de garantir a coesão social de um grupo de pessoas (uma sociedade).
Porém, como tanto a não aceitação quanto a aceitação (tácita ou explícita, parcial ou
total) deste condicionamento são passíveis de ocorrer, isso implica a possibilidade de que
situações envolvendo algum tipo de conflitualidade venham à tona, ou seja, de que conflitos
sociais sejam deflagrados. Por outro lado, também a não adesão a determinado tipo de
conduta, norma, regra, lei ou, simplesmente, a não concordância com o estado das coisas
como elas nos aparecem em um determinado momento poderia ser vista como parte do

10
Embora se possa objetar que uma sociedade incluiria o eu (ou seja, seria possível pensar em um nós, sociedade), Amorim,
baseando-se em Benveniste (1993), descreve como o artifício de se usar a primeira pessoa do plural “não designa vários eu, e
sim, (...) uma predominância do eu em nós (...). É impossível uma pluralização. O que se tem é um efeito de dilatação do
lugar que se estende para além da pessoa estrita” (Amorim, 2004, p.99). Em síntese, a autora demonstra como, sempre por
detrás de um nós, iremos encontrar um eu, um único enunciador, sendo que, “quando digo nós, das duas uma: ou o ouvinte
privilegia a mim como principal enunciador ou ele fica na dúvida a respeito de quem de nós na verdade está dizendo o que
digo” (Amorim, 2004, p.100).
11
Mais adiante voltarei a analisar como este conceito aparece em Elias e Bourdieu.
8
próprio processo de estruturação, isto é, aquilo que alguns chamaram de resistência e outros
de anomia constituiriam, igualmente, elementos estruturantes. O que significa dizer que a
relativa autonomia crítica que possuímos dentro de um grupo social não pode ser vista apenas
como elemento desagregador, mas, também, como parte de um constante processo reflexivo
socialmente partilhado.
Primeiras consonâncias: conceitos sociológicos e categorias nativas
Admitindo a tese de Alexander (1987) sobre o caráter pendular das ciências sociais,
parece razoável deduzir que não teria sido possível a Elias escapar ao ambiente polarizado
gerado em torno da oposição estrutura/ação. Do mesmo modo, ele teria se defrontado com o
surgimento e consolidação de correntes interpretativas relativamente “unilaterais”. Contudo,
quando constatamos que a preocupação intelectual de Elias sobre a aplicação analítica dos
conceitos de indivíduo e sociedade foi desenvolvida a partir de um ponto de vista, ao mesmo
tempo, crítico e aglutinador, eis que o autor surge como parte das forças “plurilaterais”
participantes deste processo. Mais do que isso, esta atitude também convergente (apesar de
crítica) permite identificar uma primeira consonância com preocupações teóricas presentes em
Pierre Bourdieu.
Não importando se com sucesso ou não (uma falsa questão), tal como Elias se
interessa pela busca de sínteses e análises que não coisifiquem sociedade e indivíduos,
Bourdieu, por sua vez, empenha-se em resolver o divórcio entre estrutura e ação. Ora,
quando Medeiros (1992, p.35) propõe que, no caso de Bourdieu, “o fundamento de sua
proposta é o esforço de articular dialeticamente o ator social e a estrutura social, rompendo
com a tendência a privilegiar as substâncias em detrimento das relações” (grifo meu), esta
afirmação poderia perfeitamente servir para caracterizar a perspectiva sustentada por Elias em
A Sociedade dos Indivíduos. De fato, embora a dualidade preferida seja distinta
(sociedade/indivíduos ao invés de estrutura/ação), a pretensão bourdiniana identificada pela
autora se aproxima de Elias quando este afirma que

a crença no poder ilimitado de indivíduos isolados sobre o curso da história constitui um raciocínio
veleitário. Não menos destituída de realismo, contudo, é a crença inversa, segundo a qual todas as
pessoas têm igual importância para o curso da história, sendo assim intercambiáveis, não passando o
indivíduo de um veículo passivo da máquina social (Elias, 1994, p.51).

Ao denunciar este tipo de dicotomia, Elias critica compreensões sociológicas então


bastante disseminadas como, por exemplo, aquela silenciosa e recorrente anuência de que a
adoção de perspectivas mais individualistas implicaria marginalizar ou excluir da análise
questões relacionadas às estruturas econômicas, sociais e políticas mais amplas ou, ao
contrário, de que análises estruturais suporiam o desaparecimento ou a invisibilização dos
sujeitos que nela e por ela transitam. Assim, também adotando uma postura provocativa, Elias
9
se aproxima das aspirações bourdinianas ao levantar questões problemáticas – do ponto de
vista das controvérsias sociológicas - relacionadas à forma como sociólogos vinham até então
tratando (ou, às vezes, não tratando) as ambigüidades inerentes ao uso de esquemas
compreensivos bipolares.
Esta característica é recorrente em A sociedade dos indivíduos. Vejamos um exemplo.
Já no primeiro parágrafo desta obra o autor, embora concordando de antemão que hoje,
“quando uma pessoa diz ‘sociedade’ e a outra escuta, elas se entendem sem dificuldade”, logo
a seguir indaga provocativamente: “mas será que realmente nos entendemos?” (Elias, 1994,
p.63). Em princípio, o tom irônico deste questionamento parece direcionado para uma
interação cotidiana qualquer. Entretanto, como outras indagações aparentemente inocentes, se
consideramos a pergunta como questão pertinente para entender as interações que ocorrem
entre cientistas sociais, levando ao limite a dúvida que ela coloca, seu efeito desnaturalizante
atinge também o universo discursivo destes. Afinal, este tipo de pergunta pode colocar em
suspeição a confiança depositada por cientistas sociais em conceitos que lhes servem de
instrumento de análise.
De certo modo, considerar seriamente a questão acima implica por em dúvida aquilo
que, segundo Giddens (1990), garantiria aos cientistas sociais uma relativa “segurança
ontológica”. Embora Giddens esteja se referindo à outro tipo de “segurança” – por exemplo,
aquela “confiança” rotineira que depositamos nos sistemas peritos (os quais, geralmente,
tomam a forma de “competência profissional”) ou no funcionamento de uma infinidade de
artefatos tecnológicos com os quais temos que lidar todo o dia -, não é difícil perceber que,
também no caso de cientistas sociais, estes precisam, ainda que provisoriamente, “confiar”
(portanto, acreditar, levar fé) em certos pressupostos, conceitos e categorias caso desejem
expressar idéias e argumentos coerentes em seus textos e, conseqüentemente, “explicar”
fenômenos sociais. Ainda que relativizem estes mesmo pressupostos, conceitos e categorias –
o que ocorre quando um autor situa o leitor sobre os limites e o alcance do seu trabalho -,
pragmaticamente, é preciso que eles, ao menos, se calem ou não considerem por algum tempo
algumas de suas dúvidas. A despeito desta relativização prévia, porém, como os argumentos
precisam ser apresentados com um mínimo de positividade, o autor necessitará construir suas
interpretações a partir de práticas discursivas que lhe garantam alguma segurança e controle
heurísticos. Dito diretamente, cientistas sociais também precisam, em alguma medida e por
algum tempo, confiar naquilo que (ou, no mínimo, não questionar o que) escrevem ao menos
enquanto estão escrevendo.
Obviamente que, no plano do senso-comum, sociedade e indivíduos, por exemplo,
compõe, ao mesmo tempo, um universo de sentidos operatórios normalmente definidos como
vagos, imprecisos e generalizantes. Funcionam, portanto, como sistemas referenciadores,
10
possibilidades associativas que informam interações cotidianas social e historicamente
partilhadas. Porém, ainda que façam parte deste senso-comum comum, sociedade e indivíduo
e outras categorias ambivalentes semelhantes são usadas (mesmo que na forma de conceitos)
também por cientistas sociais12. Assim, ao indagar, com Elias, sobre incertezas e dificuldades
sociológicas provenientes da operacionalização destes conceitos-categorias ambivalentes
quando postos em relação ou, ainda, ao colocar em dúvida sua pertinência semântica
(desconfiança contida na frase: “será que realmente nos entendemos?”), nos dois casos somos
provocados a buscar os pressupostos subjacentes ao seu uso analítico.
Paradoxalmente, esta postura crítica põe em xeque uma das características distintivas
entre ciências sociais (e, de certa forma, ciências em geral) e senso-comum13. Ora, quando
cientistas sociais pretendem adotar sociedade e indivíduos com a intenção de explicar e
compreender fenômenos sociais sui generis, não haveria aí embutido um uso semelhante ao
uso cotidiano? Reconhecer a peculiaridade deles “servirem” (terem finalidade) para alguma
coisa (“explicar”, “compreender” ou “interpretar” fenômenos sociais), não significaria aceitar
o fato deste ser um uso instrumental qualitativamente não muito diferente do seu uso comum,
ainda que circunscrito a um ambiente hermético particular14? Além de serem conceitos
sociológicos, sociedade, indivíduos, estrutura, ação, objetividade, subjetividade etc. não
integrariam aquilo que um antropólogo talvez chamasse de categorias nativas adotadas por
cientistas sociais? Isso não subentenderia a existência, também entre estes especialistas, de
um relativo senso-comum douto vinculado ao cotidiano das práticas sociológicas que, por sua
vez, permitiriam o uso destas mesmas categorias nativas? Ora, caso as respostas sejam
afirmativas, conceitos-categorias que compõem oposições do tipo sociedade/indivíduos e
estrutura/ação possuiriam um caráter não só analítico, mas, igualmente, operatório dentro
deste campo de produção de conhecimento.
No caso de Elias, uma saída encontrada para a ambivalência existente no par
sociedade e indivíduos será optar, em A Sociedade dos Indivíduos, pela historicização crítica e
radical a seu respeito. Isso o leva a problematizar as conseqüências do seu uso ao demonstrar
como os significados aí envolvidos não são dados desde sempre. Nas suas palavras,

