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Ree | 5 y Coys Me Me lity* Keli) Breese gee ue aS Perce omer) Pet) ‘rig por Mi maccta seal ds Loves ‘edad eo Pao Comite editorial Atta Machado, Poe nore Cl de So Palo Bra Giver ocho, Unvrt Oe Stud Fro mes Ll, an Jose Sate Ura ~ Calf Estados Ui ‘isis Marin Barbar, Coredo Nacional de espa sr LovreoViees, Urs Atoroma ce Baca per) Mara Apacs Sacooga, Unread de 80 Paso (si) ‘Mae Soc, Une Farle oo Jana ra Roger Sharstone, London Geol Eso rar) ‘Sexy Cappel, Lincs Fc fo ls Gade do Sua ‘AColeeto Comunlcapio Contempordinea rate textos de autores ci: fas e etangavoa qus ae siinqvam pan tentea sta © cortlgao ‘hovacora as etudos e debt ebro a comuicacto no cendio bak “Zhuo. Procra cobra mulpedade a cverecade de agpetoe a conn ‘apie, fdmeno esvenclaentealconel, com a cultura, atecralega @ ‘Sbjelisdade, economia, aestticn, poli, ees et, dentro de qua- ‘re da sci aba Os textos as Colegio sto resultados da produgso ‘Se posqules empios, seus ccios © anal, do autores clisscos @ ‘comempordnsos ‘Sura marca adotaca por eta ColegSo a rtercscpnaridade, pos 0 con- Jno de secs testo robe restos saber e Gscplnas, fm decom preende complexe qu ovata processes 08 mols de oman fio na nossa sciodade, Secs desta Gologao so cigdoe a pasqulsadores, professors eos ‘artes de comunicapi, profesonais © estucones dessa fea, 6 toes fcieles nferessaoe m atendoro quo fazaeoclodace de hoe ee ei ‘decom “eosedae da comuncagaa” 16 cae omnia Contmpornea {-eomtetage Correo Zar oeed Some toca ‘somone fe s comunicacso Jesis Martin-Barbero eateries. ‘contemporines | 200804 9917 316.77(8=6) MAR /ofl I A 1486612 “Til orginal Sumario (fico de cartégraf ~Tavesas latinoamericanas dela comunicaién enlacutura (© Fondo de Cultura Boonémice, 2002 ‘hx, Pleacho Ajuseo 227; Colonia Bosques del Pedregal: 14200 Méxic, DE (© Fonda de Cultura Eeonémica Chile S.A. Paseo Bulnes 152, Santiago, Chile ISBN: 956-280-0025 “Teapucho: Féeina Gone: Revisio DA TRADUGAO: Reais Pallotin Prenaaho: Mauro Balthazar Leal Introdugao 9 Diactascacho: Miriam de Melo Francisco Parte 1 ‘Anos 1970, 1980: configuragao latino-americana do campo 43 Capitulo 1; Ideologia: os meios como discurso do poder 45 : » Capitulo 2: Cultura: desafios do popular & razzio Bales Loyola Roa 1822 1° 347 — Ipiranga dualista 109 (4216-000 Sto Paul, SP Teenclogiat 5 Cet ae Bea saa bmn Capitulo 3: Tecnologia: inovagées culturais e usos &-) 14-1922 sociais 477 Ban 6163-4275 Home page e vendas: www Joyola.com.be Editorial: loyla@loyola.com.b¢ ee ‘ends: vendax@loyolacombe Anos 1990: pensar a sociedade desde a Todas 0 dveitas reservados. Nenhuma parte desta comunicagao 207 ‘bra pode ser reproducida ow transmitida por qualquer forma elou quaaquer meioselerénco ou St ent 4 ee es foment Capitulo 4: Itinerérios da investigagao 209 Cres om quer ste one dads Capitulo 2: Uma agenda para a mudanga de século 257 Sem permissio exert da Eira Se Capitulo 3: Oficios de leitor 383 © EDIGOES LOYOLA, Sio Paulo, Brasil, 2004 Bibliografia 455, Ameméria de Patricia Anzola, Monterrat Ordofiez @ Patricia Terrero, amigas e tecelas de lagos perduraveis entre os lentos caminhos da cultura e os velozes fluxos da comunicacao. Introdugado Aventuras de um cartégrafo mesti¢go Uma bifurcago tomou de surpresa a minha gera¢ao, cuja de- vvocdo por Prometeu ndo deixou que vissemos chegar Hermes: comunicacdo, trinsitos, transmissdes, redes. Agora, vivemos ‘numa imensa fébrica de mensagens, suportamos menos mas sas, acendemos menos fogos, mas transportamos mensagens que governam os motores, (..) Nunca poderemos prescindir de camponeses e de entalhadores, de pedreiros ou de caldeireiros e ainda seguimos sendo arcaicos em dois tergos das nassas condutas, mas, 20 passo que, em outros tempos, fomos predominantemente agricultores e, ha pouco, especi- almente ferreiros, agora somos sobretudo mensageiros. (Michel Serres) Este livro vem motivado a partir de dois ambitos: o pedido para que juntasse em um volume meus textos sobre comuni- cago dos anos 1990, disseminados numa porgéo de revistas e livros coletivos, e de outro lado a necessidade de pér alguma pperspectiva hist6rica latino-americana num campo de pesquisa cuja pouca idade, somada & aceleragao das mudangas que atra- ‘essa, 0 fazem presa fécil dos espelhos sedutores proporci Sibl/OFG 10 FIC De CARTEGRAFO nados pela tecnologia, Dai que este livro procure antesde tudo opor-se, em alguma medida, & crescente tendéncia ao cutismo tecnicista e & hegemonia gerencial que parecem estarse apo- derando dos estudos de comunicacdo na América Latina, E assim o que, em principio, buscava ser uma antologia de tex- tos transformou-se num exercicio artesto de cartografia. Que é na verdade, 0 oficio ao qual estou dedicado desde que, no infcio dos anos 1970, a comunicacdo apareceu como chave do pensamento em minha tese de doutorado em filosofiae, des- de ent&o, no dia-a-dia de um trabalho, entre némade e viajan- te, a0 longo deste “sub”-continente. O tracado deste livro ali- nha textos e fragmentos de textos nos quais, por cerca de trin- ta anos, fizas vezes de ator e outras de cronista das travessias Jatino-americanas da comunicagéo na cultura, Dai que meu trabalho tenha tido e continue a ter tanto ou mais de aventura coletiva que pessoal, razio pela qual se 0 relato as vezes assu- mea primeira pessoa, mais que uma marca de protagonismo, € apenas uma arglicia discursiva do cartégrafo metido a cro- nista para dar um fio a trams e atrativo a narragio. De cartas ¢ mapas noturnos J4 que toda crénica reclama um comego, devo comesar por contar quem deu nome ao meu oficio e titulo a este livro, como isso aconteceu. Sou consciente do rumo pouco acadé- ‘mio que toma esta introducdo, mas é precisamente conta esse ‘tom que escrevo, ou melhor, contra ele que se rebel, ceda dia mais certeiramente, a minha escrita. © comego fol assim: na generosa despedida que, em dezembro de 1995, mefeza Uni- versidade del Valle — na qual havia trabalhado 21 aros — uma convidada, a pesquisadora mexicana Rossana Reguillo, InRopUGRO " batizou minha aventura intelectual outorgando-me o nobre t- tulo de cartégrafo mestigo. E foi a partir do metaforizado por essa figura que aquilo que havia sido um punhadode trabalhos soltos, esbogos e intuigdes, adquiriu uma perspectiva que foca- lizava as linhas e tenses mais secretas do meu proprio traba- Iho. Cartografias haviam sido alguns dos meus textos mais in- ‘tensa e extensamente lidos, ¢ 0s diferentes lugares do meu tra- balho encontravam af seu perdido mapa, Foi assim que come- ceiame interessar pela situagéio em que se encontra 0 offcio de cartégrafo e por aquilo em que esse oficio me dz respeito. A primeira coisa que encontrei foi que a cartografia, in- clusive a cartografia cognitiva, esté presa ao redemoinho dos apocalipses de fim de milénio que a transformaram em objeto de desqualificacées e disputas*.Iss0 porque, para alguns, todo ‘mapa é, em principio, filtro e censura, que nao s6 reduz 0 ta- ‘manho do representado, como também deforma as figuras da representagio, trucando, simplificando, mentindo, ainda que seja $6 por omissao. Para outros, ao situar-se na encruzilhada de ciéncia com arte, a cartografia abriu-se a uma ambigiiida- de ilimitada, ja que o que as tecnologias aclaram, no plano da observacio e seu registro, é borrado pela estetizagio digita- lizada de sua forma: no espaco cartografado de Bagdé as bom- bas que viamos na tela do televisor apareciam como fogos de artificio ou figuras de games. &, finalmente, muitos se pergun- tam: mapas para qué? Quando a estabilidade do terreno dos 1. Aesse respeito ver D. PAGES, N. PELISSIER (coords), Lincertitude es teritoires, Quaderni, Revue de la comunication n.34, Paris (1997); € 0 artigo de varios autores: De espacios y lugares: preocupaciones, ‘Archipiélago n. 34-35, Barcelona (1996). 2, |. CHAMBERS, Migracin, cultura e identidad, Amorrotu, Buenos Aires, 1995, 127-156. 2 ‘FICO DE CARTEGRAFO referentes e das medidas é esburacada pelo fluxo da vida ur- bana, pela fluidez da experiéncia cosmopolita, os mapas nos impediriam de fazer nosso préprio caminho ao andar; de aven- turar-nos a explorar ¢ tracar novos itinerdrios, evitando o ris- co de perder-nos, sem 0 qual nao hé possibilidade de desco- brir(-nos). Mas quem disse que a cartografia s6 pode representar fronteiras e néo construir imagens das relagdes e dos entrela- gamentos, dos caminhos em fuga e dos labirintos ? Um cartégrafo perito como M. Serres escreveu: “nossa histéria, singular e coletiva, nossos descobrimentos, como nossos amores, assemelham-se mais a apostas ao azar de climas € sismos do que a uma viagem organizada provida de um con- trato de seguro (.... Por esta razo, os mapas meteorol6gicos, répidos e mutaveis, ou os lentos e pacientes, que nos mos- tram as ciéncias da terra profunda, com suas placas movedi- 4628 e linhas de fratura e pontos cilidos, interessam hoje 20 {il6sofo mais do que os antigos mapas de estradas”. Estamos ante uma légica cartogréfica que se torna fractal — nos ma- pas 0 mundo recupera a singularidade diversa dos objetos: cordilheiras, ilhas, selvas, oceanos — e se expressé textual- mente, ou melhor, textilmente: em pregas e des-pregas, reve- ses, intertextos, intervalos. f isso que, para Serres, condensa ‘aimagem de Penélope tecendo ¢ destecendo o mape das via- ‘gens do marido, mapa do mar sonhado e do real, entretecidos nno canto de Homero. Atravessando duas figuras modernast — a do universo de Newton e a dos continentes (da histéria) de Marx, e (do 1M, SERNES, As, Cited, Madr 106, 252263 4. J. IBANES, Del continente al archipiélago, in Por una sociologia de avid cotiiana, Siglo XXL, Mati, 1994 T2137 snoouGkO. 8 inconscfente) Freud —, nossos mapas cognitives chegam hoje a outra figura, a do arquipélago, pois, desprovido de fronteira ‘que 0 una, 0 continente se desagrega em ilhas miiltiplas e di vversas, que se interconectam. Acaba por ser altamente sinto- ético que, pela mesma época em que um poeta, Saramago, imaginava em sua novela Jangada de Pedra a aventura de um pedago do continente europeu—a peninsula ibérica — que se despega e se torna ilha, navegando até a América, um filésofo, M. Cacciari, construfa uma cartografia teorética do Arquipéia- go, com a qual busca re-pensar, re-fazer a Europa®. Tomando ‘como base o Mediterraneo, Cacciari des-cobre que esse mar, rico em ilhas, nfo se encontra separado da terra—“aqui os ele- ‘mentos se reclamam, tm saudade um do outro” —, des-velan- do-nos a verdadle do mar, seu ser arqui-pélagos, lugar de did~ logos e confrontagao entre as multiplas terras-ilhas que os entrelacam. Pensar oarquipélago 6, entdo, indagar o novo tipo de logos que interconecta o diverso: “Aquele espago por sua natureza intolerante & subordinagdo e & sucessio hierérquica. No espago mével da coabitagio e da coordenacio, as singula- ridades do arquipélago pertencem umas as outras”. Logos outro, em cuja raiz se acham as profundas alteragdes perce- pptivas que a nossa experiéncia espago-temporal atravessa. ‘Também na América Latina a cartografia se move. E o faz em miltiplas diregdes. Desde os planos turfsticos das cidades —que nos doa seguranga de ver o que todos véem, para que niio haja desencontros culturals — ao mapeamento de circui- tose trajetos que desvelam, nas cibernéticas metrépoles atuais, a existéncia de cidades invisiveis: misticas, exotéricas, viven- ‘5. M. CACCIARI, Geofllosofia de Europa, Adelphi, Milano, 1994; El archipiéiago, Figuras del outro Occidente, Eudeba, Buenos Aires, 1999, 6. ID, El archipiélago, op. cit. 2. “ COFCIO DE CARTOGRAFO Ciais’. E desde as cartogratfias cadastrals, construidas de cima, as quais “ nada escapa", como no panéptico estudado por Foucault, s6 que agora seu centro é mével—a camara coloca- da no helicéptero —, aos sociaimente esmagadores mapas. tragadlos no apenas sobre, mas também a partir das margens: seguindo ¢ desbordando orumo porque também asmargens urbanas se movem seguindo roteirds (rotas com derrotas) dos marginaise dos trabalhadores sem-teto* e também os trajetos nOmades dos punks, dos metaleiros ¢ dos taggers’. Noutra Giregéo mais abrangente, a cartografia se movimenta re-de- senhando 0 mapa da América Latina, tanto 0 de suas frontei- ase suas identidades — espacialmente pelo movimento cres- cente das migragées e porque o sentido das fronteires se apa- ga ou se agudiza contraditoriamente com o que produzem as redes do mercado e as tecnologias satelitais, e as identidades se solapam perdendo sua antiga nitidez” — como ¢ de suas formas politicas ¢ sociais: desvalorizagdes do Estado, in- governabilidades politicas, flexibilizagdes laborais, des- 50% alizagSes institucionais, descentramentos culturais" No ambito das cartografias cognitivas se desenham ao menos dois planos de avango. O de mais fundo 6 aquele no «ual se tragam pistas para abrir as ciéncias sociais seguindo e 7. J. G. MAGNANI, Mystica urbe. Um estudo antropolégico sobre 6 Circuito neo-esotérico na metrépole, Nobel, Séo Paulo, 1999. 8, M. SVAMPA (ed., Desde abajo. La transformacién de tas indentidades sociales, Biblos, Buenos Aires, 2000. 9. REGUILLO, Estrategias del desencanto, Emergencia de cuturas juveniles, Norma, Buenos Aires, 2000. 10. A. GRIMSON (comp. Fronteras, naciones e identidades. La peri- feria como centro, La Crujia, Buenos Aires, 2000. 11. D. FILUMS (comp), Los noventa: poltca, sociedad y cultura en América Latina, Flacso/Eudeba, Buenos Aires, 1999. INTROBUGO. 15 ultrapassando 0 rumo assinalado pelo famoso mapa coorde- nado por E. Wallerstein*®, Em La globalizacion imaginada®, [Néstor Garcia Canelini nao se limitaa expor teorias sobre os fatos da globalizagao mas assume de frente os desafios que o fato de pensar a globalizacao traz para as ciéncias sociais, comegan- do pela impossibilidade de pensé-la como um processo num 6 sentido, A ruptura com omonoteismo ideolégico, 0 da tini- ca lave para compreender o todo unificado pelo motor, oator eo antagonismo, nao serve para mapear uma multiplicidade de processos fortemente articulados entre eles préprios, po- rém regidlos por diversas légicas e muito diferentes tempo- ralidades: a homogeneidade e a velocidade com as quais se movimentaa rede financeira sio certas, masa heterogeneidade eallentido dos modos como operam as transformagdes cultu- rais também o so, Para fazer inteligivel essa multivocidade de processos ¢ logicas, Garcia Canclini opta por construir uma pluralidade de pistas de penetragdo com duas figuras: a das perguntas e a das narrativas; a nova forma de fazer 0 mapa exige a mudanga de discurso e escrita. O leitor se encontra ante montes de perguntas e de relatos que des-centram o olhar do investigador, esse que procura os olhares de outros, os dos protagonistas: 0 executivo de uma grande empresa eo operd- rio sem trabalho, obrigado a emigrar para outro pais, a dona- de-casa e o governante, o desenhista de modas na capital e 0 artista numa cidade de fronteira com os Estados Unidos. E é desde essa multiplicidade de questées e experiéncias, de da- dos duros e de metéforas que se vio construindo articulagoes 12. WALLERSTEIN (coord), Abrir las ciencias sociales, Siglo XXL ‘México, 1996, 13.N. GARCIA CANCLINI, La globalizacién imaginada, Paidés, Bar- ‘celona, 1999. 