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do silêncio
CH
No movimento
dos sentidos
EDITORA
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1. Linguagem-Filosoha 401
2. Silêncio Do I.ç6
3. Sentidos « sensações I52-1
2º reimpressão, 2011
Editora da Unicamp
Rua Caio Graco Prado, jo = Campus Unicamp
cer 13083-892 - Campinas - sp — Brasil
Tel.'Fax: (19) 3511-7718/7728
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SUMÁRIO
INTRO DICAsasda
Sitêncios E RESISTÊNCIA
INTRODUÇÃO
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14 | AS FORMAS DO SILÊNCIO
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balho no processo de significação. É a partir desse Isso lhe permite conceber, diferentemente das ciên-
ponto de vista que gostaríamos de situar algumas «ii sociais, o que é e como funcionaa ideologia (pela
questões fundamentais para quem trabalha com o io transparência da linguagem: leia-se pela tomada
discursivo. Não devemos, por outro lado, esquecer vm consideração da materialidade lingitística), ao
que, embora as noções de imaginário, real e sim- msmo tempo em que desloca o conceito de língua
bólico estejam definidas como tal no campo da cmi sta autonomia absoluta (como é vista na lingiiís-
psicanálise, o modo comoa análise de discurso vai tiva) para a autonomia relativa (pensando a mate-
articular essas três noções é próprio de seu campo Hialidade histórica). Daí ser a análise de discurso por
específico. Essa especificidade está em que a articula- rle proposta distinta da análise de conteúdo c da
ção dessas três noçõesse dá, na análise de discurso, iúlisc linguística.
em relação à ideologiae à determinação histórica € O funcionamento do silêncio atesta o movimen-
não ao inconsciente, como é o caso da psicanális
e. to do discurso que se faz na contradição entre o
Isso produz um certo deslocamento no modo de um” e o “múltiplo”, o mesmo e o diferente, entre
pensaressas noções em suas posições relativas, par- paráfrase e polissemia. Esse movimento, por sua
ticularmente em relação ao que a análise de dis- vca, mostra o movimento contraditório, tanto do
cutso trata no domínio do imaginário e dos efeitos wijcito quanto do sentido, fazendo-se no entremeio
da evidência, produzidos pelos mecanismos ideo- entre à ilusão de um sentido só (efeito da relação
com o interdiscurso) e o equivoco de todosos sen-
2=
lógicos.
Tomando Pécheux como referência básica para tidos (efeito da relação com a lalangue). Embora
entender a análise de discurso da escola francesa, mão trabalhasse, como trabalhamos, com o silêncio,
podemos dizer que o que singulariza o pensamento Pécheux conduziu com maestria, ao longo de sua
desse autor,e estabelece consequentemente a susten-
tação fundamental da análise de discurso, é o lugar | M. Pêcheux (1969, p. 110): “Nous soulignons encore une fois que la
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20 | AS FORMASDO SILÊNCIO
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Falar em “efeitos de sentido” é pois aceitar que se logia. Por que, diz ele, falamos a mesma línguae
está sempre no jogo, na relação das diferentes for- lalamos diferente?
mações discursivas, na relação entre diferentes sen- É assim que podemos compreender o silêncio
tidos. Daí a presença do equivoco, do sem-sentido, fundador como o não-dito que é história e que,
do sentido “outro” e, consequentemente, do inves- dada a necessária relação do sentido com o imagi-
timento em “um”sentido. nário, é também função da relação (necessária) en-
Aí se situa o trabalho dosilêncio. tre línguae ideologia. O silêncio trabalha então essa
Essa relação entre os processos discursivos e a necessidade.
língua está na base da compreensão do imaginário Se a linguagem implica silêncio,este, por sua vez,
como necessário. Os processos discursivos se de- éo não-dito visto do interior da linguagem. Não é o
senvolvem sobre a base dessa estrutura (a língua) nada, não é o vazio sem história. É o silêncio signi-
e não enquanto expressão de um puro pensamen- ficante. Vale aliás a pena redizer, nesta introdução,
to, de uma pura atividade cognitiva que utilizaria o que scrá dito em muitas partes desta reflexão: o
“acidentalmente” os sistemaslingúísticos (Pêcheux, fato de que a relação silêncio/linguagem é comple-
ibidem). Daí que discurso não é a fala, isto é, uma xa, sem deixar de sublinharainda umavez que, no
formaindividual concreta de habitar a abstração da entanto, em nossa reflexão, o silêncio não é mero
língua. Ele não tem esse caráter “antropológico”, Os complemento de linguagem. Ele tem significância
discursos estão duplamente determinados: de um própria, E quando dizemos fundadorestamosafir-
lado, pelas formações ideológicas que os relacio- mando esse scu caráter necessário e próprio. Funda-
nam a formações discursivas definidas e, de outro, dor não significa aqui “originário”, nem o lugar do
pela autonomia relativa da língua. sentido absoluto. Nem tampouco que haveria, no
Desse modo,se o lingitista pode dizer quea lin- silêncio, umsentido independente, auto-suficiente,
gua é indiferente ao discurso, pois tem sua auto- preexistente. Significa que o silêncio é garantia do
nomia relativa, ela se rege porleis internas, o ana- movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do
lista de discurso dirá no entanto que o discurso silêncio O silêncio não é pois, em nossa perspec-
não é indiferente à língua. É o que diz Courtine tiva, o “tudo” da linguagem. Nem ideal do lugar
(1982) quando afirma que o discurso materializa “outro”, como não é tampouco o abismo dos sen-
o contato entre o ideológico e o lingiúístico, pois
ele representa no interior da língua os efeitos das 3 Éimeressante observar, em relação a essa importância fundamenta! do
silêncio, o fato de que a expressão “algo calou fundo em X” mostra bem
contradições ideológicas e manifesta a existência a seu sentido dúplice: calar = nãodizer, e, no caso, calar = impreguaro
da materialidade lingiiística no interior da ideo- sujeito X daquele sentido.
Apreendendoo silêncio
28 | AS FORMAS DO SILÊNCIO
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quer que ele seja). O homemestá irremediavelmen- mente não os produtos masos processos de significa-
te constituído pela sua relação com o simbólico. pão, isto é, o discurso.
Numacertaperspectiva, a dominante nos estudos Então,ao invésdepensarsilêncio comofalta, pode-
dos signos, produz-se uma sobreposição entre lin- mos, ao contrário, pensar a linguagem como excesso,
guagem (verbal e não-verbal) e significação. Essa possibilidade, aliás, já está tematizada na
Disso decorreu um recobrimento dessas duas no- linguagem corrente em expressões que se opõem,
ções, resultando uma redução pela qual qualquer maté- como as que seguem:
ria significantefala, isto é, é remetidaà linguagem (so-
bretudo verbal) para que lhe seja atribuído sentido. Estar em silêncio/Romper o silêncio
Nessa mesma direção, coloca-se o “império do Guardar o silêncio/Tomara palavra
verbal” em nossas formas sociais: traduz-se o silên- Ficar em silêncio/Apropriar-se da palavra
cio em palavras. Vê-se assim o silêncio como lingua-
gem e perde-se sua especificidade, enquanto maté- Nelas se pode perceber o silêncio como o estado
ria significante distinta da linguagem. primeiro, aparecendo a palavrajá como movimento
Revendo o dilema entre Semiologia e Lingiiís- em torno,
tica — qual contém qual? —, podemos colocá-lo Na perspectiva que assumimos, o silêncio não
como um falso dilema, pois pressupõe a domi- fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor:no silên-
nância da linguagem verbal: toda linguagem está cio, o sentido é.
repassada de linguagem verbal ou, como se diz, Podemos mesmo chegar a uma proposição mais
todo sistema de signos (de qualquer natureza) é forte, invertendo a posição que nos é dada pelo
atravessado (interpretado) pela linguagem verbal. senso comum (e sustentada pela ciência), na qual
São pensadas aí as várias linguagens, sem, contudo, a linguagem aparece como “figura” e o silêncio
se conceder um lugar mais decisivo a seuexterior. como “fundo”, Desse modo, podemos dizer que o
Sendo a relação do homem com o sentidouma re- silêncio é que é “figura”, já que é fundante. Estru-
lação necessária, o significar não tem exterior; no turante, pelo avesso. Fazendo-se um paralelo com
entanto, se concebemoso silêncio tal como estamos o que diz Hjelmslev (1943) a propósito dos três
propondo, a linguagem tem. níveis, o da substância, o. da forma e o da matéria
Só se pode pensar o silêncio, sem cair na armadi- (sens), é no nível dessa última que localizamos o
lha dessa relação, quando se pensa o “avesso da es- silêncio fundante,
trutura”, sem o binarismo, sem as oposições e regras Constitutivo emprimeira e múltiplas instâncias,
estritas e categóricas. Quando se pensam radical- ele tem primazia sobre as palavras,
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À linguagem, por seu lado,já é categorização do O eco: repetição, não-finitude, movimento con-
silêncio. É movimento periférico, ruído. tínuo. Também fresta para ouvi-lo, Som.
