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ENI PUCCINELLI ORLANDI

OOO
do silêncio
CH
No movimento
dos sentidos

EDITORA
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO


SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP
DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO

Orlandi, Eni Puccinelli, 1942-


Drsf As formas do silêncio: no movimento dos sentidos / Eni Puccinelli
Otandi. = 6º cd. = Campinas, sr: Editora da Unicamp, 2007.

1. Linguagem — Filosofia. 2. Silêncio. 3. Sentidos c sensações.


L Titulo.
CDD 401
001.56 Não há, ógente, ó não, luar como este do sertão...
ISEN 9798-89-268-075 5-6 142.1 CarTuULO DA PAIXÃO CEARENSE,
“Luar do Sertão”
Índices para catálogo sistemático:

1. Linguagem-Filosoha 401
2. Silêncio Do I.ç6
3. Sentidos « sensações I52-1

Copycighr & by Eni Puccinelli Orlandi


Copyright 2007 by Editora da Unicamp

2º reimpressão, 2011

Nenhumaparte desta publicação pode ser gravada, armazenada em


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ou outros quaisquer semautorização prévia do editor,

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SUMÁRIO

INTRO DICAsasda

SILENCIO ES ERTIDO uciorsisrienasiasiarraras ip aaa 27

Os Limites DO MÉTODO E DA OBSERVAÇÃO... 39

SILÊNCIO, SUJEITO, HISTÓRIA


SIGNIFICANDO NAS MARGENS... eesseecenenenesemenanas 61

Sitêncios E RESISTÊNCIA

Ui ESTURODA CENSURA ssa 93

SiLêncio, Cópia E REFLEXÃO «sms.Rag 133

CONCLUSÃO...eee aeee remimantentess 151


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INTRODUÇÃO

l'screver um livro sobre o silêncio apresenta suas di-


ficuldades. Porque tomá-lo como objeto de reflexão,
e colocarmo-nosna relação do dizível com o indizí-
vel, nos faz correr o risco mesmode seus efeitos: o de
não saber caminhar entre o dizer e o não-dizer.
De todo modo, é interessante lembrar aqui que,
se meu primeiro livro publicado tinha como sub-
título “As formas do discurso” (Brasiliense, 1983),
não é por acaso que,feito um percurso de reflexão e
escrita, eu tenha chegadoa este que, de direito, tem
comotítulo Ásformas do silêncio.
O fio condutor deste livro é a apresentação dos
sentidos dosilêncio e é isso que o estudioso da lingua-
ra

gem encontrará aqui desenvolvido com a cautela de


quem cuida de explorar os entremeiostanto das disci-
plinas como das diferentes teorias da linguagem,
procurando no entanto uma especificidade.
Acredito que o mais importante é compreender
que: 1. há um modo de estar em silêncio que corres-
ponde a um modo de estar no sentidoe, de certa ma-
neira, as próprias palavras transpiram silêncio. Há
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Movimento, mas também relação incerta entre


silêncio nas palavras; 2. o estudo do silenciamento
inuclançae permanência se cruzam indistintamente
(que já não é silêncio mas pôr em silêncio”) nos
Ho silêncio. Nem um sujeito tão visível, nem um
mostra que há um processo de produção de sentidos
sentido tão certo, eis o que nos fica à mão quando
silenciados que nos faz entender uma dimensão do
aprofundamos a compreensão do modo de signi-
não-dito absolutamente distinta da que se tem es-
ficar do silêncio. E que chega a nos fazer com-
tudado sob a rubrica do “implícito”. Vale lembrar
preender >de modo interessante o queé, por exem-
que a significação implícita, segundo O. Ducrot Eiacoem
plo, a censura, vista aqui por nós não como um
(1972), “aparece — e algumas vezes se dá — como dci ça e a —.a

dado quetemsua sedena consciência que um in-


en

sobreposta a uma outra significação”. Essa distinção


ivíduo tem de um sentido(proibido),mascomo
que fazemos entre implícito € silêncio estará dita
para imfato produzido pela história. Pensadaatravés
de muitos modosneste nosso trabalho, já que,
la noção desilêncio, como veremos, a própria no-
nós, o sentido dosilêncio não é algo juntado, sobre-
vão de censura se alarga para compreender qual-
posto pela intenção do locutor: há um sentido no
quer processo de silenciamento que limite o su-
silêncio. O silêncio foi relegado a uma posição se-
- jeito no percurso de sentidos. Mas mostra ao
cundária como excrescência, como o “resto” dalin
mesmo tempo a força corrosiva do silêncio que faz
guagem. Nosso trabalho o erige em fator essencial
como condição do significar, como veremos.
vpnificar em outros lugares o que não “vinga” em
um lugar determinado. O sentido não pára; ele
Se uma dessas características (a 1) livra o silêncio
do muda de caminho.
do sentido“passivo” e “negativo” que lhe foiatribuí
Osilêncio é assim a “respiração” (o fôlego) da sig-
nas formas sociais da nossa cultura, a outra (a 2.) liga
nificação; um lugar de recuo necessário para que se
o não-dizer à história e à ideologia.
possasignificar, para que o sentido faça sentido. Re-
Por outro lado, há uma dimensão dosilêncio que
duto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço
remete 0 caráter de incompletude da linguageri:
para o que não é “um”, para o que permite o movi-
todo dizer é uma relação fundamental com o não-
mento do sujeito.
dizer. Essa dimensão nosleva a apreciar a errância
O real da linguagem — o discreto, o um — en-
dos sentidos (a sua migração), a vontade do “um”
, contra sua contraparte no silêncio. -
(da unidade, do sentido fixo), O lugar do non sense
O silêncio como horizonte, como iminência do
o equívoco, à incompletude (lugar dos muitos
sentido, tal como expressamos no corpo de nosso
sentidos, do fugaz, do não-ap reensível), não como
meros acidentes da linguagem, mas como o cerne trabalho, aponta-nos que o fora da linguagem não é
o nada masainda sentido.
mesmo de seu funcionamento.

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en- dido, inclica-nos que não estamos nas palavras para


Silêncio que atravessa as palavras, que existe
re falar delas, ou de seus “conteúdos” mas para falar
tre elas, ou que indica que o sentido pode semp com elas, Se assim podemos passar de palavras para
impor-
ser outro, ou ainda que aquilo que é mais wi imagens (relação do verbal com a metáfora), fa-
os de existir
rante nunca se diz, todos esses mod «emos ainda outra passagem mais radical, passan-
car que
dos sentidos é dosilêncio nos levam a colo do das palavras para o jogo” É nessa dimensão do
a nossa
o silêncio é “fundante”. Desse modo, nest apnificar, como jogo de palavras, em que importa
as pelas
reflexão, procuramosindicar as várias pist mais a remissão das palavras para as palavras — des-
ação: O
quais alcançamosesse princípio da signific montando a noção delinearidade e a que centra o
funda-
silêncio como fundador. Paralelamente, apro sentido nos “conteúdos” —, que o silêncio faz sua
idos, de si-
mosa análise dos modos de apagar sent entrada. O não-um (os muitos sentidos), o efeito
mostra
lenciar e de produzir o não-sentido onde ele do um (o sentido literal) e o (in)definir-se na re-
algo que é ameaça. lação das muitas formações discursivas têm no si-
pa-
Assim, quando dizemos que há silêncio nas lêncio o seu ponto de sustentação. Desse modo é
adas de
lavras, estamosdizendo queclas são atravess que se pode considerar que todo discurso já é uma
“fala”
silêncio; elas produzem silêncio; o silêncio [ala que fala com outras palavras, através de outras
porelas; elas silenciam.
re, palavras:
As palavras são cheias de sentidos a não dize Com efeito, através da reflexão sobre o silêncio,
s.
além disso, colocamos nosilêncio muitas dela reflexão que tem como basc a formulação de ques-
so-
Mas há também um outro aspecto dareflexão les que pensassem o “não-dito” discursivamente,
relevante.
bre o silêncio que consideramos bastante ata que se tornassem visíveis aspectos deste que
da
Trata-se do fato de que, pela exploração mesma hão aparecem no tratamento lingúístico ou prag-
noss os
capacidade de compreender o silêncio com mático dado a ele, tambémalguns aspectos da aná-
pe-
procedimentosreflexivos, fizemos um percurso lise de discurso se tornaram mais claros.
vez,
la análise de discurso que nos mostra, por suá- Umaobservação se impõe para situar um ponto
eitos,
a função e o alcance de alguns de seus conc essencial dessa relação de meu trabalho sobre o si-
espaço
assim como nos permite avaliar melhor seu lêncio e a compreensão de certo percurso teórico da
teórico e a história de seu desenvolvimento. análise de discurso. Embora a condição dosignificar
do
Isso se deve talvez ao fato de que, procuran
cífica do
entender a materialidade simbólica espe
nossa
silêncio, pudemos alargar a compreensão da L Semesquecer que, da perspectiva discursiva, as palavras já são sempre
reen-
relação com as palavras. Esse laço, assim comp discursos, na sua relação com os sentidos.

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seja o imaginário — dosujeito e do sentido —, paraa do “interdiscurso”, e, de outro, ao inconsciente, na


análise de discurso há real (mesmo que para isso seja telação da língua como que seria a Lalangue (Lacan)
n
preciso distinguir diferentes tipos de “real”, segu vale que Pêcheux não trata especificamente” em seu
do Pêcheux, 1983). É nessa relação do imaginário taibalho,já que ele visa justamente o outro lado des-
com o real que podemos apreender a especificidade irelação: o discurso como lugar de contato entre
da materialidade do silêncio, sua opacidade, seu tra- Hina e ideologia.

balho no processo de significação. É a partir desse Isso lhe permite conceber, diferentemente das ciên-
ponto de vista que gostaríamos de situar algumas «ii sociais, o que é e como funcionaa ideologia (pela
questões fundamentais para quem trabalha com o io transparência da linguagem: leia-se pela tomada
discursivo. Não devemos, por outro lado, esquecer vm consideração da materialidade lingitística), ao
que, embora as noções de imaginário, real e sim- msmo tempo em que desloca o conceito de língua
bólico estejam definidas como tal no campo da cmi sta autonomia absoluta (como é vista na lingiiís-
psicanálise, o modo comoa análise de discurso vai tiva) para a autonomia relativa (pensando a mate-
articular essas três noções é próprio de seu campo Hialidade histórica). Daí ser a análise de discurso por
específico. Essa especificidade está em que a articula- rle proposta distinta da análise de conteúdo c da
ção dessas três noçõesse dá, na análise de discurso, iúlisc linguística.
em relação à ideologiae à determinação histórica € O funcionamento do silêncio atesta o movimen-
não ao inconsciente, como é o caso da psicanális
e. to do discurso que se faz na contradição entre o
Isso produz um certo deslocamento no modo de um” e o “múltiplo”, o mesmo e o diferente, entre
pensaressas noções em suas posições relativas, par- paráfrase e polissemia. Esse movimento, por sua
ticularmente em relação ao que a análise de dis- vca, mostra o movimento contraditório, tanto do
cutso trata no domínio do imaginário e dos efeitos wijcito quanto do sentido, fazendo-se no entremeio
da evidência, produzidos pelos mecanismos ideo- entre à ilusão de um sentido só (efeito da relação
com o interdiscurso) e o equivoco de todosos sen-
2=

lógicos.
Tomando Pécheux como referência básica para tidos (efeito da relação com a lalangue). Embora
entender a análise de discurso da escola francesa, mão trabalhasse, como trabalhamos, com o silêncio,
podemos dizer que o que singulariza o pensamento Pécheux conduziu com maestria, ao longo de sua
desse autor,e estabelece consequentemente a susten-
tação fundamental da análise de discurso, é o lugar | M. Pêcheux (1969, p. 110): “Nous soulignons encore une fois que la

particular que ele dá à língua, de um lado, em rela-


Micorie du discours ne peut en aucune façon se substituer à une théorie
de Pidéologie, pas plus qua une théorie de Pinconscient, mais quelle peut
ção à ideologia, que ele trata no domínio conceptual mntervenie dans le champde ces théories”.

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e do equi- abeimos que a dispersão dos sentidos e do sujei-
reflexão, a consideração da regularidade 1 condição de existência do discurso (Orlandi e
que, com
voco. Não como observador onisciente, Cutlinarács, 1988), mas para que funcione ele toma
controlar, mas
seu esboço de teoria, tudo pudesse à aparência da unidade. Essa ilusão de unidade é
s do jogo
como quem sofria teoricamente Os embate dlrito ideológico, é construção necessária do ima-
ador).
dos sentidos (no observado e no observ vinário discursivo. Logo, tanto a dispersão como a
s, pa-
Palavras com palavras, palavras com conceito ido da unidade são igualmente constitutivas.
rior idad e,
lavras com coisas, interioridade com exte |stas nossas considerações vão na direção de
pares que
descrição e interpretação, esses foram os pensar a língua como “base comum de todos os
ia no pró-
não deixaram de se colocar em sua movênc provessos discursivos”, ou seja, de pensar a necessi-
do discurso.
prio modode esse autor pensar à teoria duto de manter a noção de língua (enquanto estru-
fixo nessa cons-
No entanto, se algo fica como alvo (ta) como pré-requisito indispensável para pensar
mento de
tante movência, é sem dúvida o reconheci 1processosdiscursivos. Entretanto, não setrata de
a pensar a
que se tem necessidade da “unidade” par pensar a língua enquanto forma abstrata mas em
desse “um”
diferença, ou melhor, há necessidade 111 materialidade.
iplo. Não a
na construção da relação com O múlt Isso tudo pode scr observado, no pensamento
seja, à “uni-
“sanidade” dada maso fato da unidade, ou de Pêcheux, quando ele considera que a ideologia
tá a grande
dade” construída imaginariamente. Aíes tão funciona como um mecanismo fechado (e sem
observar Os
contribuição da análise de disenrso: lilhas) nem a língua como um sistema homo-
ssário na
modos de construção do imaginário nece púnco. Mais precisamente, como tivemos a ocasião
eficácia ma-
produção dos sentidos. Por não negara de afitmar muitas vezes em nosso trabalho (Or-
processos da
terial do imaginário,ela tornavisíveis os lindi, 1983, p. 162), a relação entre língua e dis-
imaginária, é
construção desse “um” que, ainda que (usose faz por reconhecimento, e suas fronteiras
tência ede
necessária e nos indica os modos de exis o colocadas em causa constantemente, À língua
diz Pêcheux
relação com o múltiplo, pois, como nao existe pois na “forma de um bloco homogé-
meio essen-
(1975, pp. 83-84), “a forma unitária é o neode regras organizado à maneira de uma má-
de outra
cial da divisão é da contradição. Ou, dito quina lógica” (Pêcheux, idem). Dat o vai-e-vem
o imaginá-
maneira, a diferença precisa da construçã incessante entre a ordem das coisas, a do pen-
do imagi-
sia da “unidade”, Os que negam a eficácia mento e a do discurso, e que mostra a decalagem
al”, seja a um
nário em geral o reduzemseja ao “irrc constante entre pensamento e forma gramatical na
za poética”,
“efeito psicológico individual, de nature constituição discursiva dos referentes. Há, em su-
ácia.
Não vêem assim sua necessidadee sua efic
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e a ordem das dia misivas) desigualmente acessíveis aos diferentes


ma, uma separação irremediável entr
li itores. Quando se concebe a língua — como os
coisas e a do discurso.
a-
É nesse lugar teórico que aparece à necessid
linguistas — enquanto sistema de formas abstratas
ão de sen-
de da ideologia na relação com a produç
(e não material), tem-se a transparência e o efei-
ponto
tidos. A ideologia se produz justamente no
to ado literalidade. Porém, se a concebemos — na
com a ma- perspectiva discursiva — comomaterialidade, essa
de encontro da materialidade da lingua
o lugar materialidade linguística é o lugar da manifestação
rerialidade da história. Como o discurso é
lidade espe- Lis relações de forças e de sentidos que refletem os
desse encontro, é no discurso (materia
obser- confrontos ideológicos. Essa perspectiva devolve a
cífica da ideologia) que melhor podemos
é prec iso apucidade do texto ao olhardo leitor.
var esse ponto de articulação. Para isso
do (Compreender o que é efeito de sentidos, em su-
compreender o estatuto teóricoe metodológico
de dis- mit, é compreender a necessidade da ideologia na
conceito de formação discursiva na análise
os se constituição dos sentidos e dos sujeitos. É da relação
curso. As diferentes formulações de enunciad
hist oric a- regulada historicamente entre as muitas formações
reúnem em pontos do dizer, em regiões
de sen-
mente determinadas de relações de força e
discursivas (com seus muitos sentidos possíveis que
mo-n os.
tidos: as formações discursivas. Explique
w limitam reciprocamente) que se constituem os
entre diferentes efeitos de sentidos entre locutores, Sem
Para Pêcheux, o discurso é efeito de sentidos
sentidos
locutores. Compreender o que é efeito de
rujuecer que os próprios locutores (posições do su-
) em
é compreender queo sentido não está (alocado
jeito) não são anteriores à constituição desses efeitos
dos sU- mas se produzem comeles. Importa ainda lembrar
lugar nenhum mas se produz nas relações:
suj eito que o limite de uma formação discursiva é o que a
jeitos, dos sentidos, e isso só é possível, já que
sua ins- distingue de outra (logo, é o mesmo limite da outra),
e sentido se constituem mutuamente, pela
ursivas v que permite pensar (como Courtine, 1982) que a
crição no jogo das múltiplas formações disc
para
(que constituemas distintas regiões do dizível
lormação discursiva é heterogênea em relação a ela
são diferen- mesma, pois já evoca porsi o “outro” sentido que
os sujeitos). Às formações discursivas
curso (o dizível, cla nãosignifica. Ora,a relação com as múltiplas for-
tes regiões que recortam O interdis
renças mações discursivas nos mostra que não há coincidên-
a memória do dizer) e que refletemas dife
dos suj eitos, cia entre a ordem do discurso e a ordem das coisas.
ideológicas, O modo como as posições
tituem
seus lugares sociais aí representados, cons
Uma mesmacoisa pode ter diferentes sentidos para
curso) se os sujeitos. E é aí que se manifestam a relação contra-
sentidos diferentes. O dizível (o interdis
formações ditória da materialidade da língua e a da história.
parte em diferentes regiões (as diferentes

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Falar em “efeitos de sentido” é pois aceitar que se logia. Por que, diz ele, falamos a mesma línguae
está sempre no jogo, na relação das diferentes for- lalamos diferente?
mações discursivas, na relação entre diferentes sen- É assim que podemos compreender o silêncio
tidos. Daí a presença do equivoco, do sem-sentido, fundador como o não-dito que é história e que,
do sentido “outro” e, consequentemente, do inves- dada a necessária relação do sentido com o imagi-
timento em “um”sentido. nário, é também função da relação (necessária) en-
Aí se situa o trabalho dosilêncio. tre línguae ideologia. O silêncio trabalha então essa
Essa relação entre os processos discursivos e a necessidade.
língua está na base da compreensão do imaginário Se a linguagem implica silêncio,este, por sua vez,
como necessário. Os processos discursivos se de- éo não-dito visto do interior da linguagem. Não é o
senvolvem sobre a base dessa estrutura (a língua) nada, não é o vazio sem história. É o silêncio signi-
e não enquanto expressão de um puro pensamen- ficante. Vale aliás a pena redizer, nesta introdução,
to, de uma pura atividade cognitiva que utilizaria o que scrá dito em muitas partes desta reflexão: o
“acidentalmente” os sistemaslingúísticos (Pêcheux, fato de que a relação silêncio/linguagem é comple-
ibidem). Daí que discurso não é a fala, isto é, uma xa, sem deixar de sublinharainda umavez que, no
formaindividual concreta de habitar a abstração da entanto, em nossa reflexão, o silêncio não é mero
língua. Ele não tem esse caráter “antropológico”, Os complemento de linguagem. Ele tem significância
discursos estão duplamente determinados: de um própria, E quando dizemos fundadorestamosafir-
lado, pelas formações ideológicas que os relacio- mando esse scu caráter necessário e próprio. Funda-
nam a formações discursivas definidas e, de outro, dor não significa aqui “originário”, nem o lugar do
pela autonomia relativa da língua. sentido absoluto. Nem tampouco que haveria, no
Desse modo,se o lingitista pode dizer quea lin- silêncio, umsentido independente, auto-suficiente,
gua é indiferente ao discurso, pois tem sua auto- preexistente. Significa que o silêncio é garantia do
nomia relativa, ela se rege porleis internas, o ana- movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do
lista de discurso dirá no entanto que o discurso silêncio O silêncio não é pois, em nossa perspec-
não é indiferente à língua. É o que diz Courtine tiva, o “tudo” da linguagem. Nem ideal do lugar
(1982) quando afirma que o discurso materializa “outro”, como não é tampouco o abismo dos sen-
o contato entre o ideológico e o lingiúístico, pois
ele representa no interior da língua os efeitos das 3 Éimeressante observar, em relação a essa importância fundamenta! do
silêncio, o fato de que a expressão “algo calou fundo em X” mostra bem
contradições ideológicas e manifesta a existência a seu sentido dúplice: calar = nãodizer, e, no caso, calar = impreguaro
da materialidade lingiiística no interior da ideo- sujeito X daquele sentido.

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tidos. Ele é, sim, a possibilidade para o sujeito de [ssapossibilidade de movimento, de deslocamen-


trabalhar sua contradição constitutiva, a que o situa to de palavras em presença e ausência, leva-nosa fa-
narelação do “um” com o “múltiplo”, a que aceita a “er um paralelo que mostra ao mesmo tempo uma
reduplicação e o deslocamento que nos deixam ver relação fundamental entre a linguagem e o tempo.
que todo discurso sempre se remete a outro discur- Em latim, o tempo marcado (zempus) tem uma
so quelhe dá realidade significativa. relação com o “evo” (aevum), que é o tempo con-
Por isso, distinguimosentre: a) o silêncio funda- tinuo. O tempo é que marca o “evo” A definição
dor, aquele que existe nas palavras, que significa do tempo medieval (em São Tomás) é numerus mo-
o não-dito e que dá espaço de recuo significante, tus secundum prius et posterits, ou seja, O número
produzindo as condições para significar; b) a po- do movimento segundo o que vem antes e depois
lítica do silêncio, que se subdivide em: b 1) silêncio (medivevo = evo médio). Assim é que vemosa re-
constitutivo, o que nos indica que para dizer é pre- lação entre palavrae silêncio: a palavra imprime-se
ciso não-dizer (uma palavra apaga necessariamente no contínuo significante do silêncio e ela o marca, o
as “outras” palavras); e b 2) o silêncio local, que se segmentae o distingue em sentidos discretos, cons-
refere à censura propriamente (àquilo que é proibi- tituindo um tempo (tempus) no movimento con-
do dizer em uma certa conjuntura). Isso tudo nos tínuo (aevmm) dos sentidos nosilêncio.* Podemos
faz compreender queestar no sentido com palavras enfim dizer que há umritmo nosignificar que su-
e estar no sentido em silêncio são modos absoluta- põe o movimento entre silêncio e linguagem.
mente diferentes entre si. E isso faz parte da nossa
forma de significar, de nos relacionarmos com o
mundo, comas coisas € com as pessoas,
Finalmente, sc a reflexão sobre o silêncio nos mos-
tra a complexidade da análise de discurso,já que por
ela podemos nosdebruçar sobreos efeitoscontradi-
tórios da produção de sentidos na relação entre o
dizer e o não-dizer, essa reflexão nos ensina também
4 Agradeço ao professor Mendonçaa possibilidade desse paralelo. Além
que, embora seja preciso que já haja sentido para dessa formalatina, ele tambémlembrou a presença do silêncio nos textos
produzirsentidos (falamos com palavras que já têm de Guimarães Rosa, e referiu à fala da gente da roça ao negociar bois, Uma
conversa que pode durar muito tempo e na qual desvios e introdução de
sentidos), estes não estão nunca completamente já novos assuntos não significam interrupção de negociação. As expressões
lá. Eles podem chegar de qualquer lugar c eles se que vão marcar o negócio feito ou não (“Quanto você quer?”“Quanto
você dá?”) podemvir entremeadas de muito silêncio que não é de modo
movem e se desdobram em outrossentidos. algum sem sentido.

24 | AS FORMAS DOSILÊNCIO INTRODUÇÃO | 25


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SiLÊncIO E SENTIDO

No início é o silêncio. À linguagem vem depois

Ouando o homem, em sua história, percebeu si-


lêncio como significação, criou a linguagempara
retê-lo,
Oato de falar é o de separar, distinguir e, parado-
xalmente, vislumbraro silêncio e evitá-lo. Esse ges-
to disciplinao significar, pois já é um projeto de se-
dentarização do sentido. À linguagem estabiliza o
movimento dos sentidos. No silêncio, ao contrário,
sentido e sujeito se movemlargamente.
Em suma: quando o homem individualizou (ins-
tituiu) o silêncio como.algo significativamente dis-
mt

cernível, ele estabeleceu o espaço da linguagem.

