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Trombo lia: um mal silencioso

Laboratório de JO
Jun 19, 2017 · 11 min read

Por Ana Silano e Bruna Heloísa, alunas do 1° JOB

Uma doença sem sinais claros de serem identificados e com consequências graves para
seus portadores: essa é a trombofilia. Infelizmente, as mulheres grávidas são o grupo
de maior risco e com mais perdas. A trombofilia impede que essas mulheres terminem
sua gravidez, caso não façam o tratamento necessário, colocando em riso a vida das
grávidas e causando abortos de repetição.

Na reportagem abordaremos o tema, explicando a doença, suas causas e tratamentos,


traremos o depoimento de mães vítimas da trombofilia e a visão médica sobre o
assunto.

Um perigo na gravidez

S er mãe através da gestação é um sonho entre muitas mulheres, mas nem sempre
o caminho é fácil. Uma complicação recorrente é o aborto espontâneo, que pode
ter inúmeras causas — e uma delas é a trombofilia. Por ser uma doença silenciosa, nem
sempre é colocada como suspeita, o que atrasa o diagnóstico. Apesar de não ter cura,
existe tratamento eficaz que pode, inclusive, ser feito durante a gravidez.

Em 9 de janeiro de 2017, foi aprovada uma lei no município de São Paulo dizendo que
o exame de verificação da trombofilia deve estar disponibilizado no Sistema Único de
Saúde (SUS) tanto para mulheres gestantes quanto para as que tomam
anticoncepcional de estrogênio, como a pílula. Esse exame é feito basicamente através
da coleta de uma pequena amostra de sangue, dizendo se a mulher tem uma
predisposição genética ou não para desenvolver essa patologia. O doutor Marcos Arêas
Marques, membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Angiologia e de
Cirurgia Vascular, revela que os médicos costumam pedir esse exame para mulheres
que têm um histórico familiar e/ou que já desenvolveram coágulo antes. Por ser um
exame de alto custo, sua realização tem alto controle. Após a realização do exame, caso
haja a confirmação, o médico responsável prescreverá um anticoagulante para a
paciente, na maior parte dos casos. Mas é necessária muita atenção durante o uso
deste, pois trata-se de um medicamento de uso controlado, que se utilizado em
medidas inadequadas pode afinar o sangue de tal maneira a apenas prejudicar ainda
mais a situação da mulher.

O que é a trombofilia?

A trombofilia é uma predisposição ao aumento da coagulação sanguínea, que pode


levar à formação de coágulos que impedem a circulação, entupindo vasos de sangue do
corpo. Esse quadro de bloqueio dos vasos é conhecido como trombose e coloca em
risco a saúde da mãe e a vida do bebê. A doença é classificada como hereditária ou
adquirida — portanto, mesmo mulheres que não têm histórico de trombose na família
estão sujeitas a terem trombofilia. Sem diagnóstico ou tratamento a trombofilia pode
levar a algumas complicações na gravidez: pré-eclâmpsia e eclâmpsia, aumento da
pressão arterial, crescimento intrauterino restrito, aborto espontâneo e morte súbita
do bebê no útero. É por isso que seu diagnóstico é tão importante e deve ser feito com o
máximo de antecedência possível, para garantir uma boa gestação e evitar, por
exemplo, abortos de repetição — quadro em que a mulher sofre três ou mais abortos
espontâneos seguidos sem causa aparente.

O diagnóstico é feito através de exames laboratoriais e estudo do histórico da paciente.


Depois, se inicia o tratamento, que, dependendo da situação pode variar. Em todos os
casos, o ele busca impedir a formação de coágulos. A profilaxia mais comum é feita
com injeções diárias, que podem ser aplicadas pela própria paciente, desde que
devidamente orientada pelo médico. Com tratamento adequado e acompanhamento
médico, a gravidez pode prosseguir sem problemas. Em casos de trombofilia durante a
gravidez, o ele pode se estender até o pós-parto. A paciente deve seguir as orientações
médicas. Seja com a mesma medicação ou com uma nova, o tratamento não deve ser
interrompido por conta própria, já que uma interrupção põe em risco a vida da
paciente. Caso não seja tratada, pode levar tanto o bebê quanto a mãe à morte,
dependendo do quadro clínico e o quanto a trombofilia afeta o organismo da gestante,
além de que ela pode estar propensa a ter um AVC (Acidente Vascular Cerebral) em
qualquer momento de sua vida. Além disso, pode provocar trombose venal profunda
(TVP), retardo do crescimento fetal, aborto espontâneo sem explicação aparente,
nascimento prematuro do bebê (menos de 34 semanas), pré-eclâmpsia grave e
descolamento da placenta.
Reprodução da imagem 1: ww.closetdare.jornaldaparaiba.com.br/wp-
content/uploads/2016/06/trombo lia.jpg