O desejo de unicidade que atravessa o homem é Se nosvoltamos agora para a história das palavras,
função da sua relação como simbólico sob o modo encontramos a etimologia de silentium, referida a
do verbal. silens, que significa: que se cala, silencioso, que não
À linguagem é conjunção significante da existên- faz ruído, calmo, que está em repouso, sombra etc.
cia e é produzida pelo homem, para domesticar a Algumas observações a respeito do uso dessa
significação. palavra são interessantes. Embora na época clássica
A fala divide o silêncio. Organiza-o. O silêncio não houvesse diferença de sentido entre síleo e taceo
é disperso, e a fala é voltada para a unicidade e as (calar), primitivamentesileo não designava propria-
entidades discretas. Formas. Segmentos visíveis e mente “silêncio” mas “trangiiilidade”, ausência de
funcionais que tornam significação calewlável. movimento ou ruído: “Estar em silêncio” = “Estar
Se tudo isso pode ser dito a propósito da lingua- quieto”, Empregava-se sifeo para falar de coisas, de
gem, falar do silêncio traz, em si, uma dificuldade pessoase, especialmente, da noite, dos ventos e do
maior, já que ele se apresenta como absoluto, conti- mar. Silentium, mar profundo. E aí deparamos com
nuo, disperso. o aspecto Íuido líquido do silêncio,
O silêncio não está disponível à visibilidade, A nossa metáfora aproveita esse impulso etimo-
não é diretamente observável, Ele passa pelas pa- lógico. Como para o mar, é na profundidade, no
lavras. Não dura. Só é possível vislumbrá-lo de silêncio, que está o real do sentido. As ondas são
modo fugaz. Ele escorre por entre a trama das apenas o seu ruído,suas bordas (limites), seu movi-
falas. mento periférico (palavras),
Paratratar da questão dósilêncio,já que é impos- À linguagem supõe pois a transformação da ma-
sível observá-lo (organizá-lo), podemos usar duas téria significante por excelência (silêncio) emsig-
ordens de metáforas: a do mare a do eco. nificados apreensíveis, verbalizáveis. Matéria e for-
Em ambas jogama grande extensão e umcerto mas, À significação é um movimento. Errância do
movimento que retorna e, ao mesmo tempo, pro- sujeito, errância dos sentidos.
duz um deslocamento. “O final da onda que o mar preciso insistir que a matéria significante do
sempte adia” silêncio é diferente da significância da linguagem
O mar: incalculável, disperso, profundo, imóvel (verbal e não-verbal). Ao tornar visível a significa-
em seu movimento monótono, do qual as ondas ção, a fala transforma a própria natureza da signi-
são as frestas que o tornam visível, Imagem. ficação.
Essadiferença de natureza podeser mais bempen- sua relação fundamental com silêncio, ele apaga
sada se consideramos a articulação entregestoe silên- uma das mediações que lhe são básicas.
cio, enquanto expressividade, Desse modo,a partir da elisão dessa mediação,
Também a gestualidade, a relação com o corpo, estabelecem-se e desenvolvem-se as reflexões que te-
está orientada pela fala. Quando alguém se pega em matizam a relação linguagem/pensamentoe lingua-
silêncio, rearranja-se, muda a “expressão”, os gestos. gem/mundo (sociedade) e que atribuem funções
Procura ter uma expressão que“fala”, É a visibilidade que confirmam a centralidade da linguagem.
(legibilidade) que se configura e nos configura. Alin- De nossa parte, proporíamos um deslocamento,
guagemse constitui para asseverar, gregarizar, unifi- um descentramento da linguagem, que permitiria
car o sentido (e os sujeitos). refletir sobre um outra relação, anterior, a meu ver,
Quer dizer: a identidade — coerência, totalida- a esta, e mediadora:
de, unicidade — produzida pela nossa relação com
a linguagem nos faz visíveis e intercambiáveis (fa- mundo (sociedade)
miliares à espécie humana). Linguagem / silêncio
O silêncio, de seu lado, é o que pode transtornar pensamento
a unicidade. Não suportando a ausência das pala-
vras — “por que você está quieto? O que você está Quando não falamos, não estamos apenas mu-
pensando?”—, o homem exerce seu controle e sua dos, estamos em silêncio: há o “pensamento”, a in-
disciplina fazendo silêncio falar ou, ao contrário, trospecção, a contemplação etc.
supondo poder calar o sujeito. O nosso imaginário social destinou um lugar su-
Isso resulta de um imediatismo tanto mais acen- balterno para o silêncio, Há uma ideologia da comu-
tuado quanto mais vem em linha reta da tradição nicação, do apagamento dosilêncio, muito pronun-
da racionalidade: o claro e distinto. O homem — ciada nas sociedades contemporâneas.Issose expressa
tendo de responder à injunção de transparência e pela urgência do dizer e pela multidão de linguagens
objetividade — não se dá o tempo de trabalhara a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo
diferença entrefalar c significar. tempo, espera-se que se estejam produzindo signos
Para nosso contexto histórico-social, um homem visíveis (audíveis) o tempo todo. Ilusão de controle
em silêncio é um homem sem sentido, Então, o ho- pelo que “aparece”: temos de estar emitindo sinais
mem abre mão dorisco da significação, dasua amea- sonoros (dizíveis, visíveis) continuamente.
ça e se preenche: fala. Atulha o espaço de sonse cria Não acreditamos que tenha sido sempre assim. A
a idéia de silêncio comovazio, comofalta. Ao negar nossa hipótese é a de que há, na relação coma lin-
mito tragédia filosofia Ciências e ele atua na passagem (des-vão) entre pens
amento-
não há
palavra-e-coisa. Tambémaqui se verifica que
Humanas e Sociais
.
a- uma relação termo a termo entre esses domínios
No mito, a significação prescinde da explicit Para terminar, ainda uma vez Saussure,
tragé-
ção cabal de seus modos designificar. Já na Ao tomarmos o silêncio como objeto de
reflexão,
lugar.
dia, essa explicitação começa a alargar seu não o fizemos sem pensar no mestre genebrin
o que
Electra,
Podemos pensar, por exemplo, no 7x/t de aliou em si duas formas de silêncio. Esta
mos fa-
que Sc
no reconhecimento de seu irmão Orestes, lando: a) do silêncio de Saussure, que não se fez au-
, há
dá apenas pelo agon (confronto), Já na tragédia tor de seu Curso; e b) do silêncio sobr
e Saussure, O
nhe-
uma descrição do reconhecimento: ela o reco dos Anagramas, que os linguistas preferem
ignorar
peculiar,
ce porque ele carrega à espada de modo com defetência. Há ainda o silêncio em
Saussure,
No caso da
porque tem uma cicatriz na testa etc. quando tematiza uma certa noção de sist
ema (va-
em que
Filosofia, passa-se para um outro discurso, lor), ou do eixo das substituiçõesetc.
sua relação
se tematiza vastamente o sentido em Tampouco vamos apagar, na questão do silên
cio,
cias
com o ser, Percurso que desemboca nas Ciên a presença de Pêcheux. O interlocutor silencia
do, ou
em várias
Sociais € Humanas, que se instiçuem em silêncio. Que se deu o trabalho difícil
de falar da
os e dis-
disciplinas diferentes com distintósobjet Langue Introuvable (1984) e que, com suas
reflexões
coisa . Do-
cursos diversos para falar dessa mesma sobre o discurso, permitiu que se pens
assem O silên-
O fato
minado pelas múltiplas metalinguagens, cio, a significação, no meio do alarido formalis
ta. O
ções ”, que,
tem designificar nas diferentes “explica Pêcheux que, falando do “discurso-re
al autoprote-
Exílio
por sua vez, o povoam de muitos signos. tor”, diz do engendramento de uma nova
frascologia
se acel eram a
do silêncio. Do século XIX para cá que, “refletindo o que todo mundo sabe,
permite ca-
ncio.
produção de linguagense a contençãodo silê lar o que cada um entende sem confessar” (198
2).
nte em pa-
As palavras se desdobram indefinidame
auenco esto | 37
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Os Limites DO MéroDo
E DA OBSERVAÇÃO*
o silêncio, em face da significação. sobre a produção do silêncio em Dalton Trevisan, em Clarice Lispector,
Não podemos observá-lo senão por seus efeitos | lêncio significa de modo contínuo, absoluto, en-
(retóricos, políticos) e pelos muitos modos de cons- quanto a linguagem verbal significa por unidades
trução dasignificação. discretas, formais. Eis uma diferença que é preciso
Quando se trata do silêncio, nós não temos 77247- não apagar.
cas formais, mas pistas, traços. Por outro lado, noções como as de incisa e de
É porfissuras, rupturas, falhas, que ele se mostra, elipse são interessantes para observar a extensão
fugazmente: “É só de tempos em tempos que ele se do domínio conceptual da linearidade e da lite-
volta para o homem” (Heidegger, falando do Ser e ralidade. A incisa aparece, na história da reflexão
do Ente, 1969). gramatical, comoacréscimo contingente, e a elip-
Mesmo se o silêncio está sempre lá, ele é efême- se, como falta necessária. Quando tomamoso si-
ro em face do homem, no que diz respeito à sua lêncio como fundante, essa dissimetria (paradoxal
observação. Assim, sem teoria não se atinge o seu do ponto de vista da linearidade) se explica:o silên-
modo de existência e de funcionamento na signi- cio é assimétrico em relação ao dizere a elipse é do
ficação.
domínio do silêncio. A incisa é evitada; os gramá-
ticos intufram a importância dosilêncio e a rejei-
Pensar o silêncio é problematizar as noções de
taram: o dizer precisa dafalta.
linearidade,literalidade, completude Quanto à completude, já tivemos ocasião de
observar em diversas ocasiões que a incompletu-
Discursivamente, o sentido se faz em todas as di- de éfundamental no dizer. É a incompletude que
produz a possibilidade do múltiplo, base da polis-
reções. Conceitos discursivos como “interdiscurso”
(memória do dizer), “intertexto” (relação entre tex- semia. E é o silêncio que preside essa possibilida-
tos), “relação de sentidos” o atestam. + de, A linguagem empurra o que ela não é para O
A significação não se desenvolvesobre uma li- “nada”. Maso silêncio significa esse “nada” se mul-
nha reta, mensurável, calculável, segmenrável. Os tiplicando em sentidos: quanto mais falta, mais
sentidos são dispersos, eles se desenvolvem em to- silêncio se instala, mais possibilidades de sentidos
das as direções e se fazem por diferentes matérias, se apresentam.
entre as quais se encontra o silêncio.
A materialidade do sentido não é indiferente
aos processos de significação e a seusefeitos: o si-
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Pensar o silêncio em sua especificidade significativa é lexão sobre os processos significativos do silêncio,
problematizar palavras como “representação,“interpretação” a
descentração da linguagemverbal enquanto espaç
o
privilegiado designificação.