6 oFfI0 DE CARIOGRAFO mais ou menos fortes do econémico, do trabalhista 2 do polt- 1co, focalizando encruzilhadas estratégicas da economia com a cultura, pontos focais na reorganizacao das instituigdes e das socialidades. Com um enorme ganho: 0 confuso maga que se entrevé resulta provocativo, exigindo politicas capazes de re- verter a tendéncia & privatizacdo e & desnacionalizagéo que, a0 mesmo tempo que re-situam o lugar do Estado, reexpressam 0 sentido da politica e do piblico. Em um segundo plano, parece-me altamente sintomat co que também desde a filosofla se ultrapasse o velho modo de cartografar as quest6es que merecem ser pensadas e se vislumbrem novos modos de fazer mapas. Eo que tem feito 0 Primeiro Coldquio Internacional sobre espagos imeginérios, organizado pela Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM", no qual os espacos da geografia, os da histéria eos da psique no se cortam mas se solapam, iluminando, sem esnobismos nem ecletismos pés-mocernos, novas questdes. Que é 0 que faz também um coletivo, reunido em Bogoté, recolhido em Pensar (en) los intersticios", ao des-atar “filosoficamente” os estudos culturais de suas ocultas fronteiras e aceitar a intem- périe e a diaspora como novos lugares desde os quais pensar; da mesma forma, 6 que significa a recente aparigéio em Buenos Aires da revista Constelaciones de la comunicacién™, colocando o estourado mundo de hoje no foco dessa catego- ria eminentemente benjaminiana com a qual fazer pensével |_14, MPN, LAPUJADE (coord), Espacios imaginados, UNAM, México, 1999. 415. S. CASTRO, 0. GUARDIOLA, C. MILLAN (eds), Fensar en los Interstcio, Instituto Pensar, Bogoté, 1999. 16. A. ENTEL (dir), Constelaciones de la Comunicacin,r. 1, ano 4, Fundacion Walter Banjamin, Buenos Aires (2000), ssaRODUGAO v7 um todo que nem sobrevoe a quebradica realidade do social nem a esvazie das tensGes que a despedacam e a mobilizam. ‘A partir dessa rica reflexéo, meu artesdo exercicio de car- ‘tografia aspira unicamente a renovar o mapeamento dos es- ‘tudos de comunicacao, comegando por relatar a pequena his- t6ria do meu empenho. Tudo comegou num encontro de in- -vestigadores sociais em Buenos Aires, auspiciado por FLACSO. no ano de 1983, no qual, pela primeira vez, nos encontréva- ‘mos institucionalmente estudiosos de comunicagao, de cultu- rae de politica, e no qual minha exposig40” introduziu ao fi- nal uma estranha proposta a qual chamei mapa noturno, com ‘que procurava re-situar o estudo dos meios desde a investi- gagio das matrizes culturais, dos espagos sociais e das opera- (ges comunicacionais dos diferentes atores do processo. A pre- sena afortunada nesse encontro de estudiosos do campo li- terério — Beatriz Sarlo, Anibal Ford, Carlos Monsivais — ao ‘mesmo tempo que reconheceu a figura de Saint-Exupéry em Piloto de guerra legitimou intelectualmente, Sem the dar esse auspicioso nome, eu tinha tracado um primeiro mapa da in- ‘vestigago em comunicacao, na América Latina, no anode 1980 quando apresentei a meus colegas da ALAIC 0 “relatério” da presidéncia que havia exercido nessa associacdo™, E fol esse artesanal oficio o que guioua longa investigacdo de quase dex 117.Comunicaci6n, puebloy culturaen el tiempo de las ransnacionales, in Comunicacién y cuturas populares en Latinoamérica, Gustavo Gil, ‘México, 1996; M. de MORAGAS (ed), Sociologia de la comunicacién de ‘masas,v. 4, Gustavo Gil, Barcelona, 1997, 18. O nome desse balango foi Reptos « la investigacién de comu- nicacién en América Latina, in Memoria ce la Semana Internacional dela Comunicacién, Universidad Javeriana, Bogoté, 1991; depois em Cormunicacién y Cultura, n.9, México (1982) traduzido: Des quelques défis| ‘pour la recherche sur la communication en Amérique Latina, in Armand 18 OF]CO be CaRTOGRAFO anos que resultou em Dos meios as mediagdes, onde sintetizei © que entendia por mapa noturno: um mapa para :ndagar a dominagio, a producdo e o trabalho, mas a partir do outro lado: o das brechas, o do prazer. Um mapa nfo para a fuga ‘mas para 0 reconhecimento da situagao desde as mediagdes ¢ 6s sujeitos, para mudar o lugar a partir do qual se formulam as perguntas, para assumir es margens no como tema mas como enzima. Porque os tempos no esto para a sintese, € sto muitas as zonas da realidade cotidiana que eso ainda Por explorar, zonas em cuja exploracao nao podemos avancar se ndo apalpando, ou s6 com um mapa noturno®, Outra mudanga e variante, no oficio cartogréifico,¢0mapa que, no inicio dos anos 1990, tracei acerca dos trés mods de rrelagdo do trabalho académico com as concepgdes e 9s mode- los de comunicagao hegeménicos: dependéncia, apropriacao, invengo®. A dependéncia que, travestida de liberalismo inte- lectual e ecletismo pés-moderno, conclui que “vale -udo”, ou seja, que todas as concepgdes “sao iguais” e portanto tm os mesmos direitos. Direitos que, em paises de desenvolvimento ‘20 precirio como os nossos, seriam sé os de aplicar o que os outros inventam e estar “atualizado”. A apropriagao, ao con- trdrio, se define pelo direito e capacidade de fazer nossos os MATTELART, ¥. STOURDZE, Technologie, culture et communication, La Documentation Francaise, Paris, 1983, Trad. esp.; Teenologta cultura y ‘comunicacién, Mitre, Barcelona, 1984; Desafios & pesquisa em comuni- ccagio na América Latina, Intercom, n. 49/50, Sdo Paulo (1904). Ha um resumo deste texto na primeira parte deste livro. 419. ]. MARTIN BARBERO, De los medias alas mediaciones, Gustavo Gili, Barcelona, 1987, 229 20. Teorfa/investigacién/producion en la ensefianza de la com: nicacién, DIA-LOGOS de la comunicacién, n, 28, Lima; este texto esté apresentado de forma sintética na terceira parte deste livro, niroDuGkO. ” modelos e as teorias, venham de onde venham, geogréfica e ieologicamente. Isso implica nao sé tarefa de ligar, mas tam- pém a mais arriscada e fecunda de redesenhar os modelos, para que caibam nossas diferentes realidades, com a conse- giiente ¢ inapeldvel necessidade de fazer leituras obliquas desses modelos, leituras “fora de lugar”, a partir de um lugar diferente daquele no qual foram escritos. essa apropriagdo existem jé numerosos lugares basicos nestas terras. Também no campo comunicagao/cultura jé co- megamos a inventar: comegando por indisciplinar os saberes diante das fronteiras e dos cfnones, des-pregando a escrita como meio de expressividade conceituale, finalmente, mobili- zando a imaginagao categorial, que é aquilo que torna pensével ‘oque até agora no foi pensado, abrindo novos territérios a0 pensamento. E,noiintento de cartografar, néo s6 agendas como modos de investigar, em meados dos anos 1990* introduzi a inflexao semantica que me possibilitou passar — sem renunciar & an- coragem critica e estrutural do conceito de mediagdo — dos mapas sobre as mediagdes socioculturais a partir dos quais operam e so percebidos os meios, para cartografar as media- ges comunicativas da cultura’ — socialidade, institucio- nalidade, tecnicidade e ritualidade — que, ao tornar-se lugar antropolégico da mutagéo cultural que introduz a espessura 21. Um primeiro esbogo dessas mediagées se acha em La comuni- ‘cacion desde las précticas, In G. OROZCO (coord), De los medi a las précticas, Universidad Iberoamericana, México, 1990, '22, Um desenvolvimento do mapa das mediagoes comunicativas pode ser achado em Pistas para entre-ver melos e mediacbes, Prefacio a5°ed. e De los medios alas mediaciones, CAB, Bogoté, 1999. Uma ampliagéo esse mapa é apresentada na terceira parte deste livr. 20 (FICIO DE CARTOGRAFO. comunicacional do social, reconfiguram hoje as relagdes en- tre sociedade, cultura e politica. Umas “idéias fora de lugar” ‘Além de tragar mapas sobre o que é encontrado no terri- trio, o cartégrafo fez, também, seu préprio caminho ao an- dar, ¢ disso este livro é a crénica mestiga. Mestica porque as ‘demarcagies entre mapa e crénica nao esto claras e existe um especial sabor que resulta dessa mistura; e oxalé essa mis- tura ndo desgoste demais ao leitor. Por provir de um ambito de reflexao duplamente fora do, exterior ao, campo da comunicagao, como sio a filosofia e a antropologia — nada mais litigado com o pragmatismo ins- trumental dominante desde os seus inicios nesse campo de estudo que o pensamento filoséfico, enada mais afastada de sua obsessio disciplinar que a aposta antropolégica contempora- nea—, meu trabalho implicou uma permanente tensdo coma tendéncia hegeménica a recortar seu espaco para cercé-lo e especializé-lo, Daf que minha investigagao tenha sido dedicada em grande medida a “minar” as segurangas que 0 objeto pré- prio procura, abrindo orificios por onde oxigenar o campo e conecté-lo com as preocupagies da reflexdo filosGfica e as buscas das ciéncias sociais, tematizando insistentemente as mediagSes que articulam as préticas de comunicagao com as inamicas culturais e os movimentos sociais, Mas também me senti fora de lugar em outro sentido: se 0 meu talante floséfi- co incomodou constantemente aos peritos comunicélogos, minha aposta em situar a andlise dos processos, os meios e as priticas de comunicagéo num lugar central das ciénciassociais deslocou meu trabalho até torné-lo irreconhecivel durante inmooucho a ‘muito tempo para boa parte dos pesquisadores sociais e mais ‘ainda entre 0s filésofos... E isso apesar de que minha “divisa” tenha sido pensar as mediagdes e investigar a comunicacdo a partir da cultura Desse deslocamento tenho experiéncias desde a minha primeira intervengo piiblica no que acabou por ser o primei- ro encontro internacional de estudiosos e de escolas de co- municagdo da América Latina, organizado em 1978 por Héctor ‘Schmucler na UAM - Xochimilco, da Cidade do México. Na- ‘quela primeira “comunicago” apareciam, balbuciadas, aque- Jas senhas que, com a passagem do tempo, seriam os sinais de identidade da minha reflexio ¢ investigagio: invertendo o sentido da idéia— ja entdo critica —a comunicagao como pro- ‘cesso de dominacao, propus 0 estudo da dominagao como processo de comunicacdo. Que “traduzia” a anélise de Paulo Freire sobre a opressao interiorizada pelas sociedades da ‘América Latina quando o oprimido viu no opressor seu teste- munho de homem. E inseria essa analise na concepgao ‘gramsciana da hegemonia como um processo vivido, feito ndio s6 de forcas mas de sentido. Compreender a comunicacao sig- nificava ent&o investigar néo s6 arguicias do dominador mas ‘também aquilo que no dominado trabalha a favor do dominador, {sto é a cumplicidade de sua parte, e a sedugo que se produz entre ambos, embora a rea¢do no possa ser mais cortante desde ambos 0s lados. Entre os comunicdlogos reinava o des- concerto: “mas se a comunicago é 0 contrério da domina- ao”, diziam os integrados (sem sabé-l0?). F entre os estudio- 0s sociais de esquerda estalou a raiva: “era o que nos faltava, agora resulta que os pobres, além do mais, so responsaveis por estar dominados”. 2 OFCIO DE CARTOGRAFO. Um segundo momento e plano de des-localiza;ao das minhas perguntas no émbito académico da comunica¢ao foi, desde muito cedo, a complexidade de relagdes que percebi entre cultura de massas e cultura popular. Nao & maneira dos Estados Unidos, que tende a confundir a “popularidade” do macigo com o popular, mas afirmando as relagdes hist6ricas da estética maciga com as matrizes narrativas e expressivas das culturas populares. Num momento dominado pelo maniqueismo mais puro e duro, que opunha 0 popular a0 ‘macigo como o auténtico ao falso, o autéctone ao fordineo, 0 puro ao impuro e adestrado, o horizontal ao autoritirio, des- cifrar, des-velar, no entramado narrativo ou gestual, argu- mental ou cenogréfico, dos formatos indiistriais do rédio, do cinema ou da televisdo a presenca de matrizes culturais pro- vvindas tanto das tradigbes populares da Europa come das da ‘América Latina atacava tabus demais ao mesmo tempo. Se a ‘cumplicidade dos dominados com o dominador resultava to inaceitavel, muito mais herética era a cumplicidade do popu- lar com omacigo. isso tanto paraa esquerda populista como paraa direita elitista. Porém, foi especialmente chamativo que a esquerda se negara a aceitar que, no proceso de gestacdo histérica daquilo que o Ocidente tem chamado de popular, desde o século XVIL intervieram processos de massificagio ‘Go fortes como os que conduziram a formagao das culturas nacionais; e vice-versa, que nos processos de fabricegio da cultura de massas, jé no século XIX, tenha desempenhado um papel decisivo a presenga de tragos ¢ formas reconkeciveis pelas malorias de suas proprias tradicdes e géneros culturais. A forte resisténcia que suscitou 0 des-locamento meto- dolégico e politico exigido pela “ presenca do popular no maci- InRODUGAD, 23 0" se fez ptiblica no primeiro grande Congresso Internacio- nal organizado pela FELAFACS com o titulo de “Comunica- doe poder”, em 1982, em Lima, que congregou pela primeira vet pesquisadores de toda a América Latina e da Espanha, com uma notAvel presenga, pela primeira vez, de pesquisado- res brasileiros. ‘Ainda que o tema de fundo fosse a relagéo da comunica- ‘cdo com o poder, a maioria das teses derivaram em diregio anilise do poder da comunicagao, com base no seu instrumen- to-chave: as “novas tecnologias’, assim chamadas naquele ‘momento. Eu acabava de chegar de um ano na Europa, reco- Ihendo documentacao para a encenagdo historica de “as ma- trizes populares do macigo centrei minha exposi¢ao na na contemporaneidade entre as tecnologias de comunicagao € seus modos de uso na América Latina. Incluida a assimetria entre a sintaxe dos discursos mididticos e a gramética das ‘mediagdes desde a qual a gente 0s Ie, os ouve @ os vé. Media ces essas que remetem menos aos aparelhos — sejam estes tecnolégicos ou ideolégicos — do Estado e mais ao que Hugo ‘Assman chamou “as formas populares da esperanca”, isto é a relagdo entre as formas de sofrimento e as formas de rebeliao popular, seus voluntarismos e suas firias, sua religiosidade seu melodramatismo, numa palavra, sua cultura cotidiana e, com ela, seus movimentos de resisténcia e de protestos, as expressées religiosas ¢ estéticas, ou seja, nao diretamente politicas, de seus movimentos. Pois na América Latina, dife- rentemente de na Europa e nos Estados Unidos, a cultura de ‘massas operava nao tanto dentro de um proletariado, que se~ quia sendo minoritério, mas de classes populares e médias, a cuja des-possesstio