12
Situação diferente do par estrutura/ação, pois, ao contrário da oposição indivíduo-sociedade, que migra do mundo
mundano para o mundo das ciências sociais, ele surge por dentro do próprio campo discursivo destas últimas.
13
De fato, quando Elias indaga “será que realmente nos entendemos?”, não deixa explícito a que “nós” está se referindo, ou
seja, quem são aqueles que pretendem se “entender”? Amigos conversando em uma mesa de bar ou sociólogos discutindo em
uma mesa redonda de um congresso de sociologia?
14
Sobre este tema, Iñiguez (2004, p.51), baseando-se nos etnometodologistas, sustenta que todo ser humano seria, também,
um “sociólogo na prática. Ou seja, uma pessoa que é capaz não só de atuar em seu contexto social, como também de
descrever, falar e construir a realidade (...)”. Da mesma forma, ao resgatar o que ficou conhecido como “giro lingüístico”
ocorrido durante a década de 1960 no campo da lingüística, este mesmo autor argumenta que teria havido uma relativa
“deslegitimação da construção das linguagens formais como sendo a melhor maneira de relatar a realidade, atribuindo essa
função à linguagem cotidiana (...). [Afinal,] as pessoas que se dedicam a fazer ciências utilizam a linguagem da mesma
maneira que as não cientistas” (Iñiguez, 2004, p.56).
11
esses termos têm uma função particular nas sociedades em que seu emprego é aceito como dado. Assim
como outros conceitos, eles têm um caráter instrumental (...). É necessário um considerável esforço de
desprendimento dos pressupostos que se tenha para se reconhecer que há sociedades (...) em que
conceitos como ‘individual’ e ‘social’, em seu atual sentido, não existem ou não existiram (...). Ao
rastrear sua origem, descobrimos que tais conceitos comumente emergem de maneira muito curiosa dos
meios lingüísticos colocados à distância de uma sociedade (Elias, 1994, p.129).

Ao se perguntar sobre a própria origem do par em questão, Elias investiga como estes
conceitos-categorias foram se tornando, ao longo do tempo, expressões relativamente
consensuadas através de um uso funcional direcionado segundo certas finalidades (implícitas
ou explícitas). Da mesma forma, ao partir de questões basilares, ele nos conta
minuciosamente como sociedade e indivíduos foram aglutinando um conjunto de lugares-
comuns e ganhando, com isso, sentidos pertinentes, auto-evidentes, verdadeiros.
Esta opção historicizadora de Elias permite identificar outra consonância com
proposições bourdinianas. Isto, porque este último aposta em um caminho argumentativo
baseado no que chama de sociologia reflexiva (Bourdieu, 1989, especialmente capítulo 2), um
tipo de abordagem crítica alicerçada na historicização das condições que levam a uma relativa
invisibilidade de verdades consensuadas tanto na forma de pensamentos e ações incorporadas,
como, também, através de leis, instituições, mercadorias, tecnologias e símbolos tomados
como irredutíveis. Assim, Bourdieu, como Elias em A Sociedade dos Indivíduos, propõe que

é na história, e só nela, que devemos buscar o princípio da independência relativa da razão perante a
história da qual ela é produto; ou, mais precisamente, na lógica propriamente histórica, mas
absolutamente específica, segundo a qual se instituíram os universos de exceção em que a história
singular da razão se consuma (Bourdieu, 1998a, p.93).

Contudo, para que esta pretensão possa ser levada a cabo, o pesquisador precisaria
incorporar a sua prática sociológica um modus operandi caracterizado por um aguçado
espírito crítico em relação a toda e qualquer premissa (mesmo o mais consolidado e
inquestionável axioma científico). Como afirma Bourdieu em Coisas Ditas (2004, p.54), “a
proliferação de heresias é, em minha opinião, um progresso em direção à cientificidade”.
Segundo este procedimento, qualquer fundamento sociológico poderia ser considerado, de
antemão, como “suspeito”, portanto, cujo caráter arbitrário seria passível de ser
exaustivamente historicizado e colocado à mostra. Neste caso, tanto as leituras históricas
dominantes (a “Grande História”) como as várias interpretações históricas concorrentes (a
“pequena história”), bem como qualquer conceito, categoria ou saber instrumentalizado
poderia ser colocado, mais do que em questão, como questão sociológica. Assim, ao
questionar reflexivamente os sentidos de um passado presentificado na forma de pensamentos
e ações socialmente incorporadas, estaríamos a um passo de colocar em dúvida aquilo que nos
aparece como algo evidente, visto que “a contribuição de um pesquisador consiste, em mais
de um caso, em atrair a atenção para um problema, para alguma coisa que não era vista
12
porque evidente de mais, clara demais, porque, como dizemos em francês, ‘saltava aos
olhos’” (Bourdieu, 2002, p.57).
Já em Meditações Pascalinas (1999a), Bourdieu reforça a necessidade de um
constante exercício de estranhamento e retomada crítica sobre praticamente tudo aquilo que,
tendo já sido pensado, produzido ou executado, se objetiva no presente como algo
cognitivamente percebível. Porém, esta reflexão precisaria ser feita, sobretudo, sobre a própria
prática sociológica do pesquisador, de modo que esse exercício permitisse a ele se liberar, em
parte, do nomos ao qual está submetido quando atua no campo científico15. Segundo explica
Bourdieu em Coisas Ditas (2004), esta atitude reflexiva aproximaria o sociólogo de papéis
historicamente exercidos pela filosofia, visto que, além de eleger o fazer científico como
objeto, se propõe a investigar seus próprios fundamentos e o que estaria a ele subjacente16.
Embora esta atitude filosófica esteja presente, sobretudo, em Bourdieu - pois Elias não vai tão
fundo na crítica ao fazer e ao pensar do homo academicus -, ela permanece presente em
ambos, o que significa, implicitamente, uma pretensão de reencontrar o que há de humano nas
teorias e práticas sociológicas.
Traçando especificidades elidianas
Sobre o modo como Elias analisa processos históricos, vejamos inicialmente a
pequena – mas significativa - “advertência” dos editores da versão lusitana de A Sociedade de
Corte:

rejeitando Weber, Marx e Freud, mas consciente dessas problemáticas a que também é sensível, Elias
(...) procura pensar as relações entre as várias cadeias de processos históricos que o neopositivismo
isolou em discursos separados (história política, história social, história econômica, história cultural) e
considera essas relações como um tema central da própria história, que transformam cada época num
todo indissociável (Elias, 1987, p.12).

Segundo as afirmações acima, se, de fato, Elias teria buscado romper com aqueles que
o precederam ou viveram seu próprio tempo (“rejeitando-os”), ele também teria se
preocupado (teria sido “sensível”) em perceber as continuidades que os uniria. Esta
duplicidade fica evidente quando nos deparamos com algumas passagens de Elias em A

15
Para Bourdieu, nomos configuraria uma espécie de constituição, leis fundamentais segundo as quais o debate, o conflito e
as lutas podem se formar dentro de um campo social específico. Como conseqüência, sob pena de não serem sequer ouvidos
pelos demais, os agentes estão continuamente sendo chamados a movimentarem-se conforme certas regras tácitas e questões
previamente definidas.
16
Uma crítica a este ceticismo bourdiniano extremo é que ele, ao construir suas reflexões críticas, também precisa contar
com um mínimo de ferramentas analíticas e categorias anteriores. Ora, da mesma forma que Levi-Strauss (1997, p.274)
criticava a distinção, proposta por Sartre, entre “razão analítica” como uma suposta falsa razão e "razão dialética” como
sendo uma razão verdadeira, argumentando que a “crítica da razão dialética” escrita por este último seria o “resultado do
exercício, pelo autor, de sua própria razão analítica [visto que] ele define, distingue, classifica e opõe”, poderíamos
argumentar que a perspectiva crítica bourdiniana também precisaria partir de alguma “substância”. Afinal, as noções usadas
por ele - como nomos, habitus, doxa, ilusio e capital social - não funcionariam, igualmente, como fundamentos cristalizados
e previamente construídos? Ou seria possível uma crítica a conceitos e princípios históricos sem que uma nova história
estivesse simultaneamente sendo inventada a partir de fundamentos usados justamente com o intuito de desnaturalizar estes
conceitos e princípios?
13
Sociedade de Corte, como quando este analisa aquilo que Weber denomina por “antigo
regime europeu dos séculos XVII e XVIII”:

na sua autópsia do antigo regime, Weber começa por analisar a administração. Por conseqüência, é
sempre o problema da administração e do modo de governo nos diferentes sistemas de funcionariato
que lhe ocultam a vista da corte. Assim, dá-nos informações muito rigorosas e por vezes esclarecedoras
sobre a estrutura do governo e da sociedade de corte; mas a ‘corte’ não figura entre os tipos de
socialização que expressamente refere. O que interessa hoje em dia aos investigadores que estudam a
‘corte’ enquanto fenômeno social é um aspecto particular: o luxo, fenômeno importante e por si mesmo
característico (Elias, 1987, p.16).

Além da crítica explícita à perspectiva weberiana, há uma clara inflexão analítica que
migra das esferas econômico-produtivas, das teorias sobre o Estado e da ênfase nos modos de
organização burocrático-administrativa para o âmbito da cultura, mais especificamente, para o
mundo do cotidiano17. Neste caso, Elias se preocupa em reconstruir o ambiente (ou a
ambiência) diferenciado que teria marcado o dia-a-dia de pessoas que viveram uma
determinada época, ampliando assim seu interesse para toda e qualquer forma de expressão
que envolvesse relações e produções humanas (como é o caso da importância do luxo e da
opulência - sobretudo material - para a aristocracia na sociedade de corte). Já quando analisa
as possibilidades e níveis de interação entre indivíduos hierarquicamente diferenciados, Elias
descreve comportamentos sociais e suas implicações concretas na vida das pessoas. Não é à
toa, portanto, a importância que adquirem eventos, fatos e formas de organização social até
então tidos como secundários e/ou dependentes de outras esferas mais “determinantes”18,
pois, “ao percorrer, nesta óptica, o espaço doméstico (...) do antigo regime, toma-se
igualmente consciência da natureza da teia de relações em que estavam envolvidos” os
agentes (Elias, 1987, p.28).
Embora percorrendo caminhos distintos, aqui surge outra consonância entre Elias e
Bourdieu: ambos rompem com um tipo de historiador que, como diz Hannah Arendt,

contemplando retrospectivamente o processo histórico, habituou-se tanto a descobrir um significado


‘objetivo’, independente dos alvos e da consciência dos atores, que ele é propenso a menosprezar o que
efetivamente aconteceu em sua busca por discernir alguma tendência objetiva. Ele menosprezará, por
exemplo, as características particulares da ditadura totalitária de Stalin em favor da industrialização do
império soviético ou dos alvos nacionalistas da política russa tradicional (Arendt, 1968, p.124).

17
Uma crítica direta as abordagens que enfatizam aspectos econômicos, burocráticos e/ou nacionais aparece nesta outra parte
de A Sociedade de Corte (Elias, 1987, p.16): “às organizações econômicas do tempo das cortes régias chama-lhes então a
época do mercantilismo. Mas também encara do ponto de vista estatal e designa então por período absolutista. Se estuda o
período pelo ângulo do modo de governo e de administração, fala dele então como do patrimonialismo. Ao passo que se é
capaz de caracterizar a estrutura de uma simples etnia enquanto formação social autônoma, fazendo-se abstração de gostos e
preferências pessoais, esta atitude de recuo é infinitamente mais rara quando se trata de apreciar as estruturas sociais
qualificadas de ´históricas´”.
18
Como no caso das discussões sobre a primazia ou não da “infra-estrutura” (base econômica das forças produtivas e
relações de produção) sobre a “superestrutura” (e suas instâncias políticas, jurídicas, ideológicas e culturais).
14
No caso de Elias, este busca trazer à tona o que Arendt chama de “características
particulares”, o que pode ser visto novamente em A Sociedade de Corte quando o autor
descreve como e porque, nos séculos XVII e XVIII, os quartos e cômodos das residências dos
cortesãos eram distribuídos seguindo o modelo das habitações da realeza e, se possível, do rei.
Além disso, o cotidiano apresentado mostra a força de habitus historicamente incorporados, o
que fica evidente nas minuciosas análises sobre os “significados do habitat” nas sociedades de
corte19. Por outro lado, Elias se preocupa em verificar como parte destes habitus - enquanto
modos de agir considerados “civilizados” - foram herdados e, embora transfigurados,
permanecessem vivos enquanto representações sociais positivadas. Nas suas palavras:

a sociedade aristocrática de corte representa uma figura central dessa fase histórica que foi suplantada,
ao cabo de lutas encarniçadas, de maneira brutal ou lenta, pelo período de burguesia-profissional-
urbana-industrial. Sobreviveu e manteve-se na vida social e cultural dessa mesma burguesia, em parte
como herança, em parte como imagem invertida da sociedade de corte. Demonstrando as engrenagens
da sociedade de corte, a última grande formação não burguesa do Ocidente, podemos aceder mais
facilmente à compreensão da nossa própria sociedade (Elias, 1987, p.17).