A Síndrome do Anticorpo Antifosfolipídeo, ou síndrome de Hughes, é uma doença


crônica em que o indivíduo passa a produzir anticorpos que afetam o processo de
coagulação sanguínea, levando à trombose. É um tipo de trombofilia que pode ser
adquirida em homens e mulheres de qualquer idade. Entre as suas consequências, está
o aborto espontâneo. Os sintomas dessa síndrome variam desde manchas esparsas na
pele que aumentam no frio (livedo), tromboflebite (oclusão de vasos sanguíneos
superficiais), insuficiência cardíaca, micro-trombose disseminada (trombos de vasos
de pequeno calibre por todo o organismo) até outras formas mais graves de doença. A
trombose venosa profunda é, na maioria dos centros, a consequência mais comum da
SAF. Ela pode ser evitada não realizando os fatores de risco, como fumar, alimentação
desequilibrada, falta de exercícios físicos, não controle dos níveis elevados de
colesterol e triglicerídeos, o uso de hormônios (estrógenos, na maioria) e certas
drogas, como a clorpromazina, utilizada em alguns medicamentos de tarja preta. A
SAF é conhecida por ser a trombofilia adquirida de tipo mas comum.
Reprodução: www.saúde.culturamix.com.br

Uma ferramenta que pode ser ultilizada para ativar uma melhor circulação dos fluidos
pelo corpo é a drenagem linfática, mas precisa ser realizada da maneira correta sem
seguir um ponto fora da risca. Caso seja feita de maneira equivocada, as consequências
podem ser graves e dolorosas em quem recebeu a drenagem. Em casos de trombose a
drenagem pode colocar a vida do paciente em risco, visto que pode ajudar os trombos a
se deslocarem pelo organismo. Por possuir uma estrutura sólida e de consistência
mole, esse fragmento pode desprender-se e seguir até o final do trajeto da circulação
venosa, nos pulmões, e provocar uma embolia pulmonar na paciente, que possui risco
iminente de morte, caso não seja tratada com urgência.

Mas, afinal, qual é a diferença entre trombofilia e trombose?

Trombofilia é uma doença na qual uma série de condições converge para que a mulher
tenha desenvolvido a anomalia de coagular o sangue com mais frequência que o
normal. Enquanto isso a trombose é apenas um coágulo de sangue que se forma dentro
de um vaso sanguíneo. São relacionados, mas não podem ser considerados sinônimos,
e sim como uma espécie de cadeia que pode vir a se desenrolar.

Reprodução: www.biosom.com.br/blog/saude/trombose

A trombofilia na mídia
A discussão sobre trombofilia e a importância da prevenção do seu diagnóstico se
tornou mais evidente mundialmente após o relato comovente de Florencia Peña, em
uma foto que publicou no Instagram no dia 13 de junho de 2017. Cantora e
apresentadora de um programa na televisão argentina chamado Quiero vivir a tu lado,
ela está grávida e conta em um relato na legenda da foto publicada que injeta heparina
em seu corpo todos os dias e que necessita disso para fazer com que a sua gestação siga
saudável dia após dia. Diz que a obra social consegue manter o tratamento e
problematiza isso, afinal nem todas as mulheres argentinas têm direito à obra social,
que seria algo similar a uma carteira de trabalho no Brasil. O problema é que na
Argentina se descontam os impostos devidos e se cobra uma taxa por se trabalhar como
autônomo, diferentemente do esquema em vigor por aqui. Em 2016 criou-se um
projeto de lei para permitir o tratamento da patologia de todas as afetadas, porém
pouco tempo depois foi vetada por não ter um aval científico e desde então, nunca mais
discutida. Em sua publicação, Peña reforça a necessidade desse tratamento para as
afetadas para a diminuição dos abortos espontâneos e pede “igualdade para todas”.