Apreendendoo silêncio

Estudando o discurso religioso, tive de passar ne-


cessariamente pela questão do silêncio. E para não
estacionar no tão conhecido silêncio místico, fiz
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um esforço de reflexão para pensar as outras formas ca desse mesmo tema: apolítica do silêncio. Isto É, O
de silêncio, eu diria mesmo os outrossilêncios, silenciamento.
As palavras são múltiplas mas os silêncios tam- Aíentra toda a questão do “tomar”a palavra, “tirar”
bém o são. À especificação dessa idéia começou a a palavra, obrigara dizer, fazer calar; silenciar etc.
se elaborar a partir da minha observação sobre dife- Emface dessa sua dimensão política, o silêncio
rentes ordens de discurso emsuas distintas proprie- pode ser considerado tanto parte da retórica da do-
dades e definições. minação(a da opressão) comode sua contrapartida,
À primeira coisa que percebi é que, inadvertida- a retórica do oprimido (a da resistência). E tem todo
mente, eu havia mal definido o discurso religioso um campo fértil para ser observado: na relação en-
como “aquele em quefala a voz de Deus” (Orlandi, tre índios e brancos, nafala sobre a reforma agrária,
1983). Essa definição pode ser interessante para o tcó- nos discursos sobre a mulher, só para citar alguns
logo, mas não o é para o analista de discurso. terrenosjá explorados por mim.
Dessa perspectiva, a do analista de discurso, o que A partir daí uma nova passagem teórica se faz
se pode dizeré que o que funcionana religião é a onj- necessária, Não é suficiente pensar o silenciamento.
potência do silêncio divino. Mais particularmente,isso Para compreendera linguagemé preciso entender o
quer dizer que, na ordemdo discurso religioso, Deus silêncio para além de sua dimensão política,
€o lugar da onipotência dosilêncio. E o homempre- Desenvolvendo então essa reflexão podemos che-
cisa desse lugar, desse silêncio, para colocar uma sua gar a algo que, a meu ver, coloca em estado de ques-
fala específica: a de sua espiritualidade. tão a própria história da reflexão sobre a linguagem,
Nem por isso a religião deixa de lhe ser funda- comrespeito tanto à Gramática quanto à Retórica,
mental: no discurso religioso, não é apenas o mesmo Chegamos então a uma hipótese que é extrema-
sempre-homemfalando; o que importa é quo reli mente incômoda para os que trabalham com lin-
gião institui um outro lugar e assim dá umestatuto guagem: o silêncio éfundante. Querdizer, o silêncio
(e, logo, um sentido) diferentea essa fala, Diferença é a matéria significante por excelência, um conti-
à qual o homem não é indiferente, munm significante. O real da significação o silên-
Assim, reformulando a definição que havia pro- cio. E como o nosso objeto de reflexão é o discurso,
posto, eudiria agora que no discurso religioso, em chegamos a uma outra afirmação que sucede a essa:
seu silêncio, “o homem faz falar a voz de Deus”. O silêncio é o real do discurso.
A partir dessas reflexões, e conduzida pela mi- O homemestá “condenado”à significar. Com ou
nha convivência com a discussão sobre o político sem palavras, diante do mundo, há uma injunção
na linguagem,interessci-me por outra característi- à interpretação”: tudo tem de fazer sentido (qual-

28 | AS FORMAS DO SILÊNCIO
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quer que ele seja). O homemestá irremediavelmen- mente não os produtos masos processos de significa-
te constituído pela sua relação com o simbólico. pão, isto é, o discurso.
Numacertaperspectiva, a dominante nos estudos Então,ao invésdepensarsilêncio comofalta, pode-
dos signos, produz-se uma sobreposição entre lin- mos, ao contrário, pensar a linguagem como excesso,
guagem (verbal e não-verbal) e significação. Essa possibilidade, aliás, já está tematizada na
Disso decorreu um recobrimento dessas duas no- linguagem corrente em expressões que se opõem,
ções, resultando uma redução pela qual qualquer maté- como as que seguem:
ria significantefala, isto é, é remetidaà linguagem (so-
bretudo verbal) para que lhe seja atribuído sentido. Estar em silêncio/Romper o silêncio
Nessa mesma direção, coloca-se o “império do Guardar o silêncio/Tomara palavra
verbal” em nossas formas sociais: traduz-se o silên- Ficar em silêncio/Apropriar-se da palavra
cio em palavras. Vê-se assim o silêncio como lingua-
gem e perde-se sua especificidade, enquanto maté- Nelas se pode perceber o silêncio como o estado
ria significante distinta da linguagem. primeiro, aparecendo a palavrajá como movimento
Revendo o dilema entre Semiologia e Lingiiís- em torno,
tica — qual contém qual? —, podemos colocá-lo Na perspectiva que assumimos, o silêncio não
como um falso dilema, pois pressupõe a domi- fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor:no silên-
nância da linguagem verbal: toda linguagem está cio, o sentido é.
repassada de linguagem verbal ou, como se diz, Podemos mesmo chegar a uma proposição mais
todo sistema de signos (de qualquer natureza) é forte, invertendo a posição que nos é dada pelo
atravessado (interpretado) pela linguagem verbal. senso comum (e sustentada pela ciência), na qual
São pensadas aí as várias linguagens, sem, contudo, a linguagem aparece como “figura” e o silêncio
se conceder um lugar mais decisivo a seuexterior. como “fundo”, Desse modo, podemos dizer que o
Sendo a relação do homem com o sentidouma re- silêncio é que é “figura”, já que é fundante. Estru-
lação necessária, o significar não tem exterior; no turante, pelo avesso. Fazendo-se um paralelo com
entanto, se concebemoso silêncio tal como estamos o que diz Hjelmslev (1943) a propósito dos três
propondo, a linguagem tem. níveis, o da substância, o. da forma e o da matéria
Só se pode pensar o silêncio, sem cair na armadi- (sens), é no nível dessa última que localizamos o
lha dessa relação, quando se pensa o “avesso da es- silêncio fundante,
trutura”, sem o binarismo, sem as oposições e regras Constitutivo emprimeira e múltiplas instâncias,
estritas e categóricas. Quando se pensam radical- ele tem primazia sobre as palavras,

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À linguagem, por seu lado,já é categorização do O eco: repetição, não-finitude, movimento con-
silêncio. É movimento periférico, ruído. tínuo. Também fresta para ouvi-lo, Som.
O desejo de unicidade que atravessa o homem é Se nosvoltamos agora para a história das palavras,
função da sua relação como simbólico sob o modo encontramos a etimologia de silentium, referida a
do verbal. silens, que significa: que se cala, silencioso, que não
À linguagem é conjunção significante da existên- faz ruído, calmo, que está em repouso, sombra etc.
cia e é produzida pelo homem, para domesticar a Algumas observações a respeito do uso dessa
significação. palavra são interessantes. Embora na época clássica
A fala divide o silêncio. Organiza-o. O silêncio não houvesse diferença de sentido entre síleo e taceo
é disperso, e a fala é voltada para a unicidade e as (calar), primitivamentesileo não designava propria-
entidades discretas. Formas. Segmentos visíveis e mente “silêncio” mas “trangiiilidade”, ausência de
funcionais que tornam significação calewlável. movimento ou ruído: “Estar em silêncio” = “Estar
Se tudo isso pode ser dito a propósito da lingua- quieto”, Empregava-se sifeo para falar de coisas, de
gem, falar do silêncio traz, em si, uma dificuldade pessoase, especialmente, da noite, dos ventos e do
maior, já que ele se apresenta como absoluto, conti- mar. Silentium, mar profundo. E aí deparamos com
nuo, disperso. o aspecto Íuido líquido do silêncio,
O silêncio não está disponível à visibilidade, A nossa metáfora aproveita esse impulso etimo-
não é diretamente observável, Ele passa pelas pa- lógico. Como para o mar, é na profundidade, no
lavras. Não dura. Só é possível vislumbrá-lo de silêncio, que está o real do sentido. As ondas são
modo fugaz. Ele escorre por entre a trama das apenas o seu ruído,suas bordas (limites), seu movi-
falas. mento periférico (palavras),
Paratratar da questão dósilêncio,já que é impos- À linguagem supõe pois a transformação da ma-
sível observá-lo (organizá-lo), podemos usar duas téria significante por excelência (silêncio) emsig-
ordens de metáforas: a do mare a do eco. nificados apreensíveis, verbalizáveis. Matéria e for-
Em ambas jogama grande extensão e umcerto mas, À significação é um movimento. Errância do
movimento que retorna e, ao mesmo tempo, pro- sujeito, errância dos sentidos.
duz um deslocamento. “O final da onda que o mar preciso insistir que a matéria significante do
sempte adia” silêncio é diferente da significância da linguagem
O mar: incalculável, disperso, profundo, imóvel (verbal e não-verbal). Ao tornar visível a significa-
em seu movimento monótono, do qual as ondas ção, a fala transforma a própria natureza da signi-
são as frestas que o tornam visível, Imagem. ficação.

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Essadiferença de natureza podeser mais bempen- sua relação fundamental com silêncio, ele apaga
sada se consideramos a articulação entregestoe silên- uma das mediações que lhe são básicas.
cio, enquanto expressividade, Desse modo,a partir da elisão dessa mediação,
Também a gestualidade, a relação com o corpo, estabelecem-se e desenvolvem-se as reflexões que te-
está orientada pela fala. Quando alguém se pega em matizam a relação linguagem/pensamentoe lingua-
silêncio, rearranja-se, muda a “expressão”, os gestos. gem/mundo (sociedade) e que atribuem funções
Procura ter uma expressão que“fala”, É a visibilidade que confirmam a centralidade da linguagem.
(legibilidade) que se configura e nos configura. Alin- De nossa parte, proporíamos um deslocamento,
guagemse constitui para asseverar, gregarizar, unifi- um descentramento da linguagem, que permitiria
car o sentido (e os sujeitos). refletir sobre um outra relação, anterior, a meu ver,
Quer dizer: a identidade — coerência, totalida- a esta, e mediadora:
de, unicidade — produzida pela nossa relação com
a linguagem nos faz visíveis e intercambiáveis (fa- mundo (sociedade)
miliares à espécie humana). Linguagem / silêncio
O silêncio, de seu lado, é o que pode transtornar pensamento
a unicidade. Não suportando a ausência das pala-
vras — “por que você está quieto? O que você está Quando não falamos, não estamos apenas mu-
pensando?”—, o homem exerce seu controle e sua dos, estamos em silêncio: há o “pensamento”, a in-
disciplina fazendo silêncio falar ou, ao contrário, trospecção, a contemplação etc.
supondo poder calar o sujeito. O nosso imaginário social destinou um lugar su-
Isso resulta de um imediatismo tanto mais acen- balterno para o silêncio, Há uma ideologia da comu-
tuado quanto mais vem em linha reta da tradição nicação, do apagamento dosilêncio, muito pronun-
da racionalidade: o claro e distinto. O homem — ciada nas sociedades contemporâneas.Issose expressa
tendo de responder à injunção de transparência e pela urgência do dizer e pela multidão de linguagens
objetividade — não se dá o tempo de trabalhara a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo
diferença entrefalar c significar. tempo, espera-se que se estejam produzindo signos
Para nosso contexto histórico-social, um homem visíveis (audíveis) o tempo todo. Ilusão de controle
em silêncio é um homem sem sentido, Então, o ho- pelo que “aparece”: temos de estar emitindo sinais
mem abre mão dorisco da significação, dasua amea- sonoros (dizíveis, visíveis) continuamente.
ça e se preenche: fala. Atulha o espaço de sonse cria Não acreditamos que tenha sido sempre assim. A
a idéia de silêncio comovazio, comofalta. Ao negar nossa hipótese é a de que há, na relação coma lin-

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mo,
silêncio para a
lavras (na maior parte das vezes, ecos do mes
guagem, uma progressão histórica do sem sair do lugar).
ica geral
verbalização, o quese reflete não só na prát O silêncio, mediando as relações entre ling
ua-
ciência, Assim,
da linguagem como no discurso da gem, mundo e pensamento, resiste à pres
são de con-
ifica
teriamos: trole exercida pela urgência da linguagem € sign
de outras e muitas maneiras.
desve-
Essa mediação é mais um dos elementos que
+ silêncio — silêncio
sparente
lam ilusão referencial: o silêncio não é tran

mito tragédia filosofia Ciências e ele atua na passagem (des-vão) entre pens
amento-
não há
palavra-e-coisa. Tambémaqui se verifica que
Humanas e Sociais
.
a- uma relação termo a termo entre esses domínios
No mito, a significação prescinde da explicit Para terminar, ainda uma vez Saussure,
tragé-
ção cabal de seus modos designificar. Já na Ao tomarmos o silêncio como objeto de
reflexão,
lugar.
dia, essa explicitação começa a alargar seu não o fizemos sem pensar no mestre genebrin
o que
Electra,
Podemos pensar, por exemplo, no 7x/t de aliou em si duas formas de silêncio. Esta
mos fa-
que Sc
no reconhecimento de seu irmão Orestes, lando: a) do silêncio de Saussure, que não se fez au-
, há
dá apenas pelo agon (confronto), Já na tragédia tor de seu Curso; e b) do silêncio sobr
e Saussure, O
nhe-
uma descrição do reconhecimento: ela o reco dos Anagramas, que os linguistas preferem
ignorar
peculiar,
ce porque ele carrega à espada de modo com defetência. Há ainda o silêncio em
Saussure,
No caso da
porque tem uma cicatriz na testa etc. quando tematiza uma certa noção de sist
ema (va-
em que
Filosofia, passa-se para um outro discurso, lor), ou do eixo das substituiçõesetc.
sua relação
se tematiza vastamente o sentido em Tampouco vamos apagar, na questão do silên
cio,
cias
com o ser, Percurso que desemboca nas Ciên a presença de Pêcheux. O interlocutor silencia
do, ou
em várias
Sociais € Humanas, que se instiçuem em silêncio. Que se deu o trabalho difícil
de falar da
os e dis-
disciplinas diferentes com distintósobjet Langue Introuvable (1984) e que, com suas
reflexões
coisa . Do-
cursos diversos para falar dessa mesma sobre o discurso, permitiu que se pens
assem O silên-
O fato
minado pelas múltiplas metalinguagens, cio, a significação, no meio do alarido formalis
ta. O
ções ”, que,
tem designificar nas diferentes “explica Pêcheux que, falando do “discurso-re
al autoprote-
Exílio
por sua vez, o povoam de muitos signos. tor”, diz do engendramento de uma nova
frascologia
se acel eram a
do silêncio. Do século XIX para cá que, “refletindo o que todo mundo sabe,
permite ca-
ncio.
produção de linguagense a contençãodo silê lar o que cada um entende sem confessar” (198
2).
nte em pa-
As palavras se desdobram indefinidame
auenco esto | 37
36 | AS FORMAS DO SILÊNCIO
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Os Limites DO MéroDo
E DA OBSERVAÇÃO*

d túnicapalavra queme devora éaque-


ba que mes coração não diz,
SUELI COSTA E ABEL SILVA, “Jura
Secreta”

Um livro deve valer por tudo o que


nele não deveu caber
G. Rosa, Tutaméia

Os textos acima sugerem a reflexão sobre a relação


entre silêncio e emoção,silêncio e escrita. Quer se
trate de umacoisa ou de outra, essas duas citações
referem silêncio enquanto elemento constitutivo
do sentido.Elas, no entanto, fazem isso contextua-
lizandoo silêncio de modo diferente,
A primeira evoca o canibalismo (“devora”) pre-
sente na cultura brasileira de várias maneiras: a)
a antropofagia enquanto real histórico (atestado

Uma primeira versão deste capítulo foi apresentada, em francês, no


Colóquio de Urbino (1988), cujas atas foram publicadas nolivro Les sens
et ses bésérogêncites (1990),
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abundantemente naliteratura européia dos séculos Outras experiências, dessavez de linguagem, tam-
XVI e XVII; e b) o canibalismo simbólico, tornado bém nos fizeram entender isso.
movimentointelectual, inauguradopela Semanade Napoesia, a leitura de Mallarmé, de M. Bandeira
Arte Moderna em São Paulo (1922): a cultura euro- ou de Carlos Drummond de Andrade,entre outros.
péia “digerida” pela cultura brasileira. Nãosó na poesia, aliás, mas na literatura em geral, o
A antropofagia define, nos dois casos, para o bra- silêncio é fundamental.
sileiro, uma origem em que a devoração (seja his- Na música, compositores como P. Geist, J. Cage,
tórica, seja simbólica) está na base mesma de sua Webern, E. Gismonti, E, Satie e o intérprete C. Ar-
relação com a “alteridade”. rau, em particular, Ou seja, também a música em
Nasegundacitação,trata-se daliteratura brasilei- geral, em suas diferentes expressões, propõe-nos
ra e de um de seus escritores mais expressivos, que umarelação com o silêncio.
trabalhoua língua “em seu estado gasoso”, segundo No campo das imagens, há flmes que nos trazem
suas palavras: umalíngua sem margens, sem limites. 1 reflexão sobre o silêncio de modo particular: Pa?
Em sua relação à alteridade, em sua relação à lin-
Patrão e Paris, Texas.
gua, a cultura brasileira acolhe silêncio.
Por outro lado, pela observação dos diferentes
Teria pois o silêncio um aspecto cultural? Com discursos, podemos reconhecer fatos que nos reme-
tem à importância do silêncio: o discurso religioso,
toda a evidência. Mas a cultura não é o único fator
em que Deus representa a onipotência do silêncio
que conta. Determinações políticas e históricas es-
(Eckarr, segundo Heidegger, é no que a linguagem
tão igualmente inscritasaí.
não diz que Deusé verdadeiramente Deus”); o ju-
Com efeito, as diferentes abordagens são muito
rídico, em queo discurso liberal (“todos os homens
distintas e resultam em concepções muito diversas
são iguais perante a lei”), produzindo o apagamen-
de silêncio.
to das diferenças constitutivas dos lugares distin-
Em nosso caso, essa abordagem foi estabelecida
tos, reduz o interlocutor ao silêncio; o científico,
durante uma pesquisa de campo em que observáva-
do qual é bem conhecido o fato de que há teorias
mos os processos de linguagem nasituação de con-
que não deixamos significar; O discurso amoroso,
tato entre índios e brancos. em que a onipotência avizinha o impossível, é um
Na Floresta Amazônica, nas margens do grande discurso votado aosilêncio,
rio Xingu, compreendemos a importância fluida do
silêncio. Ou melhor, compreendemos que há uma
relação fundamental (fundadora) entre o homem e
1 A esse respeito veja-se, por exemplo, a reflexão de B. Waldman (1989)
ai p 4

o silêncio, em face da significação. sobre a produção do silêncio em Dalton Trevisan, em Clarice Lispector,

40 | ASFORMAS DO SILÊNCIO ES LIMITES DO MÉTODO E DA OBSERVAÇÃO | 41


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Os silêncios, o silêncio Inicialmente, tornando precisa a perspectiva da


qual estamos falando: a perspectiva discursiva, que
Era'assim preciso que trabalhássemos essas intui- se definepelo fato de que a noção de discurso supõe
ções sem cair na mística dosilêncio ou narelação si- 1 superação da dicotomiaestrita lingua/fala.
lêncio-NADA (morte), interpretação essa reiterada Desta perspectiva, há alguns objetivos a atingir,
pela cultura ocidental (cf. Shakespeare, em Hamler; através da reflexão sobre o silêncio, que procurare-
“o resto é o silêncio”), mos exporaqui.
Como fazer aparecer a dimensão, por assim di- Esses diferentes objetivos têm em comum o fato
zer, “otimista” do silêncio? de não proporem uma aproximação dos modelos
Deinício, propondo-nos uma concepção não-ne- existentes, mas, ao contrário, de recusarem o iso-
gativa de silêncio: o silêncio não fala, cle significa. morfismo. Procutamos assim nos distanciar desses
A partir dessa concepção não o definimos nega- modelos, mesmo se a finalidade última é a de retor-
tivamente em relação à linguagem (o queele não é) nar sobre a linguagem.
mas em sua relação constitutiva com a significação Esse esforço de nos afastarmos dos modelos
(o queele é). existentes permite que nos ponhamos em guarda
Esse era um início. A partir dessa definição (pro- contra o que chamaríamos de “tendências inte-
visória) e de algumas noções auxiliares, procedemos pracionistas” — tais como a pragmática, a etno-
a análises em que pudemos discernir traços do tra- metodologia, as teorias da enunciação — que
balho do silêncio em diferentes discursos. referem (reduzem) o silêncio à linguagem verbal,
O silêncio significa de múltiplas maneiras e é o apagando suaespecificidade, Essa forma de traba-
objeto de reflexão de teorias distintas: de filósofos, lho representa a redução dos fatos de linguagem
de psicanalistas, de semiólogos, de ctnólogos,e até ao “mesmo”, ao já conhecido, em suma, ao sistema
mesmooslingitistas se interessam pelo silêncio, sob lingiúístico tal qual,
a etiqueta da elipse e do implícito. és Voltemos, pois, aos objetivos visados pela pers-
Além disso, há silêncios múltiplos: o silêncio das pectiva discursiva na reflexão sobre o silêncio.
emoções, o místico, o da contemplação,o da intros-
pecção, o da revolta, o da resistência, o da disciplina,
o do exercício do poder, o da derrota da vontade etc,
A partir da concepção não-nepgativa de silêncio,
e da observação de seus modos de existência, outra
questão se impõc: como compreender o silêncio?

42 | As FORMAS DO SLENCIO OS LIMITES DO MÉTCDOE DA DESEAvAÇÃO | 43


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Pensar o silêncio (em retórica), ou da distinção dito/não-dito, que
reduz o não-dito ao implícito (as teorias da argu-
Pensar o silêncio é um esforço contra a hegemonia mentação),
do formalismo Nós opomos a isso a idéia de que sem silêncio
não há sentido, sendo que o silêncio não é apenas
A reflexão sobrea linguagem conduzida pelas dife- tim acidente que intervém ocasionalmente: ele é
rentes formasda lingiiística — seja sob o modo do necessário à significação,
estruturalismo, seja do transformacionalismo — ex- O implícito é já um subproduto desse trabalho
clui o silêncio, pelo menos tal como o estamos def- do silêncio, um cfeito particular dessa relação mais
nindo. Primeiramente, pelo lugar ancilar que dá à de fundo e constitutiva. O implícito é o resto visível
significação e, em seguida, pelo compromisso com dessarelação. É um seu resíduo, um epifenômeno.
o objetivismoabstrato, pela sua relação como racio- O silêncio, tal como o conccbemos, não remete ao
nalismo,já queesta reflexão não leva em conta a irra- dito; ele se mantém comotal, permanece silêncio.
cionalidade, o equivoco, a desorganização tanto do
sentido quanto do sujeito, Pensar o silêncio representa um esforço contra 0
No estruturalismo,a idéia de “meta” e a de “O” positivismo na observação dos fatos de linguagem
como oposição não deixam lugar para o silêncio
e preenchem tudo com lingiístico definido em
O silêncio não é diretamente observável e no en-
sua totalidade. O silêncio adquire o valor que lhe
tanto ele não é o vazio, mesmo do ponto de vista da
dita seu oposto: não existe comotal. O formalismo
percepção: nóso sentimos, ele está “lá” (no sorriso
chomskiano, noseu intento,aliás louvável, de preen-
da Gioconda, no amarelo de Van Gogh, nas grandes
cher o vazio teórico dos modelos behavioristas, im-
extensões, nas pausas).
pede, no entanto, que aí se elabore uma teoria do
Para torná-lovisível, é preciso observá-lo indire-
“fato” da linguagem e tapa o buraco com umateoria
tamente por métodos(discursivos) históricos, criti-
rarefeita e de fôlego curto, dominada por fórmulas,
cos, desconstrutivistas,
Que fala da gramática mas não fala da língua. O si-
lêncio, com seu caráter não-visível (legível), obscu- É preciso aqui lembrar que pensamos a relação
ro, contínuo, não-calculável, está excluído. indireta entre o produto e sua “origem”, sua “causa”.
Propomos, pois, a problematização de toda ten- Sem considerara historicidade do texto, os proces-
tativa de sedentarização da noção de silêncio, seja sos de construção dos efeitos de sentidos, é impossí-
na forma daelipse (ao nível da frase), das “figuras” vel compreender o silêncio.

44 | AS FORMAS DO SILÊNCIO 05 LIMITES DO MÉTODO E DA OBSERVAÇÃO | 45


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Não podemos observá-lo senão por seus efeitos | lêncio significa de modo contínuo, absoluto, en-
(retóricos, políticos) e pelos muitos modos de cons- quanto a linguagem verbal significa por unidades
trução dasignificação. discretas, formais. Eis uma diferença que é preciso
Quando se trata do silêncio, nós não temos 77247- não apagar.
cas formais, mas pistas, traços. Por outro lado, noções como as de incisa e de
É porfissuras, rupturas, falhas, que ele se mostra, elipse são interessantes para observar a extensão
fugazmente: “É só de tempos em tempos que ele se do domínio conceptual da linearidade e da lite-
volta para o homem” (Heidegger, falando do Ser e ralidade. A incisa aparece, na história da reflexão
do Ente, 1969). gramatical, comoacréscimo contingente, e a elip-
Mesmo se o silêncio está sempre lá, ele é efême- se, como falta necessária. Quando tomamoso si-
ro em face do homem, no que diz respeito à sua lêncio como fundante, essa dissimetria (paradoxal
observação. Assim, sem teoria não se atinge o seu do ponto de vista da linearidade) se explica:o silên-
modo de existência e de funcionamento na signi- cio é assimétrico em relação ao dizere a elipse é do
ficação.
domínio do silêncio. A incisa é evitada; os gramá-
ticos intufram a importância dosilêncio e a rejei-
Pensar o silêncio é problematizar as noções de
taram: o dizer precisa dafalta.
linearidade,literalidade, completude Quanto à completude, já tivemos ocasião de
observar em diversas ocasiões que a incompletu-
Discursivamente, o sentido se faz em todas as di- de éfundamental no dizer. É a incompletude que
produz a possibilidade do múltiplo, base da polis-
reções. Conceitos discursivos como “interdiscurso”
(memória do dizer), “intertexto” (relação entre tex- semia. E é o silêncio que preside essa possibilida-
tos), “relação de sentidos” o atestam. + de, A linguagem empurra o que ela não é para O
A significação não se desenvolvesobre uma li- “nada”. Maso silêncio significa esse “nada” se mul-
nha reta, mensurável, calculável, segmenrável. Os tiplicando em sentidos: quanto mais falta, mais
sentidos são dispersos, eles se desenvolvem em to- silêncio se instala, mais possibilidades de sentidos
das as direções e se fazem por diferentes matérias, se apresentam.
entre as quais se encontra o silêncio.
A materialidade do sentido não é indiferente
aos processos de significação e a seusefeitos: o si-

05 LIMITES DO MÉTODO E DA OBSERVAÇÃO | 47


46 | AS FORMAS DOSILÊNCIO
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Pensar o silêncio é colocar questões a propósito
doslimites de significação entre os diferentes sujeitos
da dialogia, Pensaro silêncio nos limites da dialo
gia é pen-
e suas
posições.
sar a relação com o Outro? como uma relação contr
aditória À intervenção dosilêncio faz aparecera
falta de
wimetria entre os interlocutores. À relação deint
Quando sc pensa o sujeito em relação como er-
si- locução não é nem bem-comportada, nem
lêncio, a opacidade do “Outro”se manifesta. obedece
1 umalógica preestabelecida. Ela é atravess
Assim, pensar o silêncio é pensar a solidão ada, en-
do tre outros, pela des-organização do silêncio.
sujeito em face dos sentidos, ou melhoré pens
ar O conceito de dialogia só se faz necessário por-
a história solitária do sujeito em face dos sen tidos
. que as unidades são segmentáveis, A dial
É poraí que se pode fazerintervir as “fissuras” ogia tem
que srarealidade conceptual sustentada pela noçã
nos mostram efeitos de silêncio, O Outro está o de
pre- língua (gregaridade, regras com suas
sente mas xo discurso, de modo ambíguo ordens pró-
(presente prias, linearidade) e de segmental.
e ausente), E os modosde existência (presença)
das À matéria significante do silêncio é de outr
personagens do discurso são significativos. a na-
tureza e não opera pela “discreção”, pela “gre
Pensaro silêncio como umlimite ao dialo gism garida-
o de”, deslocando assim a noção de partilha,
é fazer a crítica a uma sua concepção behav de com-
iorista, pletude e também a de dialogia,
dominada pela função de informação e de turn
os A não-completude,que é própria a todo proc
de fala, assim como à esquematização da esso
relação discursivo, vista na perspectiva da questão
do silén-
cio, fica então assim: a) o silêncio, na constitu
2 Aquestãoda relação com e Outro como constit ição
utiva dosujeito, na tra- dosujeito, rompe com a absolutização narc
dição dialógica — que coloca que não há centro
parao sujeito — tem em j. ísica do
Authier (1984) um momento de elaboração ch que, esta,seria a asfixia do sujeito,já que
fundamental na confluência
teórica dos campos enunciativo, psicanalítico e o apa-
discursivo. Estabelecendo gamento é necessário para sua constituição
o conceito de “heterogencidade” cla fala da função
do desconhecimento : o silen-
que, no ciamento é parte da experiência da identida
imaginário do sujeito dividido,Tec
autônomo apagando a divisão que remçtêao
onstrái à imagem do sujeito de, pois
ponto de vista segundo o é parte constitutiva do processo de ident
qual “o centro é um golpe montado” para o
sujeito, de que as Ciências
ificação, é
Humanas fazem seu objeto, ignorando que ele o que lhe dá espaço diferencial, condição de
é imaginário” (Roudines- movi-
co, E. 1977). Authier dirá então: “En rupeur
e avec le Moi, fondement de mento; b) o silêncio, na constituição do senti
la subjecrivité classique conçue comme uninte do,é
rieur face à Vexteriorité du
monde, le fondement du sujetest ici déplacé, délogé que impede q zon sense pelo muito cheio,
dans unlieu multiple, produ-
fondamenta lement héréronome, ob rextériorité est zindo o espaço em que se move a materialidad
(Clément, C., 1972). Lã oise Iejoignent ces
à Vinter ienr du sujet e sig-
conceptions dudiscours, de
Vidéologie, de r'inconscient, que les théories de nificante (o não-dito necessário para o dito).
rénonciation ne penvent
sans risque pourla linguistigue, luder, c'est dans
Lafirmation que, consti-
tutivement,dansle sujet, dans son discour
s,il yade [Autre” (1984).

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05 LIMATES DO MÉTODOE DA OBSERVAÇÃO | 49
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Pensar o silêncio em sua especificidade significativa é lexão sobre os processos significativos do silêncio,
problematizar palavras como “representação,“interpretação” a
descentração da linguagemverbal enquanto espaç
o
privilegiado designificação.
O silêncio é representável? Não acreditamos. Fazendo apelo ao silêncio, deslocam-seas relações:

Isso coloca limites à interpretabilidade e à redu- SINTAXE = GRAMÁTICA


ção da linguagem só à informação, à comunicação. SIGNIFICAÇÃO = LINGUAGEM VERBAL.
Temos proposto, em nosso trabalho, distinguir
(Orlandi, 1987): a) inteligibilidade (unidadesigni- A linguagem (e as contribuições de seu estudo)
ficativa discernível em nível de frasc); b) interpre- deveestar pressuposta, mas não pode tero estatuto
de
tabilidade (atribuição de sentido ao enunciado); e paradigma ou de centro para o qual se orientam
tan-
c) compreensão (apreensão dos processos de signi- Lo a significação do silêncio quantosua explicação,
ficação de um texto). Como setrata do domínio da semântica discursi-
Diríamos que silêncio não é interpretável, mas va, está excluída a possibilidade de falar em “Bramá-
tica do silêncio”, ou de “sintaxe do silêncio” e outra
compreensível, s
formas (integracionistas) de não considerar o silên-
Compreendero silêncio é explicitar o modo pelo
cio em sua especificidade material,
qual ele significa.
Ao mesmotempo,a observação da marerialidade
Compreender o silêncio não é, pois, atribuir-lhe
(significativa) do silêncio nos permite ser crític
um sentido metafórico em sua relação com o dizer os
emface daafirmaçãocategórica de que a linguage
(“traduzir” o silêncio em palavras), mas conhecer os m
não tem exterior (Barthes, 1978). Essa é uma afir-
processos designificação que elepõe em jogo. Co- mação que não reconhece a contradição, que elide
nhecer os seus modos de significar” 0 funcionamento paradoxal dos sentidos.