Esta aposta em descrições que lembram Foucault e suas “genealogias” – e que Elias
denomina de “sociogêneses” - aparece em vários de seus trabalhos. Por exemplo: quando trata
das normas de etiqueta e prestígio em A Sociedade de Corte (1987); quando fala sobre a
importância da fofoca e do estigma em Os Outsiders e os Estabelecidos (2000); ou quando,
em O Processo Civilizador (1990 e 1993), analisa a desvalorização social de costumes
aparentemente banais (como assoar o nariz, defecar, escarrar e comer com as “mãos sujas”)
em favor condutas hoje consideradas socialmente “mais civilizadas”.
Contudo, esta “sociogênese” aparece com todo seu vigor em Mozart: Sociologia de
um Gênio (1995). Apesar de ser uma obra inacabada devido à morte do autor, a trajetória
social de Mozart é transformada em um verdadeiro laboratório investigativo onde Elias aplica,
empiricamente, todo seu referencial teórico-metodológico. Lá estão presentes a importância
do estigma funcional (gerado pela sociedade de corte de modo a criar uma imagem
inicialmente positiva e, depois, negativa sobre a personalidade de Mozart); da fofoca (usada
como arma tanto qualificadora quanto desqualificadora do seu trabalho e da sua pessoa); do
prestígio (ou da falta dele, pois Elias demonstra como era pequena a capacidade – o capital
simbólico - de Mozart e de seu pai influenciarem os “estabelecidos” da corte); e, finalmente,
das relações sociedade-indivíduos focalizadas, ao mesmo tempo, na dependência de uma
situação social específica (a existência de uma hierarquia nas cortes reais), na influência dos

19
Não confundir habitat com habitus. O primeiro indica, para Elias, tão somente o modo como os cortesãos organizavam sua
vida cotidiana. Já quando ao conceito de habitus, voltarei a ele mais à frente. No entanto, adianto que, numa perspectiva
elidiana, subjetividades inerentes a indivíduos tomados separadamente, por mais que os tornem singulares em relação aos
demais, se efetivam através de habitus, uma “composição social” que lhes é, ao mesmo tempo, anterior (pois nascemos em
um mundo pré-construído) e socialmente partilhada (por exemplo, através de laços invisíveis que nos unem através do
trabalho, propriedade, instituições, afetos, etc.) (Elias, 1994).
15
mecanismos de socialização (em que a figura do pai é a chave) e na “autonomia relativa”
contida nas capacidades performático-subjetivas de Mozart (as quais Elias chama de
“fantasias inovadoras” ou “fluxo-fantasia”).
Chegando às dissonâncias: Elias, um “evolucionista”?
Bourdieu, distanciando-se de Elias, se preocupa mais com a própria disputa pela
“verdade” que um exercício historicizador pode trazer à tona (uma disputa pelo monopólio
discursivo sobre a história) e não tanto sobre os “fatos históricos” disponíveis ou sobre
possíveis leituras alternativas (ressignificantes) destes fatos. Para que este empreendimento se
realize, irá buscar, a partir de suas experiências etnográficas junto à sociedade Cabila (uma
região no norte da África que, segundo ele, “permaneceu relativamente à margem de
reinterpretações semi-eruditas”), elementos comparativos para pensar a própria cultura
ocidental da qual participa como agente ativo (Bourdieu, 1999). Através deste procedimento -
posto prática, por exemplo, em A Dominação Masculina (1999) - Bourdieu tenta fugir às
pressuposições que todo herdeiro de uma tradição cultural – neste caso, a européia - traz já
incorporado nele mesmo. Assim, ao buscar, na alteridade alheia, uma forma de desvendar o
mundo em que se vive, Bourdieu visa não

correr o risco de sincronizar artificialmente estágios sucessivos e diferentes do sistema e, sobretudo, de


conferir um mesmo estatuto epistemológico a textos que submeteram o antigo fundo mítico-cultural a
diversas reelaborações. O interprete que pretenda agir como etnógrafo arrisca-se, assim, a tratar como
informantes ‘ingênuos’ autores que já estavam agindo também como (quase) etnógrafos e cujas
evocações mitológicas, mesmo as aparentemente mais arcaicas, como as de Homero ou Hesíduo, são já
mitos elaborados, que implicam omissões, deformações e reinterpretações (Bourdieu, 1999, p.15).

Em síntese, Bourdieu, ao contrário de Elias, desconfia dos próprios informantes que


pretendem contar ou reconstruir um passado. Ninguém está a salvo, Heródoto, Homero ou
qualquer um que tenha registrado, contado ou interpretado a história ocidental “de dentro”.
Por mais próximo ou distante que se busque estar dos “grandes homens” ou, ao contrário, das
“pessoas cinzas normais” (Belchior, 1976)20, aqueles que aí procuram suas “fontes” estarão,
para Bourdieu, sob suspeita. Ora, esta postura bourdiniana, tomada como parâmetro distintivo
(nosso contraponto), distancia-se bastante da adotada por Elias, afastamento este que fica
ainda mais claro em O Processo Civilizador (Elias, 1993, vol.2). Aqui, para descrever o
surgimento da “civilização ocidental”, Elias usa categorias dos próprios “civilizados
ocidentais”, ou seja, o ponto de vista baseia-se em formas de conduta da própria sociedade
européia à época em que o autor escreve. Procedimento este que, como vimos, Bourdieu
critica em A Dominação Masculina ao olhar para a construção da sexualidade ocidental a

20
Expressão esta contida na conhecida canção Alucinação (Alucinação, 1976), em que este compositor fala de “um preto/ um
pobre/ um estudante/ uma mulher (sozinha); blue jeans e motocicletas/ pessoas cinzas normais/ garotas dentro da noite/
revólver/ cheira a cachorro/ os humilhados do parque/ com os seus jornais”.
16
partir do contraste, das diferenças e das semelhanças com a sociedade Cabilla. Além disso, no
caso de Elias, o uso da própria expressão processo civilizador carrega um viés etnocêntrico,
visto que o termo “civilizado”, como parte do imaginário social contemporâneo, tende a
acionar seu par “incivilizado”, qualificativo cuja representação dominante remete a um
mundo negativizado ou, como denunciou Clastres (1979), a culturas “primitivas” incompletas
(pois lhes faltaria alguma coisa, como escrita, Estado, etc.).
Já em outro momento, Elias pretende

mostrar como modos de conduta que, nos séculos X, XI, XII, eram característicos da maior parte da
classe alta podiam ser encontrados entre estranhos isolados, graças a condições de vida semelhantes.
Continuava a prevalecer em seu meio [entre os estranhos isolados e a maior parte da classe alta] um
baixo grau de controle das pulsões (Elias, 1993, p.71) [grifo meu].

