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 Quinta Parte: TRAGÉDIA E TRAIÇÃO


 
Portolani Books Volume Dois: Misérias do Exílio

INÍCIO SEGUINTE ANTERIOR

Referências

1. Ver em Apêndice
QUINTA PARTE Documental B3 doc. n.º
23.

TRAGÉDIA E TRAIÇÃO 2. Ibid. doc. n.º 22,. Rui


Perdigão, dissidente do
PCP e antigo encarregado
da emissora do partido em
Bucareste, em artigo
13. As Preocupações Aumentam publicado na revista
trimestral Nova
Renascença, vol. XII,
A FPLN inicia a sabotagem Primavera/Outono de
1992, 'As Relações do PCP
Foi neste ambiente de angústia que rebentou, na noite do 23 de com dois eminentes
Fevereiro, a notícia de que Henrique Cerqueira, representante do antifascistas: Emídio
Guerreiro e Manuel
general em Marrocos, anunciara o desaparecimento de Humberto
Valadares' confirma o
Delgado. Cerqueira baseava-se em postais recebidos de Badajoz e papel de Álvaro Cunhal
em instruções do general antes da sua partida. Pouco depois nessa campanha: Quando
divulgou-se uma declaração, no mesmo sentido, vinda de Emídio começa a circular a notícia
do desaparecimento de
Guerreiro, em Paris. Delgado encontro-me
Nos meios jornalísticos de Argel esta notícia caiu como uma bomba. ocasionalmente em
Eu estava, nesse momento, numa situação em que podia bem avaliar Moscovo, e em contacto
quase diário com Álvaro
a reacção dos meios de comunicação internacionais. Desempregada Cunhal. Tive ocasião de
do jornalismo, tinha sido convidada pelo correspondente do New York conversar muito com ele
Times, em Argel, Peter Braestrup, a organizar um arquivo para um sobre isso, opondo-me
aliás com muita força à
livro que ele tencionava escrever sobre a Argélia. sua opinião de que tudo
Ia quase todos os dias ao escritório do New York Times, onde aquilo não devia passar de
um golpe publicitário do
naturalmente se congregavam vários jornalistas estrangeiros.
general e insistindo com
Queriam saber da sorte de Delgado e interrogavam constantemente veemência em que a
os exilados portugueses, inclusive os ‘patrióticos’ e Piteira. Estes, Rádio Portugal Livre, de
que eu continuava a ser
todavia, teimavam em insistir que a notícia provinda de Cerqueira
um dos responsáveis,
em Rabat não tinha qualquer fundamento; que Cerqueira não era deveria cessar de fingir
pessoa idónea; que Delgado não tinha ido a Espanha; que estaria a ignorar o caso e tomar
muito a sério a hipótese
gozar férias em qualquer praia italiana; que o general tinha montado
do general ter sido preso
uma operação publicitária. ou estar morto.
Os portugueses, amigos de Delgado, também me disseram que os Ver também A Tirania
‘patrióticos’ insistiam nesta versão, quando interrogados pelas Portuguesa,
(Organização, compilação
‘bases’ sobre a sorte do general. e introdução de Iva
Contudo, parece que o Presidente Ben Bella não ficou tranquilizado e Delgado e Carlos
Pacheco), Lisboa,
no dia 25 de Fevereiro teria convocado os dirigentes da Frente
Publicações Dom Quixote,
Patriótica para conhecer a sua opinião. O conteúdo preciso dessa 1995: Anexo Documental,
conversa não é conhecido, mas pelo que se passou e, sobretudo, Documento Nº 37
pelo que não se passou a seguir, podemos concluir que os ‘Comunicados da Rádio
Portugal Livre’ de 31 de
‘patrióticos’ deram a Ben Bella as mesmas ‘informações’ que tinham Março e de 15 de Abril de
dado a outras pessoas: que não havia motivo para alarme. Só que 1965; e Documento Nº 38,
Entrevista de Álvaro
também teriam aproveitado a entrevista para arrumar outro assunto:
Cunhal na mesma rádio,
o problema de se apoderarem dos arquivos do general. Com o 28 de Fevereiro de 1965.
pretexto de que, na ausência prolongada de Delgado, os seus
3. Ver em Apêndice
arquivos corriam o risco de cair em mãos indesejáveis, teriam
Documental B3, Docº Nº
conseguido a autorização do presidente argelino para ir ao bureau 22.
buscar os documentos do general.
4. Segundo carta de
António Brotas publicado
Tito e Alegre armam-se em valentes
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Assim o tentaram: 48 horas depois da notícia do desaparecimento, por Henrique Cerqueira


em Acuso, Lisboa,
na noite de 25 de Fevereiro - uma data a fixar - fizeram o que até aí Intervenção, 1976, pp 94-
não tinham tido a coragem de fazer. Mas não conseguiram. Uma 98, entre esses amigos
dezena de indivíduos, com Tito de Morais à frente e Manuel Alegre figuravam o jornalista
Veiga Pereira e o
atrás, tentou arrancar do Adolfo Ayala o arquivo. Este, que se engenheiro agrónomo
encontrava sozinho no bureau, respondeu-lhes: Só morto! Perante António Poppe Lopes
esta atitude firme do homem que acompanhara Delgado na noite do Cardoso.
assalto ao quartel de Beja, os ‘patrióticos’ desistiram. Foram então 5. Manuel Alegre de Melo
chamar a polícia argelina que ficou a guardar a entrada do bureau. Duarte, chegou a Argel no
Poucos dias depois, Ayala foi informado pela polícia de que o bureau último quartel de 1964
onde participou no IIIº
devia ser fechado. Contrariamente ao que disse mais tarde Tito de Congresso da Frente
Morais, Ayala fechou a porta à chave, deixando o bureau à guarda da Patriótica e foi eleito para
polícia e entregou a chave no comissariado da polícia, diante de a sua direcção. Durante
dez anos foi o principal
várias testemunhas. Os documentos levou-os Ayala para a residência animador e locutor da
do general, onde passou a habitar, com o intuito de proteger esse rádio 'Voz da Liberdade',
último reduto contra um eventual assalto dos ‘patrióticos’1. ver Cândido de Azevedo,
Classe Política
Portuguesa.