Finalmente, pensaro silêncio, a nosso ver, é traçar um


limitea redução dasignificaçãoao paradigma dalinguagem Às diversas categorizações de silêncio
verbal. Isso significa propor uma descentração do verbal
Podemos perceber que, em muitas propostas
À descentração do sujeito, que é um princípio de classificação, domina a concepção negativa do
constitutivo da análise de discurso,junta-se, pela re- silêncio,

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Lyotard (1983, p. 30) propõea distinção de quatro “e traduz na presença das figuras do silêncio espe-
silêncios, vificamente textuais, da elipse. Prandi assinala: a
Segundo ele, a frase que substitui o silêncio seria reticência (“la sventurata rispose”), a descontinui-
uima negativa, O que é negado por ela seria uma das dade temática (“Pedro ganhou? Viva a França!”,
quatro instâncias que constituem um universo de fra- 4 subdeterminação semântica (“Uma morte per-
ses: o destinatário, o referente, o sentido, o emissor. fumada”). Nós acrescentaríamos aí a preterição (o
Ainda segundo esse mesmo autor, a frase impli- silêncio que é projetado para o futuro discursivo).
cada pelo silêncio seria uma negativa que se formu- De modo geral, se nos colocamos em uma pers-
laria assim: pectiva discursiva e, em consegiúência, não-negativa
dosilêncio, toda uma revisão das “figuras” seria ne-
a) esse caso não é dasua conta; cessária e revelaria aspectosinteressantes do próprio
b) esse caso não existe; estudo daretórica.
c) esse caso não é significável; No caso presente, o que nos interessa é sobretu-
d) esse caso não é da minha conta, dofazer aparecer, emrelação às categorizações das
formas de silêncio, duas delas: a) o silêncio fundan-
Essas categorizações, embora definidas negati- te; e b) a política do silêncio (o silenciamento).
vamente, trazem alguma contribuição para a com- À primeira nos indica que todo processo de signi-
preensão do silêncio e organizam o seu modo de ficação traz umarelação necessária ao silêncio; a se-
significar. Mas, de certa forma, remetemainda for- gundadiz que — como sentido é sempre produzido
temente o silêncio ao dito, permanecendo na ins- de um lugar, a partir de uma posição do sujeito — ao
tância da frase, dizer, ele estará, necessariamente, não dizendo “ou-
Tambéma retórica é, claramente, um lugarrele- tros” sentidos. Isso produz um recorte necessário no
vante paraa discussão das formas desilêncio. sentido. Dizer e silenciar andamjuntos.
É desse modo, em relação à retórica, que Prandi Há, pois, uma declinação política da significação
(1988) transpõe os limites da frase e do caráter ne- que resulta no silenciamento como forma não de
gativo do silêncio. + calar mas de fazer dizer “uma” coisa, para não dei-
No quadro dafrase, dirá ele, a elipse, figura frás- xardizer “outras”. Ouseja,o silêncio recorta o dizer.
tica do silêncio, qualifica-se negativamente, como Essa é sua dimensão política.
realização vazia de umacategoria formal funcional Essa dimensão política do silêncio está, no en-
dada. No discurso, entretanto, o silêncio adquire tanto, assentada sobre o fato de que o silêncio faz
uma identidade positiva, índice, entre outros, que parte de todo processo de significação (dimensão

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do sa relação à linguagem nos tornavisíveis e intercam-


fundante do silêncio). Sem silêncio não há senti
biáveis, como sujeitos.
porque o silêncio é a matéria sign ificativa por exce- Ao contrário, por sua relação com o silêncio, o
lência, ou, comodiz Witrgenstein (1961): “a relação
ão homem se remete à continuidade, à contradição, à
do silêncio com a linguagem mostra a constituiç
diferença, às rupturas, ao absoluto e à indistinção.
essencial da linguagem”.
Pensando a representação tal como tem sido
Quando atentamosparao silêncio, tematizando
concebida pelas teorias da linguagem, referidas ao
razões “constitutivas”, fazemos o percurso da rela-
verbal, podemos considerar que o silêncio não é re-
ção silêncio/linguagem e estamos no domínio do
presentável.
silêncio fundante. Quando cireulamos pelas razões
Resulta assim uma dificuldade colocada pela re-
políticas, trabalhamos a dimensão do silenciamen-
sistência do “objeto” silêncio: como falar de algo
to na “formulação” dos sentidos.
não-representável e cuja observação não se pode
fazer pelos métodos correntes?
Silêncio, linguagem, análise Levandoessa reflexão mais longe, podemos mes-
mo considerar que esses métodose essas teorias são
Do que acabamos de expor resulta que, se à a própria negação dosilêncio como matéria signifi-
linguagem é categorização do silêncio, isto é, ela cativa diferente e específica.
produz a sedentarização dos sentidos, as palavras Assim, a dificuldade na análise — quando se
representam já uma disciplinação da significação coloca a questão do silêncio — não é, como para
“selvagem” do silêncio. Assim, a produção verbal outras disciplinas da linguagem, ora o excesso de
serve para a administração (gestão) do sentido. dados, ora a falta de teoria, mas sim a necessidade
O dizer como ato que domestica o significar ser- de uma rupiura.
vc à asserção,à unificação do sentido e à unicidade Dissemos, mais acima, que observamoso silên-
do sujeito. cio indiretamente. Mais do que “marcas” (paradig-
A identidade — que exige coerência, unicidade, ma da demonstração), temos “pistas” (conjecturas).
heterogeneidadedisciplinada — produzida pornos- Para analisar o silêncio é assim preciso fazer intervir
a teoria enquanto crítica.
os dois ci- Em consequência, é preciso deslocar a análise do
+ Em Courtine (1982) podemos observar à articulação entre
xos, o da constituição e o da formula ção, na produç ão dos sentidos . O eixo domínio dos produtos para o dos processos de pro-
curso e é o res-
da constituição (o vertical) é o que se relaciona ao interdis dução dos sentidos. O método de que necessitamos
c o eixo da
ponsável pelo saber discursivo, sua história (o dizivel, o já-dito),
Formulação se remete ao intradis curso € represen ta à atualiza ção do dizer deve entãoser “histórico” (discursivo), e fazer apelo
por um sujeito emseu aqui é agora.

05 LIMITES DO METODO E DA CESERVAÇÃO | 55


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à “interdiscursividade”, trabalhando com os entre-
Assim, um modo interessante de considerar o
meios, os reflexos indiretos, os efeitos,
silêncio é, por exemplo, através de uma fenomeno-
À partir desse deslocamento podemos pensar os
logia das figuras (Prandi, 1988), que nos traz a com-
seguintes modos de aproximação do silêncio:
plexidade e a multiplicidade de “acontecimentos”
do silêncio, produzindo um deslocamento metodo-
a) Trabalhar coma noção de completude (incompletu-
lógico em gue o silêncio pode ser compreendido.
de) elaborando,por exemplo, a relação elipse/incisa,
em face do enunciado canônico (paradigmático),
c) Pôr em relação múltiplos textos (intertextuali-
dade), pela análise das paráfrases, em particular,
Aliás, a própria definição de linguagem em Aris-
tóteles remete à questão da completude (e silêncio),
O silêncio é fugaz. O homem não o suporta e as-
pois, segundoele, dizer é “falar algo de algo”
sim não lhe permite senão umaexistência efêmera.
De onde podemos esboçar três possibilidades,
Pela relação entre múltiplos fragmentos de lingua-
pelo menos:
gem, pode-se construir umacerta duração para tor-
ná-lo observável, nas condições em que ele se pro-
Dizer algo de tudo Erudição duz. Ressalta-se assim sua materialidade histórica.
Vizer tudo dealgo Especialização Em todosesses casosse faz intervir a historicida-
Dizer tudo de tudo Formalismo de de forma particular, pelo fato de se relacionarem
O mitoda exaustividade leva à abstração como
múltiplos discursos.
Para ilustrar isso nós podemos lembrar alguns
condição do saber, assim como à ilusão da onipo
- aspectos de nosso estudo (1990) a propósito do si-
tência do método; o silêncio, uma vez que
não é lêncio sobre a presença/ausência do índio na(da)
tangível (empiricamente), mostrasde forma para-
identidade cultural brasileira.
doxal, os limites dos métodos formais,
Como o índio foi excluído da línguae da identi-
b) Analisar as “figuras”, produzindo um desloca- dade nacional brasileira?
Comefeito, o índio nãofala na história (nos tex-
mento no modo como se trabalha a Retórica.
tos que são tomados como documentos) do Brasil,
Ele não fala mas é falado pelos missionários, pelos
Seria necessário trabalhar as “figuras” como“sin-
cientistas, pelos políticos.
tomas” da marginalização do silêncio dos processos
Mesmose eles têm boas intenções, como media-
de significação.
dores, eles reduzem os índios a “argumentos” da re-

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tórica colonial. Eles falam do índio para que ele não. Os diferentes modos de considerar as formas do
signifique fora de certos sentidos necessários para a silêncio, que citamos no início, se mantêm. Entre o
construção de uma identidade brasileira determina- silêncio que se pode apreender na Amazônia e o que
da em que o índio não conta. Trata-se da construção nos ensina Mallarméy há, claro, uma grande distân-
de sentidos que servem sobretudo instituição das cia a percorrer. É isso que procuro compreender, Às
vezes emsilêncio.
relações colonialistas entre os países europeus € o
Novo Mundo.
Para compreender esse silêncio, foi preciso refa-
zet toda uma trama discursiva que foi construída
pela ciência, pela política social e pela religião (a
catequese) ao longo de uma história de oo anos,
Por seu lado, esse silêncio pode ser compreendido
como resistência do Índio a toda tentativa de inte-
gração: ele não fala (do lugar em quese “espera” que
ele fale). Quer se trate de dominação ou deresistên-
cia, é pela historicidade que se pode encontrar todo
um processo discursivo marcado pela produção de
sentidos que apagam o índio, processo que o colo-
cou xo silêncio. Nem por isso ele deixa de significar
em nossa história.
O silêncio não é pois imediatamente visíveleinter-
pretável, É a historicidade inscrita no tecido textual
que pode “devolvê-lo”, torná-lo apreensível, “com- s Neste capítulo, fizemos referência a filmes, música, poesia, pintura.
Na pintura, especificamente, a questão do silêncio cem sido evocada,
preensível. Desse modo, o trabalho como silêncio pelo viés do “figural”, de forma interessante. Cito aqui duas passagens
implica a consideração dessas suas características. da reflexão de M, Bacherich sobre a pintura: a) “o efeito que faz vet,
que faz dizer, que faz prazer, furor, escândalo, como a atesta à história
da pintura, nunca deixa de ter uma ligação com à profundidade, a rup-
tura, o entre — dois — planos, algo que está no batimento do objeto,
4 Outro medo de pensar o silêncio em nossa história, apresentado dessa sua presença e sua ausência figurada; ali onde a efígie teria uma ligação
vez pelo historiador, pode ser apreciado nolivro O silêncio dos vencieos (E. com a ausência”: b) “O Vazio desarranja a perspectiva lincar, coloca uma
De Decca, 1982). relação de devir[..). O Vazio é signo entre signos”,

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Siêncio, SUJEITO, HISTÓRIA


SIGNIFICANDO NAS MARGENS

Notemos — de passagem — que o


projeto fenomenológico hussertiano,
que visa reencontrar no “solo originá-
rio"dos atos do sujeito (como consciên-
cia, atividade etc.) a fonte daquilo
que determina na realidade, o sujeito
como tal é, com bastante exatidão, à
repetição do mito idealista da inte-
rioridade, pelo qual o “não-dito” não
poderia ser diferente do “já-dito” ow
do “dizível” que o sujeito pode encon-
trarpor uma reflexão sobre st mesmo.
M. PêcHeux, Les Vérités de La Palice
ndo
.

Não se trata, aqui, de falar do silêncio da imagem,


do silêncio da paisagem ou do mar. Nós nos propo-
mos a falar do silêncio que significa em si mesmo,
Com ou sem palavras, esse silêncio rege os proces-
sos de significação. Em suma, com nossa reflexão,
estamos procurando dar ao silêncio um estatuto
explicativo.
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Essa concepção de silêncio modifica e torna Os místicos católicos da Contra-Reforma e os


mais complexa sua relação com linguagem verbal, Quietistas do século XII apreciavam bastanteo si-
como veremos. lêncio e faziam da prática da presença de Deus no
No entanto, uma observação se impõe: não tra- silêncio o centro de sua religião.
taremosaqui do silêncio em sua concepção mística. Ostrapistas, como sabemos, fazemvoto de silên-
Essa concepçãoé frequentemente a dominante por- cio eterno,
que o silêncio é um tema cuja história está muito Entre os protestantes, pode-se lembrara Sociedade
ligada ao sagrado,às religiões, dos Amigos ou mais particularmente os Quakers,
Ele é considerado como “um apoio à adoração” para os quais o silêncio tem um lugar central. Sem
ou como “método que prepara a almapara experiên- esquecer os eremitas que têm garantida — de diver-
cias pessoais” (Enciclopédia de Religião e Ética de sas formas, adaptadas às diferentes formas da so-
Hastings). Assim, ele foi praticado por pequenos c ciedade — sua presença ao longo da história da hu-
grandes grupos em quase todos os períodos da his- manidade,
tória religiosa no mundo todo. Finalmente, como do misticismo para a supersti-
Na Grécia, o silêncio tinha um lugar importan- ção há só um pequeno passo, não se pararia de enu-
te nas sociedades pitagóricas e noscírculos órficos. merar todasas seitas cujos fiéis atribuem ao silêncio
Pitágoras exigia um ou mesmotrês anosde silêncio um poder “mágico”.
como forma de iniciação na ordem religiosa. Só- Essa longa história da relação e da reflexão sobre
crates refere várias vezes a importância do silêncio o silêncio, nas suas determinações religiosas ou mis-
como forma de conhecimento e, comparando-o à ticas, contribui bastante para uma tradição em que
fala, afirma queo silêncio é bem mais decisivo que não se reflete sobre o silêncio em sua znaterialidade
aquela, significativa.
Por outro lado, é remarcável que no Antigo Tes- Assim, é preciso umcerto esforço para “laicizar”
tamento haja várias referências ao silêncio, enquan- a reflexão sobre o silêncio.
to no Novo há apenas raras menções. Não é umatarefa fácil. Mesmo quando tomamos
Santo Agostinho, em suas Confissões, fala do silên- uma distância razoável em relação à concepção mis-
cio quando refere sua estada em Óstia com sua mãe. tica do silêncio, acabamos por significar no velho
Os místicos,os cristãos, os neoplatônicos, os per- “tom” religioso: “Assim é o homem. O mundoestá
sas, os hindus, os árabes, os judeus na Idade Média nele. E quandoele se retira, não é somente da mul-
fizeram largo uso do silêncio como meio de encon- tidão exterior que ele se distancia, mas dessa multi-
trar Deus. dão enorme que faz nele sua morada”,

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Silêncio, retiro, transcendência: não é disso que sobre o silêncio, se refletem na concepção de suy-
estamos falando mas da necessidade de se conside- jeito do discurso.
rar o silêncio que torna possível toda significação,
todo dizer, O silêncio que não é distanciamento À fim de desenvolver essas questões, vamos dis-
mas presença. O silêncio, mas não o inefável, “o ele- tinguir as diferentes noções desilêncio, ou, dito de
mento místico” (Wittgenstein, 1961). outro modo,as diferentesformas de silêncio.
Poderíamos, por outro lado,relacionar silêncio e
filosofia, pois “querer remetera filosofia aosilêncio, Silêncio e implícito
como o fazem as reflexões da existência [...), deixa
lugar para o silêncio fascinado diante do brilho É preciso,já de início, diferenciar conceitos que
semfalhas dos mundostradicionais” (A, Juranville, estão próximos mas que têm naturezas diferentes.
1984). No entanto, nosso interesse incide sobre os Trata-se da distinção silêncio/implícito que con-
processos de produção dos sentidos estabelecidos sideramos como duas noções distintas com pressu-
pelo silêncio e “a história como ruptura chamapara postos teóricos e consegiiências analíticas diversas.
além do silêncio da flosofia” (idem). Do mesmo modo que a noção de “ambigiúidade”
É pois dessesilêncio, presente na constituição do resulta da disciplinarização da noção de “polisse-
sentido e do sujeito da linguagem, de que nos ocu- mia”, disciplinarização esta produzida pela meto-
pamos aqui. dologia da análise lingística, a noção de implícito
Duas ordens de questões se impõem desde o (Ducrot, 1972) é uma forma de “domesticação” da
início: noção do não-dito pela semântica (notadamente
a semântica argumentativa). Essa domesticação se
1. Uma se refere diretamente ao sentido: faz pela exclusão da dimensão discursiva e pela re-
cusa da opacidade do não-dito, Segundo Ducrot
a) Como se pode explicar a litérálidade como uni- (idem), há
dade e permanência de “um”sentido?
b) Como se podeexplicar o fato de que, para dizer [...] modos de expressão implícita que permitem dei-
“x, é preciso não dizer “y”? xar entender sem incorrer na responsabilidade de ter dito
c) Comose pode explicar o sentido da censura? [...]. Ora, tem-se frequentemente necessidade de dizer
certas coisas e ao mesmo tempo de poder fazer como se
não as tivéssemos dito, de dizê-las mas de modo tal que se
2. Consequentemente, procuramos mostrar como
possa recusar a sua responsabilidade,
questões desse gênero, e que envolvema reflexão

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Para o implícito assim definido, o recorte que se 1) reafirmando, inicialmente, que o silêncio não
faz entre o dito e o não-dito é o que se faz entre sig- recobre o mesmo campo (teórico, analítico) do
nificação atestada e significação manifesta (Ducrot, implícito;
idem): o não-dito remete ao dito. Não é assim que b) em seguida, considerando que o silêncio, assim
concebemoso silêncio. Ele não remete ao dito:ele se como a linguagem, não é transparente,
mantém comotal; ele permanecesilêncio e significa.
A partir de sua referência necessária ao dizer, tal Um outro aspecto do deslocamento eue procura-
comose dá com o implícito, o silêncio foi freqiien- mos produzir desemboca no fato de que o silêncio
temente concebido de formarelativa-negariva, sig- não se reduz à ausência de palavras. As palavras são
nificando, por sua dependência das palavras, apenas cheias, ou melhor, são carregadas de silêncio. Não se
como contrapartida do dito, tendo uma função an- pode excluí-lo das palavras assim como não se pode,
cilar ao dizer. por outro lado, recuperar o sentido do silêncio só
A fim de produzir uma mudança de terreno, defi- pela verbalização. Consideramos a tradução do si-
nimoso silêncio em si atribuindo-lhe deste modo um lêncio em palavras como umarelação parajfrástica.
valor positivo. Podemos, a partir de então, apreender A “legibilidade” do silêncio nas palavras só é
determinaçõessignificativas do não-dito que não fo- tornada possível quando consideramos que a mate-
ram ainda exploradas e que fazem parte do que con- rialidade significante do silêncio e a da linguagem
sideramos comosilêncio. diferem e que isso conta nos distintos efeitos de
Essa mudança deterreno deriva do fato de termos sentido que produzem.
considerado queo silêncio tem seus modos próprios
de significar, Silêncio e significação
Emsuma, nós distinguimos silêncio e implícito,
sendo que silêncio não tem umarelação de depen- A partir dessas considerações, é importante insis-
dência com o dizer para significar: o sentido do si- tir em que o silêncio não se define como tal só por
lêncio não deriva do sentido das palavras. sua relação com a parte sonora da linguagem, mas
Essas observações se fazem necessárias porque é com a significação, ou melhor, pela relação signif-
preciso considerar a relação fundamental das pala- cativa som/sentido,
vras com o silêncio sem, no entanto, reduzir este à
um complemento da palavra.
Assim, procuramosnosdistanciardealgumas formas
particulares de categorização do silêncio já fixadas;

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O silêncio fundador Noentanto,o silêncio não está apenas “entre”as


palavras. Ele as atravessa. Acontecimento essencial
O silêncio de que falamos aqui não é ausência de la significação, ele é matéria significante por exce-
sons ou de palavras. Trata-se do silênciofundador, lência.
ou fundante, princípio de toda significação. Dessa concepção de silêncio, como condição
À hipótese de que partimos é que o silêncio é a de significação, resulta que há uma incompletude
própria condição da produção de sentido. Assim, | constitutiva da linguagem quanto ao sentido (assim
ele aparece como o espaço “diferencial” da signifi- como, veremos em seguida, também o sujeito tem
cação: “lugar” que permite à linguagem significar. umarelação importante coma incompletude).
O silêncio não é o vazio, ou o sem-sentido: ao Segundo essa perspectiva, a busca da completu-
contrário, ele é o indício de uma instância signifi- de da linguagem — o que implicaria a ausência do
cativa. Isso nos leva à compreensão do “vazio” da silêncio — leva à falta de sentido pelo muito cheio,
linguagem como um horizonte e não comofalta. mesmose, do ponto de vista estritamente sintático,
Evidentemente, não é do silêncio em sua quali- há gramaticalidade. Exemplo: “A mulher que euvi
dade física de que falamos aqui, mas do silêncio que tinha um livro que era amarelo que tinha com-
como sentido, como história (silêncio humano), co- prado para seu primo que morava ao lado...”
mo matéria significante. O silêncio de que falamos Assim, em face do discurso, o sujeito estabelece
é o que instala o limiar do sentido. O silêncio físico necessariamente um laço com o silêncio; mesmo
não nos interessa, assim como, para o linguista, o que essa relação não se estabeleça em um nível to-
ruído enquanto matéria física não se coloca como talmentc consciente, Para falar, o sujeito tem neces-
objeto de reflexão, sidade de silêncio, um silêncio que é fundamento
Segundo J. de Bourbon Busset (1984), o silêncio necessário ao sentido e que ele reinstaura falando.
não é ausência de palavras; ele é o que há entre as Aí está, acreditamos, um dos aspectos da polisse-
palavras, entre as notas de música, entre as linhas, mia: mais se diz, mais o silêncio se instala, mais os sen-
entre osastros, entre osseres. Ele é o tecido intersti- tidos se tornam possíveis e mais se tem ainda a dizer.
cial que põe em relevo os signos que, estes, dão va- Mas, em nossa concepção, o silêncio é mais
lor à própria natureza do silêncio que não deve ser ainda — ele significa por si mesmo: “O silêncio
concebido como um “meio”, O silêncio, diz o autor, não são as palavras silenciadas que se guardam no
é o “intervalo pleno de possíveis que separa duas pa- segredo, sem dizer. O silêncio guarda um outro se-
lavras proferidas: a espera, o mais rico e o mais frágil gredo que o movimento das palavras não atinge”
de todos os estados... O silêncio é “iminência”. (M. Le Bot, 1984).

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O silêncio do sentido torna presente não só a Se isso explica a polissemia no que o silêncio
iminência do não-dito que se pode dizer mas o in- produz como resíduo — como o “a-mais” — na
dizível da presença: do sujeito e do sentido. mu relação com a linguagem verbal, por outro
Há injunção dos sujeitos da linguagem em estar lilo, pode-se imaginar o que se produziria se, ao
nos sentidos, sejam estes “feitos” de palavras ou de contrário, o silêncio fundador não existisse: “as
silêncio. Não se pode não significar. Para o sujeito linguas teriam soçobrado na plenitude dos senti-
de linguagem,o sentido já está sempre-lá. Conside- dos” (M, Le Bot, 1984). O mesmo autor diz que “se
rando sua relação coma significação, o sujeito tem os sentidose as palavras não estivessem limitados
assim uma necessária relação com o silêncio. pelo silêncio, o sentido das palavras já há muito
Com efeito, a linguagem é passagem incessante teria dito tudo o que se pode dizer”. O sentido é
das palavras ao silêncio e do silêncio às palavras. múltiplo porque o silêncio é constitutivo. À falha
Movimento permanente que caracteriza a signi- co possível estão no mesmolugar, e são função do
ficação e que produz o sentido em sua pluralidade, silêncio. Presença (meyen em grego = dizer) e silên-
Determinado ao mesmo tempo pelo contexto e pe- cio (mutus em latim = mudo) se enrolam no mes-
los contextos no plural, esse movimento,esse des- mo acontecimento de linguagem: o significar.
locamento, inscrito na constituição dos sentidos, É nessa perspectiva que consideramos a lingua-
tem uma relação particular com a subjetividade: o gem como categorização do silêncio, isto é, ela é a
sujeito desdobra o silêncio emsua fala. No discur- gregaridade, a possibilidade de segmentação, ou me-
so há sempre um “projeto”, umfuturo silencioso do lhos, o recorte da significação em unidades discretas.
sujeito, pleno de sentidos, Entretanto, uma vez recortado, o sentido permanece
O discurso se apresenta desse modo comoo pro- sempre a ser ainda dito. Se o silêncio não tivesse um
jeto — o estado significante — pelo qual o sujeito se sentido em si mesmo, umavez categorizado, esse sen-
lança em “seu”sentido em um movimento contínuo. tido seria definitivo. A língua extenuar-se-ia na usura
Para cumprir esse “projeto”, o sujeito toma apoio das palavras, tornar-se-ia pura convenção.
no silêncio. Também nessa perspectiva, o sentido A partir do deslocamento que produzimosa fim
não tem origem (P. Henry, 1988): não há senão esta- de darao silêncio uma especificidade teórico-cxpli-
dos contínuosde significação. O antes, o estado an-
terior não é o “nada” mas ainda'ó silêncio enquanto 1 Olapso coloca em relação os dois ladosda polissemia: comete um ex-
horizonte de sentidos. | cesso (diz demais) e mostra uma falta (algo do que está emsilêncio). Há
formas organizadas e formas não-organizadas de manifestação do silêncio
O silêncio é contínuo e há sempre ainda sentidos fundador: o lapso é uma forma não-organizada. a censura é uma torma
a dizer. organizada.

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cativa, a concepção desilêncio fundador nos leva à Além do silêncio fundador, tal como o conside-
seguinte distinção: ramos anteriormente, há a política do silêncio, que,
por sua vez, tem duas formas de existência ligadas:
a) de um lado, temos a análise como fragmentação,
em quea significação aparece como uma relação a) o silêncio constitutivo e
que o sujeito mantém com a linguagem sob o do- b) o silêncio local.
mínio do segmentável;
b) de outro, temos a consideração da significação A relação dito/não-dito podeser contextualizada
como um continua não-segmentável, mas ain- sócio-historicamente, em particular em relação ao
da significante. que chamamos o “poder-dizer”, Pensando essa con-
textualização em relação ao silêncio fundador, po-
Isso porque o silêncio não é “categorizável”, Ele é demos compreender a historicidade discursiva da
condição da linguagem mas é absoluto, intemporal construção do poder-dizer, atestado pelo discurso.
e ilimitado em sua extensão (M. Le Bot, idem). As- Com efeito, a política do silêncio se define pelo
sim,talvez pela compreensão do discurso, etimolo- fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente
gicamente, como “o que retorna”, podemos estabe- outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma
lecer o modo apropriado de compreender silêncio situação discursiva dada.
em seu movimento continuo. A diferença entre o silêncio fundador e a política
Desde que nos propomosumareflexãocrítica sobre do silêncio é que a política do silêncio produz um
os processos designificação, não mais nos limitamosà recorte entre o que se diz é o que não se diz, en-
busca de unidades discretas. Se a matéria significante quanto o silêncio fundador não estabelece nenhu-
do silêncio é diferente da da linguagem verbal, essa di- ma divisão: ele significa em (por) si mesmo.
ferença deveser levada em conta pela análise. Determinado pelo caráter fundadordo silêncio,
Observemos, pois, uma outra forma desilêncio: o silêncio constitutivo pertence à própria ordem de
o silenciamento. produção do sentido e preside qualquer produção
de linguagem. Representa a política do silêncio
4
como umefeito de discurso que instala o antiim-
O silenciamento: uma política dosentido plícito: se diz “x” para não (deixar) dizer “y, este
sendo o sentido a se descartar do dito. É o não-
Umadistinção nointerior mesmoda noção de silêncio dito necessariamente excluído. Por aí se apagam os
nos indica um procedimento analítico significativo. sentidos que se quer cvitar, sentidos que poderiam

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emrelação à política dos sentidos: é a produção do
instalar o trabalho significativo de uma “outra” for-
interdito, do proibido,
mação discursiva, uma “outra” região de sentidos.
Elegemosa censtra como objeto de nossa presen-
O silêncio trabalha assim os limites das formações
tc reflexão por considerar que nela existem processos
discursivas, determinando consequentemente osli-
«ue nos indicam modos de funcionamento relevan-
mites do dizer.
tes do silêncio. Entretanto, não pensaremos a forma
É nesse nível que funciona a “forclusão” do sen-
linguística da censura, visando a sua classificação,
tido, o silêncio constitutivo, ou seja, o mecanismo
pela detecção de suas marcas (unidades discretas)
que põe em funcionamento o conjunto do que é
preciso não dizer para poder dizer.
no texto. Não procuramos “dados” sobre a censu-
ra; procuramos analisar a censura enquanto “fato”
Umexemplo dessa forma de silêncio é a denomi-
de linguagem que produz efeitos enquanto política
nação “Nova República”, no Brasil, atribuída ao regi-
pública de fala e silêncio. Consideramos a censura
me que seguiua ditadura militar, Ao nomear-se assim
emsua materialidade linguística e histórica, ou seja,
esse período, apagava-se 0 fato de que o que tinhamos
discursiva. E embora vamos tomar como centro a
tido antes era uma ditadura (Orlandi, 1987).
censura política, também outras formas de censura
Podemosdizer, generalizando, que toda denomi-
se alinhamno faro que estamosanalisando.
nação apaga necessariamente outros sentidos pos-
É preciso não confundir analiticamente os dois
síveis, o que mostra que o dizer o silenciamento
modos de existência do silêncio — o fundador e o
são inseparáveis: contradição inscrita nas próprias
político — sementretanto separá-los categorica-
palavras.
mente do ponto de vista teórico.
Comoparte da política dosilêncio nós temos, ao
Se a detecção do funcionamento dosilêncio fun-
lado do silêncio constitutivo, o silêncio local, que é a
dador é mais difícil c exige a observação através de
manifestação mais visível dessa política: a da inter-
dição do dizer. “desfalecimentos” do sentido, a detecção dos efeitos
da política do silêncio é bem mais fácil e nós vere-
Tomemos um exemplo dessesilêncio local: a cen-
mos que podemos:
sura. Trata-se da produção dosilêncio de formafra-
ca, isto é, é umaestratégia política circunstanciada
ta a) explicitar a política do silêncio inscrita em um
Da
fato de linguagem específico como a censurae,
» Essas considerações também se confirmam sé pensarmas em aspectos
ori- b) consegiientemente, pôr em relevo o modo de
eximológicos do silêncio. Em sânscrito a raiz ambivalente 224 está na
gem de palavras que significam tanto falar como ficar em silêncio: za42%s funcionamento do silêncio fundador.
no
(lat. mudo), mytheomai (greg. dizer) etc. Presençae silêncio se cruzam
mesmo acontecimento de linguagem.