Aqui, Elias quer entender porque “características da classe alta” podiam ser achadas
“entre estranhos isolados” (ou seja, porque modos de conduta desta “classe alta” seriam
parecidos com os dos “estranhos isolados”), o que, por si só, já subentende uma distinção: na
“classe alta” não haveriam “estranhos isolados” e vice-versa. Além disso, há um sinal claro de
movimento numa direção, afinal, a questão não é encontrar uma explicação sobre porque
características dos “estranhos isolados” podiam ser encontradas na “classe alta”, mas o
contrário. Ora, por inferência, Elias dá a entender que, após os “séculos X, XI, XII”, estes
“modos de conduta” semelhantes entre grupos sociais distintos não mais poderiam ser
encontrados (idéia reforçada na frase seguinte pelo uso do verbo e do tempo verbal
“continuava a prevalecer”21). Ademais, quando Elias sugere que a maior parte da “classe alta”
se comportaria como “estranhos isolados” porque todos eles possuiriam “condições de vida
semelhantes”, não haveria aí embutido um determinismo social, na medida em que
“condições de vida semelhantes” estariam determinando semelhança dos “modos de
conduta”?
Por fim, a afirmação do autor sobre a existência de um pretenso maior “controle das
pulsões” derivado do processo civilizador é, no mínimo, controvertida. Afinal, se
determinadas pulsões poderiam ser futuramente “controladas”, outras mais (cognitivamente
não disponíveis ou não auto-reconhecidas) não continuariam a ser inventadas sem que os
“civilizados” se dessem conta disso? O id (a representação mental dos instintos e das pulsões
tidas como “incivilizadas”) não permaneceria, em qualquer organização social, por mais
“civilizada” que ela fosse, não sendo totalmente acessível e controlado pelo ego (a
consciência em geral) ou pelo superego (os códigos morais socialmente impostos)? Sobre o
caráter não controlável das pulsões humanas e sobre a inversão de sentido contida na idéia de

21
Apesar de Elias não fazer uso do termo “ainda” (advérbio que sugere uma passagem de estado, de algo que deixa de ser o
que é para ser outra coisa), o leitor fica tentado a incluí-lo antes de “continuava”.
17
aumento do “controle das pulsões”, Ribeiro (apud Elias, 1990, p.12), prefaciador de O
Processo Civilizador, alerta:

a evidência aparente não parece ter confirmado Elias no vetor que, supunha ele, continuaria orientando
a evolução (uma palavra que ele usa, e hoje desperta bastante crítica) dos costumes humanos. Afinal,
atualmente se privilegia mais a franqueza, mais o desnudamento que o recato externo, não apenas no
plano físico como no psíquico. (...) A própria psicanálise representaria, com o papel dado à vida sexual
no tratamento, um dos exemplos de como apostamos na revelação de nossos afetos mais secretos com a
esperança de assim encontrarmos uma vida melhor, ou uma cura (Ribeiro apud Elias, 1990, p.12).

Porém, parte da riqueza do pensamento de Elias está justamente nas ambigüidades que
permeiam suas elaborações propositivas, como nesta outra passagem de O Processo
Civilizador:

não fui orientado neste estudo pela idéia de que nosso modo civilizado de comportamento é o mais
avançado de todos os humanamente possíveis, nem pela opinião de que a ‘civilização’ é a pior forma de
vida e que está condenada ao desaparecimento. Tudo o que se pode dizer é que, com a civilização
gradual, surge certo número de dificuldades específicas civilizacionais. Mas não podemos dizer que já
compreendemos por que concretamente nos atormentamos desta maneira. Sentimos que nos metemos,
através da civilização, em certos emaranhados desconhecidos de povos menos civilizados. Mas sabemos
também que esses povos menos civilizados são, por seu lado, atormentados por dificuldades e medos
dos quais não mais sofremos (...) (Elias, 1990, p.19) [grifos meus].

Ora, logo após reconhecer que não é o “nosso modo ‘civilizado’ o mais avançado de
todos os humanamente possíveis” – relativizando assim o conceito de civilização como algo
necessariamente “melhor”, pois “com a civilização gradual, surge certo número de
dificuldades específicas civilizacionais” -, Elias continua qualificando os demais povos
segundo o parâmetro dado justamente pelo conceito que ele busca relativizar, afinal, se
existem “povos menos civilizados”, estes tendem a servir como parâmetro para avaliar os
“povos mais civilizados”.
Se “civilização” não seria sinônimo de comportamentos necessariamente “positivos”,
ela é vista com algo que virá de forma “gradual”. Este tipo de valoração fica explícito na
afirmação: “esses povos menos civilizados são, por seu lado, atormentados por dificuldades e
medos dos quais não mais sofremos”. Ora, ao dizer “não mais sofremos”, está implícita a
idéia de que “um dia sofremos”, sendo que o outro subentendido na expressão “mais
civilizado” remete a existência dos “menos civilizados” que, por diversas razões, ainda não
teriam chegado a este “estágio”. Enfim, como não seríamos mais “atormentados por
dificuldades e medos” dos “povos menos civilizados” (subentendendo que um dia fomos
atormentados, isto é, um dia também fomos iguais a eles, mas agora “não sofremos mais”),
teríamos “gradualmente” passado por este “estágio civilizatório” (outra expressão recorrente
em Elias).
18
Aproximando Elias de seu Mozart
Mesmo que de uma forma enfraquecida devido à crítica às teorias herdadas das
correntes naturalistas e positivistas do final do século XIX, o período em que Elias escreve
(anos 1930, 1940 e 1950) continua ainda fortemente marcado pela noção ideológica de
progresso enquanto uma melhoria e de evolução como um movimento contínuo e sem volta.
E, dentro deste contexto (no qual às ciências sociais se acham incluídas), parece fazer sentido
a frase do prefaciador de O Processo Civilizador: “Elias acreditava no progresso” (Ribeiro
apud Elias, 1993, p.11). Do mesmo modo, entende-se às “advertências” dos editores de A
Sociedade de Corte:

Editar em livro de Norbert Elias em 1987 pela primeira vez em português pode levar o leitor,
designadamente o leitor jovem, a cair no erro de o tomar por uma obra contemporânea da nova história
e não pela obra precursora que de facto é. (...) Este atraso na publicação da sua obra poderia levar o
leitor a ler N. Elias retirando-o do seu contexto geracional e cultural (...) e a não ponderar devidamente
a pujança e a originalidade das suas propostas metodológicas e temáticas (Elias, 1987, p.12)22.

Segundo estes autores, Elias não saiu ileso do convívio com concepções que
associavam, quase que automaticamente, termos como progresso, evolução, crescimento e
desenvolvimento à existência de “mais civilização”. Por outro lado, como vimos com
Alexander, a década 1960 marca um momento de inflexão para a análise social, sendo que as
controvérsias desencadeadas a partir daí irão se acirrar bastante no caso das ciências sociais.
Assim, se, de um lado, Elias não pôde fugir totalmente às influências de tradições
neoevolucionistas e neopositivistas, de outro, viveu também este ambiente interpretativo ao
mesmo tempo tenso e criativo. Embora estivesse preso às limitações de alguém que escreve
entre 1930 e 1960 - período que concentra a maior parte da sua produção intelectual -, há em
seus trabalhos uma luta constante por ultrapassar os condicionamentos históricos aos quais ele
se achava submetido. Em certa medida, Elias aproxima-se de seu objeto de análise em
Mozart: sociologia de um gênio. Se Mozart teria levado às últimas conseqüências o uso do
método de composição e das estruturas harmônicas vigentes na sociedade de corte, sem,
contudo, romper completamente com a forma básica de fazer música da época (que ficou
conhecida como classicismo), Elias, por seu lado, ao abordar temas vistos como secundários
ou esquecidos da maioria dos analistas sociais, avança sinais teórico-metodológicos e extrai o
máximo possível da capacidade inovadora destes sem, porém, deixar de ser uma pessoa que
vive um determinado “contexto geracional e cultural”.
Vejamos, mais uma vez, o texto A sociedade dos indivíduos. Aqui, parte da força do
pensamento do autor reside justamente nas contradições e ambigüidades existentes nas suas