econdmica e des-enraizamento cultural corresponde uma meméria que circula e se expressa em mo- cy ‘OFICIO De CARTOGRAFO ‘vimentos de protesto, os quais guardam no pouca semelhanga ‘com os movimentos da Inglaterra de fins do século XVIII e da Espanha do século XIX. Isso nos chamava urgentemente ao estudo das pecullaridades da América Latina, do proceso de aculturagao das massas que, no caso da Europa, tinha socava- do as culturas locais, destruindo suas temporalidades e des- valorizando seus saberes, como se via densamente expresso nna perseguicdo das bruxas pela Inquisi¢ao. Sé os anarquistas foram a forca de esquerda que tinha entendido 0 sentido ao mesmo tempo ciimplice e subversivo da cultura popular, sa- bendo se apoiar em seus saberes e crencas para gerar consci- éncia revolucionaria®. Arreagao veio da voz escandalizada dum participante que, enfaticamente, me perguntou: “Se todos os outros conferen- cistas estdo falando do poder dos meios que hoje ccnstituem a tecnologia, o que vocé faz nos falando de bruxas e anarquis- tas? Pode me explicar de onde e a que vem essa obsessao sua pelo popular?” Minha resposta impensada — e que me tem dado muito a pensar depois — foi esta: “Talvez o que esteja fazendo, quando na pesquisa valorizo tao intensamente 0 po- ular, é render em segredo homenagem & minha mae’. O lon- go siléncio que se seguiu a minha resposta me fez perceber a rofunda surpresa que havia nela para mim mesmo. €, entao, dediquel Dos meios as mediagdes a tematizar as razdes e os motivos da relagio entre o deslocamento que minha posi¢ao te6rica carregava e a surpresa que eu proprio acabava de ter. Longo e dificil percurso, embora secretamente iluminado 23. Apuntes para una historia de las matrices culturales de la ‘massmediacién, Matriales para la comunicacién popular, n.3,Ipal, Lima (189). imamoougAO 25 (benjaminianamente) pelas palavras de Gramsci: “s6 investi- amos de verdade o que nos afeta”, e afetar vem de afeto. Mas meu deslocamento mais fecundo, em relaglo tanto 40 Ambito da pesquisa social como agenda convencional dos ‘estudos de comunicagaio, foi evidenciado pela minha “afeic&o intelectual a telenovela”. Se havia um produto ¢ uma prética comunicativa na qual se fazia evidente o melhor e o pior da cumplicidade entre o popular e o macigo era esse género, neto pastardo da tragédia grega e da pantomima melodramética em que, a maneira da rua, se encenou a RevolugSo Francesa; 2 telenovela era filha também bastarda do folhetim franco- inglés e da radionovela cubana, postos lado a lado, desde os inicios da televistio da América Latina, pela sagacidade publi- citéria da Colgate-Palmolive. Diante de todos aqueles para os quais constitufa unicamente o subproduto cultural mais mar- ginal a grande CULTURA, a telenovela converteu-se, para mim, rna manifestac3o mais significativamente latino-americana do residual, no seu duplo sentido: o daquilo que nao importa, esse “resto” que fica quando se tira o que vale, e aquele outro que the outorga R. Williams: 0 que do passado se acha ainda den- tro do processo cultural como um elemento vigente*. E foi essa contradi¢ao que fez do projeto de investigagao que, sobre Melodrama, cotidianidade ¢ usos sociais da teleno- vela®, procurei compartir com colegas de diversos paises da ‘América Latina, em meu ano sabético de 1985, um verdadeiro divisor de 4guas. Pois enquanto a “cidade letrada” e a “gera~ 24. R. WILLIAMS, Teorfa Cultural, in Marxismo y iteratura, Pentnsu- Ja, Barcelona, 1980, 164, 25, Projeto quese elaborou a parti dotexto La telenovela en Colombia: television, melodrama y vida cotidiana, DIA-LOGOS de la Comunicacién, 1.17, Lima (1987). % ‘OFICIO De CARTEGRAFO 40 madura” — com poucas excegbes —se negaro,comolhar misericordioso as vezes, e outras com forte rejeigdo, a partici- par do projeto, os colegas mais jovens e mais pertodo “mun- do audiovisual” néo sé apoiaram o projeto mas o enriquece- ram com olhares muito mais afinados para miitiplas dimen- des que eu nao tinha previsto, Pois eles captaram que aquilo ‘que nessa pesquisa estava verdadeiramente em jogondoeram. as razbes de sucesso de um programa de televisio, ra maioria das vezes ideologicamente reacionério e esteticamente imper- feito, facil e barato, mas 0 des-centramento do olhar que nos Possibilita indagar o que, na comunicago, ha do mundo da gente comum: tanto do lado dos produtores, negociando en- tre as logicas do sistema comercial —estandandizagéo e ren- tabilidade —e as dinémicas da heterogeneidade cuitural dos aises e das regides, como do lado dos espectadores e seus arentescos de leitura configurando comunidades herme- néuticas.a partir das diversas competéncias culturaisque atra- vessam os haveres e saberes, os imagindrios e as memérias, de classe, de etnia, de género, de idade. Desprezar o melodrama e, nos tiltimos anos, a telenovela tem sido um dos modos como a elite de direita e esquerda se distingue/distancia dos humores do populacho. Distancia- mento que vem de longe: confundindo iletrado com inculto, as elites ilustradas, desde o século XVIII, ao mesmo tempo em. que afirmavam o povo na politica o negavam na cutura, fa- zendo da incultura o trago intrinseco que configurava a iden- tidade dos setores populares, e 0 insulto com que tapavam. sua interessada incapacidade de aceitar que, nesses setores, Poderia haver experiéncias e matrizes de outra culture. Fé por isso que levo anos preocupado com a persisténcia do “olho INTRODUGAD, a gordo” que insensibiliza boa parte das ciéncias sociais na ‘América Latina aos desafios culturais colocados pelos meios, insensibilidade que se intensifica — agora re-legitimada pe- Jos novos profetas do apocalipse, como K, Popper e G. Sartori —em diregao & televisai Foi, talvez, meu préprio estranhamento de origem, meu deslocamento na “cidade letrada”, que me permitiu vislum- rar aquilo que na telenovela remete, por balxo e por cima dos esquematismos narrativos e dos estratagemas do merca- do, as transformagOes tecnoperceptivas que possibilitam as ‘massas urbanas apropriar-se da modernidade sem deixar sua cultura oral. Pois $6 entao ser possivel uma critica capaz de diferenciar a indispensével dentincia da cumplicidade da tele- vvisdo com as manipulagdes do poder, e os mais sérdidos inte- resses mercantis, do lugar estratégico que a televiséo ocupa nas dinémicas da cultura cotidiana das maiorias, na transfor- magao das sensibilidades, nos modos de construir imagindrios e identidades. Pois, se gostamos ou desgostamos da televi- sio, sabemos que 6, hoje, ao mesmo tempo o mais sofisticado dispositivo de moldagem e deformagao da cotidianidade e dos gostos dos setores populares, e uma das mediacSes hist6ricas mais expressivas de matrizes narrativas, gestuais ¢ ceno- ‘gréficas do mundo da cultura popular, entendendo por isso no as tradigdes especificas de um povo, mas o caréter hibri- do de certas formas de enunciagio, certos saberes narrativos, certos géneros novelescos e draméticos das culturas do Oci- dente e das mestigas culturas de nossos pafses. E é s6 desde 26. Tomo a expressio do titulo que Paolo Fabri deu a um dos mais ecisivos estudos sobre a cultura de massa nos anos 1970; La comt, nication di massa in Italia: quardo semiético e malocchio de la socio- logia, Versus, n. 5, Milano (1973); 0 destaque é meu. = ‘OFICIO DE CARTOGRAFO essa eritica que podemos romper o perverso cftculo que conecta a “mé consciéncia” dos intelectuais com a "boa cons- cléncia” dos comerciantes da cultura. Des-territorializagSes: os lugares desde © quais pensamos? __ Minha extraviada aventura pelos caminhos da comunica- sao nao estaria completa sem tragar as méveis linhasde outro mapa: o de minhas sucessivas des-territorializagdes, nfo inte- Jectuais ou virtuais, mas corporais, as que foram me levando da Espanha Colombia em 1963, de Bogoté a Bruxelas em 1969, e dois anos depois a Paris; de volta & Colombia 2m 1973, embora jé ndo mais ao altiplano bogotano, mas a tropical Cali, a cidade de minha mais longa estadla. E, desde Cali, um ano em Madr, outro em Porto Rico, justamente no ano em que ‘calu o muro de Berlim”, e um semestre em Barcelona; a volta de Cali a Bogoté em 1996, e o impensado exilio no qual estou escrevendo esta introdugao, na mexicana Guadalajara Eo que esse périplo marca nao sao meras etapas de uma Viagem mas verdadeiras des-territorializagdes e re-colocagées, tanto da experiéncia como do lugar desde onde se pensa, se fala, se escreve. Que é 0 que carateriza, segundo. Bauman’ © intelectual-intérprete exigido na atualidade, diferentemente do intelectual-tegislador de ontem: o intelectual necessita de ncoras culturais sem as quais nao é possivel fazer a tradugiio de tradi¢des, porém nao pode perder o projeto universalista ue Ihe garante a comunicagao entre comunidades. 27. 2. BAUMAN, Legistadores e intérpretes. Sobre la mociemided, fa ee 1 Buenos Aires, 1997. snaroougko 2 E no movimento de transterritorializagéo que se exige dole, ao mesmo tempo, um lugar marcador de sua fale 0 n30- lugar como horizonte de projeto, onde se coloca hoje 0 inte~ lectual, a vida e 0 seu sentido. Jéas primeiras reencarnagdes deixaram varias marcas que ‘emergiram rapidamente da escrita: uma especial sensibilizacao aos deslocamentos, experimentada pelas idéias quando mu dam o lugar discursivo das disciplinas ou das ideologias, ou ainda mais quando passam o Atléntico ou o rio Bravo em di- rego ao nosso Sul, e a obsesséo por tematizar o lugar de onde falo. A primeira se acha bem presente ja em Comunicagdo ‘maciga: discurso e poder. Uma mostra: os debates/combates ‘em que me vi metido por perguntar como era possivel que, carregado com 0 denso peso positivista que arrastava, 0 es- truturalismo tivesse nos chegado a América Latina como uma doutrina de esquerda enquanto 0 pensamento generativo de Chomsky, que abria a lingiifstica ao estudo das praticas — “competéncia” e “performance” —se convertia com freqi cia, entre nés, numa trincheira da direita, A respeito da obses- sio pelo a partir de, ela tem trabalhado num duplo sentido. Primeiro, aquele que procurou assinalar uma mudanga de paradigma propondo pensar a comunicagdo a partir da cultu- ra, eque achou sua tematizacao histérica e epistemolégica na passagem da andlise dos melos as mediagdes. E depois oem- penho em nomear a América Latina nao como lugar no qual ‘se conservam praticas de comunicagao diferentes (ousejaex6- ticas), mas como lugar a partir do qual pensévamos diferente- mente as transformages que atravessam as praticas e as téc- nicas de comunicagio. Mudanga essa que se fol fazendo visi- vel em prinefpios dos anos 1990, e que pudemos experimen- tar juntos varios pesquisadores da América Latina quando, 2% ‘OFICIO DE CARTOGRAFO no fim de 1996, fomos convidados a Universidade de Sterling, na Escécia, no para fingir-nos de informantes nativas acerca das ex6ticas préticas culturais e comunicativas que sobrevi- vern em nossos paises do Sul — como sucedia com freqiién- la faz alguns anos — mas para debater com colegas euro- eus € norte-americanos da estatura de Stuart Hall, Daniel Dayan, Maryorie Ferguson ou Helge Roning o estudo que Philip Schlesinger havia feito de trabalhos de Néstor Garcia Canclini, Renato Ortiz e meus, A des-territorializagdio/re-colocagio que transtornou com, mais forga minha sensibilidade e meus mapas mentais foi sem dtivida o deslocamento, em meados de 1975, do altiplano andino de Bogota a terra quente—e a seu modo caribe — de Cali: no é essa cidade origem de alguns dos conjuntos mais valiosos ¢ de sucesso da salsa? O trépico de Cali foi o verda- deiro lugar de minha reencarnagao teérica em estudioso de comunicagao e do calatrio epistemolégico que a certificou. Uma cidade musical como poucas, e com uma juventude apaixona- da pelo cinema e pelo teatro, transtornou muito ripido 0 Tacionalismo de meu ser de filésofo nativo, abrindo-Iheo pen- samento em direcdo as novas experiéncias estéticas. E quando digo pensamento nao estou me referindo a meditacdo solité- Tia mas & construgdo coletiva e piiblica de um Departamento de Ciéncias da Comunicagéo, na Universidade del Valle, ca- paz de dar acolhida no tanto formal-curricular mas mental e cultural ao novo sensorium do grupo de jovens que queriam formar-se como “comunicadores sociais” sem deixar de ser origindrios de Cali, nem jovens. O calafrio epistemolégico, que testemunhoua verdade da mudanga experimentada, eavalidez do projeto académico empreendido, jé foi narrado noutros textos, porém deve constar também aqui. Teve lugar no Cine 3 IntmoougO ‘México, situado num bairro popular do velho centro da cida- de, numa quinta-feira, na sesso da tarde, com sala cheia es- scialmente de homens, enquanto viamos o filme A lei da sel- va, Tretava-se de um melodrama mexicano que levava seis meses em cartaz numa cidade na qual um filme com sucesso durava umas poucas semanas. Efol seu sucesso popular oque converteu ess filme em um fendmeno mals que socol6gico, quase antropolégico. Pouco depois de comecara sesso meus amigos professores e eu ndo pudemos conter as gargalhadas, pois s6 em clave de comédia nos era possivel olhar aquele rmostrenge argumental estético, bora osse visto peloresto dos spectadores num slénco assombroso para esse tipo de sala, Porém a surpresa chegou também rapidamente: varios homens chegaram até nése gritaram: “Ou secalam ou os tra- mos daquil” A partir desse instante, e afundado envergonha- damente na minha pottrona, me dediquet a olhar ndo ofime, mas as pessoas que estavam ao meu redor: a tenso emoci nada dos rostos com que seguiam as vicissitudes do drama, 0s olhos chorosos nao s6 das mulheres mas também de no poucos homens. E foi ai que, como numa espécie de ilumina- ¢éo profana, me encontrei perguntando: que tema ver ofilme que eu estou vendo com o que eles véem? Como estabelecer relagdo entre a apaixonada atengo dos demais espectadores ¢ nosso distanciado aborrecimento? E, por tiltimo, que viam eles que eu ndo podia/sabia ver? E entio de duas uma: ou me dedicava a proclamar nao s6 a alienagao mas o atraso mental iremedivel daquela pobre gente, ou comecava a aceitar que ali, na cidade de Cali, umas poueas quacras de onde eu rmorava, habitavam indigenas de outra cultura muito verdadel- ramente outra, quase tanto como as dos habitantes das ilhes ‘robriand. E, se 0 que acontecia era isto, para que e a quem 25//e® Sinai /UEG 32 COFICIO DE CARTOGRAFO serviam minhas minuciosas leituras semiético-ideolégicas? A. essa gente no, com certeza, e no s6 porque minhas leituras estavam escritas num idioma que no entenderiam, mas so- bretudo porque o filme que eles viam no tinha rada a ver com aquele que eu estava vendo. E entdo, se todo meu requin- tado trabalho desalienante e conscientizador néo ia servir & gente comum, para quem estava eu trabalhando? 