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Silêncio e vozes sociais [uroche, Pécheux, 1972). À censura estabelece um


jupo de relações de força pelo qual ela configura, de
a. Dominação e resistência formalocalizada, o que, do dizível, não deve (não
pode) ser dito quando o sujeito fala.
Poder-se-ia falar do modo como a censura fun- A relação com o “dizível” é, pois, modificada
ciona do lado da opressão. Mas isso não tem ne- quando a censura intervém: não se trata mais do
nhummistério: proibem-se certas palavras parase dizível sócio-historicamente definido pelas forma-
proibirem certos sentidos. voces discursivas (o dizer possível): não se pode dizer
Noentanto, há um aspecto interessante a obser- » que foi proibido (o dizer devido). Ou seja: não se
var emrelação a esse mecanismo da censura. Como, pode dizer o que se pode dizer.
no discurso, o sujeito € O sentido sc constituem ao Consideremos nessa perspectiva discursiva a
mesmo tempo,ao sc proceder desse modose proíbe textualidade. Todo texto? é tomado como parte
ao sujeito ocuparcertos “lugares”, ou melhor, proí- do processo de interlocução. Assim, o domínio de
bem-se certas “posições” do sujeito, cada um dos interlocutores é parcial emsi c não tem
À censura não é um fato circunscrito à consciên-. unidade senão no(e pelo) texto. O texto é unidade.
cia daquele que fala, mas um fato discursivo que se. Consegiientemente,a significação se faz no espaço
produz noslimites das diferentes formações discur- | discursivo (intervalo) criado pelos (nos) interlocu-
sivas que estão em relação. tores, em um contexto sócio-histórico dado.
Assim concebida, a censura pode ser compreen- A esse domínio dividido da constituição da uni-
dida comoa interdição da inscrição do sujeito em dade textual e da unidade dos sentidos corresponde
formações discursivas determinadas. Conseguen- um domínio de incompletude do sujeito. Assim
temente, a identidade do sujeito é imediatamente como o texto não se esgota em um espaço fechado,
afetada enquanto sujeito-do-discurso, pois, sabe-se o sujeito e o sentido também são caracterizados pela
(Pécheux, 1975), a identidade resulta de processos sua incompletude.
de identificação segundo os quais o sujeito deve-se Como os processos discursivos se realizam ne-
inscrever em uma (e não em outra) formação dis- cessariamente pelo sujeito, mas não têm sua origem
cursiva para que suas palavras tenham sentido, Ao nosujeito (ilusão do sujeito de estar na fonte do sen-
mudar de formação discursiva, as palavras mudam
de sentido. 4 Oexto aqui concebido no quadro da teoria do discurso, Correspon-
de, pois, no plano analítico, ao quesignifica o discurso no planoteórico:
Em uma conjuntura dada, as formações discursi-
unidade de significação cuja relação comas condições de produção é cons-
vas determinam “o que pode e deveser dito” (Henry, ticuriva, "

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tido: esquecimento nº 1 de Pêcheux, 1975), ao falar. nite, ao mesmo tempo, o sentimento deidentidade,
o sujeito se divide: as suas palavras são também as assim como, paralelamente, o efeito de literalidade
palavras dos outros. (unidade) no domínio do sentido: o sujeito se lan-
Dessa contradição, inerente à noção de sujeito ca no seu sentido (paradoxalmente universal), o que
(e de sentido), resulta umarelação particularmente lhe dá o sentimento de que esse sentido é uno.
dinâmica entre identidade e alteridade: um movi- Se o sentimento de “unidade” permite ao sujeito
mento ambíguo que distingue (separa) e ao mesmo identificar-se, por outro lado, sem a incomplerudee
tempo integra (liga), demarcandoo sujeito em sua o consequente movimento, haveria asfixia do sujei-
relação com o outro. to e do sentido, pois o sujeito não poderia atravessar
No entanto, se há um apagamento necessário os diferentes discursos e não sexia atravessado por
para a constituição do sujeito — e isso constitui sua cles, já que não poderia percorrer os deslocamentos
incompletude —, há também um desejo, ou, antes, (os limites) das diferentes formações discursivas.
uma injunção à completude (vocação totalizante O Outro (e os outros) é o limite mas também é o
do sujeito) que, em sua relação com o apagamento, possível.
desempenha umpapel fundamental no processo de Se é assim teoricamente, a situação típica da cen-
constituição do sujeito (c do sentido). sura traduz exatamenteessaasfixia: ela é a interdição
A incompletude do sujeito pode ser compreen- manifesta da circulação do sujeito, pela decisão de
dida como trabalho do silêncio. O sujeito tende a um poder de palavra fortemente regulado. No auto-
ser completo e, em sua demanda de completude, é o itarismo, não há reversibilidade possível no dis-
silêncio significativo que trabalha sua relação com as curso, isto é, o sujeito não pode ocupar diferentes
“diferentes formações discursivas, fazendo funcionar posições: ele só pode ocupar o “lugar” que lhe é
a sua contradição constitutiva. Sua relação com si- destinado, para produzir ossentidos que não lhesão
lêncio é sua relação com a divisão e com o múltiplo. proibidos. À censura afeta, de imediato,a identidade
Discursivamente, não há nem umsujeito-absolu- do sujeito.
to, auto-suficiente, nem um sujeito-complemento, Nesse passo podemos fazer uma relação entre a
inteiramente determinado pelo fora. Esse espaço da rarefação do sentido produzida pela relação com o
subjetividade na linguagem é um lugar tenso onde Poder (a censura) e a produzida pela relação com
jogam os mecanismos discursivos da relação com a o Desejo (Narciísca).
alteridade, Narcisofixa seu sentido: cle não se deixa atraves-
A incompletude é uma propriedade do sujeito sar (e não atravessa) “outros” discursos. Ele preen-
(e do sentido), e o desejo de completude é que per- che “seu” lugar de sujeito, sozinho. Não há, nele,

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movimento, não há apagamento possível: um só Daí, no seu funcionamento,a censura, ao atingir
discurso. o sujeito, fixar-lhe uma imagem e ao mesmo tempo
O autoritarismo poderia ser considerado, nessa obrigá-lo a projetar-se para além (na fluidez do si-
perspectiva, como umaespécie de “narcisea social”, lêncio). Com efeito a censura é o lugar da negação e
já que deseja, procura impor (pelo poder, pela for- ao mesmo tempo da exacerbação do movimento que
ça) um sentido só para todaa sociedade. Semos be- institui identidade. Porisso é um lugar privilegiado
nefícios da metáfora e do mito, para “olhar” a relação do sujeito com as formações
Se em Narciso há exasperação da identidade e em discursivas, Porque nosfaz apreciar melhoros pro-
Eco, ao contrário, o movimento se centra na alterida- cessos de identificação do sujeito ao inscrever-se na
de, de certo modoa censura reúne essas duas partes: região do dizível para produzir(-se) sentido.
com a censura há negação da alteridade mas também Essa situação corresponde a uma forma direta e
a identidade é aniquilada. O que pode ser visto me- semsutilezas da política do silêncio, ou melhor, do
lhor se pensamos essa duplicidade na própria déixis silenciamento: se obriga a dizer “x” para não deixar
discursiva (cf. D. Maingueneau, 1989: “paisagem”, dizer “y”,
“contexto de situação imediato” ou o “eu — aqui — No entanto, pela natureza dispersa do sujeito,
agora”) de Narciso: a relação de Narciso se faz com a pelo movimento que o constitui em sua identidade,
imagem não enquanto “espelho” mas como reflexo na veremos que esse “y” significará por outros proces-
“água”, Esta, ao mesmo tempo quereflete (realidade), sos (S. Lagazzi, 1988), fato que dá lugar à “retórica
é fluida, isto é, projeta-se, pela idealidade, em outros da resistência”.
sentidos. Se, de um lado, toda formação discursiva é Tambémnainscrição do sujeito na formaçãodis-
heterogênea em relação a ela mesma porque os limi- cursiva há o trabalho do silêncio e é por isso que as
tes do dizer, asdiferentes regiões de sua constituição, fronteiras (do sujeito e do sentido) são móveis. Isso
refletem sua relação com sua exterioridade (o outro é historicidade.
sentido), por outro lado,o sentidoé errático, poden-
do migrar de umasua região para outra. Assim, faz b. Um caso exemplar: as autobiografias
parte das condições de produção do sentido a circu-
lação possível pelas diferentes formaçõesdiscursivas. A nosso ver, a possibilidade da imposição de
um sentido (de um “lugar” para o sujeito) assim
a
,
como a de sua reversão resultam: i) inicialmente,
4 O mito de Eco fica nessa mesma região de rarefação de sentidos(a re- do fato de que o silêncio significa, antes de tudo,
petição do mesma). Tanto emEco como em Narciso a questão da relação
com o silêncio é crucial,
em si; ii) do fato de que o sujeito tem uma rela-

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ção necessária como silêncio, pois no espaço de
tensão constitutiva da subjetividade há umasolidão Por outro lado,esse faro mostra também a agu-
dização de questões relativas aos processos de iden-
do sujeito em face dos sentidos, em que o outro é
tificação sob a ditadura, uma vez que, sob um Esta-
mantido à distância (no limite do dialogismo) c em
do totalitário, o sujeito é obrigado a se separar dos
que o corpo-a-corpo com o sentido se faz nosilên-
outrose isso produz um efeito de retorno sobre sua
cio; iii) do fato de quea reversibilidade é constitu-
própria identidade,
tiva do processo de produção dos sentidos.
Em face da afirmação da identidade, as relações
Paraesclarecer essas considerações, faremos ape-
autoritárias são estreitas. Para retrabalhar o movi-
lo a umfato de linguagem quese produziu durante
mento de seus processos de identificação, diante
a ditaduramilitar no Brasil.
da censura, é necessário que o sujeito recomponha
A partir de umacerta época, muitas pessoas és-
suas relações, que ele lhes dê uma unidadea partir
creveram suas autobiografias, o que mais tarde — no
de sua vontade. Nesse caso que analisamos, essa re-
período da abertura política (anos 89) — produziu
composição se dá pelo processo da “autoria”.
umaavalanche de publicações autobiográficas.
Escrever é uma relação particular como silêncio.
Já tratamos do fato anteriormente (Orlandi,
À escrita permite o distanciamento da vida cotidia-
1981) mas vamosretomá-lo aqui pela perspectiva da
na, a suspensão dos acontecimentos. Ela permite
questão do silêncio.
que se signifique em silêncio. Assim, há auto-refe-
Essa produção de autobiografias, no contex
to em rência sem que haja intervenções da situação or-
que se deu, inscreve-se na relação do sujeito com o
poder-dizer — soba censura —,estabelecendo uma dinária (a censura) de vida: o autor escreve para
significar (a) cle-mesmo. É um modode reação ao
forma discursiva específica de ligar a esfera públi-
automatismo do cotidiano marcado pela censura.
ca à esfera privada, sob a categorização de “Eeção”
Com o distanciamento estabelecido pela escrita, os
para que o dizer — proibido — se tornasse possível,
Nessas condições, o autor trabalha sua negação em movimentos identitários podem fluir, podemser
face do real: quando ele conta sua história (con- trabalhados pelos sentidos.
Há, nesse caso, uma demanda de completu-
tida), ela se torna literatura (narrativa) e ele entra
de do sujeito através de apagamentos: ele apaga
para a História (contada). É uma foima de sair do
os limites. história/relato/ História, ou, em outras
silêncio definido pela censura e que significa suafal-
palavras, ele apaga o limite entre o “eu-pessoal” e
ta de liberdade de agir sobre o real, resultando na
o “eu-político”, entre o “sujeito” e o “cidadão”, ou
impossibilidade decriticar, de discordar, em suma,
entre o real e a ficção, entre o “eu-que-conta” e o
na impossibilidade de dizer “certos” sentidos.
“eu-contado”etc.

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s poresses meca- situação-limite que torna mais visíveis as “artima-


Osefeitos discursivos produzido nhas” do silêncio emsua relação com o sujeito da
eles deslocam osli-
nismos são muito interessantes: linguagem, na constituição da sua identidade. Se

cussão direta mas por
mites do dizer, não pela sua dis um silêncio que apaga, há um silên cio que explo de
s formas de discurso
elaborar os limites das diferente os limites dosignificar.
lica, a esfera priva-
e suas funçõessociais: a esfera púb A censura desautomatiza a relação com silêncio
o imaginário.
da, o particular e o geral, o reale e com o implícito e assimexplicita a relação do su-
de sua dimensão
Por outro lado, pela conguista
ica) produz um jeito como “dizivel”,
pública, essa escrita (autobiográf É, entretanto, porque o silêncio significa em
si
tematização do ou-
apagamento dos limites entre a que se pode explicar a política do sentido. Com
a escrita é forma
«ro ea de si mesmo. Mesmo porque efeito, é a hipótese do silêncio fundador que
faz
fazer ressoaro silên-
específica de fazer silêncio, de com que “não-dizer” tenha um sentido,
cio dos “outros” sentidos. À censura joga com O poder-dizer impondo
um
recido nesse mes-
Umdesses contos (C. Vogt), apa
um brasileiro que no certo silêncio. Entretanto, comoo silêncio significa
mocontexto,fala da morte de em si, à “retórica da opressão” — que se exerc
e pelo
Fá uma multiplica-
entanto são todos os brasileiros. silenciamento de certos sentidos — respondea
“re-
ncias, de persona-
io de datas,de locais, de circunstâ icar
o apagamento do tórica da resistência”, fazendo esse silêncio signif
gens, de identidades, que produz de outros modos.
€ todos os outros.
limite indeciso entre um sujeito O sujeito das autobiografias, de que falam
os,
am, o fato perma-
Se as personagens se multiplic que
mo: a morte era cir- constrói, pela escrita, um espaço intermediário
nece, entretanto, sempre o mes lhe permite não se deixar falar pela censura
e não
uma narrativa que
cunstâncias políticas violentas. É dizer só o que não é proibido.
mento) para o que
passa do que é recalcado (silencia ar um “eu”, Nesse espaço intermediário constituído pelo si-
privilegi
é contado (palavra pública) sem lêncio,esse sujeito trabalha sua relação como di-
todos os “eus”. No
mas falando da perspectiva de zível. É o silêncio que torna possível o movimento
s definida c mais pre-
entanto, a identidade fica mai da subjetividade em sua relação (sua distância)
os brasileiros falam,
sente: por esse silêncio todos sentidos
com o discurso estabelecido. São outros
cada um se diz; ja, ao
completude de- que ganham existência nesse silêncio. Ouse
O apagamento e o desejo de
papel fundamental silêncio imposto pela censura,ele responde com
sempenham, em conjunto, um itui
sujeito (e do senti- o silêncio dos “outros” sentidos que ele const
no processo de constituição do é uma
falamos, em uma outra região,
do). A situação de censura, de que
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Esse silêncio é a marca da presença do silêncio Conclusão


fundador em sua fala e que faz com que os “outros”
sentidos apareçam. O silêncio faz parte da constituição do sujeito e do
O dizível podeser concebido de várias maneiras. sentido.
Aqui nós o referimos sobretudo ao jogo de forma- Como vimos, a relação do sujeito com as forma-
ções discursivas (“o que se pode e se deve dizer”); ções discursivas tem o silêncio como componente
adiante trabalharemos mais particularmente a defi- essencial, Este permite a constituição da história
nição do dizível como “discurso social”, do sujeito não apenas como reprodução mas como
Passemos então à consideração das formações transformação dos sentidos: À relação do sujeito
discursivas. Como sabemos, elas não têm fronteiras (discursivo) com sua história própria é silenciosa
categóricas. O fechamento de uma formação dis- porque ela sempre se dá nos limites da significação
cursiva, diz Courtine (1982), “outra”, Na região que marca oslimites entre dife-
rentes formações discursivas.
[...] est fondamentalement instable, elle ne consiste O sujeito não adere às formações discursivas
pas en une limite tracée une fois pour toutes séparant un automaticamente c elas, por sua vez, não se apre-
intéricur et un extérieur de son savoit, mais s'inscrit entre sentam como espaços maciços de sentido, Há espa-
diverses formations discursives comme une frontiére qui ços de silêncio que são o índice da história parti-
se déplace en fonction dela Jurte idéologique.
cular do sujeito em sua relação com a linguagem,
ou melhor, de sua história em face da articulação
Narelação do sujeito com as formações discursi-
centre as diferentes formações discursivas e de seus
vas, o silêncio fundador atua no seu não-fechamen-
deslocamentos,
to, criando espaço para seus deslocamentos.
Define-se o “interdiscurso” (Pécheux, 1975) como
Em suma, é o silêncio fundador que produz um
o conjunto,o todo, à dominante, das formações dis-
estado significativo para que o sujeito se inscreva no
cursivas. O interdiscurso é o conjunto do dizível,
processo de significação, mesmo na censura, fazen-
histórica e lingúisticamente definido. Pelo conceito
do significar, por outros jogos de linguagem, o “y”
de interdiscurso, Pêcheux nos indica que sempre já
que lhe foi proibido.
. ua
ê
há discurso, ou seja, que o enunciável (o dizível) já
está aí e é exterior ao sujeito enunciador. Ele se apre-
senta como séries de formulações que derivam de

5 A articulação do sujeito no discurso com o sujeito do discurso.

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enunciações distintas e dispersas que formam em pode ser visto como coincidindo com o já-dito.é Nes-
seu conjunto o domínio da memória. Esse domínio se caso, criar-se-ia a ilusão de que no silêncio não há o
constitui a exterioridade discursiva para o sujeito que dizer, só o já-dito. Ou seja, o silêncio seria o que
do discurso. Além disso, é preciso lembrar sempre não é preciso ser dito. Assim, o silêncio seria o “exi-
(Courtine, 1982) que o sujeito não tem no interdis- lio” do sujeito, o seu desterro, pois já estaria habitado
curso nenhum lugar para si, já que “no domínio da pelo já-dito, o pleno, o efeito do Um: o literal. Para-
memória ressoa uma voz sem nome” isto é, anônima. lelamente à produção do efeito da literalidade, esse
O interdiscurso, o dizível não é o sentido, por exem- mecanismo de apagamento dosilêncio tira do sujeito
plo, de “colonização” para “x” ou para “y” é o sentido a possibilidade de ele mover-se, O que nos faz ver a
de colonização. Daíseu efeito referencial, sua objeti- literalidade como negação do sujeito. A ilusão de que
vidade. No entanto, é preciso entender essa relação o “seu” sentido só pode ser aquele éjustamente sua ne-
do enunciável com o sujeito em sua duplicidade. O gação. Nega-se a historicidade ao sentido e nega-se a
que despossui o sujeito é o que ao mesmo tempo tor- história ao sujeito.
na seu dizer possível; é recorrendo ao já-dito que o Com nossa reflexão estamos propondo distin-
sujeito ressignifica. E se significa. guir o ilusório silêncio do já-dito do outro silêncio,
O interdiscurso é do nível de constituição do dis- o fundador, que permite os múltiplos sentidos que
curso (sua “verticalidade” segundo Courtine, 1982), tornam possível uma certa distância do sujeito em
da ordemdo repetível. É a instanciação do enun- relação ao “dizível”. E isso em duas direções: em re-
ciado (o mesmo). O intradiscurso, por sua vez, é a lação ao “outro” dizer (o da outra formação discur-
formulação da enunciação (o diferente), no aqui e siva) e em relação ao discurso social (o consenso).
agora do sujeito. Se pelo intradiscurso temos queo O silêncio intervém como parte da relação do
sujeito intervém no repetível, no entanto é o inter- sujeito como dizivel, permitindo os múltiplos sen-
discurso que regula os deslocamentos das fronteiras tidos ao tornar possível, ao sujeito, a elaboração de
da formação discursiva, incorporando os elementos sua relação comos outros sentidos,
pré-construídos (efeito do já-dito). Há, sabe-se (Foucault, 1971), uma dispersão do
Tambémnesse caso podemos dizer queé o silén- sujeito, pela qual ele pode tomar diferentes “posi-
cio que trabalha os limites do já-dito no interdis- ções”. Por outro lado, a identidade do sujeito resulta
curso. Sem deixar de'considerar quea relaçãosilên- de processos de identificação, Comefeito, o silêncio
cio-interdiscurso é bastante complexa. trabalha as diferenças inscritas nos processos de
Com efeito, é preciso observar que a noção dein-
terdiscurso poderia absorver a de silêncio, pois este 6 Mais adiante falaremos da relação dosilêncio com o “não-sentido”

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identificação do sujeito, produzindo seu sentimen» Enfim, se se pensa o silêncio como constituti-
to de unidade, integrando os diversos aspectos de vo de todo processo significativo, a determinação
um sujeito que “diz”. À identidade, no entanto, não histórica desses processos não se apresenta apenas
se reduz à “identificação”; ela mobiliza processos como injunção a ele. Em face da história, o silêncio
mais complexos. Um desses processos nos permite. significa de várias maneiras:
apreciar a produção da diferença, justamente pela
forma comoo silêncio faz parte da relação do su- a) em relação ao futuro (o “projeto” do discurso, a
jeito com o sentido, Diriamos mesmo que a dife- multiplicidade de sentidos);
rença, na identidade, torna-se possível pelo silén- b) em relação ao passado (o já-dito que retorna na
cio. O sujeito, atravessado por múltiplos discursos, forma do interdiscurso, e que se re-formula).
desmanchar-se-ia em sua dispersão. No entanto,
assim comoo sentido é errático, o sujcito também Além disso, é ainda preciso levar em conta:
é movente: o que o mantém em sua identidade
não são os elementos diversos de seus conteúdos, a) a dimensão histórico-política do sentido; em ou-
nem sua configuração específica (ele tem muitas), tras palavras, a partilha entre o quesignifica e o
mas seu estar(ser)-cm-silêncio. O sujeito tem um que não significa;
espaço possível de singularidade nos desvãos que b)a historicidade do sujeito (relação entre os dis-
constituem os limites contraditórios das formações tintos processos de identificação de que resulta a
discursivas diferentes. Aí trabalham processos de identidade).
identificação do sujeito que não estão fechados na
sua “inscrição em uma formação discursiva deter- Desse modo, podemos considerar o silêncio
minada” mas justamente nos deslocamentos possí- como parte da incompletude que trabalha os limi-
veis — trabalhados no e pelo silêncio — narelação tes das formações discursivas, produzindo tanto a
conjuntural das formações. Relação contraditória polissemia (o a-dizer) quanto o já-dito.* Isto é, o si-
com o interdiscurso. É nosilêncio que as diferentes lêncio trabalha nos fiznites do dizer, o seu horizonte
vozes dosujeito se entretecem em uníssono. Ele é o possível e o seu horizonte realizado.
amálgama das posiçõeshetêrogêncas?
éra É

8 O recorre produzido pelo implícito (cf Ducror, 1972) cria a ilusão da


7 Decerro modo a esquizoftenia expressa, dessa perspectiva, um desar- completude: como se, pela adição do não-diro ao dio, se “resgatasse” a
ranjo da relação com o silêncio, da passagem entre o dizer c o não-dizer. totalidade do sentido.

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Assim como o sentimento de unidade do sujeito, SILÊNCIOS E RESISTÊNCIA
também o sentimento de unidade do sentido,isto é, Um Estupo DA CENSURA”
a literalidade, deriva dessa relação com o silêncio e
com a incompletude.
Retornamos pois à importância dosilêncio funda-
dot, pois é ele que torna todasignificação possível.
Enquanto partedo mecanismo imaginário, atuan-
do nainstância dosilêncio, o conteúdo aparece pois
como “permanente”, permitindo que se jogue com
esse seu efeito discursivo e o da “estabilidade” dos
referentes. Meu objeto de reflexão neste capítulo é a censura.
É assim queo interdiscurso, nailusão do conteú- Entretanto, minha finalidade não é classificar da-
do, é trabalhado pelo silêncio. Quando o interdis- dos que caracterizariam a censura, Minha proposta
curso “apaga” o silêncio fundador, enquanto tal, é a de compreender a censura enquanto fato de lin-
fazendo com que o não-dito se sobreponha (coin- guagem que se inscreve em uma política da palavra
cida) ao já-dito, ele produz a impressão de que o que separa a esfera pública e a esfera privada, produ-
sentido não pode set, na origem,senão 14772. zindo efeitos de sentido pela clivagem que a impo-
No entanto, os sentidos não se imobilizam nessa sição de uma divisão entre sentidos permitidos e
ilusão; eles não perdem seu caráter errático: deslo- sentidos proibidos produz no sujeito. Tomando em
camentos, equívocos e mudanças se produzem. E consideração esses aspectos da censura, analiso ao
não paramde produzirseus efeitos. mesmo tempo tanto a censura quanto a recusa de se
De onde se pode concluir que há um trabalhosi- submeter a ela, procurando enfim definir o modo
lencioso na relação do homem com realidade que como as diferentes formas de silêncio trabalham os
lhe propicia a sua dimensão histórica, já que mesmo processos de produção de sentidos. Sem esquecer
o silêncio é sentido. O que nosleva a concluir que um princípio que proponho como fundamental à
não se pode estar fora do sentido assim como não se análise de discurso, qual seja o de quea linguagem
podeestar fora da história.
este
=

Uma versão em francês deste capítulo foi apresentada em Trakai, na


Lituânia, em um congresso organizado pelas Edições do Progresso de
Moscou, com o tema “O Poder das Linguas, as Línguas do Poder”, em
abril de 1991. Uma versão reduzida foi publicada no Uruguai,