Ora, esta sequência é muito significativa, como iremos ver. Os 6. Ibid. docºs. n.º 22 e nº
‘patrióticos’ recusavam dar qualquer crédito à notícia do 23.
desaparecimento de Delgado; pelo contrário, à semelhança da 7. Ibid. docºs. n.º 21 e nº
campanha dos salazaristas dentro de Portugal desenvolveram uma 22.
intensa campanha junto dos núcleos da emigração política
8. Ibid. docº. n.º 18
portuguesa e na imprensa internacional tendente não só a
desacreditar Delgado, mas também todo aquele que apelasse à 9. Os signatários eram:
salvação da vida do general. Enquanto o faziam, aproveitaram-se da Alzira Carvalho Seabra,
António Brotas, Fernando
situação para tentar apoderar-se do bureau e do arquivo. Com essa Echevarria, José Augusto
finalidade, já estavam a agir, como se o general tivesse realmente Seabra, Helder Veiga
desaparecido 2. Pires, Maria Luisa Hipolito
dos Santos, António
Gomes Paula Figueiredo,
Para qualquer solidariedade com o anti-salazarista que, oito meses José Moura Marques,
antes, era o ‘chefe incontestável da oposição’, não só se recusaram a Adolfo Ayala.
levantar um dedo mas, ao invés, tudo fizeram para sabotar a 10 Anexo ao doc. Nº 18.
campanha que os amigos de Delgado se esforçavam por
desencadear. 11 Apêndice Documental
B3, Docº Nº 20.

12 Henrique dos Santos


Guerreiro3 em Paris, tentando, ao longo dos dois meses que Penha Cerqueira, também
conhecido por Henrique
passaram antes do aparecimento dos cadaveres, organizar um Penha, activo nos
inquérito internacional, deparou com constantes sabotagens dos serviços electorais de
‘patrióticos’. Amigos de Piteira,4 utilizando as suas cunhas no jornal Delgado em Huambo ,
Angola, em 1958. foi o
Le Monde, inspiravam artigos que insinuavam ter o general representante do general
embarcado numa operação publicitária. Na rádio Voz da Liberdade, o em Marrocos,. Autor do
major Ervedosa e Manuel Alegre insultavam Delgado5. livro Acuso, Lisboa,
Intervenção, 1976,
Cerqueira atraiu, desde a
Durante esses dois meses de angústia, foram os dirigentes da Frente sua chegada a Marrocos,
Patriótica—Fernando Piteira Santos, Manuel Tito de Morais, Pedro em Outubro de 1963, a
Ramos de Almeida e Manuel Alegre - que envidaram todos os hostilidade ferrenha dos
dirigentes da Frente
esforços para bloquear a realização de um inquérito e, caso o general Patriótica. Atacaram-no
estivesse preso ou com vida, quaisquer tentativas para o salvar. com toda a especie de
Esses ditos ‘anti-fascistas’ nutriam tanto ódio ao general Delgado que acusações, nenhuma das
quais ficou alguma vez
foram ao ponto de, criminosamente, se revelarem indiferentes provada, incluindo a de
quanto à sua sorte perante a PIDE; não sem o difamarem e ele ter-se apresentado
vilipendiarem. como ‘herdeiro político’ de
Delgado.
A confissão involuntária de Tito de Morais 13 Ver Apêndice
Documental B3, Docº Nº
Para cúmulo, tentaram incriminar os amigos de Delgado. Todavia, 20.
antes de relatar o que se passou nos meses de Março e Abril, 14 Ibid. Docº Nº 21.
convem debruçar-me um pouco mais sobre que veio a ser chamado
‘o assalto ao bureau’. 15 Ibid. Docº.N.º 21.

16 Ibid.
Quando eu e os meus amigos soubemos, no dia seguinte, que os
dirigentes da Frente Patriótica tentaram apoderar-se do arquivo do 17 Ibid.
general, a conclusão foi unânime: só teriam essa desfaçatez se
18 Henrique Cerqueira,
tivessem a certeza absoluta que Delgado já não voltaria mais. Sendo op.cit.
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do domínio público em Argel a cobardia dos ‘patrióticos’, era


19 Filosofo da revolução
inimaginável que tomassem tal iniciativa se houvesse a possibilidade colonial, e especialmente
do general vir a saber do desmando. Mesmo que conseguissem africana, as duas mais
proibir a sua entrada na Argélia, pensámos nós, ainda era cedo para conhecidas obras de
Fanon são: Peau noire,
tanta ousadia. Delgado, vivo e livre, viria a saber e denunciaria o masques blancs, Paris,
roubo aos quatro ventos. Com esta conclusão, ficámos ainda mais Editions de Seuil, 1952, e
convencidos que algo de muito grave acontecera ao general: algo de Les Damnés de la terre,
Paris, François Maspero,
que os ‘patrióticos’ tinham mais conhecimento do que nós. 1964

Conclusão subjectiva? Talvez assim fosse na altura. Embora a nossa 20 Ver em Apêndice
subjectividade se baseasse em qualquer coisa de muito objectiva—ou Documental B3, docº. nº
24.
seja, a experiência vivida ao longo de dois anos sobre a falta de
escrúpulos por parte dos inimigos de Delgado. 21 Outubro de 1978.