O silêncio é representável? Não acreditamos. Fazendo apelo ao silêncio, deslocam-seas relações:
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Lyotard (1983, p. 30) propõea distinção de quatro “e traduz na presença das figuras do silêncio espe-
silêncios, vificamente textuais, da elipse. Prandi assinala: a
Segundo ele, a frase que substitui o silêncio seria reticência (“la sventurata rispose”), a descontinui-
uima negativa, O que é negado por ela seria uma das dade temática (“Pedro ganhou? Viva a França!”,
quatro instâncias que constituem um universo de fra- 4 subdeterminação semântica (“Uma morte per-
ses: o destinatário, o referente, o sentido, o emissor. fumada”). Nós acrescentaríamos aí a preterição (o
Ainda segundo esse mesmo autor, a frase impli- silêncio que é projetado para o futuro discursivo).
cada pelo silêncio seria uma negativa que se formu- De modo geral, se nos colocamos em uma pers-
laria assim: pectiva discursiva e, em consegiúência, não-negativa
dosilêncio, toda uma revisão das “figuras” seria ne-
a) esse caso não é dasua conta; cessária e revelaria aspectosinteressantes do próprio
b) esse caso não existe; estudo daretórica.
c) esse caso não é significável; No caso presente, o que nos interessa é sobretu-
d) esse caso não é da minha conta, dofazer aparecer, emrelação às categorizações das
formas de silêncio, duas delas: a) o silêncio fundan-
Essas categorizações, embora definidas negati- te; e b) a política do silêncio (o silenciamento).
vamente, trazem alguma contribuição para a com- À primeira nos indica que todo processo de signi-
preensão do silêncio e organizam o seu modo de ficação traz umarelação necessária ao silêncio; a se-
significar. Mas, de certa forma, remetemainda for- gundadiz que — como sentido é sempre produzido
temente o silêncio ao dito, permanecendo na ins- de um lugar, a partir de uma posição do sujeito — ao
tância da frase, dizer, ele estará, necessariamente, não dizendo “ou-
Tambéma retórica é, claramente, um lugarrele- tros” sentidos. Isso produz um recorte necessário no
vante paraa discussão das formas desilêncio. sentido. Dizer e silenciar andamjuntos.
É desse modo, em relação à retórica, que Prandi Há, pois, uma declinação política da significação
(1988) transpõe os limites da frase e do caráter ne- que resulta no silenciamento como forma não de
gativo do silêncio. + calar mas de fazer dizer “uma” coisa, para não dei-
No quadro dafrase, dirá ele, a elipse, figura frás- xardizer “outras”. Ouseja,o silêncio recorta o dizer.
tica do silêncio, qualifica-se negativamente, como Essa é sua dimensão política.
realização vazia de umacategoria formal funcional Essa dimensão política do silêncio está, no en-
dada. No discurso, entretanto, o silêncio adquire tanto, assentada sobre o fato de que o silêncio faz
uma identidade positiva, índice, entre outros, que parte de todo processo de significação (dimensão
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tórica colonial. Eles falam do índio para que ele não. Os diferentes modos de considerar as formas do
signifique fora de certos sentidos necessários para a silêncio, que citamos no início, se mantêm. Entre o
construção de uma identidade brasileira determina- silêncio que se pode apreender na Amazônia e o que
da em que o índio não conta. Trata-se da construção nos ensina Mallarméy há, claro, uma grande distân-
de sentidos que servem sobretudo instituição das cia a percorrer. É isso que procuro compreender, Às
vezes emsilêncio.
relações colonialistas entre os países europeus € o
Novo Mundo.
Para compreender esse silêncio, foi preciso refa-
zet toda uma trama discursiva que foi construída
pela ciência, pela política social e pela religião (a
catequese) ao longo de uma história de oo anos,
Por seu lado, esse silêncio pode ser compreendido
como resistência do Índio a toda tentativa de inte-
gração: ele não fala (do lugar em quese “espera” que
ele fale). Quer se trate de dominação ou deresistên-
cia, é pela historicidade que se pode encontrar todo
um processo discursivo marcado pela produção de
sentidos que apagam o índio, processo que o colo-
cou xo silêncio. Nem por isso ele deixa de significar
em nossa história.
O silêncio não é pois imediatamente visíveleinter-
pretável, É a historicidade inscrita no tecido textual
que pode “devolvê-lo”, torná-lo apreensível, “com- s Neste capítulo, fizemos referência a filmes, música, poesia, pintura.
Na pintura, especificamente, a questão do silêncio cem sido evocada,
preensível. Desse modo, o trabalho como silêncio pelo viés do “figural”, de forma interessante. Cito aqui duas passagens
implica a consideração dessas suas características. da reflexão de M, Bacherich sobre a pintura: a) “o efeito que faz vet,
que faz dizer, que faz prazer, furor, escândalo, como a atesta à história
da pintura, nunca deixa de ter uma ligação com à profundidade, a rup-
tura, o entre — dois — planos, algo que está no batimento do objeto,
4 Outro medo de pensar o silêncio em nossa história, apresentado dessa sua presença e sua ausência figurada; ali onde a efígie teria uma ligação
vez pelo historiador, pode ser apreciado nolivro O silêncio dos vencieos (E. com a ausência”: b) “O Vazio desarranja a perspectiva lincar, coloca uma
De Decca, 1982). relação de devir[..). O Vazio é signo entre signos”,
Para o implícito assim definido, o recorte que se 1) reafirmando, inicialmente, que o silêncio não
faz entre o dito e o não-dito é o que se faz entre sig- recobre o mesmo campo (teórico, analítico) do
nificação atestada e significação manifesta (Ducrot, implícito;
idem): o não-dito remete ao dito. Não é assim que b) em seguida, considerando que o silêncio, assim
concebemoso silêncio. Ele não remete ao dito:ele se como a linguagem, não é transparente,
mantém comotal; ele permanecesilêncio e significa.
A partir de sua referência necessária ao dizer, tal Um outro aspecto do deslocamento eue procura-
comose dá com o implícito, o silêncio foi freqiien- mos produzir desemboca no fato de que o silêncio
temente concebido de formarelativa-negariva, sig- não se reduz à ausência de palavras. As palavras são
nificando, por sua dependência das palavras, apenas cheias, ou melhor, são carregadas de silêncio. Não se
como contrapartida do dito, tendo uma função an- pode excluí-lo das palavras assim como não se pode,
cilar ao dizer. por outro lado, recuperar o sentido do silêncio só
A fim de produzir uma mudança de terreno, defi- pela verbalização. Consideramos a tradução do si-
nimoso silêncio em si atribuindo-lhe deste modo um lêncio em palavras como umarelação parajfrástica.
valor positivo. Podemos, a partir de então, apreender A “legibilidade” do silêncio nas palavras só é
determinaçõessignificativas do não-dito que não fo- tornada possível quando consideramos que a mate-
ram ainda exploradas e que fazem parte do que con- rialidade significante do silêncio e a da linguagem
sideramos comosilêncio. diferem e que isso conta nos distintos efeitos de
Essa mudança deterreno deriva do fato de termos sentido que produzem.
considerado queo silêncio tem seus modos próprios
de significar, Silêncio e significação
Emsuma, nós distinguimos silêncio e implícito,
sendo que silêncio não tem umarelação de depen- A partir dessas considerações, é importante insis-
dência com o dizer para significar: o sentido do si- tir em que o silêncio não se define como tal só por
lêncio não deriva do sentido das palavras. sua relação com a parte sonora da linguagem, mas
Essas observações se fazem necessárias porque é com a significação, ou melhor, pela relação signif-
preciso considerar a relação fundamental das pala- cativa som/sentido,
vras com o silêncio sem, no entanto, reduzir este à
um complemento da palavra.
Assim, procuramosnosdistanciardealgumas formas
particulares de categorização do silêncio já fixadas;
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cativa, a concepção desilêncio fundador nos leva à Além do silêncio fundador, tal como o conside-
seguinte distinção: ramos anteriormente, há a política do silêncio, que,
por sua vez, tem duas formas de existência ligadas:
a) de um lado, temos a análise como fragmentação,
em quea significação aparece como uma relação a) o silêncio constitutivo e
que o sujeito mantém com a linguagem sob o do- b) o silêncio local.
mínio do segmentável;
b) de outro, temos a consideração da significação A relação dito/não-dito podeser contextualizada
como um continua não-segmentável, mas ain- sócio-historicamente, em particular em relação ao
da significante. que chamamos o “poder-dizer”, Pensando essa con-
textualização em relação ao silêncio fundador, po-
Isso porque o silêncio não é “categorizável”, Ele é demos compreender a historicidade discursiva da
condição da linguagem mas é absoluto, intemporal construção do poder-dizer, atestado pelo discurso.
e ilimitado em sua extensão (M. Le Bot, idem). As- Com efeito, a política do silêncio se define pelo
sim,talvez pela compreensão do discurso, etimolo- fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente
gicamente, como “o que retorna”, podemos estabe- outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma
lecer o modo apropriado de compreender silêncio situação discursiva dada.
em seu movimento continuo. A diferença entre o silêncio fundador e a política
Desde que nos propomosumareflexãocrítica sobre do silêncio é que a política do silêncio produz um
os processos designificação, não mais nos limitamosà recorte entre o que se diz é o que não se diz, en-
busca de unidades discretas. Se a matéria significante quanto o silêncio fundador não estabelece nenhu-
do silêncio é diferente da da linguagem verbal, essa di- ma divisão: ele significa em (por) si mesmo.
ferença deveser levada em conta pela análise. Determinado pelo caráter fundadordo silêncio,
Observemos, pois, uma outra forma desilêncio: o silêncio constitutivo pertence à própria ordem de
o silenciamento. produção do sentido e preside qualquer produção
de linguagem. Representa a política do silêncio
4
como umefeito de discurso que instala o antiim-
O silenciamento: uma política dosentido plícito: se diz “x” para não (deixar) dizer “y, este
sendo o sentido a se descartar do dito. É o não-
Umadistinção nointerior mesmoda noção de silêncio dito necessariamente excluído. Por aí se apagam os
nos indica um procedimento analítico significativo. sentidos que se quer cvitar, sentidos que poderiam
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emrelação à política dos sentidos: é a produção do
instalar o trabalho significativo de uma “outra” for-
interdito, do proibido,
mação discursiva, uma “outra” região de sentidos.