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se funda no movimento permanente entre proces»


juição imaginária dos processos de produção dos
sentidos,
sos parafrásticos (o mesmo) e polissémico (o dife-
Nessa perspectiva é que temosrefletido (Orlan-
rente), de tal modo que a distinção se faz difícil:
dizemos o mesmo para significar outra coisa € dize-
li, 1990) sobre o que denominei contenelismo, que
supõe uma relação termo a termo entre pensamen-
mos coisas diferentes para ficar no mesmo sentido,
to/linguagem/mundo, como sc pudesseexistir uma
É esse movimento que me interessa na base darela-
ção censura/ resistência. relação natural entre palavras e coisas. Pois é ainda
o conteudismo que está na base da constituição da
relação entre verdadeiro/falso no domínio da pro-
dução de sentidos.
Considerações teórico-metodológicas
O conteudismo, tal como o venho definindo
(Orlandi, idem), resulta do fato de que há uma in-
Conteudismo e efeito-leitor
junção à interpretação c de que exercemos essa
injunção (tudo tem de receber um sentido) pelo
Quandosetrata do político, c sobretudo do político
hábito de definir os sentidos pelos seus conteúdos
tal como ele se representa atualmente, a questão da
(como evidências): o que “x” quer dizer? Esse há-
“credibilidade” se impõe, trazendo, em conseguên-
bito, no entanto, é o resultado de uma construção,
cia, o problemadarelação entre verdade e falsidade
na linguagem. historicamente determinada, da nossa relação com
No quadro da análise de discurso, essa questão, a linguagem em que estão em causa O sujeito como
intérprete (na sua relação com o “saber”) e o sentido
mais aguda no escopo do discurso político, é, no
entanto,passível desertratada no âmbito da lingua-
(emsuarelação com as coisas).
Daí resulta o que chamamos de “perfídia da in-
gem emgeral, E isso pela sua inserção no domínio
terpretação” (Orlandi, ibid.): o fato que consiste
da relação pensamento/linguagem/ mundo, ou no
em considerar o conteúdo (suposto) das palavras
que Pêcheux (1989) denomina esquecimento nº a,
e não — como deveria ser — o funcionamento do
do nível enunciativo, esquecimento que produz no
discurso na produção dos sentidos. Levando em
sujeito a impressão da realidade do pensamento
conta esse funcionamento é que podemos perceber
(ilusão referencial): impressão de que aquilo que
ele diz só podeser aquilo. que o sujeito que produz linguagem ea exteriorida-
de que o determina marcam (isto 6, estão presentes
Temos dedicado bastante espaço, em nosso tra-
em) toda a produção de sentidos. É assim que esse
balho, a esse tema. E o encaramos na perspectiva da
conteudismo, por sua vez, está diretamente ligado
questão ideológica, ou seja, no domínio da consti-
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ao modo comoo ideológico está na linguagem e é dos institucionalizados, admitidos por todos como
concebido pelos que a analisam. “natural”
Para a análise de discurso, não há discurso sem Desse modo,resulta que sc considera como natu-
sujeito nem sujeito sem ideologia. No entanto, o ralo que é fabricado pela história. Esta, por sua vez,
modo como as ciências sociais e humanas conce- no processo ideológico, através do conteudismo,
bem a ideologia é ancilar à perfídia interpretativa, apresenta-se como a sucessão de fatos com sentidos
Ou seja: as ciências sociais e humanas — consi- já dados, dispostos em sequência cronológica, quan-
derando que a linguagem é transparente — visam do na verdadeela se constitui de fatos que reclamam
os conteúdos ideológicos, concebendo a ideologia sentidos (P. Henry), cuja materialidade não é passí-
como “ocultação”. Assim, elas deixam pensar que, vel de ser apreendida em si mas só no discurso.
pela busca dos conteúdos (o que é que ele quis di- Tudo isso nosleva a concluir que a ideologia não
zer?), podem-se descobrir os “verdadeiros” sentidos é “x” mas o mecanismo de produzir “x”. Pela ideo-
do discurso, que estariam escondidos. Ora, se não logia há transposição de certas formas materiais em
nos prendemos aos conteúdos, podemos procurar outras, isto é, há simulação (e não ocultação) em
entender o modo como os textos produzem senti- que são construídas transparências para ser interpre-
dos e a ideologia será então percebida como o pro- tadas por determinações históricas que aparecem,
cesso de produção de um imaginário, isto é, produ- no entanto, como evidências empíricas. Dessa for-
ção de umainterpretação particular que apareceria ma, podemos afirmar que a ideologia não é oculta-
no entanto como a interpretação necessária, e que ção mas interpretação de sentido em certa direção,
atribui sentidos fixos às palavras em um contexto direção esta determinadapela história.
histórico dado.
É isto, aliás, a ideologia para o analista de discur- A análise de discurso entre a lingiística
so: estandoos sujeitos condenados a significar, a in- e as ciências sociais
terpretação é sempre regida por condições de pro-
dução específicas que, no entanto, aparecem como Colocando-se nesse contexto disciplinar, a análi-
universais e eternas, daí resultando a impressão do se de discurso procura desfazer o falso dilema entre
sentido único e verdadeiro. forma e conteúdo, criticando tanto o formalismo
O processo ideológico não seliga à falta mas ao como o conteudismo. Ela se propõe trabalhar a
excesso. À ideologia representa a saturação,o efeito forma-sujeito, isto é, o sujeito tal como é defini-
de completude que, por sua vez, produz o efeito de do historicamente no imaginário da sociedade, e
“evidência” sustentando-se sobre o já-dito, os senti- a forma-do-sentido, considerando que os dois são

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determinados historicamente em seus processos de ficação, gostaria de definir a noção de líingua-de-es-
constituição e funcionamento, puma para a presente reflexão: uma língua “vazia”,
Não se privilegiam, em discurso, nem a forma prática, de uso imediato, em que os sentidos não
nem o conteúdo em si mas se considera a “forma ma- ecoam. É uma língua em que os sentidos batem
terial” tanto do sujeito quanto do sentido. Quando forte mas não se expandem, em que não há resso-
dizemos forma material, vale ressaltar que não pen- nâncias, não há desdobramentos. Na lingua-de-es-
samos na forma abstrata mas na forma queé língúis- puma os sentidos se calam. Eles são absorvidos e
tica e histórica. não produzem repercussões. Se, de um lado, não se
Por não reproduzir essa dicotomia (forma/con- comprometem com nenhuma “realidade”, de outro,
teúdo), podemos instalar-nos na reflexão que tra- impedem que vários sentidos se coloquem para essa
balha a materialidade discursiva.” mesma “realidade”.
Historicamente, a língua-de-espumaé aquela fa-
Língua-de-espuma” lada, por exemplo, pelos militares no período que
começa em 1964 com ditadura no Brasil. Mas, pe-
Antes de passar à análise de umasituação de lin- las suas características, podemosalargar essa noção
guagem na qual trabalham esses processos de signi- abrangendo toda expressão totalitária nas socieda-
des ditas democráticas. A lingua-de-espuma traba-
lha o poder de silenciar.
E Por uma certa inadequação teórica, alguns lingúistas, adeptos das teo-
vias imanentistas, têm utilizado à expressão “materialidade lingitistica”
No movimento social de sentidos, pode-se ob-
teferindo-se à Engua, retomando assim uma expressão que migrou da and- servar uma manifestação particular de resistência à
lise de discurso. Gostaríamos de lembrar que os termos têm suas histórias
e fazem parte de quadros teóricos específicos, No caso, a lingúística, em
língua-de-espuma, manifestação que será objeto de
geral, não trabalha com a “maserialidade” mas com as formas lingiísticas, nossa análise: o discurso da Música Popular Brasilei-
com seus caracteres formais, abstratos, sua sistematicidade. Por seulado, ra (MPB). É preciso ainda observar que a MPB no
expressão “materialidade”, na análise de discurso, adquire sen sentido por
se inscrever no quadro do materialismo histórico, Não me parece haver Brasil desempenha um papel particular quese pode-
sequersimpatia entre esse quadro e o da lingliística imanente. Às palavras ria aproximar daquele de uma filosofia popular, lu-
têm muitos sentidos, mas esses sentidos são determinados pelas suas con-
dições de produção. Não se podem usar as palavras indiferentemente. gar em que se trabalham identidades, em que se con-
» Paraa distinção língua/discurso, remetemosa P. Seriot (especialmen- cebem traços importantes do consenso social etc.
te 1982,1984). Guardamosentretanto a expressão “lingua-de-cspuma” por No domínio do discurso da MPB uma forma
scu poder de evocação emrelação ao consagrado fangue-de-bois. Para o que
específica de resistência que apareceu durante a
corresponde ao sentido de espuma, quisemos manter sua ambigiiidade,
tanto a espuma de sabão, como a espuma de borracha, No entanto, não so= ditadura é o samba-duplex de Chico Buarque de
mos indiferentes à designação “língua-de-chumbo”, que poderíamos usar, Hollanda. O samba-duplex é uma resposta par-
já que esse períodoficou conhecido como “anos de chumbo”,

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ticular ao modo torto de significar instalado pe- À análise
la surdez da língua-de-espuma,
Como veremos, o discurso do samba-duplex es- Umapolítica de silêncio
tabelece, de seu lado, um modo de significar que
joga com o consenso social da significação para des- Já é bem conhecido o fato de que o poderse exerce
locar essa surdez, fazendo aí significarem os outros acompanhado de um certo silêncio (De Certeau,
sentidos. O samba-duplex toma a cargo os desdo- 1980), É o silêncio da opressão.
bramentos e as bifurcações de sentidos. Ele age na Nosso interesse, aqui, no entanto, incide sobre o
região estabelecida pela língua-de-espuma, aquela outro lado, o silêncio do oprimido. E nós o inscre-
do sentido que não vai longe, que tem o fôlego vemosnisso que denominamoso Discurso da Resis-
curto, para produzir desdobramentos de sentidos. tência, considerando-o como uma forma de oposi-
Simulando,pois, o senso comum, o consenso, O este- ção ao poder.
reótipo, ele se instala para dizer no entanto o que é Osobjetos (os materiais) de nossa análise são jor-
proibido. Nem mais, nem menos.
nais e textos de canções, sobretudoestes. Analisare-
Esses deslocamentos são possíveis porque, como mos pois as músicas que pertencem à MPB,fazendo
veremos,é assim que a linguagem funciona: ela tira algumas referências à imprensa. Esse modo de pro-
proveito da matéria mesma da redução dos sentidos dução de linguagem posta em prática durante a di-
para produzir sua expansão. Mais se tenta ter um tadura militar no Brasil se caracteriza pela censura,
sentido só (definitivo e verdadeiro), mais a multipli- pela interdição da palavra ao conjunto da sociedade
cidade de sentidos se mostra. Quando afirmo isso brasileira,
não estou pensando emseu caráter reflexivo, ou na
metalinguagem, ou em metadiscurso: trata-se para Sobre o silêncio

mimsó do trabalho histórico cotidiano do sentido,


o do dia-a-dia. Aquele que Pêcheux (1975) com- O silêncio, como dissemos, não É transparente.
preendeu quando enunciou que à diferença neces- Ele é tão ambíguo quanto as palavras, pois se pro-
sita da unidade e vice-versa, duz em condições específicas que constituem seu
Assim, a censurasa lingua-de-espuma e o samba- modo designificar.
duplex fazem partedo mesmo processo de produ- Na perspectiva pela qual estamos observando o
ção de sentidos instaurado em um momento histó- silêncio, vale lembrar os seguintes princípios, tais
rico dado, É sua forma conjugada de significar que como os enunciamos anteriormente:
nos ocupa neste estudo.
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1. O silêncio não fala, ele significa. É pois inútil sivas, isto é, trabalha o jogo da contradição de senti-
traduzir o silêncio em palavras; é possível, no dos e da identificação do sujeito,
entanto, compreender o sentido do silêncio por Por outro lado, dada a incompletude constitutiva
métodos de observação discursivos, de todo discurso,ele joga também na configuração
2. Considero pelo menos duas grandes divisões nas da unidadetextual,significando aquilo que é preci-
formasdo silêncio: a) o silêncio fundador; e b) a so não dizer para que o texto se feche e, em conse-
política dosilêncio. O fundadoré aquele que tor- quência, seja coerente, não-contraditório, capaz de
unidade, de progressão em uma direção dada, tendo
na todasignificação possível, e a política dosilên-
consequências discursivas conformes.
cio dispõe as cisões entre o dizer e o não-dizer. À
Uma das maneiras de observar o modo de signi-
política do silêncio distingue porsua vez duas sub-
ficar do silêncio é pensar a sua ligação com a função
divisões: a) o constitutivo (todo dizer cala algum
da autoria. Princípio de rarefação do discurso, o
sentido necessariamente); e b) o local (a censura).
princípio do autor, diz Foucault (1969), não refere
3. O silêncio não é ausência de palavras. Impor o
o sujeito “como individuo que pronunciou ou que
silêncio não é calar o interlocutor mas impedi-lo
escreveu um texto, mas o autor como princípio de
de sustentar outro discurso. Em condições dadas,
agrupamento do discurso como unidade e origem
fala-se para não dizer (ou não permitir que se di- de suas significações, comofoyer de sua coerência”.
gam)coisas que podem causar rupturas significa- O autor é o sujeito que “sabe” que há uminterlo-
tivas na relação de sentidos. Ás palavras vêm car- cutor; um sujeito que deve seguirinjunções da racio-
regadas de silêncio(s). nalidade social, disposições do uso social da lingua-
4. O silêncio €« o implícito não são a mesmacoisa, gem. Se o sujeito abriga, em princípio, opacidades e
contradições, o autor, ao contrário, tem um compro-
O conceito de silêncio, em nossa perspectiva, misso com clareza c a coerência: ele tem de ser visi-
recobre uma região teoricamente diferente da do vel pela sociedade, sendo responsável pelos sentidos
implícito. que sustenta.
O implícito é o não-dito quese define emrelação Ássim, neste nosso estudo, procuraremos com-
ao dizer. O silêncio, ao contrário, não é o não-dito preender o silêncio relacionando-o à questão da au-
que sustenta o dizer masé aquilo queé apagado, co- toria e da censura,
locado de lado, excluído.
Se tomamos o conceito de formações discursivas
3 Arespeito da noção de autoria, do fechamento arbitrário mas necessá-
como referência, podemos dizer que o silêncio cio do texto e da distinção discurso oral/discurso escrito, cÊ. Gallo (990)
trabalha os limites das diferentes formações discur- em sua tese de mestrado (Editora da UNICAME, 1992).

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A censura tal como a definimosé a interdição da do limite — que um sujeito será ou não autorizado
inscrição do sujeito em formaçõesdiscursivas deter» 4 dizer. Por exemplo, mesmo não estando sob uma
minadas,isto é, profbem-se certos sentidos porque ditadura, há interdições no discurso político. São
se impede o sujeito de ocupar certos lugares, certas censuras no sentido em que a defino. Atualmente,
posições, Se se considera que o dizível define-se pelo estaria fora do discurso (isto é, censurada) a possi-
conjunto de formações discursivas em suas relações, bilidade de que alguémse diga “comunista”, ou de
a censura intervém a cada vez que se impede o sujei- “esquerda”. Conscqiientemente, para não ser signi-
to de circular em certas regiões determinadas pelas ficado onde não pretende, o sujeito não se dirá “co-
suas diferentes posições. Como a identidade é um munista” ou de “esquerda”, Não há lugar para man-
movimento, afeta-se assim esse movimento. Desse ter esse discurso, Logo, não se trata de autocensura
modo, impede-se que o sujeito, na relação com 0 mas de censura (eficaz, no caso). Para dizer “isso”
dizível, identifique-se com certas regiões do dizer que estaria nessa posição, o sujeito tem de construir
pelas quais ele se representa como(socialmente) res- um outro lugar, para ser “ouvido”, parasignificar.*
ponsável, como autor. Por outro lado, é preciso observar que, quando
É preciso evidentemente considerar a censura falamos em censura (silêncio local), não se trata do
como umfato heterogêneo, pois ela pode resultar dizível sócio-historicamente determinado (o inter-
de processos mais ou menos conscientes e que se re- discurso, a memória do dizer) mas do dizível produ-
portam a diferentes ordens: política, moral, estética zido pela intervenção de relações de força nas cir-
etc. Isso dependerá da ordem de discurso em que se cunstâncias de enunciação: não se pode dizer aquilo
inscrevem as regiões de sentidos proibidas, que (se poderia dizer mas) foi proibido. Nesse sen-
Entretanto, gostaríamos de insistir que a censura tido, a censura não é um fato da constituição (eixo
não é um fato da consciência individual do sujei- vertical, interdiscurso, segundo Courtine, 1983) mas
to mas um fato discursivo que se passa nos limites de sua formulação (eixo horizontal, da enunciação,
das diferentes formações discursivas que estão em intradiscurso, segundo Courtine, idem). São senti-
relação. Trata-se de um processo de identificação, dos historicamente dizíveis mas proibidos.
e diz respeito às relações do sujeito com o dizível, Aqui é preciso fazer algumas observações. Há
Nessa perspectiva, não há autocensura. À censura também um outro tipo de interdição, no nível da
sempre coloca um “outro”io jogo. Ela sempre se dá
na relação do dizer e do não poder dizer, do dizer de 4 A expressão “fora de discurso” foi dita em conversa pessoal com Regi-
“um” e do dizer do “outro”. É sempre em relação a ne Robin, Francine Maziêre e Jacqueline Léon, quando discutiamos esse
meu trabalho sobre censura, Registro aqui não só pelo prazer da conversa
um discurso outro — que, na censura,terá a função mas como atestação da “origem” da expressão,

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própria constituição dos sentidos. Embora alargue- quanto ao que ele diz. À censura intervém assim na
moso sentido da censura para a apreensão de fatos relação do indivíduo com sua identidade social e
de interdição que não são explicitamente políticos, com o Estado.
não nos parece entretanto adequado considerar
ainda censura local quando se trata de uma interdi- ! Como a função enunciativo-discursiva do autor
é a mais sujeita às coerções sociais, o silêncio instala
ção que funciona no nível do historicamente dizível um trabalho que incide justamente sobre o jogo da
(constitutivo). Nesse caso, não se trata mais do ní- identidade social; em outras palavras, sobre a dimen-
vel do autor mas do sujeito diretamente. Isto é, há são pública do cidadão: ele é responsável diante da
sentidos que não nossão proibidos por uma autori- lei, Em conseguência, a relação entre o queele diz e
dade de palavra mas que, por processos complexos o que ele não diz concerne à ética e ao político.
de nossa relação ao dizível e que tocam diretamente Vale aí ressaltar um aspecto fundamental da cen-
ao como se significa a história, nós não chegamos a sura. Submetido a ela, o sujeito não pode dizer o
formular e nem mesmo a reconhecer (processo ideo- que sabe ou o que se supõe que ele saiba. Assim, não
lógico, do nível do esquecimento nº 1 de Pêcheux). é porque o sujeito não tem informações ou porque
Aqui neste trabalho me dedico a refletir sobre a cen- ele não sabe das coisas que ele não diz. O silêncio da
sura local, visível, exercida por um poder explícito. censura não significa ausência de informação mas
E diria mesmo que é mais fácil responderà autori- interdição. Nesse caso não há coincidência entre
dade visível que à autoridade que não diz seu nome não dizer e não saber,
(do nível da constituição, do irrepresentável) e que Isso nos leva a afirmarque a censura funciona não
se forma noslimiares mais complexos de nossarela- em nível de informação mas de circulação e de cla-
ção com o dizível. boração histórica dos sentidos, assim como sobre o
Nessa relação com a interdição, eu guardaria o processo de identificação do sujeito em sua relação
nome de censura local para o domínio da formula- comos sentidos. Ela impede o trabalhohistórico do
ção, ou melhor, eu diria que essa censura é o traço sentido,
do que é formulável, mas proibido, em certas con- Se, de um lado, a linguagem é política (porque o
dições. À outra dimensão da interdição é a do im- sentido, sempre dividido, tem necessariamente uma
possível. Toca a dimensão mesma da história: é o direção determinada), por outro lado, todo poder se
historicamente não-dizível, acompanha de um silêncio em seutrabalho simbólico.
Voltemos pois ao plano da formulação, Para que Esse silêncio de que nos ocupamosestá na base
a censura funcione, ela joga com o princípio do au- da divisão de sentidos, tendo consegiiências que se
tor: ela remeteà responsabilidade do sujeito (autor) inscrevem na política do dizer.

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Isso significa que suas consequências, seusefeitos,
agem em nível semântico-argumentativo mas cuja
E Em nenhum dos casostrata-se da oposição entre
sentido verdadeiro e sentido falso, mas do sentido
natureza de constituição é da ordem das relações imposto e do sentido recusado, sejam quais forem.
entre formações discursivas, ou melhor, o silêncio é É pela relação de forças (marcandoos sentidos pela
um trabalho dossentidos no confronto dasdiferen- posição dos que os produzem) quese instala o con-
tes formações discursivas em seuslimitesinstáveis. fronto e não pela sinceridade, ou falsidade dos que
Emsuma, nossa tarefa aqui é analisar como si- os produzem.
lêncio funciona na confrontaçãotácita de sentidos. Para tratardessas questões, precisamos dos con-
Analisaremos esse fato de linguagem, como já ceitos de povo e de discurso social,
o dissemos, em uma situação-limite: a situação de O povo, diz R. Robin (1984, p. 15), não é o “in-
censura imposta pelos militares durante o período verso fantasmático das burguesias”, mas é preciso
ditatorial do Brasil a partir de 1964. pensá-lo também na “contradição, nas relações de
Nós nos propomos mostrar como — sob um poder e de heterogeneidade discursiva”
governo ditatorial que impõe a censura, proibindo Por sua parte, o discurso social é definido (Ange-
assima circulação de certos sentidos — os autores not, 1984,p. 20) como
exercem a resistência dizendo o “mesmo” (o que é
permitido) para dizer, no entanto, efetivamente [...] tudo o que se diz, tudo o que se escreve em uma
“outra” coisa (o queé proibido). Paraisso, é preciso sociedade dada (tudo o que se imprime, tudo o quesefala
repensar a função do senso comum, do consenso, hoje na mídia eletrônica), Tudo o que se narrae se argu-
do estereótipo. menta, o narrável, o argumentável em uma sociedade dada,
ou antes [...) O conjunto não necessariamente sistêmico
nem funcional do dizível, discursos instituídos e temas
Discurso social e resistência
providos de aceitabilidade e de capacidade de migração
em um momento histórico de uma sociedade dada.
Trata-se de mostrar como ossentidossão compreen-
didos pelo “povo” em seu conjunto, mesmo se as pa- Em suma,o discurso social produz a sociedade co-
lavras instituídas para esscs sentidos não são ditas. mo “coexistência, consenso, convivialidade dóxica”.
Por outro lado, queremos mostrar também como Isso não exclui no entanto a originalidade, a indivi-
a injunção à unidade,o desejo da unitidade pode ter dualidade, eli mesma produzida socialmente (An-
igualmente um aspecto dinâmico, de deslocamento genot, idem, p. 21).
de sentidos, no fio das contradições que trabalham À noção de discurso social refere ao dizivel mas
sua produção. há diferentes formas de definir o dizível: como for-

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mação discursiva, como arquivo (Foucault), como apartado do gruposocial que o sustenta; nemse trata
interdiscurso (Pêcheux, Courtine, Henry etc.) e tampouco de um discurso preexistente e que é gerido
como discurso social, como acabamosde ver. À no- por um grupo social determinado. Na perspectiva
ção de discurso social nosinteressa porque ela pode discursiva de Maingueneau, o que há é umaprática dis-
ser aproximada do que definimos como povo e da cursiva com seus dois lados interconstiturivos: de um
noção de autor, lado,a textualidade; de outro,o gruposocial que lhe
Levando em conta a relação com o dizível, po- corresponde. São duas faces da mesmacoisa: a práti-
demos dizer que essa definição de discurso social ca discursiva. Do mesmo modo podemosconsiderar
recorta o modo de existência e de circulação dos que o “povo” é a outra face do “discurso social” De
sentidos sem no entanto apreender sua dimensão um lado, temos o grupo social (povo); do outro, a
constitutiva, formadora. Assim, quando conside- textualidade que lhe corresponde e constitui (discur-
ramos o discurso social como consenso posto em so social), O autor, neste contexto, é à personagem
funcionamento em um estado da formação social, do discurso que temfunçãosocial e que, no imaginá-
podemos ver que ele recobre apenas um dos aspec- rio social, é considerado estar na origem do discurso,
tos dos processos de significação; o discurso social como produtor de seus sentidos e que responde por
assim concebido é já um efeito do já-dito. À noção eles. Ele é personagem do discurso social,
de discurso social é pois função do horizonte imagi- A partir dessas concepções de autor, povo e dis-
nário social já produzido, Ele já se encontra no do- curso social, queremos mostrar que, se de um lado
mínio da formulação e não no da constituição do a censura trabalha sobre o conjunto do dizível, do
discurso. Tais observações servem para precisar que outro, em uma retórica de resistência, há uma po-
o uso que fazemos dessa noção leva em conta essa lírica do silêncio que se instala (consensualmente)
característica, o que produz, de certo modo, um e que significa justamente o que, do dizível, não se
deslocamento em relação a sua definição original pode dizer. Censura e resistência trabalham a mes-
(Angenot, 1984). maregião de sentidos.
Quanto à relação que anunciamosentre discurso Mais prática c especificamente, queremos expli-
social, autor e povo, gostaríamos de observar que citar os procedimentos pelos quais, quando uma
uma maneira de nosatermos a uma definição mais música (popular) comoa feita por Chico Buarque
conforme à perspectiva discursiva é lançando mão de Hollanda diz “vai passar”, o povo “sabe” perfei-
do que diz D. Maingueneau (1984) sobre a “prática tamente que ele não fala de uma doença ou de uma
discursiva”. Segundo esse autor, em análise de discur- dorde amor, mas de uma dor, um mal político: a
so não se pode pensar a existência de um discurso ditadura e o sofrimento social.

AS FORMAS DO SILÊNCIO siLêncioS E Resistência | 111


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Nossa tarefa aqui é pois compreender os mecas à a materialidade do signo,sua história, que per-
nismos da linguagem deresistência, Assim, visamos mitc esse jogo de sentido social: a matéria signif-
deslocar a relação do discurso só à reprodução. cante “tem” memória, Os diferentes sentidos do sig-
Dito de outro modo, tentaremos mostrar que no (suas diferentes formulações), de alguma forma,
na reprodução já há deslocamento,já há a não-re- estão em cada um deles.
produção: os sentidos reproduzidos em condições É preciso finalmente observarque o “outro” sen-
“particulares”, como a da censura, podem ser car- tido a que nos referimos aqui não é a denegação
regados de outros sentidos, de transformações, de nem o sentido contrário, é um outro sentido efe-
outros sentidos possíveis mas não ditos. tivamente.
Comefeito, pensamos que a relação do “povo” Em suma, há uma relação sentido/discurso so-
com o “discurso social” é igualmente contraditória, cial, sob a censura, que se estabelece de forma que
e essa contradição, no caso da presente análise, joga signifique o que é preciso não dizer. Há um traba-
com o espaço de silêncio que existe, pois o silêncio lho histórico do sentido sobre o discurso social, pelo
queé feito sobre umacerta região de sentidos é car- discurso da resistência, que produz.uma espécie de
regado de palavras a não serem ditas. E é porisso reversão do discurso social, sem no entanto negá-lo,
mesmoqueelas significam. Socialmente. Ele passaa significar pelo avesso, por seu “duplo”.
Dessa perspectiva, há umarelação com o discur- Podemos explicitar isso afirmando que, nesse
so social que se faz sobre um “já-dito” que não é en- caso, não se está dizendo o senso comum, mas re-
tretanto um “já-significado, mas, ao contrário, um ferimosa ele pata dizer outra coisa. Há, por assim
dito capaz de significar de outro modo, emsilêncio. dizer, um uso da vocação totalizante do sujeito à
Pode-se relacionar esse modo de significar à noção unicidade do sentido para, paradoxalmente, se di-
de refuncionalização de Gramsci (1968), desta vez zer a “outra” coisa: é um mas nãoé “esse” um...
visto do outro lado, o da contradição-transforma- O jogo da unicidade, ao se afirmar, se mostra.
ção que joga com a hegemonia,resistindo. Quanto mais se nega a multiplicidade de sentidos,
Diríamos que há uma historicidade inscrita na mais ela é aparente. Mais a multiplicidade é aparen-
própria textualidade, historicidade que faz com te, mais se busca o “um”,
que os sentidos valham para toda a sociedade, não Podemosinscrever esse gênero de funcionamen-
estando o “povô” excluído da contradição entre o to discursivo no que foi dito a propósito da con-
mesmo e o diferente, isto é, o sentido que vai além tradição, das formações discursivas e da heteroge-
do senso comum: dizem o “mesmo” para dizer o neidade (Courtine, 1982; J. Authier, 1984). É na
“outro” sentido. censura que se pode melhor observar os sentidos

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da palavra francesa interdire: não dizere dizer entre ses vazios por receitas de cozinha ou fragmentos
(outras palavras). O quadroda censurafaz aparecer do poema épico Os Lusíadas, de Camões.
de forma muito saliente os traços, sempre presentes,
da relação com o outro (e o Outro) no discurso. Os leitores, habituados a seus jornais, sabiam
atribuir (ou antes “devolver”) outros sentidosa es-
Corpus: as diferentes manifestações da resistência ses textos conforme sua localização: página, lugar,
dimensão, natureza da “receita” etc. O gesto de ler
No momento em que a violência da ditadura era adquiriu um sentido histórico muito particular
mais agudae a censurajá se tinha instalado no coti- nesse momento. Mas resta notar neste caso que à
diano de todo brasileiro, formas muito variadas de repetição, o hábito, é que possibilita trabalhar o
comunicação e de resistência se estabeleceram. deslocamento.
Eram os dias em que a tortura e a morte amceaça-
vam qualquer signo que deixasse supor umadiscor- 2. No domínio daliteratura, os textos desempenha-
dância com o regime militar. Por medo,já havíamos vam papel semelhante. Jogava-se enormemente
introjetado a censura, isto é, cada um experimenta- com o realismo fantástico c com as metáforas
va, na sua própria intimidade, os limites do dizer, (o romance Sombras de Reis Barbudos mostra de
No entanto, os sentidos proibidos “transpira- forma magnífica isso: por exemplo, a separação
vam” por qualquersigno “inocente”, Formas de res- entre as pessoas é metaforizada, no romance, por
ponder à censura faziamsua aparição. muros que começam a crescer sozinhos; o arbitrá-
Vejamosalguns exemplos de interdição (seja for- rio do poder e a ameaça são metaforizados pela
mal,seja tácita) e de respostassilenciosas: proibição de cultivar legumesno quintaletc.).