22 Tanto os 'patrióticos'
Contudo, meses depois, veio uma inesperada confirmação dessa como Emídio Guerreiro
conclusão ‘subjectiva’. O jornal Semana Portuguesa de São Paulo, na vieram a reivindicar a
sua edição nº 102 de 31 de Julho de 1965, publicou uma carta do 'honra' de terem sido eles
a conseguir a libertação
eng. Tito de Morais, comentando notícias sobre os acontecimentos de dos portugueses presos.
Argel6. Além de conter muitas falsidades e confusões de vária Estavam à vontade para
ordem, a carta dizia: inventar tal mito. O
distanciamento da Josie
Quando se tornou evidente que o General Delgado não regressaria a Fanon tanto do regime de
Argel por ter sido preso ou assassinado pelos agentes do fascismo Ben Bella como do de
que lhe armaram a cilada de Badajoz, solicitámos a devolução dos Boumedienne e a sua
escrupulosa postura de
documentos da Junta… neutralidade política nos
assuntos internos
Este parágrafo é muito elucidativo. Só depois da descoberta dos argelinos, eram garantia
suficiente que nem ela,
cadáveres, anunciada no dia 27 de Abril, é que a Frente Patriótica nem eu, iamos alguma vez
abandonou a tese de uma ‘operação publicitária’ por parte do vir a público nesses
general; só então, quando o mundo inteiro já sabia da morte do tempos falar da sua
intervenção junto de Ben
general, é que eles começaram a emitir protestos e apelos, Bella. No entanto cada
recorrendo aos argelinos para se apoderarem do bureau e dos um dos portugueses que
documentos. O parágrafo acima citado, da carta de Tito de Morais, foram presos lhe
agradeceram
não diz quando é que para ele se tornou evidente que o general teria pessoalmente a sua
‘sido preso ou assassinado’. Mas foi-o forçosamente antes do actuação.
aparecimento dos cadáveres, senão a referência à possibilidade do
23 Documentos exibidos
general ter sido preso não faria sentido7. na RTP.

Então, quanto tempo antes é que se tornou evidente para Tito de 24 Evidentemente que me
Morais e comparsas que o general não regressaria mais? Logo em queixei à polícia. Pouco
depois recebi, em casa de
Fevereiro? E quais as fontes de informação dos ‘patrióticos’? Como Josie Fanon, a visita de
era hábito deles recorrer às autoridades argelinas, será que dois agentes espanhois,
aproveitaram a conveniente presença da polícia espanhola em Argel devidamente
identificados, que queriam
para confirmarem o desaparecimento de Delgado? mais informações sobre o
assunto. Com a maior
Mesmo se admitirmos que não foi tão cedo que ‘se tornou evidente’ e naturalidade explicaram
que a intervenção da polícia argelina no dia 25 de Fevereiro fora que estavam em comissão
de serviço junto da polícia
‘fortuita’, sabemos pela declaração do próprio Tito de Morais que a argelina, que
Frente Patriótica estava convencida, antes do aparecimento dos conheciam bem Portugal
cadáveres, que o general ‘não regressaria à Argélia’. e que gostavam muito dos
portugueses.

Está assim confirmado que essa Frente prosseguia a sua miserável 25. Este artigo, 'A
campanha de dessolidariedade, apesar de convencidos que alguma oposição portuguesa
depois da morte de
coisa de grave acontecera ao general. Delgado', que figura no
n.º 21, Junho/Julho-
Agosto de 1965, pp. 23-
33, daquela revista, vem
14. Os ‘Patrióticos’ Desmascarados reproduzido na integra no
Apêndice Documental A.