Elegemosa censtra como objeto de nossa presen-
O silêncio trabalha assim os limites das formações
tc reflexão por considerar que nela existem processos
discursivas, determinando consequentemente osli-
«ue nos indicam modos de funcionamento relevan-
mites do dizer.
tes do silêncio. Entretanto, não pensaremos a forma
É nesse nível que funciona a “forclusão” do sen-
linguística da censura, visando a sua classificação,
tido, o silêncio constitutivo, ou seja, o mecanismo
pela detecção de suas marcas (unidades discretas)
que põe em funcionamento o conjunto do que é
preciso não dizer para poder dizer.
no texto. Não procuramos “dados” sobre a censu-
ra; procuramos analisar a censura enquanto “fato”
Umexemplo dessa forma de silêncio é a denomi-
de linguagem que produz efeitos enquanto política
nação “Nova República”, no Brasil, atribuída ao regi-
pública de fala e silêncio. Consideramos a censura
me que seguiua ditadura militar, Ao nomear-se assim
emsua materialidade linguística e histórica, ou seja,
esse período, apagava-se 0 fato de que o que tinhamos
discursiva. E embora vamos tomar como centro a
tido antes era uma ditadura (Orlandi, 1987).
censura política, também outras formas de censura
Podemosdizer, generalizando, que toda denomi-
se alinhamno faro que estamosanalisando.
nação apaga necessariamente outros sentidos pos-
É preciso não confundir analiticamente os dois
síveis, o que mostra que o dizer o silenciamento
modos de existência do silêncio — o fundador e o
são inseparáveis: contradição inscrita nas próprias
político — sementretanto separá-los categorica-
palavras.
mente do ponto de vista teórico.
Comoparte da política dosilêncio nós temos, ao
Se a detecção do funcionamento dosilêncio fun-
lado do silêncio constitutivo, o silêncio local, que é a
dador é mais difícil c exige a observação através de
manifestação mais visível dessa política: a da inter-
dição do dizer. “desfalecimentos” do sentido, a detecção dos efeitos
da política do silêncio é bem mais fácil e nós vere-
Tomemos um exemplo dessesilêncio local: a cen-
mos que podemos:
sura. Trata-se da produção dosilêncio de formafra-
ca, isto é, é umaestratégia política circunstanciada
ta a) explicitar a política do silêncio inscrita em um
Da
fato de linguagem específico como a censurae,
» Essas considerações também se confirmam sé pensarmas em aspectos
ori- b) consegiientemente, pôr em relevo o modo de
eximológicos do silêncio. Em sânscrito a raiz ambivalente 224 está na
gem de palavras que significam tanto falar como ficar em silêncio: za42%s funcionamento do silêncio fundador.
no
(lat. mudo), mytheomai (greg. dizer) etc. Presençae silêncio se cruzam
mesmo acontecimento de linguagem.
tido: esquecimento nº 1 de Pêcheux, 1975), ao falar. nite, ao mesmo tempo, o sentimento deidentidade,
o sujeito se divide: as suas palavras são também as assim como, paralelamente, o efeito de literalidade
palavras dos outros. (unidade) no domínio do sentido: o sujeito se lan-
Dessa contradição, inerente à noção de sujeito ca no seu sentido (paradoxalmente universal), o que
(e de sentido), resulta umarelação particularmente lhe dá o sentimento de que esse sentido é uno.
dinâmica entre identidade e alteridade: um movi- Se o sentimento de “unidade” permite ao sujeito
mento ambíguo que distingue (separa) e ao mesmo identificar-se, por outro lado, sem a incomplerudee
tempo integra (liga), demarcandoo sujeito em sua o consequente movimento, haveria asfixia do sujei-
relação com o outro. to e do sentido, pois o sujeito não poderia atravessar
No entanto, se há um apagamento necessário os diferentes discursos e não sexia atravessado por
para a constituição do sujeito — e isso constitui sua cles, já que não poderia percorrer os deslocamentos
incompletude —, há também um desejo, ou, antes, (os limites) das diferentes formações discursivas.
uma injunção à completude (vocação totalizante O Outro (e os outros) é o limite mas também é o
do sujeito) que, em sua relação com o apagamento, possível.
desempenha umpapel fundamental no processo de Se é assim teoricamente, a situação típica da cen-
constituição do sujeito (c do sentido). sura traduz exatamenteessaasfixia: ela é a interdição
A incompletude do sujeito pode ser compreen- manifesta da circulação do sujeito, pela decisão de
dida como trabalho do silêncio. O sujeito tende a um poder de palavra fortemente regulado. No auto-
ser completo e, em sua demanda de completude, é o itarismo, não há reversibilidade possível no dis-
silêncio significativo que trabalha sua relação com as curso, isto é, o sujeito não pode ocupar diferentes
“diferentes formações discursivas, fazendo funcionar posições: ele só pode ocupar o “lugar” que lhe é
a sua contradição constitutiva. Sua relação com si- destinado, para produzir ossentidos que não lhesão
lêncio é sua relação com a divisão e com o múltiplo. proibidos. À censura afeta, de imediato,a identidade
Discursivamente, não há nem umsujeito-absolu- do sujeito.
to, auto-suficiente, nem um sujeito-complemento, Nesse passo podemos fazer uma relação entre a
inteiramente determinado pelo fora. Esse espaço da rarefação do sentido produzida pela relação com o
subjetividade na linguagem é um lugar tenso onde Poder (a censura) e a produzida pela relação com
jogam os mecanismos discursivos da relação com a o Desejo (Narciísca).
alteridade, Narcisofixa seu sentido: cle não se deixa atraves-
A incompletude é uma propriedade do sujeito sar (e não atravessa) “outros” discursos. Ele preen-
(e do sentido), e o desejo de completude é que per- che “seu” lugar de sujeito, sozinho. Não há, nele,
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enunciações distintas e dispersas que formam em pode ser visto como coincidindo com o já-dito.é Nes-
seu conjunto o domínio da memória. Esse domínio se caso, criar-se-ia a ilusão de que no silêncio não há o
constitui a exterioridade discursiva para o sujeito que dizer, só o já-dito. Ou seja, o silêncio seria o que
do discurso. Além disso, é preciso lembrar sempre não é preciso ser dito. Assim, o silêncio seria o “exi-
(Courtine, 1982) que o sujeito não tem no interdis- lio” do sujeito, o seu desterro, pois já estaria habitado
curso nenhum lugar para si, já que “no domínio da pelo já-dito, o pleno, o efeito do Um: o literal. Para-
memória ressoa uma voz sem nome” isto é, anônima. lelamente à produção do efeito da literalidade, esse
O interdiscurso, o dizível não é o sentido, por exem- mecanismo de apagamento dosilêncio tira do sujeito
plo, de “colonização” para “x” ou para “y” é o sentido a possibilidade de ele mover-se, O que nos faz ver a
de colonização. Daíseu efeito referencial, sua objeti- literalidade como negação do sujeito. A ilusão de que
vidade. No entanto, é preciso entender essa relação o “seu” sentido só pode ser aquele éjustamente sua ne-
do enunciável com o sujeito em sua duplicidade. O gação. Nega-se a historicidade ao sentido e nega-se a
que despossui o sujeito é o que ao mesmo tempo tor- história ao sujeito.
na seu dizer possível; é recorrendo ao já-dito que o Com nossa reflexão estamos propondo distin-
sujeito ressignifica. E se significa. guir o ilusório silêncio do já-dito do outro silêncio,
O interdiscurso é do nível de constituição do dis- o fundador, que permite os múltiplos sentidos que
curso (sua “verticalidade” segundo Courtine, 1982), tornam possível uma certa distância do sujeito em
da ordemdo repetível. É a instanciação do enun- relação ao “dizível”. E isso em duas direções: em re-
ciado (o mesmo). O intradiscurso, por sua vez, é a lação ao “outro” dizer (o da outra formação discur-
formulação da enunciação (o diferente), no aqui e siva) e em relação ao discurso social (o consenso).
agora do sujeito. Se pelo intradiscurso temos queo O silêncio intervém como parte da relação do
sujeito intervém no repetível, no entanto é o inter- sujeito como dizivel, permitindo os múltiplos sen-
discurso que regula os deslocamentos das fronteiras tidos ao tornar possível, ao sujeito, a elaboração de
da formação discursiva, incorporando os elementos sua relação comos outros sentidos,
pré-construídos (efeito do já-dito). Há, sabe-se (Foucault, 1971), uma dispersão do
Tambémnesse caso podemos dizer queé o silén- sujeito, pela qual ele pode tomar diferentes “posi-
cio que trabalha os limites do já-dito no interdis- ções”. Por outro lado, a identidade do sujeito resulta
curso. Sem deixar de'considerar quea relaçãosilên- de processos de identificação, Comefeito, o silêncio
cio-interdiscurso é bastante complexa. trabalha as diferenças inscritas nos processos de
Com efeito, é preciso observar que a noção dein-
terdiscurso poderia absorver a de silêncio, pois este 6 Mais adiante falaremos da relação dosilêncio com o “não-sentido”
identificação do sujeito, produzindo seu sentimen» Enfim, se se pensa o silêncio como constituti-
to de unidade, integrando os diversos aspectos de vo de todo processo significativo, a determinação
um sujeito que “diz”. À identidade, no entanto, não histórica desses processos não se apresenta apenas
se reduz à “identificação”; ela mobiliza processos como injunção a ele. Em face da história, o silêncio
mais complexos. Um desses processos nos permite. significa de várias maneiras:
apreciar a produção da diferença, justamente pela
forma comoo silêncio faz parte da relação do su- a) em relação ao futuro (o “projeto” do discurso, a
jeito com o sentido, Diriamos mesmo que a dife- multiplicidade de sentidos);
rença, na identidade, torna-se possível pelo silén- b) em relação ao passado (o já-dito que retorna na
cio. O sujeito, atravessado por múltiplos discursos, forma do interdiscurso, e que se re-formula).
desmanchar-se-ia em sua dispersão. No entanto,
assim comoo sentido é errático, o sujcito também Além disso, é ainda preciso levar em conta:
é movente: o que o mantém em sua identidade
não são os elementos diversos de seus conteúdos, a) a dimensão histórico-política do sentido; em ou-
nem sua configuração específica (ele tem muitas), tras palavras, a partilha entre o quesignifica e o
mas seu estar(ser)-cm-silêncio. O sujeito tem um que não significa;
espaço possível de singularidade nos desvãos que b)a historicidade do sujeito (relação entre os dis-
constituem os limites contraditórios das formações tintos processos de identificação de que resulta a
discursivas diferentes. Aí trabalham processos de identidade).
identificação do sujeito que não estão fechados na
sua “inscrição em uma formação discursiva deter- Desse modo, podemos considerar o silêncio
minada” mas justamente nos deslocamentos possí- como parte da incompletude que trabalha os limi-
veis — trabalhados no e pelo silêncio — narelação tes das formações discursivas, produzindo tanto a
conjuntural das formações. Relação contraditória polissemia (o a-dizer) quanto o já-dito.* Isto é, o si-
com o interdiscurso. É nosilêncio que as diferentes lêncio trabalha nos fiznites do dizer, o seu horizonte
vozes dosujeito se entretecem em uníssono. Ele é o possível e o seu horizonte realizado.
amálgama das posiçõeshetêrogêncas?