1. Se, nos jornais, havia uma informação censurada, Ainda quanto aos procedimentos literários, é
os editores deixavam vazio o lugar em que deve- preciso aqui lembrar um, muito expressivo, quejá
ria aparecer a dita informação. Isso significava a tive a ocasião de expor: no final da ditadura apare-
censura. Masisso também foi proibido. Os vazios ceu uma quantidade enorme de romances autobio-
(os silêncios) eram visíveis demais como signos gráficos. As pessoas escreviam às escondidas o que
da censura. Então, os editores eram obrigados a não podiam dizer diretamente, para resistir,
preencher todas as páginas do jornal, a suprir to-
dos os “vazios”, Para não apagar completamente 3. Havia, além disso, formas de comunicação e de
os traços da censura, os editores substituíam es- resistência mais sofisticadas, sobretudo aquelas

SILÊNCIOS E RESISTÊNCIA 115


14 | AS FORMAS DO SILENCIO
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nos grandes teatros, nas praias. No silêncio, a emo-
que estavam ligadas às atividades dos militantes
ção política significava fortemente os seus muitose
efetivamente engajados na luta política de liber-
tação nacional. variadossentidos.
O povo cantava unido. Os signos da diferença
em relação aos shows habituais de música se esta-
Mesmose essas formas pertenciam a um outro
domínio mais particular de trabalho verbal, seus beleciam: o povo cantava de mãos dadas, as músicas
eram escolhidas segundo certos critérios, chegan-
efeitos se faziam sentir no jogo da interdição geral.
Por exemplo,as pessoas perderamo hábito de pedir do-se mesmoa cantar o Hino Nacional.
Nesse momento o “povo” recuperava, aliás, vá-
notícias de amigos comuns, pois tinham medo de
rios de seus símbolos nacionais: a bandeira como
ter informações passíveis de serem exigidas sob tor-
símbolo de liberdade (e não como simbolo de “or-
tura (“Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola). Uma
dem e progresso”), as cores (verde-amarelo) como
expressão muito comum, ha época, e que era obje-
símbolo da união do povo e não como “patriotis-
to de troça dos comediantes na TV, era: “Não me
comprometa”. Era a expressão jocosa sobre o medo mo” etc.
Osbrasileiros se reapropriavam assim dos simbo-
e o risco da palavra, Menosse sabe, menos sc diz,
menos se arrisca,
los c dos sentidos de “Párria”, significando a partir
Emnossa reflexão, não nos ocuparemos dasfor- de então mais cidadania que Estado tirânico.
Isso não quer dizer que as contradições não conti-
mas de linguagem daresistência assumidaspela luta
nuaramatrabalharossentidos. Escorregava-sefacilmen-
armada mas daquelas que eram gerais, comuns€ cs-
palhadas pela vida cotidiana de todo mundo.
te do sentido crítico de cidadania para um patriotismo
nacionalista bastante duvidoso c muito poucocrítico.
De qualquer forma, é importante reconhecer que
Todosesses sentidos conviviam indistinta e desordena-
a censura sublinha a dimensão política do sentido,
damente do ladode cá da (censura) ditadura.
Esse é o risco dos sentidos. Não há discurso es-
4. Entre as formas cotidianas, uma forma de resis-
tanque que os torne de todo “controláveis” nem dis-
tência e de mobilização popular era sem dúvida
curso que garanta uma correspondência estrita aos
a MPB.
lugares (posições) em que são produzidos. Uma vez
Em vez de nos manifestarmos politicamente de postos em circulação, eles podem se deslocar por
qualquer ponto dos processos discursivos.
modo categórico, aprendemos a nos reunir, isto é,
Por esses meios, o conflito dossentidosse estabe-
a juntar uma multidão em torno de grandes encon-
lecia de modo tão feroz quanto silencioso.
tros musicais. Nas praças, nos estádios de futebol,

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Cantar cra uma forma de manifestação política contexto em que se estabeleceu um processo discur-
popular. sivo particular,
Nesse contexto político tudo tinha um sentido Escolhemos as músicas de dois de nossos compo-
particular: os compositores, os intérpretes (de di- sitores mais expressivos desse ponto de vista: Chico
reira e de esquerda), os lugares escolhidos: Buarque de Hollanda e Paulinho da Viola,
A censura é um sintoma de que ali pode haver Analisando seus textos nós nos propusemos en-
um outro sentido. Na censura está a resistência, contrar os diferentes procedimentos de construção
Na proibição está o “outro” sentido. E isso porque, de sentidos que trabalham o silêncio como forma
como dissemos, a censura atinge a constituição da de resistência.
identidade do sujeito. São muitas as músicas que analisamos: “Rosa
A identidade, por seu lado, sempre em movi- dos Ventos” (69), “Sinal Fechado” (69/74), “Bom
mento, encontra suas formas de manifestação não Tempo” (71), “Ciao, Ciao, Addio” (71), “Samba
importa emquesituação particular de opressão. de Orly” (71), “Boi Voador Não Pode” (73), “Co-
Para ilustrar isso nós lembramos ainda três fa- bra-de-Vidro” (73), “Acorda, Amor” (74), “Cálice”
tos interessantes: a) usar a cor amarela passoua ser (74/78), “Cordão” (71), “Quando o Carnaval Che-
simbolo de resistência: b) justamente por causa do gar” (72), “Agora Falando Sério” (74), “Meu Caro
silêncio imposto, o ruído adquiriu um sentido de Amigo” (76), “Feijoada Completa” (78), “Apesarde
resistência: fazer barulho batendo panelas em uma Você” (72/78), “Qualquer Canção” (80), “A Voz do
hora aprazada (20 horas), num dia determinado, Dono” (81), “Pelas Tabelas” (84), “Vai Passar” (84),
emtodas as cidades do Brasil, foi uma manifestação “Como se Fosse a Primavera” (84), “Hino da Re-
contra o governo; c) não menos interessante € a ma- pressão” (79), “Ópera do Malandro” (79), “Palavra
nifestação que se chamou “Dia do Buzinaço”, contra de Mulher” (85), “Bolsa de Amores” (88).
um comandante militar, em Brasília: todos os car-
ros buzinaram e o comandante em questão avançou Maneiras de fazer significar os sentidos censurados
contra os manifestantes com seu majestoso cavalo.
Estamos referindo todas essas diferentes espé- Em uma primeira distinção nos processos de
cies de manifestação de resistência para poder com- significar, lemos as seguintes formas de linguagem
preender a MPB como uma de suas formas nesse indicando deslocamentos de sentidos:
Edita

5 A Praça da Sé no centro de São Paulo tornou-se um simbolo da re- L. canta o amor para cantar “outra” coisa. Usa o dis-
sistência. No momento da abertura foi lá justamente que se deu a maior curso amoroso para falar do político;
manifestação.

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2. compõea relação com o político através da ela- terística, com algumas diferenças, em “Aqui na
boração de distintas formas de espetáculo musi- terra estão jogando furebol/tem muito samba,
cal, como, por exemplo, a ópera; muito choro e rock'n'roll” (“Meu Caro Amigo”),
3. refere fatos históricos do passado reinterpreta- cuja repetição produz um deslocamento de sen-
dos, metaforizados; tidos;
4. canta lendas nacionais (“Cobra-de-Vidro”); 3. jogo com o significante:
s. cantamulheres em seus “sentidos” políticos (“Bár- a) através da rima (ura/ditadura; ela/Mandela)
bara”, “Ana de Amsterdam” etc.); onde, ao silenciar um dos termos (no caso o se-
6. usa formas discursivas diferentes, como, por gundo), encaminha justamente para a palavra
exemplo, a carta: se vem de fora significa exílio, e não-dita:
se é daqui para fora significa censurae repressão; b) pela construção de anagramas: por exemplo “diz
7. canta em outras línguas: em espanhol (Cuba), que tá dura” = “ditadura”;
emitaliano e francês (exílio), em português de 4. imagens, metáforas: forçando a metáfora, o
Portugal (Revolução de Abril). sentido vai além e rompe o processo discursivo
significando não pela metáfora mas pelo rompi-
Se olharmos mais de perto, encontraremos cons- mento dela. Há exemplos abundantes em “Rosa
truçõeslingúísticas que nos apontam para esses des- dos Ventos”;
locamentos, especificando “outros” sentidos: s. construções, uso de proparoxitonas: em “Cálice”
(Medici). É a enfatização de traços morfológicos
1. substituição: “É fora da lei/é fora do ar/segura que permite as associações, o jogo de significan-
esse boi/é proibido voar”, em que “boi” está por tes. Ainda em cálice (cale-se) trata-se da homofo-
“pessoa subversiva”, por exemplo; nia e da relação segmental som/sentido. Fora a
2. repetição, em lugares estratégicos, de certas ex- evocação bíblica, aí inscrita: “Pai, afasta de mim
pressões: “Preste atenção!” em “Cobra-de-Vi- este cálice, que traz todo o sentido do calvário
dro” sugere que se prestarmos atenção veremos (religioso/político);
“outros” sentidos ali. A expressão se volta assim 6. uso dereferências à natureza brasileira,seja à fau-
também para o próprio texto e não apenas para na ou à fora ete.: em “Passaredo”, temos a refe-
a exteriaridade, Encontramos essa mesma carac- rência ao pássaro “bico calado”, por exemplo, que
é bastante sugestiva;
é É preciso não esquecer o episódio de Maurício de Nassau, em Pernam- 7. a relação intertextual, mostrando a relação de
buco, por ocasião da invasão holandesa, sentidos e a história da censura de uma música à

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- Qualquer coisa serve para significar, qualquer
outra: “Canta mais/preparando a tinta/enfeitan matériasignificante explode os limites do sentido.
“A praç a fica cada dia
do a praça” em “Fantasia”, e Um processo de significação, uma vez posto em
a
mais vazia” em “Chorinho” e ainda em relação circulação, pega tudo.
(do
rodas as outras canções que referem à “praça” Chico conta (1990) que, quando dizia “Você não
povo e não dos bancos de jardim...);
as, gosta de mim mastuafilha gosta”, ele não se referia
"a resistência operária aparece de várias form à Amália,filha do general Geisel, mas sim aos poli-
das quais uma bem interessante é a do jogo de pa- ciais e suas filhas; policiais que iam prendê-lo mas,
São
lavras: “Samba samba São Bernardo/Sanca no elevador, pediam autógrafos para suas filhas. No
e-
Cactano/Santa Santo André? Dia-a-dia Diad entanto, não importa o que ele queria dizer. Chi-
toma r um mé”
“ma/Quando for, me chamc/Pra co já não decide: ele mesmo faz parte do funcio-
(“Linha de Montagem”). Quando for o qué? “Eu namento dos sentidos que inaugurou. Ele é parte
será
não sei bemo que seja/mas sei que seja o que do “evento histórico” que se instalara no jogo entre
m
(...) pois quem toca o trem pra frente/també censurae resistência. E de tal forma que ele mesmo
de repente/pode o trem parar. Parada = greve, dá um nome à sua poética: o samba-duplex, aquele
e
revolta,resistência. Quese liga tambémao “Qu que pode mudar de sentido quando for necessário
será que será/que bole com à gente” e que no
ra” (“formosa” é mulher bonita, mas pode ser China
jogo indefinidoseliga ainda ao tema da “espe Nacionalista, se for preciso).
i Passa r”).
e do “dia em que tudo vai mudar” (“Va Chico faz música de resistência mesmo à sua
-
Relações de sentidos trabalham abundantemen própria revelia. Tanto é assim que, para passar pela
te para significar ali onde o sentido não pode ser censura, muda de nome. O seu nome, em si, jádão
-
dito. Uma vez desencadeada a poética de resis sentido da duplicidade em face da censura. Entre-
com
tência de Chico, suas músicas, antes de falar
O conj unto tanto, condenado ao seu próprio processo signifi-
o povo,já falam umas com asoutras. cante, re-começa, na sua outra identidade, o mesmo
delas constitui um “lugar de significar, um jeito processo de produção desentidos.
s
de estar em certos sentidos em que os brasileiro Por outro lado,é interessante observar a censura
aprendemlogo como se mover; fazendo sua contrapartida nessa mesma dinâmica:
etc,
referência a autores cómo Brecht, Orwell censura é resistência jogando, cada uma de seu lado,
de revo luçã o
marcadamente aútores da idéia o mesmo jogo de sentidos.
por
(como 4 Revolução dos Bichos de Orwell, Por exemplo, a censura proíbe “Bolsa de Amores”
exemplo). por motivo de ordem moral (“desrespeito à mulher

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brasileira”), que, no entanto, no discurso de Chico, pode adquirir um estatuto lingiúístico diferente,
é metáfora que incide sobre a especulação financei- em que não se reduza seu modo de funcionamen-
ra, mas que ele canta no modo do discurso amoroso to à repetição, vista esta como imobilidade total
(o quejustifica a censura de ordem moral): “Com- dos sentidos. Já em outro texto (Orlandi, 1988),
prei na bolsa de amores/as ações melhores/que en- procuro mostrar que essa concepção negativa do
contrei porlá/ações de uma morenadessas/que dão estereótipo deriva de uma posição “iluminista”
lucro à beça..”, em face da linguagem, que não admite paradoxos,
A força do significante aparece em cheio, na situa- contradições, non senses e equívocos. À meu ver,
ção de censura. É mais forte que o autor,o leitor, O quando penso o estereótipo como ponto de fuga
censor, a polícia. Está em todo lugar. Está onde está possível de sentidos, penso-o como lugar em que
o poder. A crítica à ditadura se expande em todas trabalham intensamente as relações da linguagem
as direções. É ao mesmo tempo crítica de muitos com a história, do sujeito com o repetível, da sub-
outros aspectos dessa sociedade colocada na mira jetividade com o convencional, Tudoisso perpas-
de força: o autoritarismo das gravadoras (“A Voz do sado pelo funcionamento imaginário do discurso.
Dono”), o comportamento social geral (“Geny e o Lembremos Barthes (1975) quando, falando sobre
Zepelim”), tudo é colocado em causa. TV, diz: “Dans un premiertemps, écouterle langa-
ge des autreset tirer de cette distance une sécurité;
et dans un second temps, douter de cette retraite:
Sentidos que migram avoir peur de ce qu'on dit (indissociable de la ma-
niére dont on dit)”
Uma vez estancado um processo de sentidos, Eu diria queo estereótipo é um doslugares desse
numa posição em sua relação com as formações dis- equívoco que atravessa a relação do homem com a
cursivas, o sentido emigra (e se desloca) para qual- linguagem, lugar de reconhecimento e de distância.
quer outro objeto simbólico possível, De todo modo, em se tratando da ordemdo políti-
Os objetos que os catalisam, que os chamama si, co e da censura, o que podemos observar é que o es-
são, na maior parte das vezes, os mais “reproduti- tereótipose carrega (e carrega) de sentidos que mi-
vos”, os mais “estereotipados” possíveis. Daí que, em gram da ordem de outros discursos. E isso, emsi, já
situação de censura, pelo menos;0s estereótipos são indica que é preciso melhor pensaro estereótipo.
pontos de fuga de sentidos. O efeito de sentido que trabalha a relação com
Vale a pena ressaltar nesse passo o fato de que, o estereótipo é o de que só nele é que somosfala-
pela análise de discurso, a noção de estereótipo dos pelo “consenso”, pela “solidificação”, pela “se-

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dimentação”, pela “fixação” do discurso. Fora daí Nesse modo de funcionamento,a relação entre
seríamos donos do nosso dizer e estaríamos fora o “um” é o “plural” aparece em sua relevância, E
do efeito-literal. Mais um componente da ilusão aqui voltaria a Barthes (idem) quando fala da neces-
referencial, sidade do “um” como segue:
O estereótipo, a seu modo, cumpriria, no discur-
so, papel imaginário análogo ao do “pré-construí- Quand je lis, jjaccomode: non seulementle cristallin
do” (o efeito do já-dito que sustenta o dito), com de mes yeux, mais aussi celui de mon intellect, pour cap-
ter le bon niveau du signifiant (celui que me convient)...
efeito inverso, dando ao sujeito a impressão de que
Chacun courbe son esprit, tel un oeil, pour saisir dans
só ali os sentidos retornam, protegendo-o assim
la masse du texte cette intelligibilicé-lã, dontil a besoin
do mesmo do sentido e da sua intercambiabilidade pour connaitre, pour jouir etc. En cela la lecture est un
com outro sujeito qualquer. travail: il y a un muscle que la courbe?
Compreendendo pois a produção desse efeito,
pela análise de discurso, podemos também com- Essa curvatura, essa disciplina é a do discurso
preender que, nessa relação imaginária, em certas social.
condições, o estercótipo é o lugar em queo sujeito A partir do que pudemos compreender sobre a
resiste, em que ele encontra um espaço para, para- censura, vejamos que questões teóricas e sobre o po-
doxalmente, trabalhar sua diferença e seus outros lítico podemoscolocar,
sentidos. É uma forma de proteger sua identidade
no senso comum,pois o estereótipo cria condições
para que o sujeito não apareça, diluindo-se na uni- Considerações finais
versalidade indistinta,
De todo modo, nesse ponto da reflexão, gostaria- 1. Ao se deslocar um sentido para outros materiais
mos de lembrar novamente que a censura exacerba simbólicos, no processo que chamamos “migra-
a relação do sujeito com sua identidade, com seus
sentidos. 7 Falando ca relação ver/dizer, P, Fedida (1988) vai mais longe, apontan-
do para a questão dosilêncio: “Mais toute la poétique épique des Grecs
Ela é o sintoma de que ali o sujeito tem um pro- est encore là pour rappeler que r'exigence ixagigue tientà cette vigilance
blema em sua relação com o dizível, Ali o sentido requisc delle-même par la parole, de tele sorte quien parlant à Paurre,elle
seria outro. Então, pára o falante, o silêncio é lugar * naccélêre pas [...] léchéance d'une disparition par effacement. Parler/écou-
ler est propre, en effer, à produire cela. Cela, c'est une sorte d'érosion des
de elaboração de outros sentidos, do movimento de visages, ce lent affaiblissement qui ruine tout en même temps leur vue et
sua identidade; para o analista, é uma pista de um leur langage, la vue du langage, Parfois bruyante de visibiliré, la parole
alors continue, Mais au fond, elle devient muerte — muette de vue — et
modo de funcionamento do discurso. le mutisme de sonsilence est une négligence du ressouvenir”.

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ção dos sentidos”, ele passa por transformações, Aquilo que não dissemos durante a censura
Dizer “a ditadura vaí acabar” e dizer, em música, bem ou mal, de um modo ou de outro — significou,
“vai passar” traz necessariamente diferentes efei» Os processos de significação não estacionaram, os
tos de sentido, pois esses enunciadossignificam sentidos proibidos não desapareceramno parêntese
diferentemente. de 20 ou 30 anos. Se, como se sabe, o poder invade
tudo, à resistência, como mostramos, também está
Gostaríamos de compreender a natureza da por toda parte e os sentidos vazam por qualquer es-
diferença que se produz nessas situações de Jin- paço simbólico que se apresente. Eles migram.
guagem, Em outras palavras, interessa-nos com- Assim, no discurso de nossa história, não temos
preender o que essa diferença instaura narelação que “retomar” sentidos ou “resgatar” debates e con-
do brasileiro com sua história. frontos que foram silenciados.
De um lado, sabemos, isso acarreta uma parti- No entanto, do ponto de vista teórico, essas for-
cularidade: o brasileiro, por ter a censura expli- mas só são apreensíveis se entramos no domínio
cita na sua história política, relaciona-se com discursivo. Domínio em que a linguagem perde
o discurso político através dessa memória, Me- seus contornos de instrumento e de transmissão
mória aí no sentido amplo: mesmo os que não de informação, Pois o que aprendemos estudando
viveram a censura política explícita incorporam a censura é que é uma ilusão pensar que em um re-
seus efeitos. Não se trata de aprendizagem masde gime ditatorial de interdição de sentidos o que nos
filiação histórica, inconsciente (Pêcheux, 1991). faltam são informações. Ao contrário, a censura age
A censura “conta” na relação do brasileiro com sobre o que é suposto que o sujeito saiba. E o que ela
o político. procura impedir, como vimos, não é que ele tenha
Por outro lado, e não sabemosa justa extensão acesso às informações; o que ela procura impedir é
disto: onde estão os sentidos de que não fala- justamente que haja elaboração histórica dos senti-
mos e que tiveram que circular (disfarçados) por dos é movimento no trabalho de identificação dos
outros caminhos, por processos de significação sujeitos (cidadãos).
tortuosos? O que cles perderam, o que ganha- Como história e sujeito, quandose trata de lin-
ram? Comose alojaram nos amplos processos de guagem, estão sempre em movimento,a resistên-
significar? A cia aparece, como dissemos, exatamente onde há
Essas questões nos levam, finalmente, a outra: censura.
Ossentidos silenciados em seus lugares (cf. or-
2. Como a história responde à censura? dem de discurso, formação discursiva e posição

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do sujeito) próprios, e que significaram em outros Y O silenciado tem uma materialidade histórica
lugares simbólicos, continuam fazendo seu sen- presente nos mecanismos de funcionamento dos
tido surdo que explode de tempos em tempos em discursos e em seus processos de significação.
equívocos, contra-sensos, € até em palavras de mau Daí podemos concluir que: na reprodução já há
gosto ou anacronismos. Mas tudo isso tambémé não-reprodução, na censura já há resistência, na
modo de se fazer sentido. São sentidos que “atrapa- interdição de sentidos já estão os sentidos outros,
lham”, que se finge não ouvir. Ou, e esse é também naquilo que não foi dito está o trabalho do sentido
um seu modo de ser, aparecem como sustentando que virá a ser. Em suas várias formas e modos que só
falas agora já em outros lugares e que os trabalham a história pode assentar,
em seus “pressupostos”. Ou ainda estão nasfalas dos Assim, não há censura completamente eficaz: os
“adversários”, que continuam a trabalhar seu silen- sentidos escapam e pegama gente a seu modo.
ciamento, Nossa finalidade, comesta reflexão, era mostrar:
No entanto, o fato de não se dizer “a ditadura vai a) de um lado, que a separação entre verdadeiro/
acabar” diretamente e sim através de “Vai passar”, falso não é a constatação de umaevidência, masjá
em música, faz com que o silêncio fique compro- é uma tomada de posição (um efeito de discurso),
metido com o sentido da “ditadura”. No desloca- um gesto de interpretação; b) de outro, quando
mento para o não-dito parece, pela censura, que o pensamos na prática discursiva, noções tais como
não-dito é só um: a ditadura. Ela cobre todo o espa- a de “estereótipo” assim como a observação da lin-
ço do não-dito. Isso tira um pouco do movimento guagem “cotidiana” adquirem um estatuto outro
possível, do não-um do silêncio. Eu diria que sobra que lhes dá um caráter mais complexo, indicando
menos não-dito, menos silêncio, O gesto da censu- aspectos de sua sistematicidade, No entanto, isso
ra lesa o movimento daidentidade do sujeito na sua só é possível se somos capazes de atribuir um outro
relação com os sentidos. Ele lesa de algum modo estatuto teórico ao silêncio; e, finalmente, c) o que
a história. Mas como o dizer c o não-dizer têm li- pudemos compreender da censura, observando-a
mites complexos e a noção de silêncio é corrosiva no domínio político, pode, no entanto, se alargar
(Auida), o movimento dos sentidos se reinstala as- para a compreensão dos procedimentos de inter-
sim como os efeitos contraditórios do silêncio que dição que atravessam, de múltiplas formas e em
reafirmam-a condição (bi)partida da produção dos permanência, o cotidiano do sujeito na sua relação
sentidos éntre o um c o não-um. E aí de novojoga com os diferentes percursos de sentido, nas distin-
forte a relação entre o indizível da história, isto é, o tas situaçõessignificantes de sua vida; a apreensão
não-significado,e o da censura, o não-dito. do fato que chamamos “migração” dos sentidos

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proibidos para diferentes objetos simbólicos deve,
SiLêncio, CÓPIA E REFLEXÃO
sem dúvida, merecer especial atenção.
À partir de então restituímos ao discurso seu ca-
ráter complexo (lingiiístico-histórico-ideológico):
ele não se apresenta somente como lugarde repro-
dução masde resistência c de transformação.
Finalmente, tudo isso pode se remeter ao que diz
Pêcheux (1983) a propósito da relação estrutura/
acontecimento:

Pela sua própria existência todo discurso marca a pos-


O modo como temos considerado a censura e o si-
sibilidade de uma desestruturação-recstruturação dessas
redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial e uma lenciamento pode nosfazer entender melhor o me-
agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na canismo de apagamento da autoria, muito comum
medida em que ele constitui ao mesmo tempo umefeito nos meios acadêmicos. Ao mesmo tempo em que
dessas filiações e um trabalho [...) de deslocamento em a referência ao silenciamento esclarece o funciona-
seu espaço [...]. mento desse fato discursivo, a sua observação, por
sua parte, ajuda-nos a compreender melhor a con-
O que, em conclusão, pode significar que, quan- cepção de censura que estamos propondo emnossa
do a análise de discurso se despede do terreno já reflexão.
domesticado do conhecimento lingiiístico que ter- Muito se tem dito do plágio, seja em torno de
ritorializa a noção de ambigiúidade, podemos nos situações concretas em que se trata de decidir se ele
dirigir para um terreno bem mais rico para os es- existe ou não,seja comofato delinguagem quetoca
tudos da linguagem, em que os deslocamentos, as aspectos teóricos importantes. Nesse caso,o plágio
diferenças, as contradições nos abrema via do equi- é ocasião para refletir sobre a heterogeneidade do
voco, dos desligamentos, das reversões dos sentidos discurso, umavez que, pensandoa linguagem como
(e dos sujeitos), em uma palavra, a via da linguagem fundamentalmente dialógica, a alteridade é parte
concebida como polissemia no sentido amplo,es-
paço de jogo de-sentidos ondeo silêncio significa, r A noção de dialogia aqui suposta deriva dos trabalhos de Bakhtin. Às
ressonâncias e os deslocamentos dessa noção têmsido trabalhados no Bra-
silem muitos domínios de estudos da linguagem. Citaria aqui alguns cole-
gas, como €. Vogt, B. Waldman, C. Lemos, E, Guimarães, pelos trabalhos
em que desenvolvem a questão da dialogia. Em Paris, semdúvida, na área

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constitutiva do dizer que o delimita e regula, sendo sujeito com a linguagem, comojá tivemos a oca-
o discurso sempre atravessado por “outros” discur- sião de afirmar, que ele possa circular pelas várias
sos. É assim que se cumpre a relação necessária do regiões de sentidos (ainda que ele não circule).
lingúístico com o ideológico: os sentidos não têm Mas o que pretendo nesta reflexão não é discutir
donos. diretamente os sentidos c os limites da dialogia, ou
Isso na reflexão e como princípio teórico. Pois, compreender a extensão mais radical do que signi-
se os sentidos não têm donos, não é menosverdade fica a migração dossentidos na constituição do su-
que cada um os quer para si, Além disso, há formas jeito e das suas possibilidades de dizer.
sociais que mostram a relação do sujeito com as pa- Meu objetivo é falar de umacoisa mais localizada:
lavras e que regulam o princípio da autoria (o que o quesignifica, na relação intelectual, esse fato sis-
supõe umsujeito visível e responsável pelos sentidos temático (daí o interesse em entendê-lo) em gue,
que produz num estado dado de uma sociedade). sejam alunos em relação aos mestres, sejam colegas
Assim, sempre podemos deparar comsituações a respeito de colegas, as pessoas se autorizam a não
em que, claramente, se pode perceber que os senti- referir suas idéias a idéias já ditas? Chamarei a isso
dos “criam pernas” (ou “asas”) e são surrupiadosde “meio-plágio” porque são falas que, embora tenham
um discurso para outro. Porque “ter” uma idéia é esse viés de origem, têm particularidades que não as
uma questão só de valor intelectual, mas “ser autor situam inteiramente como cópias. Não se trata tam-
de” tem umavalia institucional bastante disputada. pouco de fazer julgamentos e avaliações: há boas e
Aqui cabe pensar a censura tal como a tenho más intenções nesses procedimentos é eles podem
tematizado no que chamo de “migração de senti- ser de naturezas muito diversas em nível “pessoal”,
dos”, isto é, o fato de que, uma vez estancados em Hácertamente qualidades que separam esses procedi-
um lugar, os sentidos migram para outros objetos mentos quando se trata do aluno em relação ao mes-
simbólicos pelos quais vão significar aquilo que era tre e de colega em face de colega. O que nosinteressa
proibido dizer, Essa errância dos sentidos tem aí O é compreender discursivamente esse fenômeno.
sentido positivo e produtivo de não se deixar apri- Com efeito, pode-se pensar esse fato no jogo
sionar, de não,perder a qualidade daquilo que defi- complexo da discursividade e analisar as rela-
ne mais fundardente o discurso, isto é, seu carater ções do dizer com sua memória sob o modo da
de “movimento”, Faz parte necessária da relação do relação do dizer com sua “exterioridade”: a his-
toricidade, o interdiscurso.
Quanto à noção de “historicidade”, basta dizer
do discurso, uma estudiosa da dialogia que se sobressai é ]. Authier, com a
introdução da noção de “heterogeneidade enunciativa”
que pata que umapalavra faça sentido é preciso que

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ela já tenha sentido. Essa impressão do significar mam, eles deslocam seu lugar na rede de filiações
deriva do que se tem chamado “interdiscurso”. Isto históricas; eles se projetam em novos sentidos.
é,o domínio do “saber” discursivo, o da sua memó- No entanto,o que se passa na região específica da
ria, aquele que sustenta o dizer numaestratificação produção do discurso científico e do apagamento
de formulações já feitas mas “esquecidas” e que vão do já-dito que estamos procurando compreender
construindo uma história dos sentidos. Toda fala como meio-plágio?
resulta assim de umcfeito de sustentação no já-dito Podemos considerá-lo um subproduto do silen-
que, por sua vez, só funciona quando as vozes que ciamento necessário de que falamos anteriormente,
se poderiam identificar em cada formulação parti- comsuas particularidades no entanto. Porque, ao se
cular se apagam e trazem o sentido para o regime inscrever na ordem do discurso científico — em que
do “anonimato” e da “universalidade”. Ilusão de que as citações” têm uma função de filiar sentidos em
o sentido nasce ali, não tem história. redes significativas específicas —, ao mesmo tempo
Nisso que me tem ocupado como silêncio cons- em que apaga asfiliações, esse discurso, o do meio-
titutivo de todo dizer, essa seria uma das suas for- plágio, ganha seus sentidos particulares: ele silencia
mas: o apagamento de outras vozes específicas que seu trajeto,cala a voz do outro que ele retoma.
adquire caráter de evento histórico, institucionali- Se há um silenciamento necessário na constitui-
zando o sentido (ilusão referencial, a da literalida- ção de todo dizer, nem por isso deixa de haver um
de) e, mais do que isso, estabelecendo o campo do silêncio bem mais discutível, porque menos neces-
“dizível”. Aí se forma a necessária ilusão de que o sário, na relação entre trabalhos de diferentes auto-
que digo, eu digo a partir de mim mesma. Mecanis- res, na vida intelectual, quandose trata do discurso
mo imaginário que coloca na boca dosujeito as suas científico. Eu diria, pois, que é preciso distinguir
próprias palavras e que lhe dá o sabor de clas serem isso que estou chamando de meio-plágio do silên-
dele mesmoe não de outrem. Condição de unidade cio constitutivo que, mesmo que já traduza uma
e de subjetivação sema qual o sujeito não é sujeito certa política do significar — esta que divide o dito
de linguagem na plena contradição do que é sê-lo:
ser o agente de e assujeitar-se. 2 Esta nossa reflexão não se dirige diretamente à questão da “citação”, só
Esse é um silenciamento necessário, inconscien- a um aspecto particular dela, No entanto, é interessante lembrar que há
múltiplos mecanismos de apagamento em relação ao discurso relatado é o
te, constitutivo para queo sujeito estabeleça sua po- lugar da citação, com seus diferentes cfeitos de sentidos: o citar só autores

sição, O lugar de seu dizer possível, Dessa ilusão re- estrangeiros (inscrição no discurso colonial), o não citar um autor para
marcar discordância comele, o citar só textos clássicos, o citar só idéias de
sulta o movimento da identidade, o movimento dos outros domínios disciplinares etc. Todas essas são formas de silêncio com
sentidos: eles não retornam apenas, eles se transfor- seus muitos sentidos.