Um caso de superação

A administradora de empresas Gislaine Alves, de 39 anos, sempre teve o sonho de ser


mãe. Cresceu em uma família grande, com mais três irmãos e cercada por muitos
primos no interior de São Paulo, o que ajudou a formar o desejo por ter sua própria
família. Foram treze anos de tentativas consecutivas e muitos diagnósticos falsos.
“Minha primeira tentativa foi em 2002. O primeiro aborto foi difícil e doloroso, mas eu
sabia que era algo que podia acontecer. Então eu abortei pela segunda vez e já não
sentia como se fosse algo normal. Demorei um tempo para tentar de novo, e o
resultado foi o mesmo”, contou Gislaine.

Os anos sem diagnóstico correto e tratamentos ineficazes deixaram marcas: foram seis
abortos espontâneos. Além dessas seis gestações interrompidas, houve a tentativa de
outras que não deram certo: “Fiz vários tratamentos. Troquei de médicos, ia até outras
cidades em busca de uma solução e nada adiantava”. Gislaine buscou inclusive uma
clinica de reprodução humana e fez algumas tentativas de inseminação artificial com
material selecionado, uma possível forma de evitar as interrupções gestacionais.
Acompanhamento redobrado desde o início, mas mesmo assim o problema não era
solucionado. “A cada aborto, eu me fechava e me afastava. Evitava ir para lugares onde
poderia ver mãe ou crianças, porque machucava muito. Em uma das tentativas, eu
estava grávida de trigêmeos. Eu senti a perda de cada um”, ela conta. “Sempre pensava
em desistir, mas era um sonho. Era impossível não tentar mais uma vez.”
No sexto aborto, Gislaine já estava cansada e sem alternativas. O desgaste físico e,
principalmente, psicológico cobrava seu preço. Nesse ponto, ela já não confiava mais
nos médicos e tinha vivido muitas situações traumatizantes além dos abortos de
repetição. “Uma das piores experiências foi a curetagem uterina. Tinha acabado de
perder um bebê e, para realizar o procedimento, fui colocada na maternidade. Ouvir o
choro dos bebês… Só de estar naquele ambiente já aumentou minha dor. Foi
desumano.”

Decidiu que desistiria do sonho de ser mãe e não teria uma sétima tentativa.
Felizmente, a família não deixou de sonhar por ela. “Minha nora conseguiu engravidar
depois de anos de tentativas em uma clínica de reprodução “, conta Lucilene Cristina,
irmã de Gislaine e psicóloga, que acompanhou cada momento dessa história. “Peguei
todos os dados para falar com a Gi, porque eu sabia que tínhamos mais uma chance.”
Gislaine sabia que seria sua última tentativa. Chegou para a primeira conversa com o
médico já desanimada, mas se surpreendeu. “Sempre que eu ia até um médico, eles
colocavam como foco a gravidez. Dessa vez, o médico disse que o foco seria a minha
saúde. Era necessário cuidar de mim antes de cuidar de um novo bebê”, relembra.

Gislaine foi encaminhada para cinco médicos: um hematologista, uma


endocrinologista, um imunologista, uma reumatologista e um ginecologista obstetra.
Com essa equipe, investigaram qualquer possível doença que levaria à interrupção da
gravidez. E finalmente o diagnóstico veio: trombofilia. Para Gislaine, foi o momento de
alívio e de dúvida: “Nunca tinha ouvido falar da doença, então foi um susto. Ao mesmo
tempo eu tinha, finalmente, respostas e um tratamento. Eu tinha uma chance”.

O que surpreendeu a todos é que Gislaine já estava grávida quando foi dado o
diagnóstico. Com quatro semanas de gestação, não tinham tempo a perder e a
profilaxia começou assim que possível. “Foi através de injeções diárias. No começo foi
difícil e um pouco doloroso, deixou várias marcas roxas na minha barriga, mas era
minha chance. Eu nunca estive mas confiante de que daria certo”, afirma Gislaine.
Cada semana era uma vitória e cada enjoo foi comemorado. “Nós tínhamos medo,
claro, mas não podiamos deixar o sentimento dominar. Então a gente comemorava
cada momento, pra ter mais força para continuar”, relata.