22
Na orelha da edição brasileira de O Processo Civilizador (1990), é sugerido que, apesar da primeira edição de A Sociedade
de Corte ter sido publicada em 1969, “certas notas de rodapé indicam que este livro também tenha sido elaborado na década
de 1930”.
19
análises sobre transformações globais e as relações entre grupos e indivíduos, sobretudo, tudo
o se refere ao poder de decisão destes e às esferas de controle social (como o Estado e suas
instâncias decisórias). Na terceira parte desta obra, Elias, visando debater os processos de
integração e desintegração (econômica, política e sociocultural) dos últimos 50 anos, enfatiza
os seguintes fatores: transformações tecnológicas, diminuição das distâncias espaciais e
temporais que separam indivíduos (redefinindo significados de espaço e tempo) e aumento da
densidade populacional global. Aqui, a análise recai sobre dois níveis: interações entre
indivíduos e relações entre nações e entre blocos de nações, os quais são apresentados
comparativamente com outras formas de organização social (como tribos seminômades e, até
mesmo, “homens das cavernas”):

Podemos ter uma imagem mais clara dessa ligação entre o desenvolvimento de tipos mais e mais
populosos e complexos de unidades sociais, de um lado, e as crescentes oportunidades de
individualização, de outro, ao compararmos o estágio atual e mais recente do desenvolvimento da
humanidade – sua divisão em cerca de 150 Estados e a crescente integração deles numa rede envolvente
de interdependência - com um estágio anterior, em que a humanidade consistia num número maior de
unidades menores (Elias, 1994, p.140).

Em primeiro lugar, Elias não apresenta uma definição precisa do que seriam “unidades
sociais”. Se se referem aos Estados-Nação ou aglomerados destes, assim defini-las subtrai o
fato de que, nos últimos 30 a 40 anos, uma multiplicidade de “identidades de resistência”
(Castells, 1999), novas “tribos urbanas”, organizações nacionalistas e regionalistas, grupos
étnicos e religiosos e uma série de “novos movimentos sociais” (movimento feminista,
pacifista, ecológico, contra o racismo, antiglobalização, etc.) surgiram no cenário mundial.
Como se sabe, grupos sociais como estes têm contribuído para relativizar a idéia de Estado-
Nação como unidade social fundamental. Além disso, a implosão dos sistemas baseados em
famílias extensas, ampliadas ou patriarcais e a concomitante expansão do número de unidades
familiares menores (pai-mãe-filhos), por exemplo, não significaria que o número de “unidades
sociais” estaria aumentando e não diminuindo, como parece supor Elias. Em segundo lugar, o
autor reforça a imagem clássica de uma história contada em etapas (em “estágios”), sugerindo
uma linearidade temporal a qual permitiria diagnosticar um “estagio atual mais recente do
desenvolvimento da humanidade”. Além do etnocentrismo já discutido no item anterior, a
idéia de “estágios” ajuda a encobrir as descontinuidades e transfigurações existentes nos
processos históricos, o que pode ilustrado através de uma frase escrita um pouco antes da
citação acima: “sem dúvida, a transição para a integração da humanidade num plano global
ainda se acha num estágio primitivo. Mas as formas primitivas de um novo ethos mundial e
especialmente a ampliação da identificação entre pessoa e pessoa já são claramente
discerníveis” (Elias, 1994, p.139). Ocorre que o autor possui uma veia euclidiana que não
20
pode ser deixada de lado. Assim, logo após reforçar a idéia de uma evolução humana linear,
Elias afirma no parágrafo seguinte:

(...) a vida comunitária das pessoas de outrora. Reconheço que, em geral, não nos identificamos com
essas pessoas. Expressões como ‘homens das cavernas’, ‘homem da Idade da Pedra’, ‘primitivos’,
‘selvagens’ ou ‘selvagens nus’ indicam a distância que involuntariamente colocamos entre nós e essas
outras pessoas e o desprezo nada irrelevante com que tendemos a olhar para trás, do alto de nossos
conhecimentos mais abrangentes e do domínio que eles nos conferem sobre a maioria dos
representantes que nos restaram desses estágios anteriores. Não há razão para essa distância e esse
desprezo senão o egoísmo um tanto irrefletido que eles revelam (Elias, 1994, p.140-141).

Como se vê, as ambigüidades presentes nas três últimas citações mostram a


complexidade do pensamento de um autor como Elias. Já em Introdução a Sociologia, texto
da década de 1930, Elias tenta escapar à tradicional distinção epistêmica entre sujeito do
conhecimento e objeto deste mesmo conhecimento:

É difícil fugir ao sentimento de estarmos a encarar seres humanos como se fossem meros objetos,
separados de nós por um fosso intransponível. (...) os instrumentos convencionais com que pensamos e
falamos são geralmente construídos como se tudo aquilo que experienciássemos como externo ao
indivíduo fosse uma coisa, um objeto e, pior ainda, um objeto estático (Elias, 1970, p.13).

Além da crítica implícita à idéia de “fato social” tal como Durkheim o formulou23,
Elias propõe o rompimento com a forma clássica que cientistas sociais vinham estudando
fenômenos sociais, ou seja, como se fosse algo totalmente “externo ao indivíduo”, “uma
coisa, um objeto e, pior ainda, um objeto estático”. Ora, sabe-se que, nos últimos 50 anos,
uma das questões-chave para muitos cientistas sociais relaciona-se justamente às implicações
metodológicas de se abordar interações e vínculos estabelecidos entre um sujeito que se
propõem a conhecer estes mesmos fenômenos sociais e os próprios sujeitos que os
protagonizam. Neste sentido, Elias mostra-se à frente de seu tempo quando, ao colocar esta
questão já na década de 1930, percebe os desdobramentos problemáticos que
correspondências simplistas com as ciências naturais, por exemplo, poderiam acarretar. De
fato, poucas vezes veremos Elias fazer analogias, muito comuns em Durkheim, com conceitos
importados da biologia, da física e da geografia24.
Contudo, ao qualificar as ciências sociais, Elias precisará dizer, por contraste, a quais
pressupostos e fundamentos está se contrapondo, marcando assim uma diferenciação
qualitativa entre ciências que estudam as relações humanas e demais ciências. Ocorre que, no
caso das ciências humanas, lidar com esta distinção ou mesmo propor a própria distinção
implica reconhecer a existência de um pólo dominante em termos de legitimidade científica,