9 calafrio se transformou em ruptura epistemoldgica: a necessidade de mudar o lugar desde donde se formulam as perguntas. E 0 deslocamento metodolégico indispensével, feito ao mesmo tempo de aproximacao etnogréfica e distanciamento cultural, ‘que pudesse permitir ao pesquisador “ver” junto com as pes- ‘s0as, € “contar” as pessoas 0 jé visto. Isso foi o que, com a pas- sagem dos anos, nos permitiu descobrir, na pesquisa, 0 uso social das telenovelas, descobrir que “aquilo de que se fala nas telenovelas, e 0 que é dito as pessoas, nao é algo queesteja de ‘uma vez dito, nem no texto da telenovela nem nas respostas as perguntas duma pesquisa. Trata-se de um dizer tecido de silénclos: os que tecem a vida da gente ‘que nio sabe falar’ — ‘e muito menos escrever —e aqueles outros com os cuais esta ‘entretecido’ 0 didlogo da gente com o que acontece na tela. Pois a telenovela fala menos a partir de seu texto e mais desde o inter-texto que formam suas leituras"®. Em poucas palavras, nosso achado foi este: a maioria das pessoas frui muito mais a telenovela quando a conta do que quando a vé. Isso porque ‘comeca contando o que se passou na telenovela, mas logo 0 que aconteceu no capitulo narrado se mistura com o que acon- tece as pessoas na vida delas, e tao inextricavelmente que a 28, J. MARTIN BARBERO, Televisién y melodrama, Tercar Mundo, Bogoté, 1992, 15. : Inoougo. 33 telenovela termina sendo o pre-texto para que as pessoas nos contem sua vida. E, da Colémbia a0 México, o cartégrafo se reencontrou comonémade, no por casualidade: a Colombia deslocou mals populagio nos iltimos anos que a Bésnia e Kosovo juntos — ainda que para a ONU esses milhées contem muito menos ‘0 México leva anos acolhendo exilados, transterrados, deslo- cados e outros ados (sem agé mas des-tinados) de toda nossa ‘América, e meu némade jé tinha lido em algum velho mapa {que 0 México se achava no seu caminho, no no de viajante mas de residente. E 6 nesta minha nova residéncia na terra que ‘adgquire seu mais pleno e fecundo sentido este livro, feito tam- ém de exilios intelectuats e de deslocamentos expressivos. ‘Uma agenda de comunicago com 0 novo século ‘So quase trinta anos de docéncia e pesquisa no campo daculturae, dentro dele, especialmente no da comunicagao, que cabem os contetidos sintetizados neste livro, e é em conflitiva continuidade com eles que vejo se configurarern novas interrogagdes muito fortemente ligadas as incertezas e ‘0s medas que traspassam este fim e comego de século e milé- nio, Pois, como em poucos outros campos, no da comunica- ao percebemos que o calibre das perguntas pertinentes socialmente relevantes nao encontram resposta nos compor- tamentos do saber que constituem as ciéncias, devolvendo ‘uma inusitada vigéncia a filosofia, Unico saber capaz de se encarregar das perguntas, pelo sentido tanto politico como ético das transformagdes que a técnica, hoje, medeia. Em uma entrevista sobre sua novela A caverna, Saramago vern em meu auxilio: “E um auténtico choque reconhecer que o retrato da au OFICI0 De CanrocRAFO caverna comega pela onipresenca da imagem”, mas junto ao mundo da caverna ainda nos resta “o mundo do artesanato de barro, no qual as maos vem, ao mesmo tempo em que to- cam. Meu artestio, que molda o barro nesta in-dis-sociabili- dade dos seus instrumentos perspectivos, é um demiurgo”; e conclu: “Quando recentemente alguém preocupado por con- figurar propostas para o novo século me formulou explicita- mente a pergunta: o que fazer? Minha decidida resposta fol: regresso a filosofia”®. Nunca antes se tinha feito tao evidente que pelo mundo da comunicagéo passa estruturalmente a encenagao em comum do sentido ou do sem-sentico do viver em sociedade, agora em escala global. Isso faz da comunicacao, como o foi para mim, aprendiz de fil6sofo nos comegos dos anos 1970, um enclave estratégi- co do pensar. Porém, pensar o qué? O processo de des-subli- macdo da arte, simulando, na figura da indtistria cultural, sua Teconciliagao com a vida, como pensaram os de Frankfurt? Néo. E isso apesar de tratar-se de algo inscrito no que jé eles erceberam como a principal ameaca: a razao instrumental, agora transformada em razo comunicacional, cujos disposi- tivos —a fragmentacio que desloca e des-centra, ofluxo que globaliza e comprime, a conexao que desmaterializa e toma hibrida —agenciam o fato de vir a ser mercado da sociedade. Atengao, no entanto, pois esse enlace com o pensamento dos de Frankfurt esta cheio de mal-entendidos. Pois, primeiro, o que denomino razio comunicacional se acha em oposig&o fla- grante ao consenso dialogal no qualo frankfurtiano Habermas vé emergir a “razdo comunicativa’, magicamente descarre- gada da opacidade discursiva e da conflitividade politica que 29... SARAMAGO, Entrevista sobre su titima novela La caverna, ET Pais, Madrid, 30 dez. 2000, 6.7. sneoougkO. 35 introduzem a mediagao tecnolégica e mercantil. E, segundo, a critica que fazemos da razdo comunicacional nao pode ser confundida com a condenagéo que Adorno e Horkheimer fi- zeram da técnica como parte constitutiva “da racionalidade éprio dominio" wer gue estamos tenando penstr eno 6 dein lado, a hegemonia comunicacional do mercado na sociedade: a co- municag2o convertida no mais eficaz motor do desligamento ¢ insergao das culturas — étnicas, nacionais ou locais — no espago-tempo do mercado e das tecnologias globais, Pois 0 que o fatalismo tecnolégico acaba legitimando é a onipresenca ‘mediadora do mercado, e com ela a perversio do sentido das demandes politicas e culturais que encontram de algum modo expressio nos meios, ademais da deslegitimagao de qualquer questionamento de uma ordem social a qual s6 0 mercado e as tecnologias permitiriam dar-se forma. Por outro lado, tam- bém o novo lugar da cultura na sociedade quando a mediacao tecnolégica da comunicagéo deixa de ser puramente instru- ‘mental para espessar-se, densificar-se e se converter em es- trutural, pois a tecnologia remete hoje ndo a novas méquinas ‘ou aparelhos, mas a novos modos de percepeao e de lingua- gem, a novas sensibilidades e escritas. Radicalizando a expe- rigncia de des-ancoragem produzida pela modernidade, a tecnologia des-localiza os saberes, modificando tanto 0 esta- tuto cognitivo como o industrial das condigdes do saber e das figuras da razdo", o que esta conduzindo a um forte apagar, borrando-se as fronteiras entre razdo ¢ imaginagao, saber ¢ ‘30,7. W. ADORNO, M. HORKHEIMER, Dialécticadelituminismo, Sur, Buenos Aires, 1971, 184. 31.G. CHARTRON (dir), Pour une nouvelle économie du savoir, Presses Universitaires de Rennes, 1994; A, RENAUD, L'image: de économie Informationelle ala pensée visuelle, Reseaun,n, 74, Paris (1995), 14 ss, % FICO DE CaRTEGRAFO informagao, natureza artificio, arteeciéncia, saber perito eexpe- rigncia profana. O que a trama comunicativa da revolugio tecnolégica introduz em nossas sociedaces é um novo modo de relac&o entre os processos simbélicos — que constituem ocultural — as formas de produgao e distribuigao dos bens e servigos. 0 novo modo de produzir, inextricavelmente associado a um novo modo de comunicar, converte 0 conhecimento numa forea produtiva direta, “O que est4 mudando no & 0 tipo de atividades das quais participa a humanidade, mas sua capaci- dade tecnolégica de utilizar como forca produtivao que dis- tingue a nossa espécie como rareza biolégica, sua capacidade de processar simbolos”®. ‘A“sociedade da informagio” nao é, ento, somente aquela ‘na qual a matéria-prima mais custosa é o conhecimento, mas também aquela na qual 0 desenvolvimento econérrico, social ¢ politico se acham estreitamente ligados & inovacéo, que é 0 novo nome da criatividade e da criagao humanas. Observado desde esse ponto, o campo da comunicagao se apresenta hoje primordialmente configurado por trés di- mensGes: 0 espaco do mundo, o territério da cidadee o tempo dos jovens. Espaco-mundo, pois a globalizacao nao se deixa pensar como mera extensao qualitativa ou quanti-ativa dos estados nacionais, fazendo-nos passar do internacional (poli- tica) e do transnacional (empresa) ao mundial (teenoeconomnia). O globo deixou de ser uma figura astronémica para adquirir plenamente uma significagao histérice®. A{ esto as redes pon- 8@,M. CASTELLS, Laera de la informacién, v1, Alianza, Madd, 1987, 58 e 369, 33, Ver na Segunda Parte: Imaginérios da globalizacdo ¢ imagens do ‘mundo. INTRODUGAD, a go em circulagao, ao mesmo tempo, fluxos de informacao {que so movimentos de integragao & globalidade tecnoeco- ‘némica, mas também 0 tecido dum novo tipo de espaco reticulado que transforma e ativa os sentidos do comunicar. Terrt6rio-cidade pois nele se configuram novos cenérios de comunicagao™ dos quais emerge um sensorium novo, cujos dispositivos-chave sio a fragmentagao — nfo 86 dos relatos ‘mas da experiéncia, da desagregacdo social — e 0 fluxo: ininterrupto fluxo das imagens na multiplicidade de telas — de trabalho e écio—enlacadas. E onde esse sensorium se faz social e culturalmente visfvel hoje € no entretempo dos jo- vvens, cujas enormes dificuldades de conversa com as outras geragdes aponta para tudo o que na mudanga geracional hé de mutagao cultura. ‘Aconteceu hé cerca de quatro anos, enquanto empacota- ‘va minha biblioteca para retomar de Cali a Bogota: descobri um pequeno livro de Margaret Mead — Cultura e compromis- ‘50 — que apareceu publicado no comego dos anos 1970 e que no tem deixado de me inquietar e me acrescentar, desde en- ‘do. Pois af achei outro “mapa notuno” sobre a relagao entre a aceleragdo das transformagées na cultura e os modos de ‘comunicar com 0 aprofundamento de nossos medos da mu- danga, Para enfrentar esses medos, aantropéloga nos propée reinserir o futuro, Se jé para os ocidentais 0 futuro esta adian- te, para muitos povos orientais o futuro esté atrés, ea possibi- lidade de construir uma cultura “na qual o passado seja util e no coativo” passa pelo fato de “assumirmos o futuro, pois ja {34 Sobre os novos cenérios de comunicagéo: Transformagbes da ex- periéncia urbana, na Segunda Parte. 35, Uma reflexdo sobre mutagio cultural, jovens e escola: Desafios caulturais da comunicagdo & educacio, na Segunda parte. 38 OFICO Be caRrocRArO esta aqui, mas necessitado de que o ajuciemos a nascer, por- ue do contrério seré tarde demais”®, ‘Nao posso terminar esta introdugo sem evocara ALAIC, a Associago Latino-Americana de Investigadores de Comu- nicagao, a cujo ritmo se fez, durante um bom pedeco, este Ii- vro. A ALAIC soube mesclar no seu inicio — fins dos anos 1970 —a utopia democrética de comunicagaio com a solidarie- dade militante em direcéo aos exilados de Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, convocando os pesquisadores da América Latina a se encontrar num projeto comum que tomasse real {sso que constitufa nosso objeto de estudo: a comuricagao. Se @ ALAIC nasceu pobre em recursos — o que nos obrigou a pOratrabalhar a imaginagao, fosse para nos reunir, fosse para financiar projetos, de que sdo exemplo as bibliogravias nacio- nais de pesquisa em comunicacao que publicamos nos anos 1980 —, isto se viu compensado pelo vigor do pensamento ue soube propiciar, material do qual se nutriu meu extravia- do filésofo no seuempenho por investigar a comunicecao desde a cultura. Por isso 6 dever de meméria deixar aqui constancia da arriscada busca, compartilhada com Patricia Anzola, nos- sa inesquectvel pioneira colombiana em estudar as politicas de comunicagao, junto com Elizabeth Fox, com o botiviano Luis, Ramiro Beltrén, com os venezvelanos Antonio Pasquali Luis Ani- bal Gomez, Elisabeth Safar, Oswaldo Capriles, Marcelino Bisbal, com os argentinos Héctor Schmucler, Mabel Piccini, Alcira Argumedo, Heriberto Muraro, Patricia Terrero, Maria Cristina Mata, Sergio Calleti, com os brasileiros Luis Gonzaga Motta e Regina Festa, com os peruanos Rafael Roncagliolo, 36. M. MEAD, Cultura y compromiso, Granica, Buenos Aires, 1971, 106-106. inmeonugko. x Luis Peirano, Teresa Quiroz e Javier Protzel, com as mexica- nas Fatima Fernandez e Beatriz Solis, e com os chilenos Fernando Reyes Matta, Giselle Munizaga, Diego Portales. ‘Anos depois a ALAIC atravessaria desertos e tempos de exis- tencia subterrénea, dos quais sairia gracas ao esforgo de bra- sileiros como José Marques de Melo, Ana Maria Fadul, Maria Immacolata Vassallo de Lopes, Margarida Kunsch e mexica- nos como Rail Fuentes, Enrique Sanchez Ruiz, Rossana Regullo e Guillermo Orozco. ( trabalho da ALAIC tem sido enriquecido desde mea- dos dos anos 1980, e especialmente nos anos 1990, pela con- tribuigio de pesquisadores procedentes de outros campos, ¢ com os quais se construiu na América Latina, um campo pré- prio, o dos estudos culturals de comunicagdo. Entre eles, Néstor Garcia Canclini ocupa um lugar decisivo por seus trabalhos pioneiros ao tracar uma agenda latino-americana para os es- ‘tudos culturais, ao recolocar tanto os limites das disciplinas — antropologia, sociologia, comunicagio— como as discur- sividades e narrativas nas quais possa ser enunciada a com- plexidade das transformagGes culturais que vivemos, ‘como também ao re-pensar radicalmente o tipo de politicas culturais que podem trazer uma verdadeira democratizacao de nossas sociedades, sem fundamentalismos nem cultura- lismos. Beatriz Sarlo nos tern proporcionado uma liicida e permanente reflexao sobre o sentido da critica, atravessando, intertextualmente, desde a reinvengio dos valores no campo literario, passando pelo desmascaramento do “populismo de mercado”, que neutraliza o que, de resisténcia criativa, cons- truiram, em outros tempos, as culturas populares, até a tei ‘mosa sinalizaggo da orfandade ética e politica da qual padece ‘uma sociedade em transe de mudar, nao mais tomando como “© OFKIO DE CARTocRAFO ‘uias os intelectuais, mas sim os expertos e vedetes dos meios. Cronista maior das mudangas culturais de nossa América, Carlos Monsivais nos alertou primeiro sobre a autoria do su- Jeito popular na construgao duma nagao que acreditavam ha- ver construido s6 os politicos ¢ 0s intelectuais; depois, desco- briu para nés 0 estratégico papel do cinema ao corectar-se com o homem das massas, com o fim de fazer-se social e cul- turalmente visivel, e nos tltimos anos anda empenhado em, des-angustiar nossas identidadles ao pensé-las e cont-las no que tém de cambiantes e, ao mesmo tempo, resistentes, feitas tanto das memérias como das expropriagbes que nossas gen- tes fazem das culturas modernas. Desde o titulo de um de seus livros mais inovadores, Renato Ortiz nos trouxe umaatrevida articulagao lingiiistica— A moderna tradigao brasileira —que nos preparou para assumir os desafios que a globalizagio faz as ciéncias sociais: suas necessidades de pensar juntas, po- rém diferenciadas, as légicas unificantes da globalizaggo eco- n6mica das que mundializam a cultura, Pois a mundalizagio “um processo que se faz e desfar.ncessantemente”,néo por sobre as culturas nacionais ou locais mas desde suas préprias e radicais des-localizagdes. Com sua longa e densa experién- cia de trabalhador da cultura, Anibal Ford trouxe ao campo dos estudos de comunicagéo um olhar que reorientao traba- ho da reffexdo, tirando-o do debate, tantas vezes nercisista, académico, e re-inserindo-o na arena politica, para que seja ai na experiéncia social do cidadio, no conflito das ideologias — ‘que ainda existem —, na hegemonia cultural do mercado que ssejam colocadas & prova as nossas teorias. E, de um outro modo de fora, Nelly Richard removeu as guas dos estudes cultu- Tals, colocando como estratégicas, de um lado, a reflexio so- bre os avatares da meméria em nossos paises, no sé desen- INTRODUGAO 4“ volvendo a reflexo de Benjamin mas mobilizando-a para fa- zer pensével a atual tensdo “entre a petrificagdo nostélgica ea coreografia publicitaria’, essa des-historizacao do presente e ‘essa des-narragdo da meméria que efetua a redundancia da noticia; por outro lado, tem potencializado o significado do des-ordenamento dos saberes, 0 qual contém um poderoso chamado & indisciplina que possa desvelar os autoritarismos secretos e as inércias escondidas nas disciplinas académicas, explicitando a batatha cultural que se dé nos “confitose dese- nhos das falas’. Tudo isto para desorganizar as “méquinas inérias” e potencializar as forcas de des-centramento que habitam as margens. A esta curtissima lista deve-se agregar, para que seja urn pouco menos injusta, os nomes de José Joaquin Binner, Heloisa Buarque, Norbert Lechner, Oscar Landi, Roger Bartra, Anfbal Quijano, Octavio Ianni, Hugo ‘Achugar, Martin Hopenhayn, German Rey, Guillermo Sunkel, Beatriz GonzAlez Stephan, Alejandro Pisciteli. Areflexdo que configura a primeira parte — décadas de 1970 © 1980 — entretece trechos de textos tomados de livros esgotados faz.tempo: Comunicagao macica: discurso e poder e Processos de comunicagao e matrizes de cultura, além de ou- ‘os textos publicados em revistas e livros coletivos. A segun- da parte — anos 1990 — esta inteiramente tecida com textos tomados de livros coletivos e revistas. Embora em alguns ca- ‘sos se conserve o titulo dos artigos publicados, a totalidade dos textos que formam este livro foram condensados ou rees- critos, e essa reescrita nao sé condensa idéias mas recoloca- as, para dar conta das rupturas e dos deslocamentos. Pois mais que de uma seqiiéncia linear ou de uma continuidade sem 2 OFfcIo De casrocRAro Tupturas, se trata pelo contrario de dar conta das trensforma- $6es que tém articulado, desarticulado e rearmado o campo latino-americano da investigacao em comunicagao/cultura, combinando o olhar desde o interior dos momentos célidos com o balanco que deles se fez nos anos posteriores, GuapaLAalana, MEXICO, JANEIRO DE 2001 Capitulo 1 Ideologia: os meios como discurso do poder traco que deve diferenciar o enfoque da comunicagao das perspectivas originadas nos paises centrais é a concep¢&o totalizadora do processo comunicacional. Em outras palavras, trata-se de conceber a comunicacao em todos os seus niveis de funcionamento como aspecto do processo produtivo geral a sociedade. (CIESPAL, Documento de Costa Rica) Longe de ser esse elemento transparente ou neutro em que a sexualidade se desarma e a polltica se pacifica, 0 discurso é, ‘melhor dizendo, um desses lugares no qual sao exercidos, de ‘maneira privilegiada, alguns dos seus mais terriveis poderes. (O discurso nao é simplesmente aquilo que tradiuz as lutas ou ‘8 sistemas de dominacao, mas aquilo pelo que e por meio do qual se luta, aquele poder do qual a gente quer se apoderar. (Mics, Foucauut) No comeco dos anos 1970, as ciéncias sociais travam, na ‘América Latina, uma batalha particular, ao mesmo tempo con tra a fascinagio cientifica de um funcionalismo onipresente € contra a inércia de uma dogmatica e uma escoldstica marxis- 46 ANOS 1970, 1980: CONFGURAGAO LATNO-AMERICANA BO CAMPO tas. O que dessa luta ressoard mais fortemente no campo da ‘comunicagao é o esforco por romper a hegemonia de um ositivismo que separa a forma legitimada do cognoscivel do contetido do vivido socialmente, Da renovagio do peasamen- to marxista sobressaird o empenho de superar a redugio ‘mera “superestrutura” das praticas significantes e das tramas de sentido, Quanto ao tom beligerante dessa reflexio, o que ai aparece € 0 projeto de dentincia politica que atravessa a pes- quisa critica de ponta a ponta, articulando a forma deseu dis curso @ uma explicita tomada de posicao: se a comunicacao 6 cenario privilegiado da dominagao ideol6gica, nfo se trata entdo s6 de compreender o funcionamento discursivoda ideo- logia mas de fazer frente as implicagdes préticas de sua enga- nosa neutralidade. O residual negativo dessa beligeréncia nao Pode, apesar de tudo, ser escondido, pois o cardter denuncia- dor conduz a uma excessiva generalizago dos processos ea ‘uma unidimensionalizagéo do sentido das praticas. Iste foi ser dtivida o prego que se teve de pagar por se comecar a tornar cogitavel a trama de dominacdo que carrega a ideolcgia, es- pecialmente nestes paises, tanto a veiculada pelos meios ma- cigos como a que sustém o saber comunicativo. 1. Lugar de partida— A dominago que se esconde na teoria O sentido e o alcance da pesquisa na América Latina em termos de comunicagéo maciga, incluindo a leitura que ela realiza da teoria hegeménica e seus impasses, remetema uma nova consciéncia do processo histérico que faz possivel tematizar o problema da dependéncia cultural e, em particu- lar, 0 da produgao de conhecimentos, além de uma conside- ne eer [BFOLOGIL 05 NEIOS COMO DECURSO DO PODER a ‘ragdo que © poderia reduzir a mero problema de importagio de teoria,e mais ainda, para além de sua reducdo a simples reprodugio ideol6gica. Essa mesma consciéncia esté possibi- litando desmascarar 0 que as necessidades tecnotégicas de comunicagao significa nao s6 em sua dimenso econémica mas enquanto rearticulagéo, deformacao-imposigao de uma sociedade que possa sintonizar e funcionar com os requeri- mentos do mercado. A validade da teoria hegem&nica se in- sere ai, na luta contra a hipoteca que onera o pensamento na ‘América Latina ao converter o passado em inércia insuperé- vel, em impossibilidade de mudar o presente e nos dar um ‘0 novo. beam mistificagao separamo-nos lenta, dificilmente, re- escrevendo a histéria e mostrando como a falta de um pensa- mento critico e a fécil derivagao em dirego ao dogmatismo se correspondem: “O método aparece como um receituétrio artificial e abstrato das formas do conhecimento social ¢ os resultados de sua aplicagdo como uma dogmatica. O liberalis- mo chegou América Latina como uma dogmética — como um elenco de valores intocéveis —_mas o marxismo também. ‘Assim se configurou 0 fendmeno da transformacao de um. pensamento critico em uma escoléstica de esquerda”’, ‘A dependéncia nao se baseia, entao, na assungao da teo- ria que se faz fora, como acreditam ainda alguns defensores de um nacionalismo tresnoitado, O dependente é a propria concepgiio da ciéncia, do trabalho clentifico e de sua fun¢ao nna sociedade. Pois a dependéncia trabalha na interiorizagao ‘que fazemos da divisfo social do trabalho em nivel intern 1. A. GARCIA, ;Puede existir uma ciencia social latinoamericana?, Chasqui,n. 1, Quito, 34 uRs0 BO PODER ” 48 ANOS 170,198: CONRGURACAO LAINO-AMERCANA.DO CAMPO IDEOLOGIA: 05 MEOS CONG DICURSO DO | nal, segundo a qual estes paises ndo podem se permitir o luxo de fazer ciéncia; com a aplicagao da que fazem os outros esto cumprindo seu papel na histéria. A “fuga de céretros” no é explicével s6 pelo fator de uma melhor remuneragiio econd- mica ou de melhores possibilidades em laboratérios, pesqui- saete,; énecessério incluir a fascinagao que exerceo comple- xo cientifico, a crenca na ciéncia como valor universal e desin= teressado a servigo da humanidade, acima de qualquer desi- gualdade ou conflito histérico. Atadas por seus prvilégios ¢ excitadas pela mitologia do cientifico, as elites do poder lati- ‘no-americanas no viram nenhum inconveniente em renun- iar a produzir a ciéncia e a tecnologia de que seus pafses ne- cessitavam, favorecendo inclusive o éxodo dos cientistas para as verdadeiras “pétrias da ciéncia’ Em poucos campos do saber a fascinagio do cientifico 6 ‘ao viva quanto no da comunicagéo. E tém muito ¢ ver com {sso a incompreensao e a violéncia dos ataques comque é re- cebida a critica. “Ao recusar o conformar-se com apreendera comunicacdo como um mero objeto de observacdo, e a0 rojeté-la no movimento de um processo, o investigador jul- gaa posicao que a burguesia dé a pratica cientifica., por fim, impugna seu proprio status.” Isso porque a projegao no pro- cesso desmantela a pureza do tebrico, deixando a descoberto © projeto politico-econémico que a teoria racionaliza parado- xalmente, naturalizando-o e universalizando-o. O que os criti- cos latino-americanos comegaram por assinalar era algo que 8 empresarios sabiam de sobra, mas que a teoria, o seuefelto de cientifcidade, vinha apagar e escamotear: a origem politi- cea, &s vezes mesmo comercial das categorias e dos objetos esse saber. O desenvolvimento, seja tecnologico, seja dis- cearsivo, dos mass media, que se inicia nos Estados Unidos 20 findar a Primeira Guerra Mundial, foi diretamente vinculado Anecessidade que tinha o governo de homogeneizar as mas- sas em torno do consenso contido no proceso bélico. A pos- terior decepco dessas massas, ao ter conhecimento das ma- nipulagSes de que haviam sido objeto, nao diminuiu a forca da curiosidade e da fascinacdo de que se tinham imbuido os ‘meios. E, a0 desejo dos politicos de conhecer a influéncia que hraviam tido suas campanhas mass-midiatizadas sobre a po- pulacéo, somou-se o dos industriais e comerciantes de incrementar a eficécia da publicidade. A ciéncia das comuni- cagdes nasceu, asim, orientada para aperfeigoar e perpetuar “o estilo norte-americano de democracia”. Os possiveis efei- tos negativos dos meios, como a degradacdo da cultura, serao vvistos como meras disfungdes que 0 préprio sistema se en- carregaré refuncionalizar, ; Que tipo de sociedade acolheu os primeiros experimen- tos cientificos sobre a comunicagéo de massa’, pergunta-se LR Beltrén, e ele mesmo responde: “Tratava-se de uma socie- dade infelz, premida pela pobreza, pelos conflitos sociais, pela instablidade?, Absolutamente no, tratava-se de uma socie- dade préspera, feliz. Uma sociedade na qual a individualida- de predominava sobre o coletivo, a competicéio era mais determinante que a cooperagio e a eficécia econémica e a sabedoria tecnolégica tinham mais importancia que o desen- volvimento cultural e a justiga social. Era uma sociedade a ponto de se converter no império econdmico mais poderoso e 2. A. MATTELART, La comunicacin masiva em el proceso de Uberacién, Siglo XXI, México, 1973, p. 23 ” ‘ANOS 1970, 180: CONFGURAGAO LATINO AMERICANA D0 CAMPO influente do mundo, A marca da teoria sociolégicasobre os métodos de pesquisa foi lucidamente descrita por Mattelart em suas criticas & Communication Research: deslocamiento do centro de gravidade da problemética do meio de comunica- Ao para a psicologia dos receptores, redugio do critério de pertinéncia, do que pode ser pesquisado, ao contetido mani- festo das mensagens — tinico contetido detectavel empiri- camente e analisavel estatisticamente —, fragmentagio por tanto da mensagem em unidades cuja tinica relagio provém do somatério. Mas se 0 método enquadra assim as possibilidades do objeto da pesquisa — as técnicas de enquetes para a medigéo dos efeitos so plenamente complementares das anilises de contetido — é porque a teoria que o gera e alimenta, 0 empirismo sociol6gico responde a uma concepgao da objeti- vidade cientifica como neutralizagao da operacao de conheci- mento e como manuteng&o do status quo. “O fato de osistema sair virgem de diividas pde sua marca no conjunto das técni- cas empregadas, as quais se convertem assim em insrumen- tos de ajuste do sistema, eficam destinadas a suprir os pontos criticos que pdem em perigo o equilibrio social.’ Acritica tinha de ser radical: mudar de perspectiva exige nao sé mudar de método, pois no pode poupar-se o ‘questionamento da matriz epistemolégico-teérica dessa “cién- cia’. O metodol6gico nao é auténomo, sua coeréncia logica é parte do projeto teérico, de uma particular concepgao do ob- 3. L. R. BELTRAN, Premisas, objetos y métodos fordneos em la investigaciGn sobre comunicacion em Latinoamérica, mimeo, Caracas, 1976, 9, 4, A. MATTELART, Medios de comunicacién: mito burgués vs. lucha de clases, 52. |2EOLOGIA: OS MEIOS COMO DSCURSO DO PODER 3 jeto a partir da qual certos problemas so formuldveis ¢ abordaveise outros ndo, A armadilha do cientificismo consis- te precisamente em proporcionar ao pesquisador a oportuni dade ilus6ria de se sentir presente no processo social mas sem necessidade de tomar posse, sem assumir opeao alguma. Di- ante dessa ilusao, que sem diivida pode funcionar psicologi- ‘camente, embora a realidade social a jogue por terra, a ruptu- rateérica implica exigéncias concretas nonivel do projeto geral de transformacdo da realidade pesquisével. E isso tem inci- déncla sobre os objetos sobre os métodos. Ndo obstante, nao é pelos objetos e métodos que se opta imediatamente, mas pelo projeto histérico que os mediatiza e dota de sentido. E {sso sem cair na armadilha contréria, a de um politicismo re- dutor que intenta suplantar 0 trabalho tebrico por agitagéo politica. A proposta critica consiste em assumir que “s6 € ‘ci- centifico’, elaborador de verdade, um método que surja de uma situagdo histérico-politica determinada e que verifique suas conclusdes em uma prética social acorde com as proposigdes hist6rico-politicas nas quais se pretende inscrevé-las"® 0 novo ponto de partida se acha entéo no processo de fetichizagao do meio de comunicagao enquanto atuante, metamorfoseador das relagdes sociais em coisas, em nature- za, Isso com duas conseqiiéncias fundamentais: ocultar 0 pro- cesso de produgio, de elaboracdo das mensagens, e dotar 0 meio de uma forga magica que no é sendo o valor adquirido numa relagdo coisificada e transposta a ele. O processo de comunicagao, enquanto processo de intercémbio, prolonga torna mais denso 0 mecanismo produtivo geral; “a distancia 5-H. SCHMUCLER, La investigacién sobre comunicacién masiva, em Sin /UFG 52 ANOS 1970, 1980: CONFGURAGAO LATNO-AMERICANA 00 CAMO entre emissor e receptor é uma mera reprodugdo de espago ‘que medeia entre produtor e consumidor” E mais: apassivi- dade firmada e interiorizada por parte do.receptor é apenas uum aspecto da alienagéo social da qual participam os deis pélos do proceso. O produto-mensagem que o receptor consome leva