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co não-dito, estabelecendo um recorte que reflete ciência” individual do falante mas do escopo geral
posição do sujeito, sua inscrição em uma formação: do dizer, no jogo entre formações discursivas di-
discursiva —, o faz por necessidade histórica. Ao se versas: a censuta é função da posição do sujeito, ou
dizer algo, apaga-se necessariamente a possibilidade seja, do seu lugar de produção de sentidos no con-
de que se diga outra coisa naquele lugar. O meio» junto do dizível. Pela censura, o sujeito é impedido
plágio se inscreve nesse mecanismo desilenciamens de ocupar posições consideradas proibidas porque
to no entanto de modo particular: ele joga com 0 produzem sentidos proibidos. O sujeito é proibido
princípio da autoria, trazendo-a indevidamente de circular pelas formaçõesdiscursivas,
para si. O enunciador, que repete e apaga, toma o Além disso, há outro aspecto da censura que é
lugar do autor. interessante comentar: a censura, ao contrário do
A nossa finalidade, ao produzir este texto, não é que se supõe comumente, não age sobre o que o su-
levar à autocrítica. Mesmo porque não consideramos jeito não sabe mas justamente sobre aquilo queele
este fato — a não-citação de umaidéia claramente é suposto saber(o já-dito). O problema, na censura,
já-dita — como setratando de um fato individual não é, comojá dissemos, impedir a informação, mas
ocasional mas sim sistemárico € geral. Isso para nós evitar que haja trabalho histórico do sentido e, con-
indica que ele já se incorporou à história e funcio- segientemente, da identidade dos sujeitos. Ou seja,
na discursivamente emnosso imaginário como uma a censura procura estancar o movimento social e
prática ideológica que se produz “automaticamente” histórico do sentido que produz os sujeitos em seus
no dizer científico. Isto é, ele já faz parte do nosso processos de identificação. Também esse aspecto
modo de produzir trabalho intelectual, da censura está presente no fato que analisamos: ao
Dessa forma, o que pretendemos com esta refle- dizer o já-dito (localizado) sem citar, o meio-pla-
xão é tornar explícito esse mecanismo para que ele giador intervém no movimento quefaz a história,
não passe como algo “natural”. Paralelamente, pode- a trajetória dos sentidos (nega o percurso já feito)
mos considerar com mais interesse e acuidade as suas e nos processos de identificação (nega a identidade
consegiiências no modo de produção intelectual; o ao outro).
que significa ser intelectual, nessas condições? Essa forma de fazer ciência, pelo meio-plágio,
Para compreendê-lo como fato discursivo, va- ainda que subproduto de processos gerais e inscri-
mosconsiderá-lo no:tonjunto defatos que caracte- tos no funcionamento automático da linguagem,é,
rizamos comosilenciamento e censura. pois, uma forma de censura. Censura do outro, an-
À censura, segundo o que já dissemos, tem jus- tes de tudo, porque lhe negavoz. Mas, mais profun-
tamenteesse caráter, o de não ser um fato da “cons- da e paradoxalmente, ao silenciar o outro, o meio-

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deixasse
para uma interpretação desse fato que não
lenciosamente) a
plagiador estaria aí procedendo (si de vê-lo como fato discursivo produtivo, seja
como
impede que os
uma censura para si mesmo. Porque repetição, seja como deslocamento.
cursos € assim €s-
sentidos se mostrem em seus per O que acabamos de dizer situa-o, teoricamente,
(andam) “eus rsi-
conde de si mesmo por onde passam como um subproduto do funcionamento discu
anda sua produção uma
sentidos, ou, no caso, a quantas vo do “interdiscurso”, apresentando-se como
ele “empastela” as
intelectual, Por esse mecanismo, consequência prática do princípio dialó gico, inscr i-
silenciar a origem
diferenças. Mais do que isso, 20 to, neste caso, no domínio da censura, do silen
cia-
porque produz
da idéia que trabalha, ele censura, mento.
um mecanismo que desconhece que Os sujeitos e Os Ainda que iludindo acerca da autoria, pode
mos
as. Estanca as-
sentidos significam de outras maneir dizer que esse procedimento silencioso pode
no en-
sim o Auirhistórico do sentido. regiõ es do já-
tanto servir para nos indispor comas
ir a historici-
Com efeito, o mcio-plágio, ao elid dito, pelo fato mesmo de não reconhecê-lo, perc
ep-
o movimento dos form a de
dade, censurando, reduzindo tiva e institucionalmente, Poderia ser uma
realidade do pen-
centidos, acentua a impressão da o novo, desrespeitosamente, deslocar o velho
. Mas,
duz o “senti-
samento (ilusão referencial que pro do modo como funciona, ele parece antes
ser uma
ural entre pa-
mento” de que há uma relação nat forma de o velho se fingir de novo. Ness
e caso, as
o origem de seu riação,
lavras e coisas) e a do sujeito com palavras, ao sofrerem essa forma de aprop
nascem nele). No
dizer (ilusão de que os sentidos cicocheteiam nessas “novas” produções e atin
gem
ando, correspon-
fato discursivo que estamos analis o autor em sua ressonância, obrigando-o seja
à de-
desejo de que
dea isso a onipotência do sujeito. O fendê-las (endurecimento da autoria) ou a aban
do-
, seja auto-suficien-
“ey” sentido não tenha história ná-las pela impressão do já-muito-dito, sem
refle-
e outra caracte-
te, absoluto. Reflete assim localment tir. De todo modo não produzem o moviment
o de
tuição dos sen-
rística do jogo ideológico da consti sua contemporaneidade. Ao se fingirem de nova
s,
ões discursivas
tidos: a relação das diferentes formaç soam, para os que já as haviam dito, com
o muito
” sentido — O
é apagada pela dominância de “um velhas. Não fazem progredir a reflexão, porq
ue não
to € produz o efei-
“seu” — que atravessaesse conjun produzem deslocamento. Não esta bele cem um lu-
to da unicidáde e da completude. dis-
aqui é suficiente
gar distinto — não circulam pelas formações
Creio que o que dissemos até cursivas —, não percorrem outras posiç
ões. O au-
dução desse silen-
para marcar o mecanismo de pro tor originário não sofre um impulso; ao
contrário,
em pública dos
ciamentoe suanatureza, que é da ord arrisca ficar parado no mesmo. Essa é uma form
a de
agora de passar
sentidos e da censura, Gostaríamos
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domesticação do novo. Forma de revisionismo. É
y seu domínio e trafica com idéia de novidade. É
assim um modo de interlocução que desestimula a uma das manifestações da ideologia da “criativida-
conversa, o debate, o confronto de idéias. de” (o dever de ser criativo), como veremos mais
Pode-se também tomar o evento discursivo da adiante.
não-citação como um sintoma de uma mudança na Querseja consciente ou não, O meio-plágio pro-
função da autoria. Estaria então havendo um deslo- duz um recobrimento do outro e não sai do mes-
camento — na noção de autoria — que mostraria mo. Em vez de desdobrar sentidos (processo polis-
o giro interpretativo da dispersão, a desnecessidade sêmico que é a base do funcionamento discursivo),
de um marco de origem do dizer e de um sujeito dobra sentidos (no sentido do “duplo” e do “enco-
nessa origem como responsável pelo dito, pela sua lher”), encurtandoo trajeto da significação,
coerência, não-contradição e unidade? Estar-se-ia Tudo isso nos mostra que, afinal, a citação, no
devolvendo o texto à dispersão e o sujeito a sua des- discurso científico, não é apenas uma questão moral
continuidade? Seria um deslizamento do sentido mas funcional, ou seja, ela faz parte do mecanismo
de autor que faria vir à tona o modo de produção estruturante do modo de produzir ciência. Não é
do efeito de unidade, ou seja, seria um estilo intelec- um fenômeno marginal, mas substantivo.
tual que deixaria passar a dispersão, a fragmentari- Há determinação do interdiscurso (memória do
dade, a não-unidade constitutiva do sujeito e dos dizer, lugar da “constituição” dos sentidos) sobre a
sentidos. Mas, paraisso, seria preciso que houvesse, formulação (a enunciação particular de um dizer).
realmente, transformações no tecido da formação O sujeito, ao “formular” seus sentidos, inscreve-se
social, já que a noção de autor é função da forma- necessariamente no interdiscurso (no já-dito). À
sujeito e dos modosde produção da “individualida- formulação é determinada pela memória. E aqui a
de” sócio-historicamente determinados. E no con- memória também não é considerada em nível indi-
texto da nossa formação social (pós-moderna?) não vidual mas histórico. Isso não significa que não há

é disso que se trata. Mesmo que possa vir a ser. nada de novo sob o sol, mas sim que não há dizer
Esse mecanismo de não-citar produz o lugar que se faça “fora” da história, Todo discurso é parte
(da falta) do dizer como lugar possível quando, de um processo discursivo mais amplo que o toma
na realidade, esse lugar já está realizado (cheio), emsua rede de significações. É assim que fazemos
caracterizando-e assim como uma forma de des- sentidos. Mas, ao retomá-los, produzimos um des-
conhecimento. É pois uma das formas ideológicas locamento, empurramo-los para outros lugares.
de apagamento da materialidade histórica do dizer. O meio-plágio, ao se produzir como uma nega-
Nega a memória. Destitui o “saber” discursivo de ção dafiliação histórica, individualiza a memória

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e perde a capacidade de, ao retomar, deslocar. Só Isso indica algo a propósito do próprio discur-
retoma, so científico e da nossa forma social de relação com
Isso nosleva finalmente à consideração do meio- ele: comentários não são valorizados. O dever da
plágio comoefeito de comentário, criatividade, da originalidade, esquece que o dizeré
Como dissemos, a formulação é apagada por ou- sempre heterogêneo, que ele nasce em outros dize-
tra e isso impede que ela tenha a força do desloca- res e aponta para outros, € é nesse percurso, que vai
mento; porque o meio-plágio não delimita formu- entre o já-dito e o futuro discursivo, que o sentido
lações,ele as confunde. Ele não compreendeo dizer pode (ou não) ganhar novas determinações, produ-
do outro, não o situa, perdendo assim a possibili- zir deslocamentos. É nesse estreito entremeio que o
dade de trabalhar o seu próprio gesto de interpre- comentário significa no discurso científico.
tação, o que o faria ir mais longe, o faria significar Com essas considerações não estamos fazendo o
de outra maneira, distinguindo-se realmente em elogio seja do citacionismo, seja da disciplina que
sua formulação. Aquilo que ele traria de novo fica amarra de tal modo o pensamento no dizer do ou-
comprometido por esse modo de dizer. Por quê? tro que o impede de se mexer. Para nós são sempre
Porque o meio-plágio é um comentário quesc nega jogos da interpretação. Esse é um espaço difícil
comotal. de lidar. O que queremos aqui é apenas situar um
Esse é umoutro aspecto do meio-plágio e que o certo gesto de interpretação e da relação dosujeito
submete aos efeitos da ideologia da criatividade. com ele. Gesto que começa por concebera reflexão
O dever de dizer coisas originais é que faz com que o não como comentário mas como “lugar próprio da
meio-plagiador omita o enunciado que o sustenta. idéia”, desliza para a definição da reflexão como “o
Resulta assim em um comentário sem texto origi- lugar das idéias próprias” e acaba porse afundar cem
nal, Uma idéia “capenga”. um modo de apropriação das idéias, em que o tra-
É interessante observar que há vários graus de balho intelectual perde muito de seu sentido,
proximidade cntre o comentário e sua inicial. O Na realidade, movimentar-se no discurso cienti-
meio-plagiador simula o grau zero. E isso me tem fico é saber delimitar diferentes formulações, é sa-
parecido menos umafarsa do que umanecessidade: ber demarcar umas e outras para poder estabelecer
se o plagiador explicitasse a relação, não consegui- sua posição e, na discussão com outras vozes, esta-
ria produzir suaformulação. Um texto tem suas belecer o âmbito da sua compreensão do fato que é
injunções. É essa omissão que torna seu dizer pos- objeto da reflexão.
sível (e muitas vezes com contribuições importan- E aí chegamos à nossa conclusão para estas con-
tes, mas “tortas”. siderações.

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É quando mais acreditamos estar iludindo a his- uma retórica que só quer ocuparespaços, mas não
tória e as determinações imaginárias que nos cons- refletir. Conseguentemente, É a própria função do
tituem sujeitos que estamos mais determinadospor intelectual que fica comprometida. Porque ele se
elas. Porque os discursos têmformas institucionais fecha narcisicamente na vontade de que o dizer co-
que os definem. No âmbito das formas institucio- mece é acabe nele mesmo e não sc deixa atravessar
nais do discurso, há normas que indicam a espes- nem atravessa “outros” discursos. Essa incapacida-
sura da materialidade discursiva, que é linguística e de de deslocar-se resulta na asfixia do sujeito (nesse
histórica. Em nossa história social, a forma do dis- caso, do intelectual) e na rarefação de sentidos (nes-
curso científico é a que dispõe que, na relação de co- se caso,as idéias). Preso nesse mecanismo,o intelec-
nhecimento, a explicitação do intertexto, ou seja, a tual perde sua capacidade de ter uma posição real
exposição da relação entre os diferentes discursos, é na prática do conhecimento que pudesse estabele-
que dá a marca da cientificidade. Elidi-la é iludir-se cer uma sua relação mais decisiva com a formação
com a sua própria auto-suficiência. Por outro lado, social de que ele faz parte. Ão apagaro percurso das
do outro lado da história, na difícil relação imaginá- idéias, fica enclausurado emsi mesmo.
ria com o “outro”o apagá-lo,o silenciar sua voz tor- O conjunto dessas observações nos mostra que
na-o no mais das vezes mais forte. Ao apagar a voz a censura não é necessariamente exercida de cima
do outro, o meio-plagiador pode ficar preso nesse para baixo. Ela pode se dar entre iguais. Nem por
mesmolugar. O dizerfica assim dominado pelo di- isso deixa de ter sua eficácia. Por outro lado, deixa-
zer que se omitiu e não permite estabelecero lugar nos ver tambémque não comentar à fala do outro,
de sua reflexão, lugar que lhe daria especificidade e não declarar filiações no discurso científico, é um
o abriria para novos percursos de sentido. Ao ima- modo de estancar trajetossignificativos, não histo-
ginarestar explicitando algo que o outro deixou nas ricizar a produção científica e iludir-se, finalmente,
margens do seu dizer, o meio-plagiador fica preso com a existência da idéia absoluta:
no mesmo jogo de explicitação. E não avança. Não
flui no movimento da história dos sentidos. Porque
3 Ao fazer considerações a respeito desse procedimento e ao comen-
entre o dito e o não-dito é irremediável que haja tar O interesse que têm cido principalmente os psicanalistas em tratar
umespaço de interpretação. Que não se fecha. Lu- dessas questões de autoria, ouvi de Eduardo Guimarães uma expressão

gar de equívocos, de deslocamentos, de debates, de que cabe muito bem no que estou cematizando: “eles assinam as inter-
pretações. Traduzido para à vida acadêmica, vejo exatamente isso: ao
possíveis. ler, ao compreender a idéia do outro, o aprendiz, o leitor, assina o que
E quem perde com isso? O conhecimento. Por- aprendeu, o que leu, e “esquece” a fala do outro que produziu sua com-
preensão, sua leitura. Modo de produção intelectual em que não existe
queele também não avança com essas estratégias de mais leitor, só autor.

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(Não cantarei o mar: que ele se vin-


gue de meu silêncio, nesta concha.)
C. DRUMMOND DE ANDRADE, Nudez

ca
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CONCLUSÃO

Amaneira comoconcebemos osilêncio naprodução


da significação nos leva a perceber consequências
para o estudo da linguagem que apontam para di-
ferentes direções.
Inicialmente, e na sua dimensão prática, a con-
sideração do silêncio pode fazer compreender, de
forma distinta, questões relativas ao ensino de lín-
guas, ao contato entre culturas diferentes, a relação
com a escrita, a poesia, a música, a relação entresis-
temas simbólicos (práticas discursivas) diferentes,
a publicidade, as diferentes formas da autoria etc.
Enfim, se toda relação com a linguagem supõe uma
relação como silêncio, este funciona de maneira
específica em cada uma de suas manifestações. O
que nosleva a dizer que não se pode compreender
o funcionamento da linguagem sem compreender o
estatuto particular do silêncio nos processos desig-
nificação.
Pga

Em uma dimensão menos prática, o estudo do


silêncio produz um deslocamento em relação a duas
fronteiras: a) a que existe entre dito e não-dito;
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b) a que existe entre o dito (não-dito) e a exterio- E isso está de acordo com o quesignifica “discurso”;
ridade que o determina. aquilo que segue um curso, um projeto, aquilo que

Finalmente,o silêncio nos coloca diante da ques- retorna. O traço comum entre a errância do senti-
tão da natureza histórica da significação, na análise do,a itinerância do sujeito e o correr do discurso é a
de discurso. idéia de “movimento”,
De todo modo, em relação à significação,essa re- Em nossa reflexão, consideramoso silêncio na pro-
flexão nosleva à compreensão de um aspecto funda- dução do sentido como uma das instâncias em que

mental, o da necessidade do sentido, que fica assim se produz o movimento,já que o silêncio é o espaço

formulada: se umsentido é necessário, cle é possível; diferencial que permite à linguagem significar (dis-
se impossível, é porque não é necessário historica- cretamente). No silêncio, o sentido se faz em movi-
mente, Sendoo silêncio a garantia dessa necessida- mento, a palavra segue seu curso, o sujeito cumpre a
de, já que mesmo o não-formulável (ou não-formu- relação de sua identidade (e da sua diferença).
lado) significa. O que não é a linguagem, quando se O silêncio tem assim uma função nas ilusões
trata dos sentidos, não é o nada, mas silêncio. Por constitutivas da linguagem (a do sujeito como ori-

+
exemplo, os sentidos da negritude ou do feminino gem e a da rcalidade do pensamento), enquanto

a a
silenciados em sua expressividade social própria sig- condição para o movimento, enquanto lugar do
nificam de outro modo (na umbanda, na capoeira ou possível para o sujeito e os sentidos.
na moda, numa forma de fazer literatura ctc.). Essa É desse modo que entendo a afirmação de um
migração resulta (e é a marca) da necessidade histó- sujeito “itinerante”, umsujeito discursivo. Porque o
rica dos sentidos. Deriva também daí o modo como sentido não é um, é muitos. Isso está dito na análise
podemos conceber o político no que chamamosde de discurso na definição do dizível pelo conjunto

silêncio. Se ao falar sempre afastamos sentidos não- de diferentes formações discursivas que se pôem em
desejados, para compreender um discurso devemos jogo emcada gesto de dizer. Comoa relação do su-
perguntar sistematicamente o que ele “cala”, jeito com as formações discursivas tem como com-
Além disso, olhando agora pela perspectiva do ponente o silêncio, o sujeito percorre diferentes
sujeito, podemos chegar a afirmações igualmente limites de sentidos (formações discursivas diferen-
interessantes, do ponto de vista da significação, a tes), Nesse jogo do sempre-já-lá (efeito de pré-cons-
respeito desua natureza discursiva. truído) produzido pela relação com o conjunto de
À errância do sentido, à sua capacidade de migra- formações discursivas (o interdiscurso, a memória
ção, junta-se o fato de que tambémo sujeito é errá- dos sentidos), o sujeito elabora a “diferença”, Como?
tico,ele se desloca em suas posições, ele “falha” etc. Porque o silêncio permite que ele se “descole” do
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A metáfora que pode nos fazer compreender
dizer e siga diferentes vias sem no entantose desgar-
esse processo é a do silêncio como “dobra”: é ele o
rar de “seus” sentidos. Nosilêncio é que se realiza a
ponto de inversão possível (todo sentido é efeito de
experiência sensível da polaridade sujeito/sentido,
Umaforma de integração que vai além da relação
umarefração, todo discurso se funda no equívoco),
onde o discurso se desdobra em “outras” palavras.
dada pelo efeito do enumerável, do segmentável, do
Ele funciona assim como um “ponto de fuga”, para
lingiúístico. O silêncio é contínuo € esse seu caráter,
onde vão os sentidos, ao se multiplicarem: sentidos
essa sua continuidade é que permitem ao sujeito se
se abrem em sentidos, que se abrem em sentidos...
mover nassignificações, percorrer sentidos.
No silêncio.Uma vez disposto em discurso, um ob-
O silêncio é a condição de possibilidade de o
jeto simbólico significa indefinidamente.
dizer vir a ser outro. No silêncio, o sentido ecoa
Ai retornamos a umtema que me é muito caro e
no sujeito. É esse processo que lhe torna possível
é caro à análise de discurso: a incompletude. Como
perpassar as diferenças dos distintos processos de
já afirmamos em outros trabalhos, é o caráter in-
identificação sem no entanto perder sua unidade,
completo (a falta, a falha) do sentido e do sujeito a
a de um sujeito que diz. Senão, atravessado por
condição da pluralidade na linguagem. O incom-
múltiplos discursos (e é essa sua realidade), ele se
pleto é também o possível. A polissemia é função
desmancharia em sua dispersão. É isso que signi-
da incompletude e, tal como o estamostratando,o
fica dizer que, assim como o sentido é errático, O
silêncio é um dos modos de compreender a incom-
sujeito é itinerante: ele perpassa e é perpassado
pletude.
pela diferença; habita e é habitado por muitos
A incompletude, por sua vez, tema ver com ou-
discursos, muitas formações discursivas. O que o
tro processo (a rigor, função da relação entre polis-
mantém em sua “identidade” não são, comojá dis-
semia e paráfrase), que é o da “reflexividade”: o gesto
semos, os elementos diversos de seus conteúdos,
de olhar atrás do espelho, ao se ver, quando criança,
de suas experiências diferentes de sentidos, nem
sua configuração: é o seu estar no silêncio. Porque
antes deser palavra o sentidojá foi silêncio. Dito 1 Umsubproduto desse funcionamento historicamente visivel é o fato
de outro modo, todo sentido posto em palavra já de que o olhar do dominado é que é mais sensível à pluralidade do que o
se dispós antes,em silêncio. do dominador. É o dominado que (falha e por isso) precisa do múltiplo
para existir, Para o dominador basta o “um” (o seu), O dominado é que
Essa itinerância do sujeito pode assim ser vista precisa do plural, Õ que se chama “eciatividade” brasileira, entre outras

como efeito da contradição entre formações discur- coisas igualmente interessantes, tem esse aspecto de determinação históri-
ca: o plural necessário doolhar do historicamente coagido. Aqui lembro a
sivas c da própria relação de uma formação discursi- fala de Matraga (G. Rosa, 1951): “o sapo não pula por boniteza mas porém
va comela mesma (sua heterogeneidade). por precisão”,

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para tentar apreender a experiência da produção da Silêncio, exterioridade
própria imagem(refletida) ou descobrir o seu mis-
tério, ou seja, ver-se (ler-se, dizer-se). A ambição de Nointerdiscurso não há lugar para o sujeito, Este,
estar nos bastidores da encenação da identidade, por sua vez, se especifica na formulação, pois nela
Essa relação, na linguagem, só sc dá no/pelo si- ele adquire concretude: o formulado tem sujeito e
lêncio. sentido determinados. Noentanto, é preciso pensar
Não porque o silêncio mostra isso, responde a os processos de mediação histórica. O dizível — do-
isso. Mas porque por ele se percebe um mecanismo mínio do interdiscurso — é o da globalidade dodi-
importante de produção de sentido. Ele é lugar de zer que só adquire especificidade na determinação
apoio teórico para se compreender o efeito ideoló- histórica das diferentes formações discursivas. Estas
gico elementar: o de queo sujeito já está sempre-lá representam domínios do saber historicamente de-
(efeito Munchhausen; Pêcheux, 1975). terminados e que determinam, emsua inscrição,a
É assim que podemos entender o mecanismo da posição do sujeito e a delimitação do sentido. Aí
incompletude como constitutiva do sentido e do su- já há pontos de subjetivação historicamente cal-
jeito. O lugar em que o sujeito “se”significa parasig- culáveis. Às formações discursivas já representam
nificar. O silêncio torna possível esse gesto de inter- recortes do interdiscurso. São regiões de sentidos
pretação mínimo (e nem porisso pequeno), aquele já dimensionados, situados no conjunto do dizível
que nos instala na origem de nós mesmose de nos- e que representam as diferentes determinações do
sos sentidos. Imaginariamente. Aí não interessa se a social, do político e do histórico. Em seu conjunto
interpretação fixa ou não fixa,se é engano ou nãoé. elas constituem o interdiscurso. Ninguém tem pois
O que importa é saber o que torna possível o gesto acesso ao conjunto do dizível (o interdiscurso), só a
da interpretação, o quelhe dá “origem”, porções dele. Se no interior de uma formação dis-
O silêncio fundamenta o movimento da inter- cursiva se pode transitar por construções diferentes
pretação. Ele é o ponto de apoio do giro interpreta- nos processos de significação, esse trânsito aparen-
tivo. Que produz o efeito de sustentação da ilusão temente livre já vem determinado pelo recorte im-
do sujeito como origem de si e dos sentidos: o sujei- presso por uma formação discutsiva no conjunto do
to não se vê como interpretando mas como “dan- dizível. A esses recortes o sujeito não tem acesso; ele
do” sentido. Porque podetestar em silêncio, porque se constitui pelo estabelecimento deles, É assimque
podesignificar em silêncio. se pode entender que a ideologia não tem exterior.
Como também se pode compreender a afirmação
de que o inassertado domina o assertado, o inter-

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discurso constitui o intradiscurso e a exterioridade que em análise de discurso se chama condições de
constitui a interioridade. Aí intervém o silêncio, produção. Mas se esse é um efeito de exterioridade
pois é ele que permite o trânsito do sujeito pelos que apaga o silêncio como lugar do possível (tan-
limites. Desse modo, no silêncio, o sujeito trabalha to do sentido como do sujeito), há um outro, de-
a sua contradição constitutiva (sua relação com o rivado do real dos sentidos e que trabalha justa-
Outro) que o produz na confluência do Um com mente a existência do silêncio como constitutivo
o Múltiplo. Nojogo entre uma formação discursiva da significação em movimento. Porque se há um
e o conjunto delas. É essa relação com a exteriori- efeito de exterioridade (os outros), que é onde se
dade (o Real), tornada possível pela mediação do significa o preenchimento do sentido,há a inscrição
silêncio, que pode nos esclarecer mais um dos as- da exterioridade enquanto prática discursiva da con-
peetos do processo fundamental de constituição da tradição (o Outro), presença da ausência que torna
linguagem, que é a polissemia, A polissemia, nessa a falta possível. O silêncio devolveria assim o senti-
perspectiva, é função dosilêncio, pois ele permite a re- do (e o sujeito) ao movimento (à ruptura, ao deslo-
lação — ainda que indireta e sempre mediada — do camento). Aí o sentido se abre emsentidos e tam-
sujeito com o interdiscurso (a exterioridade). Relação bém o sujeito encontra seu possível.
que produz indistinção, instabilidade e dispersão, Ve- Nessa direção é que vemos tanto a proposta de R.
remos em seguida como isso se dá. Barthes de “trapacear” coma linguagem pela litera-
tura como a da “palavra taciturna” de L. Jenny” Mas
tomodistância de ambas. Senão, vejamos.
Fora da linguagem, nada? Barthes, na procura desse real do sentido, propõe
a desconstrução,
A dimensão ampla da relação entre os sentidos e o Paraesse autor, a linguagem não tem exteriorida-
real merece que se reflita sobre o papel do silêncio de. Isto é, sempre se está ao alcance da mais insidio-
também aí. sa injunção: a injunção ao dizer. Para ele, calar-se já
Já de início é preciso distinguir, no interior da é uma consequência dessa injunção, ou seja, só se
noção de exterioridade, o que é o real e o que é à
realidade. Ai intervém o conceito de interdiscurso
2 Agradeço a Jacqueline Authier que, sabendo da minha reflexão sobre
que provê odizer de uma memória, de uma tradição silêncio, teve o cuidado de me enviar esse livro que, mesmo tendo chegado
de sentidos: o saber dos sentidos. À realidadeaí se no final de mentrabalho,foi essencial para eu compreender melhor mes-
sustenta e toma forma. O sentido se torna, assim, mo afirmações que já havia feito mas com algum receio, Agradeço mais
amplamente as nossas conversas tão estimulantes sobre o “não-um”, a opa-
visível pela instituição, pelo consenso social, É o cidade do olharleitor, a relação teórica entre ideologia c inconsciente.