23
Segundo Durkheim (2002, p.19), dever-se-ia entender os “os fenômenos sociais como exteriores ao indivíduo. (...) os fatos
sociais devem ser tratados como coisas. Não dizemos que os fatos sociais sejam coisas materiais, mas sim que são coisas, tal
como os materiais, embora de outra maneira” (Durkheim, 2002, p.16).
24
Para Durkheim (2002, p.18), o sociólogo “deve, ao penetrar no mundo social, ter consciência de que penetra no
desconhecido; deve sentir-se em presença de fatos cujas leis são tão desconhecidas como eram as da vida antes da biologia se
ter constituído”.
21
visto que elas se encontram permanentemente sendo pressionadas por um outro marco
epistemológico - hegemônico no campo científico - que separa sujeito do conhecimento
(observador) e objeto do conhecimento (fenômeno observado) 25. Assim, se, como diz
Alexander (1987, p.6), “somos obrigados a concluir que a estratégia de identificar a ciência
social com uma ciência natural interpretativa está fadada ao fracasso”, continuamos sempre
definindo a primeira em relação à segunda. Como ilustra a pretensão de Elias, para que sejam
reconhecidas e obtenham legitimação, as ciências sociais continuam adotando, ainda que
como padrão distintivo, os pressupostos de uma ciência já previamente estabelecida. Visto
que o imaginário e os referenciais científicos dominantes continuam muito fixados nas
ciências da natureza, cientistas sociais, como é o caso de Elias, acabam tendo que se reportar a
elas, ainda que para criticá-las ou negá-las.
Ainda sobre o “contexto geracional e cultural” em que se acha incluído Elias, esta
inserção pode ser visualizada através de suas influências weberianas. Mesmo que
dissonâncias existam entre ambos26, muitas afinidades podem ser identificadas. Elias, por
exemplo, resgata de Weber às intersubjetividades que, apesar de socialmente condicionadas,
abrem espaço para o contingente, o inesperado e o imponderável. Da mesma forma, a
aproximação entre eles pode ser vista em A Sociedade de Corte quando Elias faz uso das
formas weberianas de dominação (patriarcal e patrimonial) tal como foram pensadas em
Economia e Sociedade (Weber, 1999, 2 vol.) para ressaltar tanto as raízes da sociedade de
corte como sua estrutura organizacional:

A ‘corte’ do antigo regime é um derivado altamente especializado da forma de governo patriarcal cujo
germe ‘se situa na autoridade de um senhor no seio de uma comunidade doméstica’. A autoridade dos
reis enquanto senhores da sua corte tem o seu correspondente no caráter patrimonial do Estado
absolutista cujo órgão central é a ‘casa do rei’ no sentido amplo do termo, ou seja, a ‘corte’. (...) É neste
sentido que é possível definir, de início, a corte como o ‘órgão representativo’ das estruturas sociais do
antigo regime (Elias, 1987, p.20).

Aqui, Elias se aproxima novamente de seu Mozart na medida em que ambos estão “a
procura de novas sínteses entre as várias escolas de seu tempo” (Elias, 1995, p.81). Para além
de simples teorizações abstratas, acima temos um exemplo concreto de como o autor

25
Necessidade que não se aplica às ciências naturais, pois seu reconhecimento enquanto saber autorizado reside em um a
priori auto-referenciador. Aliás, esta característica distintiva, mas subalterna, das ciências humanas no campo científico é o
que permite a Foucault, em As Palavras e as Coisas (1999), colocar em questão a própria consistência epistemológica de
uma “Ciência Humana” moderna: “A primeira coisa a constatar é que as ciências humanas não receberam por herança um
certo domínio já delineado, dimensionado talvez em seu conjunto, mas não-desbravado, e que elas teriam por tarefa elaborar
com conceitos enfim científicos e métodos positivos; o século XVII não lhes transmitiu, sob o nome de homem ou de
natureza humana, um espaço circunscrito externamente, mas ainda vazio, que elas tivessem, em seguida, a tarefa de cobrir e
analisar. O campo epistemológico que percorrem as ciências não foi prescrito de antemão: nenhuma filosofia, nenhuma
opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que fosse (...)” (Foucault, 1999, p.476).
26
Como a passagem de A Sociedade dos Indivíduos (Elias, 1994, p.136) em que o autor, buscando entender as complexas
redefinições, no tempo e no espaço, da relação entre indivíduo e sociedade, parte da premissa de que os “indivíduos não estão
correndo por aí isolados ou em grupos soltos, como são retratados em algumas teorias sociológicas mais antigas, inclusive na
teoria da ação de Max Weber”.
22
consegue, ao apropriar-se de conceitos e conhecimentos produzidos por outros pensadores,
fazer uso e, ao mesmo tempo, dar nova força explicativa para formulações anteriormente
construídas27.
Voltando às consonâncias
Esta apropriação de conceitos usados por outros pensadores constitui mais uma ponte
entre Elias e a sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu. No primeiro capítulo de O poder
simbólico, cuja estrutura argumentativa gira em torno da desconstrução, de um lado, das
tradições individualistas e psicologizantes e, de outro, das correntes funcional-estruturalistas,
Bourdieu pretende escapar à polarização estrutura/ação através de uma nova síntese. Já Elias
tenta solucionar a dicotomia sociedade/indivíduos ao criticar noções aparentemente auto-
excludentes como “livre-arbítrio” e “determinação” (Elias, 1995). Se Elias se aproxima de
perspectivas interacionistas28 e do que ficou conhecido como “estudos de comunidade”,
Bourdieu aprofunda suas críticas às perspectivas estruturalistas de autores como Louis
Althusser e Lévi Strauss. Embora influências teóricas, retórica discursiva, interlocutores e
temas abordados difiram bastante, em termos de instrumentos metodológicos, de categorias
explicativas e de conceitos empiricamente aplicáveis, esta lacuna rapidamente se desfaz. Já no
início de A Sociedade de Corte, Elias (1994) indaga sobre as cortes dos príncipes europeus
dos séculos XVII e XVIII:

Qual era a estrutura do contexto social no seio do qual pôde surgir esta formação? Em conseqüência de
que partilha de oportunidades da sociedade, de que relações de dependência, puderam homens e
mulheres reunir-se, durante gerações sucessivas, sob o signo dessa formação social da corte, da
sociedade de corte?” (Elias, 1987, p. 13).

“Estrutura do contexto social”, “partilha de oportunidades” e, ainda, “relações de


dependência”. Aqui é possível identificar uma aproximação conceitual entre ambos. Por um
lado, a síntese entre “estrutura” e “contexto” sociais de que fala Elias poderia, perfeitamente,
remeter à noção bourdiana de campo, “entendido como um conjunto de relações de que se
retira o essencial das suas propriedades” (Bourdieu, 1989, p.27). Por outro, contempla aquilo
que Bourdieu chama de lógica ao mesmo tempo estruturada e estruturante dos sistemas de
classificação e dos modos de pensamento socialmente construídos. Ainda que Elias enfatize
mais às interações específicas estabelecidas entre agentes socialmente diferenciados - não
privilegiando macro-processos e condicionantes econômicos e/ou institucionais -, este autor
27
No caso de Mozart, esta capacidade de sintetizar idéias a partir de trabalhos realizados por seus antecessores ou mesmo
compositores contemporâneos tem sido vista como uma de suas principais características.
28
Elias dá algumas pistas sobre esta inclinação, como nesta passagem, bem a lá Goffman, em que ele faz referência aos dois
grupos sociais construídos em Os Outsiders e os Estabelecidos: “o drama todo foi encenado pelos dois lados como se eles
fossem marionetes” (Elias, 2000, p.50) e, ainda, nesta alusão aos estudos de comunidades: “quem julgar apropriado também
poderá chamar esses grupos de ‘comunidades’. A palavra em si não tem muita importância. O que importa é reconhecer que
os tipos de interdependência, estruturas e funções encontrados nos grupos residenciais de famílias que constroem lares com
um certo grau de permanência suscitam problemas próprios, e que o esclarecimento desses problemas é central para a
compreensão do caráter específico da comunidade como comunidade” (Elias, 2000, p.166).
23
está, como Bourdieu, interessado nos poderes assimetricamente distribuídos na relação entre
estes mesmos agentes. Portanto, ambos analisam diferentes formas de dominação. Se
Bourdieu fala em dominados e dominantes, Elias fala em outsiders e estabelecidos, sendo que
os dois concordam que os dois pólos destas dicotomias não deveriam ser pensados como
substâncias ou entidades isoladas, mas como relativas e relacionais. Quando do seu estudo
realizado em Wiston Parva (2000), Elias se aproxima muito das análises empreendidas por
Bourdieu no que se refere ao fato de ser imprescindível ao investigador o contato empírico
com o objeto e os agentes sociais analisados. Assim, os dois apostam na reflexão sobre
realidades sociais específicas e concretas (Bourdieu estudando a sociedade Cabila e Elias
mergulhando em Winston Parva) onde se pode, “aplicando estas experiências para outras
configurações mais complexas, observá-la como um microcosmo social” (Elias, 2000, p.21).
Outra consonância reside na utilização da idéia da auto-representação e auto-
identificação que os próprios agentes sociais constroem de si e sobre os outros. Se Elias
mostra que os estabelecidos montam uma imagem a respeito de si e dos outsiders (e vice-
versa) carregada de relações de dominação e de poder, Bourdieu aponta que dominantes e
dominados estão, a todo instante, reproduzindo representações uns dos outros imiscuídas por
lutas simbólicas em que está em jogo a afirmação de visões de mundo conflitantes. Quando
Bourdieu, em A Economia das Trocas Lingüísticas (1998b), demonstra como os dominados
no campo literário constroem uma forma de se comunicar baseada nas referências dominantes
da língua instituída, ele está indo numa direção próxima da idéia elidiana de que “os de fora”
acabam incorporando uma auto-representação atribuída “pelos de dentro”. Nas palavras deste
autor, os outsiders (os dominados),