A gravidez se passou sem maiores sufocos. Gislaine conseguiu aproveitar todas as fases
da gravidez e realizou o sonho: “Ter meu filho nos braços hoje faz tudo valer a pena.
Cada picada que eu levei, cada exame, todo o tempo e dinheiro que investir”, diz a mãe
do pequeno João Miguel, hoje com três anos. O tratamento se estendeu até quarenta e
cinco dias depois do parto e, mesmo depois do término das injeções, ela tinha
consultas marcadas com sua equipe para seguir o acompanhamento. “Fiz todo o
tratamento, porque entendi que aquilo ia além do meu parto. Agora eu sou mãe, não
posso colocar minha saúde em risco sem motivo”, conta.

“A trombofilia é uma doença que tem tratamento. É nisso que as mães devem pensar.
Pode ser um tratamento longo, incômodo por conta das agulhas, mas dá resultado”,
lembra Lucilene, que aplicou muitas das injeções para a irmã. As duas foram firmes ao
afirmar que é necessário buscar sempre um profissional de confiança e exigir o
máximo de exames que for possível. “Meu caso poderia ter sido resolvido anos antes.
Alguns exames simples e eu não teria passado por muitas das dores que passei”, afirma
Gislaine.

Casos como o de Gislaine mostram a importância do diagnóstico correto e como a


trombofilia pode ser silenciosa. A gravidez, o parto e o pós-parto podem seguir
tranquilamente desde que o tratamento seja feito de forma correta, assim como o
acompanhamento médico — e mais histórias podem ter o mesmo final feliz.

O olhar médico

O doutor Wagner I Hoshino, da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) Adulta do


Hospital Nipo-Brasileiro, na divisa de São Paulo com Guarulhos, contou alguns
detalhes da patologia em seu cotidiano. Por atuar na área de Terapia Intensiva, ele
costuma lidar com as complicações geradas por trombose e pela trombofilia, como
quadros de embolia pulmonar e por consequências geradas por fatores
tromboembólicos. Ambos são considerados fatores de risco de vida ao paciente. Em seu
tempo de experiência, contou que é comum encontrar situações em que o paciente tem
ligação com o hábito do tabagismo e de consumir bebida alcoólica, além dos casos de
histórico familiar relacionados à doença.

Mas atualmente uma coisa que chama a atenção de Wagner é o fato de mulheres cada
vez mais jovens, em idade fértil, estarem marcando presença com mais frequência no
pronto-socorro por conta de trombose. Ele diz que isso é diretamente ligado ao fato da
utilização dos anticoncepcionais mais modernos, onde há uma baixa liberação e
interação dos hormônios com o corpo, de efeito mais calmo e prolongado. Estes
costumam ser mais trombogênicos.

Durante a conversa, ele contou algumas particularidades que a mulher gestante


desenvolveu, como a capacidade de não sangrar com facilidade, se tornando mais
suscetível à coagulação do sangue em uma quantidade considerada normal. Como o
corpo já está mais propenso a coagulação nessa fase, um quadro de trombofilia é um
agravante.

As variações da patologia da trombose são diversas, porém a maioria dos casos vem da
trombose venosa profunda, em que se realiza o tratamento com anticoagulante ou
heparina em doses reguladas pelo médico e acompanhamento regular. O medicamento
mais utilizado é o Marevan®, que atua inibindo os fatores coagulantes dependentes da
vitamina K — diretamente relacionada ao processo de coagulação sanguínea. Os níveis
considerados normais para o corpo humano para o coeficiente de coagulação variam
em torno de 1 e 1,5 ou 2 e 2,5. Esse coeficiente é revelado através da análise de exames
de sangue, em laboratórios. Cada pessoa possui uma cascata de coagulação, em que
cada fator que a compõe possui níveis que variam de indivíduo para indivíduo. O
porquê do tratamento de cada pessoa que tem trombofilia/trombose gira
principalmente em torno disso. Caso tenha sido diagnosticada essa patologia na
gestante, é muito importante a atenção e acompanhamento redobrado no pré-natal,
para se acharem as maneiras mais convenientes de auxiliar no desenvolvimento e
proteção do bebê.

Em dados divulgados pelo jornal O Tempo, em uma entrevista o patologista clínico e


hematologista Daniel Dias Ribeiro disse que “cerca de 15% das pessoas no mundo
podem ter alterações nos mecanismos de coagulação, o que é uma incidência muito
alta para a medicina. Porém, a tendência a ter trombose relacionada à perda
gestacional atinge 0,1% das pessoas no mundo. Ou seja, não basta ter trombofilia para
ter trombose. Muitas vão ter uma gestação normal sem saber que têm a doença.”

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