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determinados historicamente em seus processos de ficação, gostaria de definir a noção de líingua-de-es-
constituição e funcionamento, puma para a presente reflexão: uma língua “vazia”,
Não se privilegiam, em discurso, nem a forma prática, de uso imediato, em que os sentidos não
nem o conteúdo em si mas se considera a “forma ma- ecoam. É uma língua em que os sentidos batem
terial” tanto do sujeito quanto do sentido. Quando forte mas não se expandem, em que não há resso-
dizemos forma material, vale ressaltar que não pen- nâncias, não há desdobramentos. Na lingua-de-es-
samos na forma abstrata mas na forma queé língúis- puma os sentidos se calam. Eles são absorvidos e
tica e histórica. não produzem repercussões. Se, de um lado, não se
Por não reproduzir essa dicotomia (forma/con- comprometem com nenhuma “realidade”, de outro,
teúdo), podemos instalar-nos na reflexão que tra- impedem que vários sentidos se coloquem para essa
balha a materialidade discursiva.” mesma “realidade”.
Historicamente, a língua-de-espumaé aquela fa-
Língua-de-espuma” lada, por exemplo, pelos militares no período que
começa em 1964 com ditadura no Brasil. Mas, pe-
Antes de passar à análise de umasituação de lin- las suas características, podemosalargar essa noção
guagem na qual trabalham esses processos de signi- abrangendo toda expressão totalitária nas socieda-
des ditas democráticas. A lingua-de-espuma traba-
lha o poder de silenciar.
E Por uma certa inadequação teórica, alguns lingúistas, adeptos das teo-
vias imanentistas, têm utilizado à expressão “materialidade lingitistica”
No movimento social de sentidos, pode-se ob-
teferindo-se à Engua, retomando assim uma expressão que migrou da and- servar uma manifestação particular de resistência à
lise de discurso. Gostaríamos de lembrar que os termos têm suas histórias
e fazem parte de quadros teóricos específicos, No caso, a lingúística, em
língua-de-espuma, manifestação que será objeto de
geral, não trabalha com a “maserialidade” mas com as formas lingiísticas, nossa análise: o discurso da Música Popular Brasilei-
com seus caracteres formais, abstratos, sua sistematicidade. Por seulado, ra (MPB). É preciso ainda observar que a MPB no
expressão “materialidade”, na análise de discurso, adquire sen sentido por
se inscrever no quadro do materialismo histórico, Não me parece haver Brasil desempenha um papel particular quese pode-
sequersimpatia entre esse quadro e o da lingliística imanente. Às palavras ria aproximar daquele de uma filosofia popular, lu-
têm muitos sentidos, mas esses sentidos são determinados pelas suas con-
dições de produção. Não se podem usar as palavras indiferentemente. gar em que se trabalham identidades, em que se con-
» Paraa distinção língua/discurso, remetemosa P. Seriot (especialmen- cebem traços importantes do consenso social etc.
te 1982,1984). Guardamosentretanto a expressão “lingua-de-cspuma” por No domínio do discurso da MPB uma forma
scu poder de evocação emrelação ao consagrado fangue-de-bois. Para o que
específica de resistência que apareceu durante a
corresponde ao sentido de espuma, quisemos manter sua ambigiiidade,
tanto a espuma de sabão, como a espuma de borracha, No entanto, não so= ditadura é o samba-duplex de Chico Buarque de
mos indiferentes à designação “língua-de-chumbo”, que poderíamos usar, Hollanda. O samba-duplex é uma resposta par-
já que esse períodoficou conhecido como “anos de chumbo”,
À =)
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própria constituição dos sentidos. Embora alargue- quanto ao que ele diz. À censura intervém assim na
moso sentido da censura para a apreensão de fatos relação do indivíduo com sua identidade social e
de interdição que não são explicitamente políticos, com o Estado.
não nos parece entretanto adequado considerar
ainda censura local quando se trata de uma interdi- ! Como a função enunciativo-discursiva do autor
é a mais sujeita às coerções sociais, o silêncio instala
ção que funciona no nível do historicamente dizível um trabalho que incide justamente sobre o jogo da
(constitutivo). Nesse caso, não se trata mais do ní- identidade social; em outras palavras, sobre a dimen-
vel do autor mas do sujeito diretamente. Isto é, há são pública do cidadão: ele é responsável diante da
sentidos que não nossão proibidos por uma autori- lei, Em conseguência, a relação entre o queele diz e
dade de palavra mas que, por processos complexos o que ele não diz concerne à ética e ao político.
de nossa relação ao dizível e que tocam diretamente Vale aí ressaltar um aspecto fundamental da cen-
ao como se significa a história, nós não chegamos a sura. Submetido a ela, o sujeito não pode dizer o
formular e nem mesmo a reconhecer (processo ideo- que sabe ou o que se supõe que ele saiba. Assim, não
lógico, do nível do esquecimento nº 1 de Pêcheux). é porque o sujeito não tem informações ou porque
Aqui neste trabalho me dedico a refletir sobre a cen- ele não sabe das coisas que ele não diz. O silêncio da
sura local, visível, exercida por um poder explícito. censura não significa ausência de informação mas
E diria mesmo que é mais fácil responderà autori- interdição. Nesse caso não há coincidência entre
dade visível que à autoridade que não diz seu nome não dizer e não saber,
(do nível da constituição, do irrepresentável) e que Isso nos leva a afirmarque a censura funciona não
se forma noslimiares mais complexos de nossarela- em nível de informação mas de circulação e de cla-
ção com o dizível. boração histórica dos sentidos, assim como sobre o
Nessa relação com a interdição, eu guardaria o processo de identificação do sujeito em sua relação
nome de censura local para o domínio da formula- comos sentidos. Ela impede o trabalhohistórico do
ção, ou melhor, eu diria que essa censura é o traço sentido,
do que é formulável, mas proibido, em certas con- Se, de um lado, a linguagem é política (porque o
dições. À outra dimensão da interdição é a do im- sentido, sempre dividido, tem necessariamente uma
possível. Toca a dimensão mesma da história: é o direção determinada), por outro lado, todo poder se
historicamente não-dizível, acompanha de um silêncio em seutrabalho simbólico.
Voltemos pois ao plano da formulação, Para que Esse silêncio de que nos ocupamosestá na base
a censura funcione, ela joga com o princípio do au- da divisão de sentidos, tendo consegiiências que se
tor: ela remeteà responsabilidade do sujeito (autor) inscrevem na política do dizer.
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mação discursiva, como arquivo (Foucault), como apartado do gruposocial que o sustenta; nemse trata
interdiscurso (Pêcheux, Courtine, Henry etc.) e tampouco de um discurso preexistente e que é gerido
como discurso social, como acabamosde ver. À no- por um grupo social determinado. Na perspectiva
ção de discurso social nosinteressa porque ela pode discursiva de Maingueneau, o que há é umaprática dis-
ser aproximada do que definimos como povo e da cursiva com seus dois lados interconstiturivos: de um
noção de autor, lado,a textualidade; de outro,o gruposocial que lhe
Levando em conta a relação com o dizível, po- corresponde. São duas faces da mesmacoisa: a práti-
demos dizer que essa definição de discurso social ca discursiva. Do mesmo modo podemosconsiderar
recorta o modo de existência e de circulação dos que o “povo” é a outra face do “discurso social” De
sentidos sem no entanto apreender sua dimensão um lado, temos o grupo social (povo); do outro, a
constitutiva, formadora. Assim, quando conside- textualidade que lhe corresponde e constitui (discur-
ramos o discurso social como consenso posto em so social), O autor, neste contexto, é à personagem
funcionamento em um estado da formação social, do discurso que temfunçãosocial e que, no imaginá-
podemos ver que ele recobre apenas um dos aspec- rio social, é considerado estar na origem do discurso,
tos dos processos de significação; o discurso social como produtor de seus sentidos e que responde por
assim concebido é já um efeito do já-dito. À noção eles. Ele é personagem do discurso social,
de discurso social é pois função do horizonte imagi- A partir dessas concepções de autor, povo e dis-
nário social já produzido, Ele já se encontra no do- curso social, queremos mostrar que, se de um lado
mínio da formulação e não no da constituição do a censura trabalha sobre o conjunto do dizível, do
discurso. Tais observações servem para precisar que outro, em uma retórica de resistência, há uma po-
o uso que fazemos dessa noção leva em conta essa lírica do silêncio que se instala (consensualmente)
característica, o que produz, de certo modo, um e que significa justamente o que, do dizível, não se
deslocamento em relação a sua definição original pode dizer. Censura e resistência trabalham a mes-
(Angenot, 1984). maregião de sentidos.