É evidente que a campanha de difamação conduzida pelos dirigentes 26 Le Monde, 'Le Silence
da FPLN suscitou vivos protestos da parte de núcleos de exilados du Portugal', 7.12.1965 e
seguintes.
portugueses espalhados pelo mundo. Em Argel, nove portugueses
divulgaram, no dia 12 de Março, uma declaração alertando para o 27 Le Monde,
desaparecimento do general e condenando a atitude da FPLN pelo 'Correspondance',
13.1.1966.
seu silêncio e falta de solidariedade8. Os signatários repudiavam
também o aproveitamento feito pela FPLN na ausência de Delgado 28 Curiosamente, Carlos
para tentarem apoderar-se dos seus bens. Os nove subscritores Lança foi recusada um
visto de trânsito pela
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eram membros da JAPPA9. A declaração era acompanhada por uma Embaixada francesa, e
uma carta metida por ele
cópia de um telegrama de solidariedade assinado por José Morgado e no aeroporto em Paris
Ruy Luís Gomes10. onde mudou de avião
Um comunicado infame nunca chegou ao seu
destino.
No dia 23 de Março a Frente Patriótica viu-se obrigada a quebrar o 29 Ver os documentos
silêncio que mantivera até aí, salvo nas emissões escabrosas da Voz reproduzidos no Apêndice
da Liberdade, pelas vozes de Alegre e Ervedosa. Ao referir-se ao Documental C. Contudo,
além do que foi publicado
general Humberto Delgado, o comunicado da FPLN declara, inter alia, a meu respeito, também
que … a sua actividade é prejudicial à unidade anti-fascista e a sua houve intrigas. Enquanto
pessoa não interessa ao futuro democrático do país …11. eu trabalhava no Gabinete
de Estudos e Planeamento
Levanta dúvidas quanto ao alegado desaparecimento do general por do Ministério da
ter origem em … um tal sr. Henrique Cerqueira12, residente em Educação, em 1974-75, o
Rabat, pessoa destituída de idoneidade política, que se apresentou Director do GEP, o Eng.
António Brotas foi
primeiramente como ‘porta-voz’ do general Delgade, posteriormente, chamado ao Ministro, o
segundo um ‘testamento político’ que o próprio general lhe teria MFA, Emílio Silva. Este
confiado, como seu ‘herdeiro político’. queixou-se de que Brotas
tivesse nomeado para
funcionária do Ministério
O comunicado enumera então uma série de motivos considerados uma senhora que seria um
suficientes pela FPLN para reputar como inverosímeis as notícias do agente duma potência
estrangeira. Brotas, que
desaparecimento de Delgado13. bem conhece as
manigâncias do bando de
Argel, recusou as
acusações, remetendo-as
Democratas denunciam o comunicado da FPLN para o emissor—Piteira
Santos.
No dia 31 de Março, António Brotas, José Augusto Seabra e Fernando
Echevarria14 divulgaram um comentário a este comunicado dos
~~~«»~~~
‘patrióticos’15. Os assinantes escalpelizaram ponto por ponto as
pretensões dos dirigentes da Frente Patriótica, desmascarando as
contradições e a sua má fé, caminho em que persistiram, depois do .
25 de Abril até hoje, para esconder o seu vergonhoso papel no ‘caso
Delgado’.
Nesse mesmo dia, Emídio Guerreiro escreveu uma carta a Manuel
Sertório, cujas cópias foram divulgadas pela Frente Portuguesa em
Argel15. Em palavras apaixonadas, Guerreiro protestava
veementemente contra o comportamento e o comunicado de Sertório
e seus comparsas:
… A vossa atitude é escandalosa. É politicamente horrível! Ela é
desumana e perigosa, porque permite à PIDE fazer o que quiser do
general, se…já não o fez16.

E classifica os dirigentes da Frente Patriótica de sociologicamente


produtos híbridos do regime salazarista17.

Todos estes documentos mostram na sua essência a atitude dos


amigos do general e a atitude de Piteira e seus coniventes.

De Rabat, evidentemente, vinham constantes comunicados. Henrique


Cerqueira iniciava a sua dolorosa e incansável luta contra os inimigos
do general. Alguns desses documentos contêm acusações bastante
graves e relatam factos que não estou em condições de confirmar ou
infirmar18 .
No dia 27 de Abril terminaram as hipóteses e quaisquer esperanças.
As agências noticiosas divulgaram o aparecimento dos cadáveres na
aldeia espanhola de Villa Nueva del Fresno. Tudo levava a supor que
se tratava do general e da sua secretária. Contudo, abria-se uma
nova fase: de outras hipóteses, estas não menos macabras, e de
uma actuação ainda mais ignóbil por parte dos ‘patrióticos’.

15. As Prisões

Depois da notícia de dia 27 de Abril, a Frente Patriótica viu-se


compelida a desistir da sua campanha de denegrição de Humberto
Delgado. Afinal, estava tragicamente provado não ter havido

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qualquer ‘operação publicitária’ e sim uma tentativa desesperada do


general de pôr em movimento preparativos para uma acção
revolucionária.

Então a Frente fez uma viragem de 180 graus. Morto, o general já


merecia solidariedade. Morto, ele serviria de novo como bandeira da
‘unidade anti-fascista’. Morto, já não se podia dizer, como no
comunicado de 23 de Março, que Delgado era uma pessoa que ‘não
interessava ao futuro democrático de Portugal’. Senão como explicar
que a PIDE o tivesse assassinado?

A imprensa salazarista e também alguns importantes jornais


estrangeiros já falavam na hipótese do general ter sido vítima de
uma conspiração comunista. Tornava-se agora imperativo, depois de
tudo quanto acontecera, acusar a PIDE e não deixar margem para
dúvidas.

Assim a Frente Patriótica, cujas atitudes desde o dia 23 de Fevereiro


tinham objectivamente ajudado os assassinos, concentrava-se agora
no esforço de abafar o passado recente e tentar incriminar as
pessoas que pudessem vir a ser testemunhas inconvenientes.

Portanto, mais urgente do que nunca era a Frente apoderar-se de


quaisquer documentos que o general tivesse deixado. Sabia-se que
antes de partir Delgado confiara aos cuidados de Adolfo Ayala um
documento importante para ser aberto dez anos depois da sua
morte. Evidentemente que Piteira e o PCP nunca podiam deixar um
documento desses nas mãos de pessoas que não controlavam.

Nos dias que se seguiram à notícia do aparecimento dos cadaveres, a


rádio Voz da Liberdade desencadeou uma intensa campanha. Passou