jéinscrito em seu acabamento a “marca de fébriza”, seu canéter mercantil como pegada e modelo, ao mesmo tempo, do verticalismo e do autoritarismo geral que regem as rela- (Ges sociais. Essa marca é a que determina a forma mesma de sua recepgio, marca que é uma linguagem repressive, de co- ago, nao em forma explicita mas sim dissimulada, inguagem hipnotizante que esta na base do discurso ritual e autortério ‘com que uma classe encerra, fecha, recorta e controlaomun- do como uma ordem, uma legitimidade inapelavel, A expres so mais eficiente e clara é a linguagem publicitaria, essa lin- guagem que transforma sistematicamente as idéias e as coi- sas, reduzindo-as a sua forma mercantil, ao tomar operatizan- tes tudo o que toca, desde 0 angulo exato da posse. E isso por um processo de semantiza¢ao no qual os jogos de palavras, as hipérboles, os procedimentos de adjetivaco inocentam o pro- ‘cesso, sem ocultar, porém, de todo, a “marca de Fabrica”, essa ideologia que se empenha em separar semanticamente as di- ferengas sociais, ao mesmo tempo em que as aumenta. Mas, se a burguesia chegou.a impor sua linguagem como a linguagem dos meios, néo foi por arte de magia, mas sim por outra “arte”: a do controle da propriedade, a do monopélio. ‘econémico dos meios, Desde 0 momento de seu nascimento, ela teve uma consciéncia muito clara do papel que iriam ter 0s 6. A. MATTELART, La comunicacién masiva em el proceso de liberacién, op. cit, 74 |BEOLOGIA:05 MEIDS COMO DECURSO DO PODER 3 eios, de “que a fusio da forga econémica e do controle de informagio, fabricagao de imagens, formacao da opiniéo pi- pica, chame-se isso como se quiser, chegaria a ser a nova quintesséncia do poder nacional ¢ internacional”, de que os, ‘meios iam possibilitar novas, sofisticadas e mais penetrantes formas de colonizacéo, mediante as quais a dominagiio deixa- ria de ser sofrida como uma opressao para ser sentida como uma alianga que converte o dominador em libertador. Agora, ‘tudo serd liberdade: de palavra, de empresa, de comércio. Como nos mostra Schiller, as declarages dos presidentes norte-americanos do pés-guerra sobre a liberdade de palavra ede opiniao terminam sempre em declaragdes sobre a liber dade de empresa e de circulago de mercadorias. A liberdade das comunicagdes traduziu-se, assim, em um “passo gigante” na liberago e na expansfo dos mercados norte-americanos. A trama ideol6gica das mensagens A significago—as “linguagens", as mensagens, a“comuni- ‘cagio” —nfio pode ser separada do funcionamento da socie- dade em seu conjunto e, mais especificamente, da produgao social, Pois.a significa¢do 6 o produto de um trabalho social, de uma prética que opera dentro da sociedade, do mesmo modo que esta produz bens no plano econémico e institul- ‘ges no plano politico. (Euiszo Veron) canéter estrutural dos processos cle comunicagao ma- ciga eo entramado mercantil dos meios vao encontrar na pro- blematica do ideolégico um campo estratégico de conver- géncia para a andlise. Essa perspectiva vai encontrar na criti j6n de masa ¢ imperialismo yanqui, 7H. [, SCHILLER, Comuni Gustavo Gil, Barcelona, 1976, 11. [54 ANOS 1970, 198: CONFIGURAGHO LATINO AMERICANA DO CAMPO [PEOLOGIA: 05 MB}OS COMO DSCURSO.DO PODER 55 ‘Segundo essa nova perspectiva, 0 ideol6gico trabalha no ambito dos processos e sistemas de codificagao da realidade, e esses sistemas de codificagao “nao séo meras excrescéncias das condigdes materiais mas todo o contrério: constituem uma dimensao central das condigées materiais mesmas, pois de- terminam a significagao das condutas sociais, e as condigdes ‘ateriais ndo so outra coisa que relagdes sociais”, Com 0 que, diante de uma tradi¢&o pertinaz, na qual o positivismo dé am@oa uma estendida vulgarizacao do marxismo, Verén sus- tenta a idéia de que a significagao nao é nada subjetivo e que a distingdo infra-estrutura/superestrutura nem coincide com a oposigdo objetivo/subjetivo, nem corresponde a ela, Mattelart desmascara essa mesma tradicéo que, como obstaculo, impede a justa valoracdo da problemética da comunicago por parte cde certos setores de esquerda aos quais a heranga de um “mar- xismo ventriloquo” incapacita para compreender o lugar ca- pital que o ideol6gico ocupa em um processo revolucionério: “quigé seja nesta separagao capciosa entre poder material & poder ideolégico, infra-estrutura e fatores superestruturais, que radica a pedra de toque das polémicas que no tém det- xado de se apresentar a propésito de nosso enfoque sobre 0 lugar que ocupaa comunicacao de massas na luta de classes”, A ideologia trabalha no terreno do nao-intencional, ou seja, néo consciente nem voluntirio, © modelo sociologista é tio insuficiente quanto o psicologista para dar conta do funcio- namento dos fenémenos ideolégicos. Nem pura manifestagao de interesses de grupos, nem manifestagao de tensées oufrus- ca da América Latina um forte desenvolvimento, tanto no nf- vel de sua configuragao tedrica como em suas possibilidades de anélise dos diferentes meios. Em 1967 realizou-se em Buenos Aires um simpésio sobre “Teoria da Comunicagao Modelos Lingitisticos em Ciéncias Sociais”, coorderado por E, Verén, eno qual esse autor apresentou um textoF que cons- titui o ponto de partida da nova perspectiva. Nesse texto, a0 mesmo tempo teérico e pritico, pois oferece a aplicago do modelo elaborado & anélise do discurso de imprensa, Verén recolhe e explicita uma série de propostas que, de forma me- nos elaborada, embora pioneira, apareceram em uma com- pilagdo de textos seus publicada com 0 titulo Conduta, estru- tura e comunicagdo. Desde esses primeiros textos, 0 que se configura é a possibilidade de tirar a problemtica ideolégica da moldura cléssica da sociologia do conhecimentc — que identificava 0 ideol6gico com as representagdes e, portanto, com a problemética da consciéncia e dos sujeitos — para inscrevé-la no espago da comunicagdo através do conceito de significagao como dimensao dos fatos sociais. £ todo o campo da superestrutura o que resulta re-apresentado, & luzdos no- vos processos histéricos que a comunicacao maciga configu- ra, assim como da ruptura que a lingtifstica estrutural opera no espago das ciéncias socials. © que em tiltimo termo é ne- cessdrio abandonar é uma concepgéo mecanicista do social, ‘que reduz a superestrutura a puro reflexo da base econdmica, uma concepcao idealista — por mais materialista que se pro- clame — que subjetiviza 0 processo ideolégico em termos de contetido de consciéncia, = {.1D, Conducta, estructura y comunicacién, Amorrorta, Buenos Aires, 1996, 271. 10, A. MATTELART, La comunicacién masiva en el proceso de Iberacién, op, cit 12. 8. E. VERON, Ideologia y comunicacin de masas, in Lenguaje y comunicacién, 133-120. 56 ANOS 1970, 1980: CONAGUEAGHO LATNO-AMERICANA DO CANPO ‘rages da personalidade. Para Verén, a ideologia é 0 modo natural de existéncia da dimensao significativa dos sistemas de relagdes sociais, e para Mattelart nela se trata de um esta- do que os individuos vivem “como uma natureza social”, pois, impée-se a eles por um modo de produgéo que impregna to- das as relacdes sociais. Se 0 modo de produgéo, enquanto sistema de relages socials, 60 que determina a forma de operar do ideol6gico, 0 ‘que a anélise persegue entao é seu principio organizativo, sua estrutura. E essa estrutura é precisamente 0 que nao aparece, ‘© que no é manifesto ou acessivel nem a consciéncie dos in. Gividuos nem as técnicas de anélise de contetido. A estrutura se coloca em outro nivel, latente, segundo, conotativo, Nesse nivel, qualquer mensagem, discurso ou texto se acha trabalhado pelo ideolégico e é suscetivel, portento, de uma leitura ideol6gica, tanto 0 discurso politico comoa revis- ta de modas ou 0 jornal da TV. O ideolégico deixa de ser um adjetivo atribuivel a certo tipo de discursos, para ser definido Como um nivel ce organizacao do seméntico, um “nivelde sig- nificagdo” presente em qualquer tipo de discurso e cujomodo de operar 60 dos mecanismos de selecdo e combinagao que a lingiifstica estrutural tem descoberto como as duas operacées ue dao lugar aos dois tipos bésicos de relacdo através das ‘uals se realiza a significagao, O novo modo de andlise nao ‘trabalharé com “categorias” classificatérias de palavrase suas quantidades representativas, mas com as regras seménticasa artir das quais se geram as proposigées, as mensagens. (Ora, se qualquer tipo de mensagem é suscetivel de uma leitura ideol6gica, a especificidade e a eficacia dessa leitura depencem por inteiro de sua capacidade de vincular as estru- turas de significagéo descobertas com “os processos de con- IDEOLOGIA:05 MEDS COMO DSCURSO BO PODER 9 fito em nivel de sociedade global”. Este seré, sem diivida, 0 ponto mais critico do método. Endo porque teoricamente no seja claro, ou seja discutivel em si mesmo, mas sim pela arti- culagdo desse conceito de ideologia com a proposta de Marx sobre a dominagio de classe no ideol6gico, ponto que, em eS forma mais fecunda, ainda que no isonto de dfculdades, foi colocado por Mattelart em A ideologia da dominagéo numa sociedade dependente, e cujo resumo poderia ser o seguinte: investigar a rede semantica, a estrutura significante no ie ideol6gico, é investigar o principio de organizagio @ partir do qual uma classe constréi seu discurso, através do qual con- verte em projeto comum seu projeto particular, disfargando sua dominagio ao desvincular esse projeto das relacdes so- ciais de produgao que o sustentam". Por outra parte, a proble- ‘maticidade do método reside na tentag&o, no perigo formalista «que subjaz a andliseestrutural, em sua tendéncia a encerrar os textos e a fazer do principio de “imanéncia” nao um momento ‘ético do processo de investigacso, mas sua chave, com a con- seqiiente dificuldade para estabelecer as relagées do texto com seu “contexto” histérico-social — desse modo, a fuga do «empirismo resultaria em uma nova forma de idealism. ' E esse ponto o que leva a converter a anélise estrutural em foco de uma polémica — marxismo vs. estruturalismo — cujascaracteristicas na América Latina vao ser muito especiais, dada sua incidéncia deta nas ltas politics, jé que a pressao dos aconteclmentos e a urgéncia de propostas préticas vo ‘empurrar o campo para dogmatizacoes, vulgatizagBes e opor- tunjsmos. Do que nao ha diivida é de que a convergéncia da “HL ID, La ideologia de Ia dominacién en una sociedad dependiente, Signos, Buenos Aires, 1970, 44-54 er {58 ANOS 170,180: CONFGURAGAO LATINO AMERICANA DO CAMPO andlise estrutural com a andlise que se realiza na América Latina sobre a dependéncia possibilitou nao sé um tipo de denéincia novo mas a abertura do campo das comunicagdes, macicas a um novo tipo de investigacdo®. E por meio dessas Investigagdes, em muitos casos inconclusas, “carnegadas", deficientes, tem-se ido fazendo inteligivel, concreta e impu. ‘gnavel a complexa rede da dominagio cultural. Néo s6 medi ante a transferéncia dos modelos, a imposigo dos valores e 8s pautas de vida, mas também pela deformagio radical aque € submetida a existéncia social desses povos. E se comegou.a Suspeltar dos “beneficios” e da democratizacdo que as comu- nicagées macicas aportam. E se comegou a enftentaro proje- to politico que sustenta 0 desenvolvimento tecnolégico seja no nfvel rural, seja no educativo, Existiram até governos que declararam o Pato Donald persona non grata e decretaram mobilizago geral contra a invasio por satélite Desde que ponto fazemos pesquisa? A persisténcia da teoria negada e a esquizofrenia da qual se alimentam os anos 1980 se iniciam com um claro refluxo da utopia revolucionéia © um marcado retorno das forgas conservadoras, E isto tanto nos Estados Unidos como nos paises mais de vanguarda da Europa. Por enquanto, na América Latina se inicia um pro- ‘cesso de transigdo das ditaduras para formas de “democracia Controlada” 20 mesmo tempo que nas velhas democracias se endurece a repressio. S6 a América Central parece ir na con- tramao: 0s levantes populares retomam o projeto e o idioma 12, Os trabalhos mais completos de organizagdo bibliogrética sobre ‘amudanga de perspectiva na pesquisa de comunicagdo macica, econ. tram-se no texto de L. R. Beltrén La investigacién em comunicaciin em Latinoamérica: indagacién com anteojeras 7, Caracas,1976; ¢ na biblio. ‘grafa recolhida no n°1 da revista Lenguajes, Buenos Aires (1974), Iof0L06x: 05 MEIOS COMO DSCURSD DO PODER 9 da revolugéo; tls levantes no entanto esto sendo aaa controlados, cereados, econémica e politicamente.E toda a ‘América Latina vive um “estado de emergéncia ee fem que, como afirma M. Piccini, “as formas oe dominacio deverdo necessariamente cobrir as debilidades das instituigdes civis incapazes de estabelecer um marco normativo ‘comum”®. Nos tiltimos anos o contflito entre o cardter inter- nacional da estrutura econémica e o caréter nacional da esfe- ra politica tamou-se insolivel. Embora, por sua ver, se tenha convertido, paradoxalmente, numa das chaves da retérica dos ditadores, ret6rica com a qual se trata de mistificar 0 fato de que sao cada vez mais as transnacionais que ditam as normas tar as politicas nacionais. ee quisador em ciéncias socials, e em particular na area da co- ‘municagdo macica. Trés aspectos parecem-me especialmente Wvo contexto. Fe ce as Grape peice ds enero esto mudando: a “direita” comegou a perder a repugnancia a ccertos temas; além disso, estdo roubando as esquerdas alguns de seus mais prezados “objetos”, e submetendo-os a uma ope- ragio de lavagem e neutralizacio. A fragmentacio ea descon- textualizagio sdo colocadas como condigées paraa objetivacio, ouseja, para que uma problematica possa ser “tratada cient ficamente”. Assim, a problemética da penetracio e da domi- nagio cultural é convertida na do intercémbio oudas relagdes interculturais; a problemdtica da nova ordem informativa é transformada numa questo de atualizagao das técnicas e dos a unicacion social 1S.M.PICCIN, Laimestgncin sobre neds de comuniccn sa ‘en América Latina. SituaciOn actual y alternativas, mimeo, México, 60 ANOS 570.1980: CONRGURAGAO LATNO AMERICANA D0 CAMP ‘comunicadores— porque a causa do desequilibrio informati- ‘vo estaria na baixa preparagio técnica e profissional do Ter- ceiro Mundo. A problematica da comunicacdo participativa ou alternativa é transformada na desses novos meios que por si préprios vao permitir aos receptores converter-se er emis- sores. Ndo poucos comecam a sentir 2 confusdo. Os campos de luta jé no estao tdo definidos como hé tempos. E xn mui- tas ocasides no esté nada claro o sentido, isto é, saber-se a servico de quem ou de que se trabalha, A época das grandes dentincias — sempre necessérias — parece dar lugar a um. trabalho mais obscuro, mas ndo menos arriscado e dificil: a luta contra o amalgama eclético e a funcionalizagéo da criti- ca, a luta contra um neopositivismo ambiente, que volta a por, agora mais sagaz e sofisticadamente, o trabalhocient fico ao trabalho politico. Tudo isso, inclusive, adubado pelo desencanto, pela divisdo e pela confusdo que minam as dife- rrentes esquerdas. Segundo, as novas teonologias de comunicagao sao apre- sentadas e recebidas como a matriz.de um novo modelosociel, de uma pseudo-utopia com a qual o capitalismo conjura sua crise e pretende se salvar dessa vez. Embora se venha atratar disso mais em detalhe, como um dos campos estratécicos a investigar, deixemos colocado o aspecto que mais interessa. Para uma reflexdo critica que continua seriamente amarrada a uma concepeao instrumentalista da técnica, o peso histéri- Co.