depois de algum tempo, pareciam aceitar, com uma espécie de resignação e perplexidade, a idéia de
pertencerem a um grupo de menor virtude e respeitabilidade (...). Assim, nessa pequena comunidade,
deparava-se com o que parece ser uma constante universal em qualquer figuração de estabelecidos-
outsiders: o grupo estabelecido atribuía a seus membros características humanas superiores; excluía
todos os membros do outro grupo do contato social não profissional com seus próprios membros (Elias,
2000, p.20),

Bourdieu aborda um tipo de relação semelhante em A Dominação Masculina (1999)


ao mostrar que, enquanto as mulheres devem se referir a si mesmas tendo como parâmetro seu
outro masculino, a forma de designar estes últimos surge como algo “neutro”. Sendo que esta
mesma característica aparece na discussão sobre região em O Poder Simbólico (1989) quando
Bourdieu demonstra que o discurso regionalista tem em vista dar a conhecer e fazer
reconhecer a sua região contra a definição dominante que, todavia, a ignora como tal. Mas as
consonâncias não param por aí, se estendendo também ao tratamento dado às “estratégias” de
ação de agentes e grupos sociais. Por exemplo, ao que Elias chama de “sociodinâmica da
estigmatização” (Elias, 2000, p.23) - em que a fofoca, a afetividade e o estigma são usados
24
como armas de preservação de identidades e posições discursivas -, Bourdieu enfatiza o poder
simbólico exercido através da aquisição de maior “capital social”. Ao pensar este conceito tal
como o idealizou Bourdieu - ou seja, como relações sociais que aumentam a habilidade de um
agente ou grupo para atingir seus interesses e onde se dá ênfase aos conflitos e funções de
poder -, verifica-se que não se está muito longe de perspectivas elidianas:

o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último e,
com isso, enfraquecê-lo e desarma-lo (...). Tão logo diminuem as disparidades de força ou, em outras
palavras, a desigualdade do equilíbrio de poder, os antigos grupos outsiders, por sua vez, tendem a
retaliar. Apelam para a contra-estigmatização (Elias, 2002, p.24).

A correspondência com a idéia de “estratégia” de Bourdieu surge quando este pensa


na ação dos agentes, visto que, segundo ele, “as posições sociais e a divisão de recursos
econômicos, culturais e sociais são legitimadas em geral com a ajuda de capital simbólico.
Quer dizer, nesta perspectiva, capital social se torna um recurso dentro das lutas sociais que
são travadas em arenas sociais (ou ‘campos’) diferentes” (Bourdieu, 1980 apud Gerhardt
2002, p.52). Já no caso de Wistom Parva, se poderia dizer que os estabelecidos possuíam
maior capital social (ou, conforme Elias, maior “oportunidades e poder”) conferido pela forte
coesão existente dentro deste grupo, já que “os recém-chegados eram desconhecidos não
apenas dos residentes, mas também entre eles; não tinham coesão, e, por isso, não conseguiam
cerrar fileiras para revidar” (Elias, 2002, p.22). Já um olhar bourdiniano diria que esta maior
coesão - este sentido de grupo dado pelo convívio mútuo dos estabelecidos (os dominantes) –
encontrar-se-ia incorporanda nos seus corpos e mentes conformando assim um determinado
habitus. E aqui a idéia de habitus se confunde, ou seja, a idéia dos autores sobre este conceito
é basicamente a mesma, visto que o caráter incorporado e reificado que os agentes vão
forjando através de suas trajetórias sociais (Bourdieu, 1989) se encaixa perfeitamente com a
idéia de uma “composição social”, uma “estrutura social da personalidade” que é, ao mesmo
tempo, anterior e socialmente partilhada (Elias, 1994)29.
Por fim, uma última consonância envolvendo “autonomia relativa” e “campo de
possibilidades” que agentes dispõe para interferir em um determinado contexto ou situação.
Se, para Bourdieu (1998a, p.88),

os poderes que se exercem nos diferentes campos (nomeadamente naqueles onde está em jogo uma
espécie particular de capital cultural, como o campo médico ou o campo jurídico) podem, sem qualquer
dúvida, ser opressivos sob um certo aspecto, e na ordem que é sua, de molde, portanto, suscitar
legítimas resistências, mas dispõem de uma ‘autonomia relativa’ em relação aos poderes políticos e
econômicos, oferecendo no mesmo lance a possibilidade de uma liberdade em relação a eles.

29
Diz-se, muitas vezes, que algumas idéias e conceitos bourdinianos (como a noção de habitus) foram
anteriormente pensados por Elias e que, portanto, o primeiro seria devedor do segundo. Porém, tentei sempre
evitar entrar nesta discussão, pois entendo ser este um tema um tanto vazio e fora de lugar.
25
Também para Elias
a visão de que um indivíduo pode tornar-se totalmente independente da opinião do ‘nós e, nesse sentido,
ser absolutamente autônomo, é tão enganosa quanto a visão inversa, que reza que sua autonomia pode
desaparecer por completo numa coletividade. (...) o autocontrole individual e a opinião grupal estão
articulados entre si (Elias, 2002, p.41-42).

Quer dizer, se há uma “partilha de oportunidades” entre estes agentes, ela ocorrerá
segundo as “relações de dependência” existentes. Se as relações de força entre diferentes
posições sociais sugerem uma “interdependência”, tais relações estão inscritas num “campo
de possibilidades” (Elias, 1994) ou, para Bourdieu, segundo uma “autonomia relativa”
(1998a). Esta “autonomia”, no caso de Bourdieu, condiciona-se a existência de pontos de
vista socialmente instituídos e reconhecidos como legítimos pelos participantes do jogo
discursivo em questão, implicando uma verdadeira crença pré-reflexiva na própria autonomia
(Bourdieu, 1998a). Aqui, tanto as figurações, para Elias, quanto os campos, para Bourdieu,
sugerem um “equilíbrio instável de poder, com as tensões que lhe são inerentes” (Elias, 2002,
p.23). Se, para Elias, o que está em jogo é o “monopólio dos meios de orientação e das fontes
de poder e de controle das forças invisíveis como um instrumento de dominação e uma arma”
(Elias, 2002, p.47), da mesma forma, para Bourdieu (1998a), a disputa gira em torno “do
monopólio pela definição legítima dos pontos de vista que carregam os agentes envolvidos”.

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