a transmitir diariamente. Proclamava que a Frente Patriótica estava
empenhada num inquérito aprofundado; que já tinha nas suas mãos
dados que provavam que o general fora atraiçoado pelos seus
companheiros próximos, agentes da PIDE, infiltrados na oposição. O
alvo principal das acusações era Henrique Cerqueira - o homem que,
cumprindo rigorosamente as ordens de Delgado, alertara o mundo
no dia 23 de Fevereiro. Mas não era o único. As emissões, pela voz
de Manuel Alegre e Ervedosa, insinuavam que também existiam em
Argel pessoas culpáveis da morte do general. E prometiam que,
dentro de poucos dias, teriam dados concretos a fornecer. Preparava-
se o ambiente para se prenderem os inimigos da Frente Patriótica.

Existem diversas versões da maneira como se processaram tanto as


detenções como a libertação de pessoas presas nessa primeira
semana de Maio de 1965. Para completar a história do que se passou
em Argel, julgo ser de alguma importância contar em pormenor tudo
a que pessoalmente assisti.

Aparece a polícia

Na noite de 4 de Maio, Carlos Lança e eu tinhamos ido visitar Amílcar


Castanhinha em sua casa. A conversa naturalmente concentrava-se à
volta da tragédia de Badajoz. Debatemos todas as hipóteses. Vim a
saber que, logo de início, se sabia que o general fora a Espanha, em
virtude de Arajarir de Campos ter pedido um visto de entrada no seu
passaporte brasileiro à embaixada de Espanha em Argel. Era óbvio
que as autoridades espanholas e, portanto, as argelinas sabiam
muitíssimo bem desde o começo da ida do general a Espanha.
Escusado dizer que ficámos bastante perplexos perante mais este
exemplo da falta de prudência de Delgado.

Estávamos no meio desta conversa, pesada de implicações, quando


apareceu, excitadíssima, Joaquina Fernandes, mulher de Marcelo
Fernandes. Trazia a notícia de que o marido acabara de ser preso
pela polícia argelina e que outros portugueses tinham sido

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igualmente detidos. Mal iniciara o relato dos pormenores, quando de


novo se ouviu bater à porta.

Entraram polícias argelinos à paisana, acompanhados de um agente


fardado e armado de metralhadora, mais o dr. Fernandes, algemado.
Tinham vindo buscar o dr. Castanhinha e a mulher, a médica
Fernanda Castanhinha. Perguntaram se nós também éramos
portugueses. Eu invoquei o meu passaporte britânico, mas em vão.
Vai tudo! -disse o que parecia ser o chefe argelino. Protestámos -
havia os cinco filhos dos Castanhinhas, menores de 15 anos - como é
que podiam ser deixados sós a essa hora da noite?

Os polícias não quiseram ouvir. A porta da sala estava aberta para o


átrio de entrada onde se achava Marcelo Fernandes, que tentava
dizer-nos qualquer coisa em português. Temendo a reacção dos
polícias, caso suspeitassem que ele queria esconder-lhes algo,
dissemos-lhe que falasse em francês. E tivemos razão porque,
quando persistiu em falar português, o polícia mais perto virou-se
para ele e deu-lhe uma forte bofetada.

Perante isto, vimos que não havia nada a fazer senão obedecer.
Descemos os oito andares às escuras, pois havia muito tempo que os
elevadores e as luzes nas entradas tinham deixado de funcionar na
maioria dos prédios argelinos. Lá em baixo, entrámos nos Peugeots
da polícia, que arrancaram logo para fora da cidade.

Esse passeio ficou-me gravado na memória. Dentro de breves


instantes tornou-se evidente que não estávamos a ser levados a
qualquer comissariado normal, mas sim na direcção das tenebrosas
instalações, outrora de uma clínica psiquiátrica, onde durante a
guerra colonial os legionários franceses torturavam com electro-
choques os combatentes nacionalistas. Eu já sabia, pelos meus
amigos argelinos, que essas instalações estavam de novo a funcionar
e ouvira boatos sinistros sobre o que se passava lá dentro.

Chegámos finalmente. Separaram os homens das mulheres. Numa


sala mandaram-me ficar de pé num canto e às minhas companheiras
noutros, aguardando o interrogatório. Passaram-se talvez duas horas
assim, até que fui chamada. O agente que me interrogou passou a
pente fino tudo quanto eu trazia na carteira, até os bâtons e a caixa
de pó de arroz. As perguntas, porém, eram de rotina e demoraram
pouco. Depois mandou-me sair, acompanhada por dois jovens
polícias que me levaram a minha casa para revistarem o que lá
tinha.

Nunca antes fora presa, por isso a minha preocupação principal foi
manter-me calma, não provocar a polícia e procurar aproveitar uma
característica dos árabes, a sua susceptibilidade a um tratamento
delicado por parte de europeus. Os rapazes foram correctos e até
gentis comigo. Resolvi tentar saber do que se tratava. Mostrei-lhes
tudo o que havia no meu apartamento, que eles revistaram muito
sumariamente. Sob pretexto de inanição, pedi licença para fazer um
café. Que também lhes ofereci. Então perguntaram-me como
explicava eu falar francês com um sotaque inglês. Expliquei e
mostrei-lhes exemplares dos meus escritos sobre Portugal. E eles,
cada vez mais encavacados, finalmente admitiram que se tratava de
um inquérito sobre o caso Delgado.

Voltaram a levar-me à ‘clínica’ e, por volta das duas ou três da


manhã, eu e Fernanda Castanhinha fomos transportadas a casa
desta, acompanhadas por dois agentes e um jovem polícia fardado,
armado de metralhadora. Aí, revistaram toda a casa sem encontrar
nada que lhes interessasse. Finalmente deixaram-nos, mas presas, à
guarda de um polícia que permaneceu toda a noite na sala com a sua
metralhadora, dizendo que os nossos maridos haviam de aparecer
dentro em breve.

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Claro que não dormi. Fiquei acordada ao lado da Fernanda a meditar


num plano para alertar os meus amigos. Por volta das sete da manhã
resolvi tentar ganhar a confiança do nosso guarda e fui à cozinha
fazer café que lhe ofereci, com um cigarro. O rapaz estava morto de
sono e irritado com os seus chefes. Agradeceu-me o café, dizendo
que tinha estado 48 horas de serviço e que, se não aparecesse um
substituto, ele largava o posto e ia para casa. Então eu perguntei se