Quanto à relação que anunciamosentre discurso Mais prática c especificamente, queremos expli-
social, autor e povo, gostaríamos de observar que citar os procedimentos pelos quais, quando uma
uma maneira de nosatermos a uma definição mais música (popular) comoa feita por Chico Buarque
conforme à perspectiva discursiva é lançando mão de Hollanda diz “vai passar”, o povo “sabe” perfei-
do que diz D. Maingueneau (1984) sobre a “prática tamente que ele não fala de uma doença ou de uma
discursiva”. Segundo esse autor, em análise de discur- dorde amor, mas de uma dor, um mal político: a
so não se pode pensar a existência de um discurso ditadura e o sofrimento social.
Nossa tarefa aqui é pois compreender os mecas à a materialidade do signo,sua história, que per-
nismos da linguagem deresistência, Assim, visamos mitc esse jogo de sentido social: a matéria signif-
deslocar a relação do discurso só à reprodução. cante “tem” memória, Os diferentes sentidos do sig-
Dito de outro modo, tentaremos mostrar que no (suas diferentes formulações), de alguma forma,
na reprodução já há deslocamento,já há a não-re- estão em cada um deles.
produção: os sentidos reproduzidos em condições É preciso finalmente observarque o “outro” sen-
“particulares”, como a da censura, podem ser car- tido a que nos referimos aqui não é a denegação
regados de outros sentidos, de transformações, de nem o sentido contrário, é um outro sentido efe-
outros sentidos possíveis mas não ditos. tivamente.
Comefeito, pensamos que a relação do “povo” Em suma, há uma relação sentido/discurso so-
com o “discurso social” é igualmente contraditória, cial, sob a censura, que se estabelece de forma que
e essa contradição, no caso da presente análise, joga signifique o que é preciso não dizer. Há um traba-
com o espaço de silêncio que existe, pois o silêncio lho histórico do sentido sobre o discurso social, pelo
queé feito sobre umacerta região de sentidos é car- discurso da resistência, que produz.uma espécie de
regado de palavras a não serem ditas. E é porisso reversão do discurso social, sem no entanto negá-lo,
mesmoqueelas significam. Socialmente. Ele passaa significar pelo avesso, por seu “duplo”.
Dessa perspectiva, há umarelação com o discur- Podemos explicitar isso afirmando que, nesse
so social que se faz sobre um “já-dito” que não é en- caso, não se está dizendo o senso comum, mas re-
tretanto um “já-significado, mas, ao contrário, um ferimosa ele pata dizer outra coisa. Há, por assim
dito capaz de significar de outro modo, emsilêncio. dizer, um uso da vocação totalizante do sujeito à
Pode-se relacionar esse modo de significar à noção unicidade do sentido para, paradoxalmente, se di-
de refuncionalização de Gramsci (1968), desta vez zer a “outra” coisa: é um mas nãoé “esse” um...
visto do outro lado, o da contradição-transforma- O jogo da unicidade, ao se afirmar, se mostra.
ção que joga com a hegemonia,resistindo. Quanto mais se nega a multiplicidade de sentidos,
Diríamos que há uma historicidade inscrita na mais ela é aparente. Mais a multiplicidade é aparen-
própria textualidade, historicidade que faz com te, mais se busca o “um”,
que os sentidos valham para toda a sociedade, não Podemosinscrever esse gênero de funcionamen-
estando o “povô” excluído da contradição entre o to discursivo no que foi dito a propósito da con-
mesmo e o diferente, isto é, o sentido que vai além tradição, das formações discursivas e da heteroge-
do senso comum: dizem o “mesmo” para dizer o neidade (Courtine, 1982; J. Authier, 1984). É na
“outro” sentido. censura que se pode melhor observar os sentidos
1. Se, nos jornais, havia uma informação censurada, Ainda quanto aos procedimentos literários, é
os editores deixavam vazio o lugar em que deve- preciso aqui lembrar um, muito expressivo, quejá
ria aparecer a dita informação. Isso significava a tive a ocasião de expor: no final da ditadura apare-
censura. Masisso também foi proibido. Os vazios ceu uma quantidade enorme de romances autobio-
(os silêncios) eram visíveis demais como signos gráficos. As pessoas escreviam às escondidas o que
da censura. Então, os editores eram obrigados a não podiam dizer diretamente, para resistir,
preencher todas as páginas do jornal, a suprir to-
dos os “vazios”, Para não apagar completamente 3. Havia, além disso, formas de comunicação e de
os traços da censura, os editores substituíam es- resistência mais sofisticadas, sobretudo aquelas
5 A Praça da Sé no centro de São Paulo tornou-se um simbolo da re- L. canta o amor para cantar “outra” coisa. Usa o dis-
sistência. No momento da abertura foi lá justamente que se deu a maior curso amoroso para falar do político;
manifestação.
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dimentação”, pela “fixação” do discurso. Fora daí Nesse modo de funcionamento,a relação entre
seríamos donos do nosso dizer e estaríamos fora o “um” é o “plural” aparece em sua relevância, E
do efeito-literal. Mais um componente da ilusão aqui voltaria a Barthes (idem) quando fala da neces-
referencial, sidade do “um” como segue:
O estereótipo, a seu modo, cumpriria, no discur-
so, papel imaginário análogo ao do “pré-construí- Quand je lis, jjaccomode: non seulementle cristallin
do” (o efeito do já-dito que sustenta o dito), com de mes yeux, mais aussi celui de mon intellect, pour cap-
ter le bon niveau du signifiant (celui que me convient)...
efeito inverso, dando ao sujeito a impressão de que
Chacun courbe son esprit, tel un oeil, pour saisir dans
só ali os sentidos retornam, protegendo-o assim
la masse du texte cette intelligibilicé-lã, dontil a besoin
do mesmo do sentido e da sua intercambiabilidade pour connaitre, pour jouir etc. En cela la lecture est un
com outro sujeito qualquer. travail: il y a un muscle que la courbe?
Compreendendo pois a produção desse efeito,
pela análise de discurso, podemos também com- Essa curvatura, essa disciplina é a do discurso
preender que, nessa relação imaginária, em certas social.
condições, o estercótipo é o lugar em queo sujeito A partir do que pudemos compreender sobre a
resiste, em que ele encontra um espaço para, para- censura, vejamos que questões teóricas e sobre o po-
doxalmente, trabalhar sua diferença e seus outros lítico podemoscolocar,
sentidos. É uma forma de proteger sua identidade
no senso comum,pois o estereótipo cria condições
para que o sujeito não apareça, diluindo-se na uni- Considerações finais
versalidade indistinta,
De todo modo, nesse ponto da reflexão, gostaria- 1. Ao se deslocar um sentido para outros materiais
mos de lembrar novamente que a censura exacerba simbólicos, no processo que chamamos “migra-
a relação do sujeito com sua identidade, com seus
sentidos. 7 Falando ca relação ver/dizer, P, Fedida (1988) vai mais longe, apontan-
do para a questão dosilêncio: “Mais toute la poétique épique des Grecs
Ela é o sintoma de que ali o sujeito tem um pro- est encore là pour rappeler que r'exigence ixagigue tientà cette vigilance
blema em sua relação com o dizível, Ali o sentido requisc delle-même par la parole, de tele sorte quien parlant à Paurre,elle
seria outro. Então, pára o falante, o silêncio é lugar * naccélêre pas [...] léchéance d'une disparition par effacement. Parler/écou-
ler est propre, en effer, à produire cela. Cela, c'est une sorte d'érosion des
de elaboração de outros sentidos, do movimento de visages, ce lent affaiblissement qui ruine tout en même temps leur vue et
sua identidade; para o analista, é uma pista de um leur langage, la vue du langage, Parfois bruyante de visibiliré, la parole
alors continue, Mais au fond, elle devient muerte — muette de vue — et
modo de funcionamento do discurso. le mutisme de sonsilence est une négligence du ressouvenir”.
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do sujeito) próprios, e que significaram em outros Y O silenciado tem uma materialidade histórica
lugares simbólicos, continuam fazendo seu sen- presente nos mecanismos de funcionamento dos
tido surdo que explode de tempos em tempos em discursos e em seus processos de significação.
equívocos, contra-sensos, € até em palavras de mau Daí podemos concluir que: na reprodução já há
gosto ou anacronismos. Mas tudo isso tambémé não-reprodução, na censura já há resistência, na
modo de se fazer sentido. São sentidos que “atrapa- interdição de sentidos já estão os sentidos outros,
lham”, que se finge não ouvir. Ou, e esse é também naquilo que não foi dito está o trabalho do sentido
um seu modo de ser, aparecem como sustentando que virá a ser. Em suas várias formas e modos que só
falas agora já em outros lugares e que os trabalham a história pode assentar,
em seus “pressupostos”. Ou ainda estão nasfalas dos Assim, não há censura completamente eficaz: os
“adversários”, que continuam a trabalhar seu silen- sentidos escapam e pegama gente a seu modo.
ciamento, Nossa finalidade, comesta reflexão, era mostrar:
No entanto, o fato de não se dizer “a ditadura vai a) de um lado, que a separação entre verdadeiro/
acabar” diretamente e sim através de “Vai passar”, falso não é a constatação de umaevidência, masjá
em música, faz com que o silêncio fique compro- é uma tomada de posição (um efeito de discurso),
metido com o sentido da “ditadura”. No desloca- um gesto de interpretação; b) de outro, quando
mento para o não-dito parece, pela censura, que o pensamos na prática discursiva, noções tais como
não-dito é só um: a ditadura. Ela cobre todo o espa- a de “estereótipo” assim como a observação da lin-
ço do não-dito. Isso tira um pouco do movimento guagem “cotidiana” adquirem um estatuto outro
possível, do não-um do silêncio. Eu diria que sobra que lhes dá um caráter mais complexo, indicando
menos não-dito, menos silêncio, O gesto da censu- aspectos de sua sistematicidade, No entanto, isso
ra lesa o movimento daidentidade do sujeito na sua só é possível se somos capazes de atribuir um outro
relação com os sentidos. Ele lesa de algum modo estatuto teórico ao silêncio; e, finalmente, c) o que
a história. Mas como o dizer c o não-dizer têm li- pudemos compreender da censura, observando-a
mites complexos e a noção de silêncio é corrosiva no domínio político, pode, no entanto, se alargar
(Auida), o movimento dos sentidos se reinstala as- para a compreensão dos procedimentos de inter-
sim como os efeitos contraditórios do silêncio que dição que atravessam, de múltiplas formas e em
reafirmam-a condição (bi)partida da produção dos permanência, o cotidiano do sujeito na sua relação
sentidos éntre o um c o não-um. E aí de novojoga com os diferentes percursos de sentido, nas distin-
forte a relação entre o indizível da história, isto é, o tas situaçõessignificantes de sua vida; a apreensão
não-significado,e o da censura, o não-dito. do fato que chamamos “migração” dos sentidos
constitutiva do dizer que o delimita e regula, sendo sujeito com a linguagem, comojá tivemos a oca-
o discurso sempre atravessado por “outros” discur- sião de afirmar, que ele possa circular pelas várias
sos. É assim que se cumpre a relação necessária do regiões de sentidos (ainda que ele não circule).