¢ a trama politica dessas tecnologias, a racionalidace que elas materializam, escapam, desaparecem. Trata-se do fasci- nio ou da rejeig&o maniquefsta, quando o necessdrio e urgen- te é por em relacionamento as “possibilidades” que essas tecnologias oferecem com 0 modelo de sociedade em que se inscrevem; nao para rejeité-las, mas para compreender sua [DEOLOGIA: 0 EDS COMO DSCURSO.DO PODER a verdadeira configuragio eo seu alcancena manutengéoe tam- pém no reforgo das atuais estruturas sociais e das “mudan- gas” que sem duvida acarretam. Em terceiro lugar, temos aquela que é, a cada dia, a mais estreita e mais especifica articulagdo econémico-politica das comunicagSes com 0 processo social global. No plano econd- mico, “as comunicacdes esto penetrando até o coragio do trabalho e do sistema produtivo", ndo s6 pelo aporte fun- damental dos meios 20 proceso de valorizagio do capital, mas pelo papel que a informagao desempenha como matéria-pri ‘made qualquer produgdo, e inclusive porque redefine os pré prios processos de procucao. No plano politico, as novas co- municagées, resultantes do encontro da telecomunicagaocom a informitica, vém rearranjar seriamente a fungéo ¢ as rela- ‘gBes do Estado, especialmente do Estado e dos Meios, a partir do controle que umas poucas transnacionais exercem sobre a investigagao e a produgéo neste campo. E todo 0 modelo de- mocrético ocidental que esta sendo afetado pela diregao na qual marcha a sociedade informatizada ‘Armadilha em forma de tema, a problemética do fazer teérico segue sendo vista, na América Latina, como algo sus- peito, Por parte da direita porque fazer teoria é um luxo reser- ‘vado aos paises ricos, sendo o nosso papel aplicare consumir, Pela esquetda porque os problemas “reals”, a brutalidade e a urgéncia das situagdes no dao direito nem tempo datividade te6rica. E isso embora a teoria seja um dos espacos-chave da dependéncia, Seja pela crenga na sua neutralidade-universa~ lidade, seja pela tendénciaa viver das modas, a buscar as fer- ramentas te6ricas nao a partir dos processos sociais que vive- 14 Extratos do informe NORA-MINC sobre la informatizacién de la sociedad, UNESCO, Pars, 1978. ea ‘ANOS 1970, 1960: CONFIGURACAO LATINO. AMERICANA DO CAMFO ‘mos, mas sim desde um compulsivo reflexo de estarem dia. Porém, a dependéncia nao consiste em assumir teoras pro- Guzidas “fora”; o que é dependente éa propria mesma dacién- cia, do trabalho cientifico e sua fungo na sociedade. Como emoutros campos, também aquio grave é que sejam exgenos ‘io os produtos, mas as proprias estruturas de produco. A investigacao critica em ciéncias sociais e particularmen- te no que se refere & comunicacdo macica, definiu-se quase sempre na América Latina por sua ruptura com ofuncionalis- mo". Mas talvez essa ruptura tenha sido mals afetiva que efe- tiva. O funcionalismo costuma ser desqualificado “em teoria’, orém se continua trabalhando a partir dele, na prética. Com freqiléncia, tem-se rompido somente com sua linguagem pré- pia, mas no com a racionalidade que o sustenta, E assim seguimos na armadilha do seu “esquema”. Primeiro foi amen- ‘sagem conta os efeitos. Depois 0 receptor contra a mensa- gem, que era um modo de voltar aos efeitos, porém “dinami zados’, ¢ no fundo muito além das proclamagées, a velha dicotomia ideologia/técnica escamoteando a materialidade e & peculiaridade dos processos. Como escrevi em outro ugar, © instrumentalismo funcionalista, por mais que se revista da teoria marxista, ndo pode romper com o verticalismo e a Lnidirecionalidade do processo comunicativo, pois sealimenta deles, como tem demonstrado bem dolorosamente a experi- Encia chilena e a concepgao consumista da cultura que suste- ve grande parte da esquerda, O esquema funcionalista no acionaliza, talvez, unicamente processo de dominacio do capital, mas também outras formas do politico, de exercicio do poder, as quais subsistem teimosamente em sua “negagao”, 18, L-R. BELTRAN, Premises y métodas fordneos ef lai i \ fas en la investigacién sobre comunicacn en Latinoamérica, mimeo, Caracas, 1976. —— [BEOLOGIA: 05 MEIOS COMO DISCURSO BO FODEE 6 Porque 0 que o modelo funcionalista impede de pensar 6 a pistériaeadominagdo, precisamenteo que racionaliza, ouseja, oculta e justifica. A contradigao e 0 conflito sao o que definiti- vyamente nfio cabe nesse modelo, De modo que a verticalidade ce aunidirecionalidade nao sao efeitos, porém a prépria matri2, do modelo, sua matriz epistemologica e politica. E é impor- ‘ante assinalar que essa matriz continua viva na cumplicidade que com ela mantém a lingiifstica estrutural, ao descartar a andlise da espessura hist6rico-social da linguagem, isto é, a0 deixar de fora.a complexidade e a opacidade do processo, tudo aquilo que excede e subverte o trangiiilo ir e vir da informa- «Go, tudo aquilo que é marca do sujeito histérico e pulsional, tudo aquilo que é poder, controle ou festa na comunicagao. ‘A persisténcia dessa teoria alimenta uma particular cesquizotrenia, Esquizotrenia que se faz visivel em tantas pes- quisas que se proclamam criticas, com uma concepgao totalizadora do social, porém cujo método, cuja prética anali- tica fragmentam o real e impedem de conhecer aquilo que inicialmente se colocava como objeto. Atencio, porque o pro- blema nao se situano émbito do “subjetivo”, néio é um proble- ma de erro dos pesquisadores. Essa esquizofrenia nos remete ‘outra vez & concepcao instrumentalista dos métodos e das téc- nicas, que é a predominante em nossas universidades através esses cursos de método nos quais se ensina “funcionalismo~ marxismo-estruturalismo”. E também naqueles nos quais 0s métodos so estudados desvinculados da histéria, dos pro- blemas e das disciplinas em se gestaram, convertidos em re- ceitudrios de técnicas, em fetiches cujo rigor interno — coe- réncia formal — pode garantir a verdade do encontrado além por fora das condigSes sociais do problema que se invest ga, ou cuja verdade interna pode chegar a suprir a observa- 6 ‘ANOS 1970, 1980: CONFGURAGAO LATINO AMERICANA DO CAMPO alguma, porque pesquisando o particular, sobre o que é pos- sivel intervir, se corre o rico de descobrir nao s6 angumentos para “criticar” o sistema, mas ferramentas para transformé- lo, Porém, essa esquizofrenia se plasma também na falta de Produgao e na abundancia de reprodugo, na auséncia de criatividade e na abundancia de divulgacao. Isso é outra for- ma de escapismo, escapismo do risco de abrir brechas novas emnome de um pragmatismo positivista e banal, que relegaa imaginagao & esfera do artistico, do literério, desterrando-a do trabalho cientificoe da atividade teérica, Pragmatism que se alimenta da concepgio epistemolégica segundo a qual in- vestigar se reduz.a tornar operativo um modelo, a aplicar uma formula, na qual a objetividade se confunde com a esta-stica. Diante da concepgéo instrumentalista, é necessério insis- tir hoje na assertiva de que um método niio é s6 uma ferra- ‘menta para abordar um objetivo-problema, é também um Ponto de vista sobre 0 objeto que impede ou possibilita que algo seja considerado problema. De maneira que nao se pode falar em abstrato que um método 6 mais eficaz que outro, e haveré que introduzir estas incémodas perguntas: Eficaz para que e para quem? Que é o objetivavel, a partir desse método, que insténcias, que dimensdes do real podem converter-se em “objetos” de conhecimento, em problemas? Isso porque se, sao atenta e rigorosa dos dados e dos processos empfricos, Essa esquizofrenia se plasma, por um lado, na tendéncia ao ‘eoricismo, a confundir pesquisa com especulagdo, na tendén- cia de um discurso vago e generalizante como qual se ‘rata de ocultar nao sé a falta de trabalho empirico mas também o escapismo politico: fazer investigacao para no ter que pasar 4 acdo, ou melhor, fazer um tipo de pesquisa que nao nos en- volva, uma investigagdo generalista que nao exija “pratica” InEOLOGIA: 05 HBOS COMO DSCURSO DO PODER 6 por exemplo, a tinica coisa que se pode pesquisara partir de ‘um método é o mensurdvel quantitativamente, ou 0 que se vé, todo. resto do “real” fica automaticamente descartado como no-objetivavel. E desse modo o possivel,o confit, a mudan- a, oimagindrio e o simbélico — que desde Marx e Freud for- mam 0 campo do real histérico e do pensével —ficam defini- tivamente fora da andlise. - ; Dois exemplos no campo da comunicagéo maciga: 0 mé- todo a partir do qual as transformages culturais sao vistas € reduzidas a efeitos dos meios, efeitos isoléveis e mensuraveis, no s6 delxa de lado por no poderem ser objetivadas outras variéveis do contexto social mais eficazes que os préprios meios, mas incapacita para compreender e abordar 0s pro- ‘cessos culturais enquanto processos sociais multidimensionais e de longo alcance, isto é, ndo quantificéveis pontualmente. E com isso é toda a problemitica da articulagdo entre sistema de produgdo e relagoes de poder que é radicalmente descar- tada. E 0 descarte dessa articulagao é o de certas mediagdes fundamentais como, por exemplo, a inscrigo da violencia te- levisada na espetacularizagio da vida cotidiana realizada pela ‘TVesuarelagao com a mercantiliza¢do do tempo livre, do écio. Empenhados porém em encontrar efeitos imediatos e diretos sobre os comportamentos, ou seja, incapazes de aceitar outro tipo de relagGo social, muitos investigadores continuam sem compreender que a eficacia do espetéculo, como a de qual- ‘quer ritual, nao é captavel nem mensurdvel segundo o esque- ma estimulo-resposta. 0 outro plano que quero resenhar é 0 da incapacidade das entrevistas e dos questionérios tradicionais para abordar a atividade de decodificagao que realizam os diferentes gru- ‘pos sociais ao “ler” as mensagens dos meios. Comomaisadian- 66 ‘ANOS 1970, 1980: CONFGURAGAO LATINO AMERICANA D0 CAMPO te vai-se retomar essa problemética, assinalo unicamente que ‘essa incapacidade nao é um mero problema técnico mas tem. ayer com a matriz epistemolégica e politica do modelo ao qual antes aludia, e segundo 0 qual a atividade — a produgao, a Palavra — se acha somente do lado do emissor, e do lado do. Teceptor s6 ha passividade ou reagio, escuta e consumo, Os diferentes métodos delimitam campos de objetos, & essa delimitagdo funciona como mediago de determinadas condigdes sociais, e € com essas condigGes que se confrontam ovalor € o alcance de uma investigacao. A relacdo dométodo com 0 abjeto coloca no sé a mediaciio do social em um sen- tido geral, mas também dessas outras mediagSes socieis parti- culares que possibilitam e/ou limitam a investigacdo como a divisdo social do trabalho e as ideologias profissionais. Isso. apesar de que a assungao dessas mediagSes implique, porexem- plo, aceitar a chantagem epistemol6gica que significa “azer da especializacdo uma justificagéo da fragmentago do real. Elementos para uma teoria critica do discurso E necessario comegar por esclarecer de que se -rata, E dizer, em primeiro lugar, que nao se trata de expli cimento por palavras nem de reduzir a comunicacao alingua- gem, Nao se trata de reduzir a histéria a discurso, mas de lero discurso, o discurso dos meios macigos, neste caso, como acon- ‘tecimento de poder. Que nao pode ser confundido com o dis- curso pronunciado pelo Poder, nem com a seméntica oficial dos politicos, mas que é esse outro discurso que trabalha qual- | quer matéria significante visual ou sonora, e cuja andlise con- siste em descobrir as operagdes por meio das quais se consti- tule realiza o controle. Uma analise que consiste em pao que DBEOLOGIN 0s MEDS COMO DSCURSO DO PODER a fala no discurso contra o que se diz. O que nele fala —isto 6, ‘0s conflitos sociais, politicos, econémicos, libidinais —contra ‘o que se diz, isto é, a retérica da liberdade, da felicidade, do ‘pem-estar. Opor o que fala o discurso da massmidiagdo ao que se diz é descobrir o que ele censura e nega, o que o impede de nomear, mas contra o qual nao existe mais remédio de que a acao. Dessa maneira, a negago que opera resulta sendo fir- magGo do negado. E o que é negado fundamentalmente so os gritos desse outro—dos dominados—,e que o obriga ase exceder, a perder controle, a recorrer a uma retérica que 0 expée ¢ torna-co vulnerdvel. A teoria de que precisamos nao é portanto aquela que, presana imanéncia do discurso, padece a ilusfio de uma auto- rnomia falaz. que a leva a pretender explicar os processos da ‘comunicacao maciga por fora dos conflitos histéricos que os engendram ¢ os carregam de sentido, mas aquela outra capaz_ de articular a investigagao sobre o discurso a das suas condi- ‘gBes de producao, de circulagéo e de consumo. Ou seja, uma teoria que comece a estabelecer relagdes nao-mecénicas en- tre os diferentes niveis do processo comunicativo: da produ- fo dos discursos como regime de propriedade dos meios, com os diferentes tipos de relagdo que com eles estabelecem os apa- ratos do Estado, e com as modalidades de decodificagao e ré- plica dos diferentes grupos sociais &s mensagens recebidas. Porém. isso exige modificar nao s6 as respostas que durante certo tempo temos vindo dando, mas inclusive as perguntas desde as quais interrogamos e formulamos os problemas. ‘No campo da investigagao dos discursos, as novas per- guntas comecam por exigit um rearranjo da perspectiva aportada pela lingiiistica e pela semniologia, e mais concreta- mente da redugao do discurso da comunicacéo a relagbes de 68 —_ANOS 1970, 1980: CONRGURAGAO LATINO AMERICANADO CAMPO significagao, de lingua, de estrutura, Porque o que essa redu: So impede pensar é 0 entendimento do discurso ec seu tra- balho e, por tal causa, sua insergdo no processo histérico ea insergao nele do sujeito pulsional. Ndo se trata de desconhe- ‘cer agora a contribuigo da semiolingifstica ao permitir rom- ercom uma concepgéo do ideolégico que o reduzia a “idéias”, a“representagdes”. E indubitével que a concep¢ao saussuriana a unidade significante-significado obrigou a penser de al- guma maneira a materialidade significante dos processos, que seu conceito de “valor” lingiistico permitiu quebrar a 'mecéinica positivista. Refiro-me & impossibilidade de reduzir © discurso ao lingliistico, A colocagao tem como base uma dupla suspeita bem antiga: a de que a linguagem nao diz 0 que diz, ea de que o dizer nao se limita & fala; que alinguagem diz mais, muito mais do que acredita dizer, e que muitas coi- sas falam ainda que nao sejam linguagem. Modernamente, os “mestres” tém levado a suspeita mais long’, feito dela um modo de leitura da profundidade; ou melhor, dos “baixos fundos” da linguagem e dos discursos, ‘Marx, a propésito da moeda e da mercadoria, Freud com res- eito aos sintomas histéricos, os lapsos e os sonhos, Nieteche sobre as méscaras da civilizagdo e a moral. Em tiltima andlise, éaleitura do trabalho ocultado, da interpretagdo velada que é ‘cada signo, da interpretacéo da interpretagao que impsem as. ppalavras, da violéncia que fazem as coisas enquanto seescon- dem sob 0 manto inocente da designagio ou do referencial, da significagao, Nesse mesmo tom de leitura, Barthes :em-se atrevido a escrever: “ndo vernos o poder que hé na Iingua Porque esquecemos que toda lingua é uma classificagac, e que 16.M. FOUCAULT, Nietzsche, Freud, Marx, Anagrama, Madrid, 1971, IDEOLOGIA Os WEIOS COMO DICURSO DO PODER o toda classificagio oprime menos pelo que néo permite ca do que pelo que obriga a dizer*”. Se 0 discurso & ig porque produ, e produz porque nele hé materia ¢ hé traba- Jno, ¢ no sé signos, estruturas de significacéo. Diante do idealismo — discurso sem matéria, sem objeto —, ciante do materialismo— discurso sem sujeito —, propomos 0 discurso-prética: lugar em que a lingua se carrega e é carre- gada de histéria e de pulsio. E ndo estamos nos referindo a0 discurso“literério” mas a0 discurso dos meios macigos, o que implica romper com essa recente mitologia da eseritura que, apondoradcalmentea“linguagem da comunicag"20"tes- ‘to poético”, faz deste o lugar da produgo, e reduz aquele & mera reprodugio e ao sujo comércio®. Claro que hé diferen- as, mas também equivaléncias. E pondo o trabalho e a pro- dugdo do lado da “escritura” se segue ancorado na mesma armadilha: palavra, a linguagem, os discursos da comuntca- ‘0, sfo condenados como mera, passiva transmissao da in- formacio. E assim se reintroduz 0 alibi que consiste em ino- centar o discurso da comunicagao, agora jé nfio desde a mito- logia positiva da neutralidade mas desde seu aparente con- ‘rdrio, Diante disso, nossa proposta é que, a0 “afundar” o dis- curso macigo na espessura das matérias e dos corpos, e a0 fazer emergir seus baixos fundos, com o que topamos verda~ detramente é com a histéria, a historia feita discurso do poder edo desejo, Nao de um poder e de um desejo abstratos mas desses bem concretos que amordacam e lutam no cotidiano de nossas massas da América Latina GIR BARTHES, Lecciin inaugural, College de France, ragmentos cai en Le Monde, Pats (0 an. 197, ie 48. Jacques DERRIDA, De Ja Grammatologis, Sigio XX Buenos Aires, sett 70.__ANOS 1970, 1980: CONFGURAGKO LAING AMERICANA DO CAMPO [REOLOGIA:05 MBOS COMO DSCURSO DO PODER n ‘A questéio do poder constitui a prética do poder. Isso em qualquer nivel, desde 0 dominio familiar e 0 da escola até o nivel do poder do Estado. ‘Ainelhor prova disso que o poder tem reclamado sempre 0 controle da linguagem e dos discursos. Nao ha sociedade, por pequena que for, que ndo regulamente a produgio e a distri- bbuigo dos discursos®. Toda palavra tem — ou pode ter — ‘conseqiéncias socials", e desde esse momentoo qué, oquem, como o.com que, todo o dispositive discursivo, serdo obje- tode uma cuidadosa e constante regulagio social. A regulagao das linguagens e dos discursos é uma das chaves da organi- zagio e do “equilfbrio” das sociedades. Essa regulagao esté diretamente ligada & legitimago da dominacao que possibili- ta esse “equilfbrio” e essa organizacao. De maneira que por sua vez 0 discurso aparece como um espago social em que se fundamenta toda uma série de hierarquizagées na organiza- ‘Go da autoridade. Nao é qualquer um que tem direlto a falar, nem todos podem falar de tudo. Hi pessoas que falam no para dizer algo, mas simplesmente para garantir seu direito de falar e demonstré-lo®. Por exemplo, como a possibilidade de man- dar, de dar ordens, exige uma relago hierarquica, uma autori- dade, pode-se dar ordens com 0 tinico objetivo de afirmar que se possui a autoridade. © mesmo acontece com o interrogar. Como qualquer um nao pode fazer qualquer tipode perguntas, perguntar sobre determinadas questdes nio significa interes- se algum pelas respostas mas a afirmagio do direito deinterro- gar. Sao procedimentos de controle, de exclusio, de ritualizagao dos discursos que atravessam de parte a parte a comunicagdo maciga, 0s dispositivos da massmidiagao. As ciéncias da linguagem — coma todas as ciéncias — parcelam e dividem. E esse parcelamento, que 6 exigéncia da “objetividade’, é j& uma forma de controle, de domesticagao, de neutraliza¢ao, Nao o afirmo em forma de lamento mas de simples constatagao. E, convertidas em diferengas, ascontra- dices so sistematizadas e os conflitos funcionalizados. A Propésito da linguagem e dos discursos isso se traduz na “in- capacidade” das ciéncias para abordar o problema darelacao do discurso com 0 poder. O poder é algo obscuro, ago que escapa aos esquemas. Dai que tenham sido os poetas ¢ os fil6- Sofos os que tém se atrevido a abordar a relacdo do discurso com 0 poder que é discurso. Para os fil6sofos, poder ediscur- so se imbricam no problema da verdade; esse problema-n6 que disfarga e traduz, desde os pré-socréticos, o problema da relagdo do saber coma organizacao da cidade, da polis". Para 0s poetas, poder e discurso se articulam desde a materialidade mesma da linguagem vista como trabalho, poténcia,transfor- ‘magio, corpo e prazer. Ninguém como os poetas — poiesis 6 um fazer — sabe quao pratica é a linguagem, a pratica ce poder que nela habita e que a partir dela se exerce. O discurso é poder, lugar de uma luta especifica pelo po- der. E essa luta faz parte de suas condicdes de procucio e de circulacao, De maneira que estudar as regras do engendrar do discursivo é estudar regras e relagdes de poder. Istoé, nao se trata s6 de que o poder utilize o discurso como arma, como sofisma, como chantagem, mas de que o discurso faz parte constitutiva dessa trama de violéncia, de controle e de luta que 20. M, FOUCAULT, El orden del discurso, Tusquets, Barcelona, 1970. 21.4 R. SEARLE, Les Actes de Langage, Herman, Paris, 1972. Sibi/UFG 18, Julia KRISTEVA, Semiotiké, Seull, Pars, 1969, 66 ss = 72 ANOS 1970, 1980: CONFGUEAGAO LATNO-AMERICANA DO CAMPO Pensadio assim, como pritica, 0 discurso se camega de volume histérico. J& nao é simplesmente algo que esté af e ue depois, artificiosamente, vai se tentar inserir na histéria, Porque as praticas, ¢ entre elas as discursivas, so aquilo em que a histéria se faz e se desfaz, avanca ou retrocede, emho- ra 0 discurso se entreteca a histéria, sobretudo fazendo-a aceitavel. Esso acontece, de um modo especial, nos tempos de “crise” como o nosso, quando os discursos participam massi- vamente dessa forma de controle profundo que consiste em fazer que os povos, as massas, aceitem como respirévelo que thes asfixia. J. P. Faye” investigou a transformagao des dis- cursos nos tempos de Mussolini e Hitler. E trouxe a baila as formas pelas quais a corrupgo dos discursos penetrou os acontecimentos fazendo aceft4vel a impostura para milhdes, de homens. Como no jogo da circulago dos relatos, fol-se construindo essa “mudanga de forma”, essa reescritura da histéria que convergiu em dois sintagmas aparentemente ino- fensivos: “nacional-socialismo” e “Estado totalitrio, Ecomo essa transformagdo que legitima e faz aceitével a impastura se efetuou nao s6 através e desde os discursos “politicos”, ‘mas também nos filos6ficos, nos literdrios, nos jurfdices, no da biologia, e no discurso da ficgao tanto como no histérico. ‘Todos participaram da produgao e circulagao da “mensagem” fascista e narista, porque todos trabalharam desde o mesmo ‘c6digo de poder. A frase com que Faye fecha a primeira par- te desua pesquisa explicita o objetivo, o que verdadeiramente importa ao analisar os discursos: que o relato que conta a maneira como se fez aceitavel a opressio inicia a libertagdo. 22. J.P. FAYE, Theorie du récit, Herman, Paris, 1972; também: Lengugjes ttalitarios, Madrid, 1974 IDEOLOGiK Os WEDS COMO DSCURSO DO PODER 1B A questo do desejo Sea questio do poder mina a falsa neutralidade do discur- 90 —a que resulta de um mero tratamento I6gico-formal — a ‘questo do desejo leva mais longe 0 assunto, ao minar o dis- farce da “objetividade” da linguagem sem sujeito, A primeira ‘ese sobre Feuerbach condena o velho materialismo de haver se enredado no objeto, deixando que seja 0 idealismo que desenvolve a questo do sujeito, 0 aspecto ativo e subjetivo do real, reforando assim a dicotomia sujeito/objeto com a dicotomia atividade/passividade. E isso apesar de o marxis- mo vulgar, e ainda outros menos vulgares, modemos ¢ inte- lectuais, continuarem a reproduzir a velha dicotomia ao con- ceber as prticas sem sujeito,ahistéria sem acontecimentos € a ideologia sem processo, libidinalmente muda e asséptica. Ea psicandlise que tem posto a questéo do desejo, ¢ re- posto a questio do sujeito. Porém, atengéo: se a psicandlise acrescenta algo a construgao de uma teoria do discurso, e do discurso macigo em particular, é por haver descoberto na pré- pria constituigao do sujeito humano —em sua capacidade de se assumir e se nomear como “eu” — a trama conflitual do social. O que a psicandlise aporta fundamentalmente a uma teoria do discurso macico é sua afirmago de que o desejo est radicalmente articulado & lei do simbélico, ao discurso da cul- ‘ura. E que essa relagdo nao é algo que venha ase acrescentar ‘a um sujeito{ constituido, mas que faz parte de sua constitui- a0 — que o simbélico, a cultura fazem parte das condigaes de existéncia e de trabalho do sujeito humano#. Ento a rela ‘gdo do sujeito ao desejo e a relacao do sujeito ao trabalho nao 23, Paul RICOEUR, De Vnterpretation, essai sur Freud. Seuil Paris, 1065, 74 ANOS 1970, 1980: CONPIGURAGKO LATNO-AMERICANA DO CAMPO sio exteriores uma a outra; é na imbricagdo delas que csujeito se constitu, & de sua tensdo, de sua contradigdo que esté feito suieito. Porque no é desde fora que o social reprime, domes. tica explora os desejos.O imagingrio é social, Se ndi.com q explicar que, mesmo sendo selvagem, o deejopossa ser programavel, que sendo anticélculo seja gomercializével, pas- sivel de transformagio em necessidade de coisas eem von de de aparecer? a Oque tem que ser repensado, entdo, 6 a questo que tem estado na base de uma grande parte das investigagdes sobre meios macigos: a questio da ideologia. E necessério recolocar ‘um conceito de ideologia que tem servido para manter a opo- sigao funcionalista entre informagio e significacdo, entre co- nhecimento e desejo, entre o imaginario eo real. Se 9 “eu” ‘nao € mais que reconhecimento, se o “eu” éa chave da ideolo- gia, se impSe averiguar por essa matriz do eu que é oimaging- rio, esse lugar de emergéncia e trabalho do desejo, Impde-se Tepensar a relagdo do imagindrio com 0 real, nao jé como se Tosse um exterior, no como uma ilusdo que seria preciso dis- sipar ao contato com 0 real. A psicanalise nos tem demonstrado que o imaginario & parte integrante do real, jé que é parte constitutiva da prépria ™matéria do sentido que o real tem para os homens. Isso implica ue a presenca do imaginério no discurso nao é s6 a meneira de héspede, de tema ou de contetido. O imagindrio nao é sé aquilo de que trata um discurso mas aquilo do que est feito Estamos cansados de ouvir e de ler que a ideologia est na linguagem, porém, na maioria das vezes, o modo ccmo a 7 Ver J LACAN, Fontion ete ci ey dle pe po Peychanalyse, in Zeit, v1 Seul Paris 1971, 112208 0 2E0LOGIA: 08 EOS COMO DECURSO DO PODER % ieologia habita a linguagem pensado & maneira do héspe- ge ou da contaminagio. Pois bem, se a ideologia habita a lin- quagem, é em forma mais “priméria” — no sentido em que Freud fala de cena e processos primarios — e fundamental: porque o processo de simbolizacéo, enquanto codificador ori- ginério,éum processo de etichizaco que nos trabalha ainda antes de que haja “lingua”. Antes de que sefa codificado pela lingua em palavras/signos, o simbélico — a lei, a cultura, © superego—jé moldou.o desejo humano inscrevendo seus tra~ ‘gos no imaginério. Isto implica que o espago que poe em rno- ‘vimento a pulséo e 0 desejo ndo é um espaco & parte, associal Desde Freud sabemos que o desejo é social e anti-social, nun- ca associal. A pulsdo ndo é mero instinto, mas trabalho do corp, de um corpo moldado pela historia. E 0 inconsciente, ‘segundo Freud, tem pouco a ver com a propriedade privada que o burgués vai exibir ante o psiquiatra. O inconsciente é a “marca” do corpo, e, no corpo, da mudanga, da fratura, do deslocamento e do compromisso que, para os sujeitos, a pres- sf traz, eo controle que toda sociedade impde ao desejo. Com fo inconsciente, Freud descobre 0 papel do discurso como mediacdo através da qual o homem se arranca & substancia~ lidade e & imediatez do biol6gico “Aproximando-nos mais do discurso macigo, ¢ toda a pro- blemética do mal chamado “receptor” que comeca @ po- der ser colocada por fora do funcionalismo “dos efeitos” e do ‘moralismo da “resignagao do escravo”. A pistanos é dada pela pergunta de Freud acerca da contradigo que vive o “histéri- co", oqual, ao mesmo tempo, quer e néo quer curar-se, aques- ‘to sobre a cumplicidade do doente com sua enfermidade. Pergunta que podemos traduzir assim: O que é que, no domi- nado, trabalha a favor do dominador? A custa de quais con- 76 ANOS 170.1980: CONIGURACAO LATINO-AMERICANADO CAMPO tradigdes é que a dominacao é também atividade e no pass! vidade no dominado? Ou a traducio feita por Deleuze ¢ Guatar: “por que os homens agtentam desde séculos a ex. ploragio, a humilhagdo, a escravidio, até o ponto de tl la’ ndo s6 os para outros mas para si prprios?, O que essas erguntas tornam claro que s6 se a opressfo fosse, de al ‘ma maneira, atividade do oprimido, 6 se fosse desmortadaa cumplicidade do dominado com sua dominacao seria pose vel quebrar com 0 verticalismo populista e conprocndcriai mente que a libertacio é problema do oprimido, que é nele ue se encontram as chaves de sua libertagao. A questo do desejo nos possibilita colocar isso no samento. E compreender enttio—com todas as eae oad aque isto implica — que oimaginériocoletivo&a matéra-pri- ‘ma com a qual os meios macigos trabalham, e que nesse as. curso da massmidiagio o desejo das massas é smordecado, explorado e virado contra elas. _— 8. Mitos e farsas da informagao Muto repitament igre comeqou sent uc nt

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