as crianças podiam ir às aulas ou se estavam, também elas, presas?
Respondeu-me que não tinha quaisquer instruções a respeito das
crianças.

Fui falar com o filho mais velho de Castanhinha, o Fernando Amilcar.


Entreguei-lhe um bilhete para uma amiga minha, que morava ao pé,
contando os acontecimentos da noite e pedindo que ela contactasse
outros amigos meus, sobretudo a imprensa estrangeira. O pequeno
partiu para a escola e, no caminho, passou pela casa da minha
amiga. Ela era a Josie Fanon, viúva de Frantz Fanon, o psiquiatra da
Martinique que se tornara uma das mais prestigiadas figuras da
revolução argelina e um escritor de renome internacional19.

Dentro em pouco o telefone começou a tocar e o nosso guarda, cada


vez mais farto do seu ingrato papel, deixou-me atender. Era Pierre
Moser do Le Monde; Peter Braestrup do New York Times; o cônsul
britânico e mais outros. Embora não soubéssemos nada dos nossos
maridos, sentia-me já um pouco aliviada: o nosso caso já era
conhecido. Agora o inimigo não podia mais, à boa maneira fascista—
e comunista—contar com o segredo das detenções a altas horas da
noite! Não tardaria que as agências do mundo inteiro começassem a
divulgar a notícia das nossas detenções.
Por volta das dez da manhã apareceram os indivíduos que nos
tinham prendido, em companhia da Joaquina Fernandes. Mesdames,
vous êtes libres comme des oiseaux! - anunciou-nos o chefe, com
um sorriso algo forçado. E os nossos maridos? –perguntámos -
Estarão cá dentro de poucas horas!—respondeu.

Presos por instigação dos ‘patrióticos’

Não era verdade. Os outros detidos viriam a passar alguns dias,


incomunicáveis, na prisão. Soube então que tinha havido 16 pessoas
detidas; a lista completa era a seguinte:

• Adolfo Ayala
• Amílcar Castanhinha e esposa
• António Gomes Paula Figueiredo
• António Tavares
• Carlos Lança e esposa
• Fernando Bettencourt Rosa e esposa (francesa)
• José Ferreira da Silva
• José Moura Marques
• Manuel Fernandes Vaz
• Marcelo Fernandes e esposa
• Raymond David e esposa (franceses)
Com excepção da Fernanda Castanhinha, Joaquina Fernandes e eu
própria, os outros continuaram presos.

Tornava-se claro, e veio a ser depois confirmado por António Brotas


em cartas publicadas, que as prisões foram mesmo instigadas pelos
dirigentes da Frente Patriótica que discutira esse projecto numa
reunião, poucos dias antes20. Piteira Santos e Tito de Morais
votaram a favor, o major Ervedosa contra. Mais tarde, o porta-voz da
FPLN, Tito de Morais, assustado com a inesperada notoriedade do
caso, veio desavergonhadamente mentir, primeiro em 1965 e depois
no filme da RTP de José Eliseu21, chegando ao ponto de alegar que
os detidos foram postos em liberdade devido à intervenção da Frente
Patriótica!

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29/11/2019 quintaparte:tragédiaetraiçãoportolaniboo - lancapatricia

Infelizmente, para a averiguação total das culpas, houve também da


parte de alguns delgadistas uma certa falta de lisura no relato dos
acontecimentos. Na realidade, passado o primeiro choque da morte
de Delgado e das prisões, tanto os delgadistas como os maoístas da
FAP deixaram de atacar publicamente a FPLN para se concentrarem
sobre a PIDE, e só a PIDE. O velho tabu de não prejudicar a
‘unidade antifascista’ prevaleceu. Para quase todos era impensável
trazer à luz factos que pudessem desprestigiar a ‘oposição’ e fazer,
segundo eles, o jogo do regime de Salazar. Do mesmo modo,
qualquer facto que não fosse susceptível de aproveitamento político,
era para esquecer.

Foi assim que ninguém até hoje se interessou em contar como se


conseguiram libertar os detidos e desfazer a conspiração dos
‘patrióticos’, embora não fosse segredo nenhum e todos os
interessados estivessem bem a par de como as coisas se passaram.

O apelo a Ben Bella

Enquanto outros amigos dos detidos se movimentavam para


contactar os núcleos da emigração e projectar iniciativas
despropositadas, como uma manifestação de mulheres portuguesas
junto à prisão (que felizmente nunca se realizou), eu afastei-me,
assim que pude, e comecei a trabalhar junto dos meus amigos
argelinos. Logo me encontrei em desacordo com os outros
portugueses que, reagindo como se estivessem ainda em Portugal a
lutar contra a PIDE, me criticavam por ter oferecido café e cigarros
ao nosso guarda - estava a ‘colaborar com a polícia’, diziam eles,
ignorando que só assim conseguiria alertar a imprensa mundial.

Mas eu sabia que agora a prioridade era conseguir a libertação


urgente dos presos e não algum aproveitamento político do caso,
aliás, muito discutível. Conhecia a sensibilidade ultra-nacionalista dos
argelinos, que podiam muito bem irritar-se se os presos e os seus
amigos começassem a armar-se em valentes e, ainda pior, com
manifestações de rua, certamente ridículas, dado o número
insignificante de portugueses em Argel. Também não tinha dúvidas
que a polícia argelina podia ter para com estrangeiros sem
protecção diplomática do seu país um comportamento bem pior do
que a PIDE. Para mim e os meus amigos argelinos o momento não
era de tentar tirar qualquer proveito político, nem de atitudes
histriónicas, e sim meter simplesmente as maiores cunhas possíveis
para conseguir ultrapassar as poderosas cunhas dos ‘patrióticos’.

E assim procedi.

Josie Fanon, que além do seu prestígio como viúva do grande Fanon,
era uma jornalista conhecidíssima em Argel, resolveu que a
estratégia mais correcta seria intervir, como nossa amiga íntima, a
favor de Carlos Lança e não pretender tomar partido na querela
entre os delgadistas e a FPLN. Dar a conhecer a situação de Carlos e
as circunstâncias das prisões, seria automaticamente dar publicidade
a todos, no plano argelino.
Ao longo de três dias, acompanhei Josie Fanon aos gabinetes das
mais poderosas entidades argelinas. Parecia que ninguém sabia nada
do assunto, até chegarmos a falar com o comandante da
gendarmerie de Argel, o coronel Ben Sharif. Este informou-se logo.
Era um homem temível, conhecido pela alcunha de ‘o tigre’. As
prisões tinham sido efectuadas, disse-nos, por um sector da polícia