lingúístico com o ideológico: os sentidos não têm Mas o que pretendo nesta reflexão não é discutir
donos. diretamente os sentidos c os limites da dialogia, ou
Isso na reflexão e como princípio teórico. Pois, compreender a extensão mais radical do que signi-
se os sentidos não têm donos, não é menosverdade fica a migração dossentidos na constituição do su-
que cada um os quer para si, Além disso, há formas jeito e das suas possibilidades de dizer.
sociais que mostram a relação do sujeito com as pa- Meu objetivo é falar de umacoisa mais localizada:
lavras e que regulam o princípio da autoria (o que o quesignifica, na relação intelectual, esse fato sis-
supõe umsujeito visível e responsável pelos sentidos temático (daí o interesse em entendê-lo) em gue,
que produz num estado dado de uma sociedade). sejam alunos em relação aos mestres, sejam colegas
Assim, sempre podemos deparar comsituações a respeito de colegas, as pessoas se autorizam a não
em que, claramente, se pode perceber que os senti- referir suas idéias a idéias já ditas? Chamarei a isso
dos “criam pernas” (ou “asas”) e são surrupiadosde “meio-plágio” porque são falas que, embora tenham
um discurso para outro. Porque “ter” uma idéia é esse viés de origem, têm particularidades que não as
uma questão só de valor intelectual, mas “ser autor situam inteiramente como cópias. Não se trata tam-
de” tem umavalia institucional bastante disputada. pouco de fazer julgamentos e avaliações: há boas e
Aqui cabe pensar a censura tal como a tenho más intenções nesses procedimentos é eles podem
tematizado no que chamo de “migração de senti- ser de naturezas muito diversas em nível “pessoal”,
dos”, isto é, o fato de que, uma vez estancados em Hácertamente qualidades que separam esses procedi-
um lugar, os sentidos migram para outros objetos mentos quando se trata do aluno em relação ao mes-
simbólicos pelos quais vão significar aquilo que era tre e de colega em face de colega. O que nosinteressa
proibido dizer, Essa errância dos sentidos tem aí O é compreender discursivamente esse fenômeno.
sentido positivo e produtivo de não se deixar apri- Com efeito, pode-se pensar esse fato no jogo
sionar, de não,perder a qualidade daquilo que defi- complexo da discursividade e analisar as rela-
ne mais fundardente o discurso, isto é, seu carater ções do dizer com sua memória sob o modo da
de “movimento”, Faz parte necessária da relação do relação do dizer com sua “exterioridade”: a his-
toricidade, o interdiscurso.
Quanto à noção de “historicidade”, basta dizer
do discurso, uma estudiosa da dialogia que se sobressai é ]. Authier, com a
introdução da noção de “heterogeneidade enunciativa”
que pata que umapalavra faça sentido é preciso que
sição, O lugar de seu dizer possível, Dessa ilusão re- estrangeiros (inscrição no discurso colonial), o não citar um autor para
marcar discordância comele, o citar só textos clássicos, o citar só idéias de
sulta o movimento da identidade, o movimento dos outros domínios disciplinares etc. Todas essas são formas de silêncio com
sentidos: eles não retornam apenas, eles se transfor- seus muitos sentidos.
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o 6 | AS FORMAS DO SILÊNCIO sLêncio, cória EmerLENÃO | 137
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co não-dito, estabelecendo um recorte que reflete ciência” individual do falante mas do escopo geral
posição do sujeito, sua inscrição em uma formação: do dizer, no jogo entre formações discursivas di-
discursiva —, o faz por necessidade histórica. Ao se versas: a censuta é função da posição do sujeito, ou
dizer algo, apaga-se necessariamente a possibilidade seja, do seu lugar de produção de sentidos no con-
de que se diga outra coisa naquele lugar. O meio» junto do dizível. Pela censura, o sujeito é impedido
plágio se inscreve nesse mecanismo desilenciamens de ocupar posições consideradas proibidas porque
to no entanto de modo particular: ele joga com 0 produzem sentidos proibidos. O sujeito é proibido
princípio da autoria, trazendo-a indevidamente de circular pelas formaçõesdiscursivas,
para si. O enunciador, que repete e apaga, toma o Além disso, há outro aspecto da censura que é
lugar do autor. interessante comentar: a censura, ao contrário do
A nossa finalidade, ao produzir este texto, não é que se supõe comumente, não age sobre o que o su-
levar à autocrítica. Mesmo porque não consideramos jeito não sabe mas justamente sobre aquilo queele
este fato — a não-citação de umaidéia claramente é suposto saber(o já-dito). O problema, na censura,
já-dita — como setratando de um fato individual não é, comojá dissemos, impedir a informação, mas
ocasional mas sim sistemárico € geral. Isso para nós evitar que haja trabalho histórico do sentido e, con-
indica que ele já se incorporou à história e funcio- segientemente, da identidade dos sujeitos. Ou seja,
na discursivamente emnosso imaginário como uma a censura procura estancar o movimento social e
prática ideológica que se produz “automaticamente” histórico do sentido que produz os sujeitos em seus
no dizer científico. Isto é, ele já faz parte do nosso processos de identificação. Também esse aspecto
modo de produzir trabalho intelectual, da censura está presente no fato que analisamos: ao
Dessa forma, o que pretendemos com esta refle- dizer o já-dito (localizado) sem citar, o meio-pla-
xão é tornar explícito esse mecanismo para que ele giador intervém no movimento quefaz a história,
não passe como algo “natural”. Paralelamente, pode- a trajetória dos sentidos (nega o percurso já feito)
mos considerar com mais interesse e acuidade as suas e nos processos de identificação (nega a identidade
consegiiências no modo de produção intelectual; o ao outro).
que significa ser intelectual, nessas condições? Essa forma de fazer ciência, pelo meio-plágio,
Para compreendê-lo como fato discursivo, va- ainda que subproduto de processos gerais e inscri-
mosconsiderá-lo no:tonjunto defatos que caracte- tos no funcionamento automático da linguagem,é,
rizamos comosilenciamento e censura. pois, uma forma de censura. Censura do outro, an-
À censura, segundo o que já dissemos, tem jus- tes de tudo, porque lhe negavoz. Mas, mais profun-
tamenteesse caráter, o de não ser um fato da “cons- da e paradoxalmente, ao silenciar o outro, o meio-
é disso que se trata. Mesmo que possa vir a ser. nada de novo sob o sol, mas sim que não há dizer
Esse mecanismo de não-citar produz o lugar que se faça “fora” da história, Todo discurso é parte
(da falta) do dizer como lugar possível quando, de um processo discursivo mais amplo que o toma
na realidade, esse lugar já está realizado (cheio), emsua rede de significações. É assim que fazemos
caracterizando-e assim como uma forma de des- sentidos. Mas, ao retomá-los, produzimos um des-
conhecimento. É pois uma das formas ideológicas locamento, empurramo-los para outros lugares.
de apagamento da materialidade histórica do dizer. O meio-plágio, ao se produzir como uma nega-
Nega a memória. Destitui o “saber” discursivo de ção dafiliação histórica, individualiza a memória
gar de equívocos, de deslocamentos, de debates, de que cabe muito bem no que estou cematizando: “eles assinam as inter-
pretações. Traduzido para à vida acadêmica, vejo exatamente isso: ao
possíveis. ler, ao compreender a idéia do outro, o aprendiz, o leitor, assina o que
E quem perde com isso? O conhecimento. Por- aprendeu, o que leu, e “esquece” a fala do outro que produziu sua com-
preensão, sua leitura. Modo de produção intelectual em que não existe
queele também não avança com essas estratégias de mais leitor, só autor.
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CONCLUSÃO
Finalmente,o silêncio nos coloca diante da ques- retorna. O traço comum entre a errância do senti-
tão da natureza histórica da significação, na análise do,a itinerância do sujeito e o correr do discurso é a
de discurso. idéia de “movimento”,
De todo modo, em relação à significação,essa re- Em nossa reflexão, consideramoso silêncio na pro-
flexão nosleva à compreensão de um aspecto funda- dução do sentido como uma das instâncias em que
mental, o da necessidade do sentido, que fica assim se produz o movimento,já que o silêncio é o espaço
formulada: se umsentido é necessário, cle é possível; diferencial que permite à linguagem significar (dis-
se impossível, é porque não é necessário historica- cretamente). No silêncio, o sentido se faz em movi-
mente, Sendoo silêncio a garantia dessa necessida- mento, a palavra segue seu curso, o sujeito cumpre a
de, já que mesmo o não-formulável (ou não-formu- relação de sua identidade (e da sua diferença).
lado) significa. O que não é a linguagem, quando se O silêncio tem assim uma função nas ilusões
trata dos sentidos, não é o nada, mas silêncio. Por constitutivas da linguagem (a do sujeito como ori-
+
exemplo, os sentidos da negritude ou do feminino gem e a da rcalidade do pensamento), enquanto
a a
silenciados em sua expressividade social própria sig- condição para o movimento, enquanto lugar do
nificam de outro modo (na umbanda, na capoeira ou possível para o sujeito e os sentidos.