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cala quando permitido ou exigido (para ele só há o gem enquanto projeto de sedentarização de senti-
silenciamento, a política do silêncio). dos, categorização do significar,
Ainda segundo Barthes, a saída desse poder ins- Assim, compreendemosa afirmação de que a lin-
crito na linguagem só se dá via singularidade mis- guagemnão tem exterior como atestando ofato de
tica (Kierkegaard) ou pelo aymen (Nietzsche). Ca- que não há modode não estar no imaginário quando
valeiros da fé ou super-homens, tanto Kierkegaard se está na linguagem. Diriamos no entanto que à rela-
quanto Nietzsche, embora escrevam, fazem-no ção com silêncio abre fissuras nesse funcionamento,
no movimento reverso da identidade, “no risco do Não há um modo deo sujeito e de o sentido estarem
nome próprio: um, por recurso à pseudonimia, o fora da história, do ideológico, do efeito imaginário.
outro atuando no limite do histrionismo” (Barthes, Mas a tensão entre imaginário e real é atestada pelo
Leçomn, 1978). modo como silêncio trabalha essa relação. No si-
Para Barthes, não resta senão trapacear com a lêncio há pontos de possível (do impossível).
linguagem como o faz a literatura: Jogar com os Vejamos agora o que propõe L. Jenny com sua
signos, mais do que destruí-los, é colocá-los numa palavra taciturna (1990).
“maquinaria” de linguagem[...) instituir, no próprio L. Jenny introduz a questão da utopia — etimo-
centro da língua servil, uma verdadeira heterono- logicamente “sem lugar” mas cuja rotalização à qual
mia das coisas”, aspiraa situa “fora do tempo” — considerando que
É o desconstrutivismo. a palavra encontra a tentação utópica de se abstrair
A minha posição é a de que, curiosamente, O da realidade da abertura por uma infinitização que
desconstrutivismo é proposto por Barthes no inte- pára o tempo. Querendo apreender a utopia da ori-
rior de uma perspectiva em que há absolutização da gem,cla se fecha nos infinitos jogos de espelho da
linguagemverbal como central e determinante dos reflexividade, Isso quanto ao momento que esse au-
processos designificação e em que o silêncio é ape- tor chamade “enunciativo”,
naso silêncio dominado pelo verbal. Quanto ao momento “histórico”, é interessante
O termo “curiosamente” há pouco usado se deve observar que Jenny também faz umacrítica, como f-
ao fato de que Barthes, mesmo sendo semiólogo e zemos, à acentuação, sem eita nem beira, da dialogia
não lingiista, não pensou a importância das outras na forma da interlocução. Porque, “solicitando, por
linguagens, pois se tivesse pensado teria vislumbra- um jogo de diferença, a participação interpretativa
do outras relações de significação e teria intuído o de um outro, ela postula naturalmente uma parti-
silêncio fundador, o silêncio queé significação por lha dos procedimentosdainferência das represen-
excelência e emrelação ao qual se define a lingua- tações. E, ao colocar essa partilha como absoluta, ela

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lhe nega toda distância interlocurória”. Assim, nisso É essa definição discursiva da palavra — que
que chamamos em nossa reflexão de dialogia total, a vê como lugar de uma resistência irredutível a
ela é “tragada pela utopia da comunidade” (Jenny, qualquer fechamento — que assegura que nenhu-
ibid.). Sob pretexto da representação,ela só opera a ma utopia expressiva se cumpra sem que desabe,
repetição de umapartilha representativa “sempre já- ao mesmo tempo, o mundo dalinguagemno qual
estabelecida”, Ela se reduz assim a um solilóguio infi- ela ambiciona ter-se realizado. Aí está o aconteci-
nito (cf. Orlandi, 1991). mento da palavra em perpétuo desdobramento:
Essacrítica se encontra com a que temosfeito a res- palavras que se desenvolvem em palavras indefini-
peito da generalidade comquese têmtratado a enun- damente. Não precisamos pois ser seus guardiães,
ciação (sob o aspecto dialógico) e a retórica (a partir nem proteger sua abertura,
da dominância de um “tu” que reduz o outro, sob a Daí que, para Jenny, a questão é, antes, “de nosso
noção de interação ou interlocução). destino nela”. A nós cabe reconhecer a pluralidade
De nosso ponto de vista, isso se dá pelo modo de “sítios de palavra”, aos quais nos consagra o pre-
como é tratada a questão do sentido sob a domi- sente à fim de aí nos arranjarmos uma mobilidade,
nância de concepções pragmáticas (neopositivis- uma escolha, uma “liberdade de habitação”. Nesse
tas) da linguagem, tal como essas concepções vêm ponto é que ele propõe a palavra taciturna”, para
sendo praticadas academicamente pelos lingiiistas não perderde vista a fala como acontecimento.
e seus congêneres. Citando Gianni Vattino (Lafin de la modernité,
Também para L. Jenny, como para nós, há no 1987), ele identifica três tipos de formas contempo-
entanto um outro momento, o momento “discur- râneas da arte e da morte da arte: a utopia (esteti-
sivo”, que pode ser o momento em quese instala zação geral da vida pela cultura da mídia), o kiisch
umadiferença. (auto-ironização do estatuto da arte) e o silêncio
O que ameaça o momento discursivo, diz Jenny (suicídio de protesto). Desse modo,a arte, ela pró-
(ibid.), é “o desejo de esgotar as possibilidades for- pria, estaria conduzindo, por essa trilogia, ao decli-
mais da fala”, ou seja, são as utopias da totalidade. nio do futuro da palavra.
Maso que o salva dele mesmo, segundo esse autor, No entanto, Jenny contesta esse declínio, em
é a sua “transitividade”, já que cada um de seus mo- particular o que diz respeito ao silêncio.
mentos se antécipa sobre a atualidade seguinte e cla Não é todo silêncio, diz ele, que deve ser com-
aparece não como o instrumento da abertura mas preendido como uma “negação ou um suicídio de
como essa torsade (espiral?) em que a abertura se protesto” Aí ele se encontra com o que dissemos
dá como um processo de formas. do sentido positivo dosilêncio (seja fundante, seja

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pois sabe quea “origem”sobre a qual ela se inclinase inver-
constitutivo): A intimidade essencial da fala com o te e se ultrapassa comela, Essencialmente transitiva,.
silêncio, diz Jenny.
A necessidade dessa prática taciturna vem da ex-
|.) pleiteia a positividade de uma expressão senão si-
cessiva abundância de significações que caracteriza
lenciosa ao menostaciturna. Pois não há palavra que não
esteja trançada com silêncio do qual, ao mesmo tempo, o nosso tempo: o tempo todo disponível e amplifi-
ela procede e estende depois desi. Toda proferição vibra cada ao infinito, essa disponibilidade é uma indis-
com a indistinção de um não-dito que é também seu re- ponibilidade radical. Sim, pois a “profusão dessas
curso rítmico. É da forma particular desse não-dito, de significações as torna insignificantes para nós diz
suavibração específica nas franjas do enunciado, que par- o autor, porque se perde “o tempo de sua proveniên-
tirá de novo a cada vez o projeto do dizer. cia” (se abrevia sua historicidade) e não podemos
“ver vir” umasignificação antes de sermos cativa-
O que diz Jenny não está longe das noções que dos pelos seus prestígios. O que pede Jenny, como
desenvolvi neste trabalho e que se referem à positivi- pedíamos contra a ideologia do exílio do silêncio
dade do silêncio, à idéia de projeto do dizer, ao fato (mais acima), é que se restitua uma temporalidade
de que a palavra é tecida de um silêncio que significa da palavra que não estamos mais podendo acolher.
em seu fundamento e que ela desdobraa partir desi, Se até aí estamos junto com Jenny, a partir daí
a idéia do silêncio como“franja” do enunciado. nos distanciamos. Porque esse silêncio aparece,
É assim que Jenny acaba por propora palavra ta- em Jenny, como exercido intencionalmente (como
citurna: proposta) e especificamente naarte, comolugarde
resistência. Para nós, os mecanismos de silêncio,
Tornar sensível esse silêncio ao mesmo tempo em que como procuramos mostrar, embora sejam de resis-
se fala é aprofundar na fala um tempo de suspensão c de tência, não são nem tão intencionais, nem se res-
contemplação, de mudança e devôo,queestá ainecessaria-
tringem à arte. Estão ondeestá a linguagem, onde
mente implicada, Essa prática da palavra é rebelde a toda
totalização utópica: ela não visa nem o acabamento final)
estão as palavras, onde está a significação: estão
nem a produtividade infinita. Não é tampouco nostálgica onde estão os sujeitos e os sentidos, e mudam de
lugar e transitam todo o tempo. Como dissemos,
um objeto simbólico posto emcirculação produz
4 Lembrar aqui oque dissemos sobre a cópia, o meio-plágio: pressupõe-
se que se não dissermos 2 totalidade, não explicitarmos “tudo”, algo fica sentidos indefinidamente, Também desses sentidos
como não-dito e outra pessoa poderá dizê-lo comose já não estivesse sig- (do silêncio) não precisamos ser os guardiães. Di-
nificado pelo não-dito. É a injunção do muito cheio da autoria. O autor
onipotente e onipresente que deve tudo dizer, Não se dá espaço ao silên- ficilmente escapamos aos sentidos tal como eles se
cio, à contemplação, à falta e à refiexão.

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apresentam e se representam. E eles não são porisso portantes da análise de discurso, a de colocar como
uma ameaça: são antes um convite à vida, à expe- base de sua teorização esse movimento necessário
riência, à história, à interpretação. entre o um c o plural, a unidade e a dispersão, como
Vale a pena aí lembrar: toda palavra é capaz de pares necessários a que eu acrescentaria o mesmo e
poesia; todo sentido é capaz desilêncio, Como diz o diferente, a paráfrase e a polissemia,
Milner (1978), nada da poesia é estranho à língua A partir do reconhecimento dessas bordas do
(porque separar a arte?) e nenhuma língua podeser discurso, A. Lecomte (idem) fala sobre o fato de
pensadase aí não se integra a possibilidade de sua que há um significante impossivel que é rejeitado.
poesia, Assim é com silêncio. Não se pode pen- São os limites de cada formação discursiva, Sua per-
sar o sentido sem silêncio. Todo sentido é capaz de gunta então é: “em que lugar outro ele vai exercer
silêncio. Não há, diríamos, parafraseando Milner, seus efeitos?”
língua sem poesia e (sentido) sem silêncio. Jogo entre conjunto aberto (conjuntos com
bordas mas não contendo suas bordas: enunciados
cuja fronteira só é dizível se se incluir, sob certo
O que é preciso não dizer: a incompletude modo, seu outro) e conjuntos fechados (enuncia-
constitutiva dos com bordas mas contendo suas bordas), esse
lugar outro, a meu ver, é o trabalho do silêncio. É
Poraí chegamos ao que, no desenvolvimento desta aí, no lugar do impossível, e no da suspensão da
reflexão, tratamos como o “silêncio necessário”, ou contradição, que se dá a possibilidade de o dizer
seja, o que é preciso não dizer para dizer. Talvez seja vir a ser outro.
interessante fazer apelo aqui ao que À. Lecomte É esse modo de concebera relação com o ou-
(1981) expõe ao falar das “interdições”: “essas inter- tro — onde podemos distinguir tanto o impossível
dições nos dão umperfil de umcerto inconsciente para uma formação discursiva em relação a outra,
do discurso”: o que não se pode dizer”. como o impossível para o conjunto de formações
Esse silêncio — o que não se pode aí dizer — é o discursivas — pelo silêncio (e não pelo implícito)
indício das “bordas” do discurso, e é “em torno des- que desaloja a noção de “alteridade” da perspectiva
sas bordas, é tomando apoio em seuefeito que se vai dialógica que se assenta sobre o segmental,
executar a fantástica sinfonia do um e do infinito, É assim que entendemosque esse movimento do
do singular e do disperso”, sentido, o desdobrar-se do sentido em sentido, in-
Não podemos deixar de observar, antes de con- definidamente, é função do silêncio,
tinuar, que essa é uma das contribuições mais im-

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lho (Orlandi, 1990), também a desorganização é
O silêncio e seus efeitos
constitutiva do sentido e da identidade.
Desse modo, podemos chegar a nossas conclusões. + Compreender o silêncio além da divisão explíci
Se algum ganho houve nesse percurso que fizemos, to/implícito ou pressuposto/subentendido nos
ele pode ser formulado em duasdireções: faz ver que a relação com o não-dizersc abre
para um espaço de recorrência de processos de
1. Compreender a censura além da idéia de interdi- significação muito mais complexos e que nãoes»
ção redutora, ouseja, aquela que só vê a censura tacionam apenas em um dizer que está à espera
na relação com o implícito (que não deve ser dito) de explicitação. Pelo estudo do silêncio tal como
quandonarealidade a censura é um processo que o encaminhamos, podemos dizer que, assim co-
não trabalha apenas a divisão entre dizer e não- mo o efeito de sentidos institui uma sobra que é
dizer mas aquela que impede o sujeito de traba- o sentido “literal”, há um efeito produzido pela
lhar o movimento de sua identidade e elaborar a relação do silêncio com o não-dito cuja sobraé
sua história de sentidos; a censura é então enten- o “implícito”, Sentido literal e implícito são, em
dida como o processo pelo qual se procura não nossa perspectiva,efeitos. O que fizemos foi ir ao
deixar o sentido ser elaborado historicamente lugar teórico da produção desses efeitos.
para ele não adquirir força identitária, realidade
social etc. Isso só pode ser apreciado pensan- Se o efeito daliteralidade dá ao sujeito a impres-
do-se a relação com o silêncio. Por outro lado, são de que o sentido é “um” (ou pelo menos estável,
a censura, cla mesma, funciona como um simu- permanente), o efeito do implícito produz a im-
lacro do silêncio e dessa forma ela o “objetifica” pressão de que a incompletude é relativa (no jogo
(coisifica-o), impedindo gue ele exerça sua força do dito e não-dito) e, portanto, remediável,
desorganizadora. Assim, ao conduzir o silêncio Ambos os efeitos jogam na impressão da reali-
às outras palavras (que não podemser ditas), a dade do pensamento (domesticação da relação da
censura o faz de forma a defini-lo, circunscrevê- linguagem com a exterioridade) e na de que o su-
lo; mas, pelo próprio gesto de fazê-lo, devolve- jeito pode sempre ter acesso ao indizível (estabili-
lhesua fluidez; ondeele produz seus desligamen- zação da história pela “vontade”, pela “intenção”.
tos, descontinuidades em seu modo de significar Em todas essas impressões prevalece a idéia de
c ressignificar, perdendo seu caráter organizador, que o sujeito podeatravessar as fronteiras do saber
caudatário de seu atrelamentoàs palavras. Como e do poderpela sua força de vontade (onipotência
já tivemos a ocasião de afirmar em outro traba- cristã, voluntarismo), e completar o dito.

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Com silêncio, ultrapassa-se o sentido do não- regras (ilusão do linguista). O real discursivo, por
dito comoaquilo quese pode dizer mas nãoé preci- sua vez, incide sobre a matéria significante, que é
so, ou o não-dito que exclui, para se atingir o fun- lingiiística e histórica, e seu efeito, que advém do
cionamento da significação em que estão em jogo silêncio, é o de que sempre há sentido. Ilusão his-
a constituição mesma do processo designificar e o tórica do jogo das formações discursivas, da rela-
ponto de efeito discursivo de onde falamas “outras” ção do discurso coma exterioridade. Efeito de um
palavras. imaginário quese assenta na necessidade que tem
Podemos então pensar o funcionamento do si- o sujeito de sempre “dar” e “ter sentido”, já que,
lêncio nadistinção entre: a) a realidade que é o que como animal simbólico, ele está condenadoa sig-
se chamade contexto de situação; b) do real do dis- nificar, a interpretar, Difícil lhe é suportar o não-
curso que é o silêncio e que nos indica que o sentido sentido.
pode sempre ser outro; c) da noção de exterioridade É questão crucial, para a análise de discurso, a
tal comoela funciona na análise de discurso e que diferença (e a relação) entre o não-dito e o não-sen-
se representa, no trabalho dosilêncio, na produção tido. O não-dito é o que pode (ou não) significar.
do interdiscurso, que é o efeito da relação da mate- O non sense, para Pêécheux, é fundamental para a
rialidade histórica com a da língua, resultando na ruptura, o novo, o outro sentido: “de modo que o
“memória” do discurso, seu “saber”; a relação do irrealizado advenha formando sentido do interior
discurso com o real, do não-sentido” (Pêcheux, 1982). À análise de dis-
O interdiscurso, como sabemos, resulta do jogo curso se ocupa dessa passagem do não-sentido ao
das formações discursivas à dominante e representa sentido. E aí, percebida na relação como silêncio,
na análise de discurso o fato de que ça parte, avant a ideologia aparece como o imaginário necessário
et aillenrs. É aí que se podem compreender tanto que, pelas sua falhas, permite o deslocamento.
o silêncio (fundante) que torna possível o signifi- Assim, aqui se afigura necessário distinguir isso
car quanto a incompletude enquanto condição do que estamos chamando de efeito que sc produz so-
múltiplo: “falamos tudo e ainda há o quesilenciar” bre o não-sentido e o que dissemos sobre o efeito
(C. Vogt, 1982). que se constitui sobre o não-dito.
Seo rcal da línguaé o sistema significante e o do Comojá dissemos anteriormente, pode-se fazer
discurso é o siléficio como constitutivo da sigaifi- coincidir, ilusoriamente, o silêncio com o não-dito
cação, é preciso ainda acrescentar que não se pode enquanto filiação necessária ao interdiscurso e aí
deixar de distinguir, em consequência, que o real o que não se diz aparece identificado ao já-dito,
formal produz o efeito imaginário do sistema de portanto desnecessário de dizer; mas se pode con-

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qual do Análise de discurso e silêncio
siderá-lo, por outro lado, no modo pelo
pois como
não-sentido se faz sentido. Vejamos Finalmente, pelo que pudemosentendernessa pers-
isso se dá.
que o ho- pectiva de estudo do silêncio, pensamos podersituar
Como há injunção à interpretação, já
atribuir com mais precisão a análise de discurso que pratica-
mem é um ser simbólico, a tudo ele deve
, como afirma- mos e que deriva da Escola Francesa da Análise de
sentido. Tudosignifica. Por outro lado
das for- Discurso: aquela que não explica, nem serve para
mos inúmeras vezes, estar em silêncio é uma tornarinteligível ou interpretaro sentido, mas que
emos nos
mas de estar no sentido, Desse modo, pod
sentido. nosleva a melhor compreender os processos de sig-
iludir com o fato de que estamos sempre no
sabemos que nificação, o modo de funcionamento de qualquer
Pela análise de discurso, no entanto,
s formações exemplar de linguagemparasignificar. Com efeito,
:sso nãoé assim. E é do jogo das múltipla a relação que a análise de discurso estabelece com
nos resulta
discursivas em seus limites moventes que
o diss emos . Assim, o texto não é para dele extrair um sentido mas sim
essa ilusão do tudosignificar, com para problematizar essa relação, ou seja, para tornar
O sen-
não só nos iludimos quando imaginamos que visível sua historicidade e observara relação desen-
formação
tido só pode ser aquele (inscrição em uma
quan do, pelo jogo tidos que aí se estabelece, em função do efeito de
discursiva determinada) como unidade. Sim, porque é no texto* — produzido na
es form a-
entre diferentes sentidos (entre diferent relação de dominância do todo sobre as partes —
ntidos (pelos
ções discursivas), nos imaginamos gara
sentido. que se constróio sentimento de unidade do discur-
outros sentidos) pela sempre presença de
sentido e a so. Assim, a análise de discurso — na compreensão
Ambasas ilusões, a de que sempre há
bido, são de umfato de linguagem qualquer — não funciona
de que o não-dito é 0 desnecessário, o já-sa
ante com o silên cio, como uma “metalinguagem”, mas antes como um
sustentadaspelarelação signific discurso “relatado” pelo político na sua dimensão
entr eO
Sem entender a diferença, fundamental,
c o silêncio simbólica,isto é, a queindica que o sentido é dividi-
modo designificar da linguagem verbal
ção bási ca do silên- do em diferentes direções quea história determina.
não se pode compreendera posi Comojá tivemos a ocasião de afirmar,as palavras,
efeitos, em
cio na produção dos sentidos e de seus
condição de na perspectiva da análise de discurso,já são sempre
que, corho dissemos, ele aparece como
também torna a discursos na suarelação comos sentidos.Isso querdi-
divisão; da política do dizer, mas
sentidos.
linguagem capaz do múltiplo, dos muitos 4 E aqui também joga um cfeito necessário, O da linearidade:
o enun-
apresent a como unidimen sional na sua textuali dade enquant oo
ciado se
sentido, na verdade, parte em todas as direções.

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do ideológica. É isso que Pêcheux diz (1975) quando
zer que toda palavra, para significar, tira seu senti
ente. afirma: “O discursivo só pode ser concebido como
de formulações que se sedimentam historicam
um processo social cuja especificidade reside no
Todapalavrarefere ao discurso no qual significa ou
tipo de materialidade de sua base,a saber, a mate-
significou. Dito de forma mais incisiva: toda pala- rialidade linguística”.
vra é atestação do interdiscurso, Uma palavra por No entanto, a compreensão desse fato me pa-
,
outra, que é próprio dofuncionamento discursivo
seja, ideo- rece vir acompanhada de outra, necessariamente,
significa assim um discurso por outro. Ou
da quando se pensao silêncio: a de que a análise de
logia. Se é essa a condição de funcionamento
nossa s palav ras; discurso não pode se inscrever entre as disciplinas
linguagem — não falamos só com
que exercem irrestritamente (violência da?) inter-
habitamos o equivoco necessário —, a relação do
pretação, O silêncio indica o limite da interpreta-
silêncio é com outro(s) discurso(s) inscrito(s) nas
ção e acompanha a concepção do movimento dos
palavras. Porisso, a proposta que bem define a aná-
sentidos e dos sujeitos: incompletos e abertos para
lise de discurso é a que a pensa como um programa
se tornarem outros. A interpretação — comoa ilu-
de leitura particular: a que vê em todo texto à pre-
são da unidade e da completude — tem sua função,
sença de um outro texto necessariamente excluído
mas é apenas parte do funcionamento darelação do
mas que o constitui. Princípio discursivo de base
homem com o simbólico: se sentido e sujeito estão
que coloca como seu fundamento à articulação en-
em constante movimento, a interpretação é parte
tre unicidade c duplicidade. Aí está a ideologia em
desse movimento, não algo exterior a cle, não po-
pleno funcionamento: no que necessariamente se
u- dendo,pois, regulá-lo de fora. A análisc de discurso
silencia. Diríamos, em consegiiência, que a “leit
de mostra assim um seu aspecto paradoxal: ela é uma
ra” em análise de discurso, não pode prescindir
disciplina interpretativa mas reconhece os limites
um lugar teórico para o funcionamento do silêncio.
da interpretação e procura desmanchar o caráter li-
Esselugar, por suavez, implica reconhecer o estatu-
near dela. Isto é, a análise de discurso é um exercício
to do que chamamos “materialidade” (dossentidos)
permanente das bordas da interpretação” Por isso
na análise que propomos (seja da linguagem, seja
se propõe não a interpretar masa compreender os
dosilêncio). Poisé pela noção de materialidade que
odemosintervir nãilusão de transparência (efeito s Os limites, suas contradições e seus deslocamentos, essa matéria de re-
um
de literalidade), pensando então a língua como flexão é constante na análise de discurso c isso está muito presente no seu
sistema não de formas abstratas, mas material, ou
autor mais expressivo, do qual cito aqui um fragmento do seu livro Semán-
sica e discurso (1989); “ninguém pode pensar do lugar de quem quer que
seja, espaço de manifestação das relações de força e seja: primado prárico do inconsciente que significa que é preciso suportar
de sentidos que refletem os confrontos de natureza o que venha a ser pensado, isto é, é preciso ousar pensar por si mesmo”,

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o.

e que
siva, pois é o funcionamento da paráfras
processos de significação que sustentam à interpre- configura o espaço da formação discursiva
como
tação e que mostram seus contornos instáveis. o espaço do “mesmo” no processo deidentifica
ção
Eudiria mesmomais do queisso, É essa concep- do sentido, já que, ao identificar o sujei to, o me-
ção discursiva da interpretação e suas bordas que canismo da paráfrase lhe dá, ao mesmo temp
o,à
nos permite compreender tendências diferentes impressão da estabilidade do sent ido, da perm a-
em teorias como a psicanalítica, a da história das nência de seu “conteúdo”, À própria iden tida de
mentalidades, a da crítica genética etc. Em suma, é é função do eterno movimento entre pres
ença €
umaconcepção discursiva da interpretação que tOr- ausência, entre o um e o múltiplo, em cuja
base,
na possíveis essas diferentes tendências. Aqui no- como vimos, está o silêncio significan te.
vamente intervém a afirmação de Pêcheux (1969) A análise de discurso é enfim uma relação com
a
de que “a teoria do discurso não pode de nenhum linguagem: relação em que não se mantém a disti
n-
modo se substituir a umateoria da ideologia, assim ção forma/conteúdo mas antes se pensa à ques tão
como não pode se substituir a uma teoria do in- da sua materialidade que é linguística e histó
rica e
consciente, mas ela pode intervir no campo dessas na qual se pode pensaro silêncio em sua impo rtân -
teorias”, r, nesse
cia fundamental. E se assim é, vamos deixa
Retornando, agora, ao que a reflexão sobre o si- ponto, que os sentidos da reflexão que ela nos
pro-
lêncio nos permite compreender do discurso e da põe façam seu percurso, acolham o tempo de
sua
produção dos sentidos, podemos entender melhor proveniência,e se devolvam a seu silên
cio. Porque é
fora
o fato de que, na perspectiva discursiva, a metá nele que estão os outros sentidos.
(etimologicamente “transferência”) é a condição de
existência do sentido:

De fato, o sentido existe exclusivamente nas relações


de metáfora (realizadas em efeitos de substituição, pará-
-
frases, formações de sinônimos), das quais certa forma
mais ou
ção discursiva vem a ser historicamente o lugar
propo sições
menos provisório: as palavras, expressões e
per-
recebem seus sentidos da formação discursiva à qual
tencem. (Pécheux, 1988)

E aí a paráfrase é essencial, nessa sua relação com


a metáfora € à constituição da formação discur-
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As formas dosilêncio tem comofio condu- ||


tor a apresentação dos sentidos do silêncio, e |
é isto que o estudioso da linguagemencon- Ê
trará aqui, desenvolvido com a cautela de |
quem cuida de explorar os entremeios tanto
das. disciplinas como das diferentes teorias
dalinguagem,procurando, no entanto, uma
especificidade
1E Silêncio que atravessaas palavras, que existe
PE entre elas, ou queindica queo sentido pode
IE sempre ser outro, ou ainda que aquilo que À)
éO mais importante nuncase diz; todosesses À
modosdeexistir dos sentidos e do silêncio E]
nos indicamque este é fundante. Sendo as-
sim, nessareflexão, a autora procuraindicar
as várias pistas pelas quaisse chegaaoprin-
cpio dasignificação,
Dn dn EE = —

ISBN 978-85-268-0755-6

9 O)

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