dependente da presidência e sobre o qual ele não exercia poder. ‘O
tigre’ lamentou muito, mas as circunstâncias eram difíceis. Se tivesse
acontecido alguns dias atrás… Só mais tarde percebemos que as
circunstâncias foram realmente difíceis: um golpe de Estado estava
em preparação e os argelinos não estariam muito dispostos a
preocupar-se com problemas de menos importância.

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Foi então que Josie Fanon decidiu fazer uma coisa que até lá, por
princípio, nunca fizera, apesar do prestígio que, na Argélia
independente, cobria o seu nome: pedir um favor pessoal a Ben
Bella.

No dia seguinte, sexta-feira à tarde, acompanhei-a ao palácio do


presidente da República, onde ela pediu uma audiência com o próprio
presidente. Fiquei lá fora no carro, à espera, ansiosa, porque esta
ocasião era a nossa última esperança. Finalmente ela voltou com a
boa nova de que, dentro de poucas horas, os detidos estariam em
liberdade. Ben Bella tinha-se mostrado surpreendido com o pedido.
Dissera nada saber da prisão de portugueses (embora os jornais
estrangeiros noticiassem as prisões todos os dias!…). Ainda assim
pegou no telefone, informou-se e então mandou que os libertassem
imediatamente!

Soubemos depois que Emídio Guerreiro se deslocou de Paris a Argel


para ajudar os presos, mas sem conseguir falar sequer com um único
alto funcionário do gabinete do presidente, tal era o poder de Piteira
e seus comparsas. Foi então que os ‘patrióticos’, postos em xeque,
propalaram ter sido eles a tomar medidas junto dos argelinos para
conseguir a libertação dos presos!

Convenhamos que esta história é particularmente triste. Embora


sabendo muito bem como foi que se efectuou a libertação dos presos
e a publicidade feita imediatamente após as detenções, nenhum dos
interessados teve alguma vez a elegância de relatar os factos
verdadeiros nas numerosas entrevistas e depoimentos que deram ao
longo destes anos todos22. Porquê? Pela mesma razão, talvez,
porque todos fizeram silêncio sobre um artigo meu na Partisans?
Nem Carlos Lança, nem eu, e ainda menos Josie Fanon,
partilhávamos as ideias dos delgadistas. E, deste modo, a oposição
portuguesa no exílio continuou com a tradicional política das
capelinhas, que tanto mal nos tem trazido, antes e depois do 25 de
Abril.

Que lhes valeu tal atitude? Nenhum deles foi chamado a elucidar,
imparcialmente, o caso Delgado. Pelo contrário, Fernando Piteira
Santos, o mais feroz inimigo do general, seria a pessoa chamada a
depor em Espanha pelo juiz Crespo Marquez como testemunha do
processo do assassínio de Delgado. Deslocou-se de Argel, no dia 18
de Abril de 1966, com um salvo-conduto das autoridades franquistas.
No mesmo dia partiu para Roma outro dos inimigos principais de
Delgado, o fraudulento Ramos de Almeida. Naquela cidade deu uma
conferência de imprensa, apresentando aos jornalistas as conclusões
principais da análise dos documentos apresentados ao tribunal
espanhol por Piteira Santos!

Nessa mesma data a viúva e o filho do general, acompanhados pelo


seu advogado, Mário Soares, também viajaram para Madrid.

Daí em diante, até hoje, a versão oficiosa do que aconteceu em Argel


continua a ser a versão dos inimigos de Delgado. Qualquer indivíduo
que teime em apresentar factos contrários é caluniado e perseguido.
Com poucas excepções, a imprensa do Portugal democrático, a rádio
e a televisão conservam-se vedados a testemunhas que não
partilhem a ‘versão oficial’. Ou, então, como nos filmes de José Eliseu
e Cândido de Azevedo23, tem havido cortes e censuras nos
depoimentos inconvenientes.

Os piores inimigos de Delgado foram e continuam a ser protegidos e


mantidos em posições de destaque, ao mesmo tempo que peroram
desavergonhadamente em seu nome, aquando das comemorações e
homenagens.
Como se tem processado, desde o 25 de Abril, o encobrimento dos
crimes da FPLN? Como se explicam as contradições e incongruências

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do julgamento do caso Delgado? Tudo isso não cabe nesta narrativa.


A minha história de Argel está a chegar ao fim no que diz respeito a
Delgado. Pouco mais há.

O golpe de Estado

No dia 19 de Junho de 1965, seis semanas depois da libertação dos


portugueses presos, Ben Bella foi derrubado pelo golpe de Estado do
coronel Houari Boumedienne. As portas das prisões abriram-se e
saíram milhares de presos políticos. O jornal do Partido Comunista
Argelino foi encerrado. Os partidos comunistas estrangeiros ficaram
desorientados. Os seus jornais relatavam que o sangue corria pelas
ruas de Argel quando, na realidade, o golpe foi tão pacífico como o
pacífico 25 de Abril de 1974 em Portugal. Boumedienne seria
apelidado de ‘fascista’. Michel Pablo-Raptis e outros conselheiros
estrangeiros do presidente deposto fizeram as malas e fugiram da
Argélia. Durante algum tempo pensámos que a FPLN de Piteira
tivesse perdido o seu mais influente suporte. Porém, pouco a pouco,
tornou-se evidente que a política estrangeira da Argélia não seria
modificada. Só tinham sido afastados os esquerdistas mais
excêntricos. A União Soviética, ao vender as suas armas aos coronéis
argelinos, acendeu a luz verde e Boumedienne deixou de ser
‘fascista’.

Os ‘patrióticos’ tinham de novo as suas emissões radiofónicas e de


novo se pavoneavam pelas esplanadas. De novo faziam as suas
intrigas. A mim roubaram o meu passaporte britânico que, depois,
apareceu ‘misteriosamente’ nos arquivos selados do jornal do Partido
Comunista Argelino, vindo novamente a ser roubado por um
português da Frente Patriótica24. Contra Carlos Lança conseguiram
uma ordem de expulsão do território, que só não teve efeito por ele
ter ido trabalhar como topógrafo longe de Argel, no deserto, onde as
intrigas da capital mal chegavam. E, finalmente, em 1966, Manuel
Alegre atacou-me na rádio, como será relatado mais adiante.

Para a Argélia, o golpe de Boumedienne trouxe pelo menos uma


vantagem: desapareceram os conselheiros estrangeiros do
presidente.. Então viemos a saber como foi que se conseguira a
prisão dos portugueses. Pablo era o encarregado dos biens vacants -
como já referimos - e distribuía os prédios abandonados pelos
franceses. Ora, um certo funcionário, de nome Magraoui, da
presidência da República, necessitava de uma habitação ‘condigna’.
Instigado por Pablo, que por sua vez actuava em favor do seu amigo
Piteira Santos, foi monsieur Magraoui quem combinou com a polícia a
prisão dos portugueses, a evacuação da vivenda atribuída a Delgado
e a entrega do arquivo. Passados poucos dias, monsieur Magraoui foi
instalar-se na vivenda com a família. Os móveis, documentos e
dinheiros do general desapareceram. Foi talvez a última manobra de
Pablo, na Argélia.No que diz respeito a Delgado, esta narrativa acaba
neste ponto. Sei que tem lacu
nas. Mas elas são involuntárias. Contei a verdade, tal como a vivi.

Nas semanas que se seguiram à morte de Delgado e à prisão dos


portugueses, refugiei-me em Douaouda, na casa de praia de Josie
Fanon, e ali meditei longamente na experiência desses três anos
passados na Argélia e na problemática da oposição portuguesa.

Ainda me considerava marxista. Como tantos outros, julgava que o


materialismo dialéctico era uma filosofia válida e que o estalinismo
da União Soviética não era mais do que um desvio no caminho ideal
para um mundo melhor. Iriam passar alguns anos, muitos estudos e
reflexão, até conseguir curar-me dessa doença que contraí na
adolescência. Assim, nesse Verão de 1965, esforcei-me por analisar
a situação portuguesa, partindo de bases marxistas. A ditadura
salazarista seria um regime fascista, embora eu já levantasse a
hipótese de uma transformação pacífica. Hipótese herética, aliás,
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porque, segundo o dogma marxista, regimes fascistas não eram


susceptíveis de reforma. Só acabariam por meio da guerra ou da
revolução popular.

Numa óptica maoísta, sobrestimava as potencialidades da revolução


colonial, pela qual os ‘condenados da terra’ iriam salvar o mundo.
Inspirada por essa visão utópica, revoltada contra as indignidades
cometidas por Piteira e os seus comparsas e profundamente chocada
com a tragédia de Badajoz, escrevi um artigo para a revista
Partisans, que gozava de uma grande audiência na esquerda
francófona25.

Apesar da errónea óptica política, os factos relatados são verdadeiros


e sintetizam, quanto ao caso Delgado, o que vem narrado neste
volume. Devo a Viriato da Cruz o conhecimento de muitos dados
económicos e políticos que citei sobre Portugal. Só não toquei no
papel dos argelinos e na prisão dos portugueses por ainda me achar
a viver na Argélia na situação insegura de estrangeira com muitos
inimigos. O artigo, por conseguinte, constitui um testemunho
contemporâneo sobre os acontecimentos e também uma análise
bastante exacta da evolução da situação portuguesa da altura. Julgo
de uma certa importância republicá-lo agora, passados tantos anos,
por causa das suas repercussões naquele tempo e durante os anos
seguintes. Estas demonstram cabalmente como, desde o princípio, os
principais actores estavam empenhados em ocultar os factos e a
raiva caluniosa com que tratavam quem ousasse contar a verdade.

Hoje, não adiro completamente à apreciação política da figura de


Humberto Delgado feita em 1965. Nessa altura não acreditava que
um golpe de Estado viesse derrubar o regime. A História veio dar
razão a Delgado e desmascarar o vazio das pretensões da velha
oposição marxisante. Infelizmente, o putsch de 25 de Abril de 1974,
pelo carácter de algumas das suas principais personagens, foi
susceptível de aproveitamento por essa mesma oposição.
Quem foi que projectou a eliminação de Delgado? Os ultras do
regime? O PCP? Elementos de um determinado nacionalismo
africano? Ou foi um obscuro conluio de vá rios grupos, servindo-se
de agentes infiltrados na PIDE? Sempre fiz e continuo a fazer as
mesmas perguntas? A velha máxima latina - cui bono? - ficou-me no
espírito até hoje. A quem beneficiou o crime? A quem beneficia ainda
hoje a ocultação da verdadeira história de Argel? Quem não deve,
não teme, diz o povo.

Os dirigentes da FPLN, naturalmente, sentiram-se bastante lesados


pelo meu artigo na Partisans. A princípio, sem qualquer capacidade
de resposta aos factos ali citados, refugiaram-se no silêncio absoluto.
Mas nos começos de 1966 surgiu-lhes uma oportunidade de
empregar a sua arma preferida—a calúnia. Marcel Niedergang,
jornalista especializado em assuntos portugueses, publicara no jornal
Le Monde uma série de artigos sobre Portugal, altamente críticos do
regime salazarista26. Em resposta, o então chefe da Casa de
Portugal em Paris, Manuel Rino, escreveu uma longa carta ao Le
Monde, citando extractos do meu artigo, e nela tratou a autora de
‘comunista inteligente’27. Este inesperado ‘elogio’ provou ser um
presente envenenado.

Os inimigos de Delgado em Argel imediatamente agarraram a


ocasião oferecida pelos salazaristas. Encarregaram Manuel Alegre de
ler um comunicado a meu respeito numa emissão da rádio Voz da
Liberdade. ‘Informou’ o poeta que Patrícia McGowan Pinheiro era
uma cidadã estrangeira que nunca tinha pertencido a qualquer
formação da oposição portuguesa; pelo contrário, fora expulsa de um
partido estrangeiro, suspeita de espionagem; era correspondente em
Argel do New York Times e, como tal, agente da CIA (sic!) e uma
comunista feita pelo SNI.
Na Argélia de 1966, onde depois de se livrarem de Delgado,
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estavam Piteira Santos e os seus amigos, outra vez ‘no poder’, e


como o governo Argelino se tinha recentemente aproximado da
URSS, não havia qualquer possibilidade de uma resposta minha às
difamações e veladas ameaças.

Fiz as malas e, pouco depois, voltei para Inglaterra, seguida umas


semanas mais tarde por Carlos Lança28. Daí, até depois do 25 de
Abril, abandonei tanto a política como o jornalismo e dediquei-me ao
ensino Os ‘patriotas’, todavia, sentiram-se tão feridos que não se
esqueceram de mim. Como aludi no prefácio, continuaram a
preocupar-se comigo já no Portugal democrático29.

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