na moda, numa forma de fazer literatura ctc.). Essa É desse modo que entendo a afirmação de um
migração resulta (e é a marca) da necessidade histó- sujeito “itinerante”, umsujeito discursivo. Porque o
rica dos sentidos. Deriva também daí o modo como sentido não é um, é muitos. Isso está dito na análise
podemos conceber o político no que chamamosde de discurso na definição do dizível pelo conjunto
silêncio. Se ao falar sempre afastamos sentidos não- de diferentes formações discursivas que se pôem em
desejados, para compreender um discurso devemos jogo emcada gesto de dizer. Comoa relação do su-
perguntar sistematicamente o que ele “cala”, jeito com as formações discursivas tem como com-
Além disso, olhando agora pela perspectiva do ponente o silêncio, o sujeito percorre diferentes
sujeito, podemos chegar a afirmações igualmente limites de sentidos (formações discursivas diferen-
interessantes, do ponto de vista da significação, a tes), Nesse jogo do sempre-já-lá (efeito de pré-cons-
respeito desua natureza discursiva. truído) produzido pela relação com o conjunto de
À errância do sentido, à sua capacidade de migra- formações discursivas (o interdiscurso, a memória
ção, junta-se o fato de que tambémo sujeito é errá- dos sentidos), o sujeito elabora a “diferença”, Como?
tico,ele se desloca em suas posições, ele “falha” etc. Porque o silêncio permite que ele se “descole” do
A
como efeito da contradição entre formações discur- coisas igualmente interessantes, tem esse aspecto de determinação históri-
ca: o plural necessário doolhar do historicamente coagido. Aqui lembro a
sivas c da própria relação de uma formação discursi- fala de Matraga (G. Rosa, 1951): “o sapo não pula por boniteza mas porém
va comela mesma (sua heterogeneidade). por precisão”,
CONCLUSÃO |
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154 | AS FORMAS DOSILÊNCIO
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para tentar apreender a experiência da produção da Silêncio, exterioridade
própria imagem(refletida) ou descobrir o seu mis-
tério, ou seja, ver-se (ler-se, dizer-se). A ambição de Nointerdiscurso não há lugar para o sujeito, Este,
estar nos bastidores da encenação da identidade, por sua vez, se especifica na formulação, pois nela
Essa relação, na linguagem, só sc dá no/pelo si- ele adquire concretude: o formulado tem sujeito e
lêncio. sentido determinados. Noentanto, é preciso pensar
Não porque o silêncio mostra isso, responde a os processos de mediação histórica. O dizível — do-
isso. Mas porque por ele se percebe um mecanismo mínio do interdiscurso — é o da globalidade dodi-
importante de produção de sentido. Ele é lugar de zer que só adquire especificidade na determinação
apoio teórico para se compreender o efeito ideoló- histórica das diferentes formações discursivas. Estas
gico elementar: o de queo sujeito já está sempre-lá representam domínios do saber historicamente de-
(efeito Munchhausen; Pêcheux, 1975). terminados e que determinam, emsua inscrição,a
É assim que podemos entender o mecanismo da posição do sujeito e a delimitação do sentido. Aí
incompletude como constitutiva do sentido e do su- já há pontos de subjetivação historicamente cal-
jeito. O lugar em que o sujeito “se”significa parasig- culáveis. Às formações discursivas já representam
nificar. O silêncio torna possível esse gesto de inter- recortes do interdiscurso. São regiões de sentidos
pretação mínimo (e nem porisso pequeno), aquele já dimensionados, situados no conjunto do dizível
que nos instala na origem de nós mesmose de nos- e que representam as diferentes determinações do
sos sentidos. Imaginariamente. Aí não interessa se a social, do político e do histórico. Em seu conjunto
interpretação fixa ou não fixa,se é engano ou nãoé. elas constituem o interdiscurso. Ninguém tem pois
O que importa é saber o que torna possível o gesto acesso ao conjunto do dizível (o interdiscurso), só a
da interpretação, o quelhe dá “origem”, porções dele. Se no interior de uma formação dis-
O silêncio fundamenta o movimento da inter- cursiva se pode transitar por construções diferentes
pretação. Ele é o ponto de apoio do giro interpreta- nos processos de significação, esse trânsito aparen-
tivo. Que produz o efeito de sustentação da ilusão temente livre já vem determinado pelo recorte im-
do sujeito como origem de si e dos sentidos: o sujei- presso por uma formação discutsiva no conjunto do
to não se vê como interpretando mas como “dan- dizível. A esses recortes o sujeito não tem acesso; ele
do” sentido. Porque podetestar em silêncio, porque se constitui pelo estabelecimento deles, É assimque
podesignificar em silêncio. se pode entender que a ideologia não tem exterior.
Como também se pode compreender a afirmação
de que o inassertado domina o assertado, o inter-
concuusão | 161
160 | As FORMAS DO SILÊNCIO
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lhe nega toda distância interlocurória”. Assim, nisso É essa definição discursiva da palavra — que
que chamamos em nossa reflexão de dialogia total, a vê como lugar de uma resistência irredutível a
ela é “tragada pela utopia da comunidade” (Jenny, qualquer fechamento — que assegura que nenhu-
ibid.). Sob pretexto da representação,ela só opera a ma utopia expressiva se cumpra sem que desabe,
repetição de umapartilha representativa “sempre já- ao mesmo tempo, o mundo dalinguagemno qual
estabelecida”, Ela se reduz assim a um solilóguio infi- ela ambiciona ter-se realizado. Aí está o aconteci-
nito (cf. Orlandi, 1991). mento da palavra em perpétuo desdobramento:
Essacrítica se encontra com a que temosfeito a res- palavras que se desenvolvem em palavras indefini-
peito da generalidade comquese têmtratado a enun- damente. Não precisamos pois ser seus guardiães,
ciação (sob o aspecto dialógico) e a retórica (a partir nem proteger sua abertura,
da dominância de um “tu” que reduz o outro, sob a Daí que, para Jenny, a questão é, antes, “de nosso
noção de interação ou interlocução). destino nela”. A nós cabe reconhecer a pluralidade
De nosso ponto de vista, isso se dá pelo modo de “sítios de palavra”, aos quais nos consagra o pre-
como é tratada a questão do sentido sob a domi- sente à fim de aí nos arranjarmos uma mobilidade,
nância de concepções pragmáticas (neopositivis- uma escolha, uma “liberdade de habitação”. Nesse
tas) da linguagem, tal como essas concepções vêm ponto é que ele propõe a palavra taciturna”, para
sendo praticadas academicamente pelos lingiiistas não perderde vista a fala como acontecimento.
e seus congêneres. Citando Gianni Vattino (Lafin de la modernité,
Também para L. Jenny, como para nós, há no 1987), ele identifica três tipos de formas contempo-
entanto um outro momento, o momento “discur- râneas da arte e da morte da arte: a utopia (esteti-
sivo”, que pode ser o momento em quese instala zação geral da vida pela cultura da mídia), o kiisch
umadiferença. (auto-ironização do estatuto da arte) e o silêncio
O que ameaça o momento discursivo, diz Jenny (suicídio de protesto). Desse modo,a arte, ela pró-
(ibid.), é “o desejo de esgotar as possibilidades for- pria, estaria conduzindo, por essa trilogia, ao decli-
mais da fala”, ou seja, são as utopias da totalidade. nio do futuro da palavra.
Maso que o salva dele mesmo, segundo esse autor, No entanto, Jenny contesta esse declínio, em
é a sua “transitividade”, já que cada um de seus mo- particular o que diz respeito ao silêncio.
mentos se antécipa sobre a atualidade seguinte e cla Não é todo silêncio, diz ele, que deve ser com-
aparece não como o instrumento da abertura mas preendido como uma “negação ou um suicídio de
como essa torsade (espiral?) em que a abertura se protesto” Aí ele se encontra com o que dissemos
dá como um processo de formas. do sentido positivo dosilêncio (seja fundante, seja
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apresentam e se representam. E eles não são porisso portantes da análise de discurso, a de colocar como
uma ameaça: são antes um convite à vida, à expe- base de sua teorização esse movimento necessário
riência, à história, à interpretação. entre o um c o plural, a unidade e a dispersão, como
Vale a pena aí lembrar: toda palavra é capaz de pares necessários a que eu acrescentaria o mesmo e
poesia; todo sentido é capaz desilêncio, Como diz o diferente, a paráfrase e a polissemia,
Milner (1978), nada da poesia é estranho à língua A partir do reconhecimento dessas bordas do
(porque separar a arte?) e nenhuma língua podeser discurso, A. Lecomte (idem) fala sobre o fato de
pensadase aí não se integra a possibilidade de sua que há um significante impossivel que é rejeitado.
poesia, Assim é com silêncio. Não se pode pen- São os limites de cada formação discursiva, Sua per-
sar o sentido sem silêncio. Todo sentido é capaz de gunta então é: “em que lugar outro ele vai exercer
silêncio. Não há, diríamos, parafraseando Milner, seus efeitos?”
língua sem poesia e (sentido) sem silêncio. Jogo entre conjunto aberto (conjuntos com
bordas mas não contendo suas bordas: enunciados
cuja fronteira só é dizível se se incluir, sob certo
O que é preciso não dizer: a incompletude modo, seu outro) e conjuntos fechados (enuncia-
constitutiva dos com bordas mas contendo suas bordas), esse
lugar outro, a meu ver, é o trabalho do silêncio. É
Poraí chegamos ao que, no desenvolvimento desta aí, no lugar do impossível, e no da suspensão da
reflexão, tratamos como o “silêncio necessário”, ou contradição, que se dá a possibilidade de o dizer
seja, o que é preciso não dizer para dizer. Talvez seja vir a ser outro.
interessante fazer apelo aqui ao que À. Lecomte É esse modo de concebera relação com o ou-
(1981) expõe ao falar das “interdições”: “essas inter- tro — onde podemos distinguir tanto o impossível
dições nos dão umperfil de umcerto inconsciente para uma formação discursiva em relação a outra,
do discurso”: o que não se pode dizer”. como o impossível para o conjunto de formações
Esse silêncio — o que não se pode aí dizer — é o discursivas — pelo silêncio (e não pelo implícito)
indício das “bordas” do discurso, e é “em torno des- que desaloja a noção de “alteridade” da perspectiva
sas bordas, é tomando apoio em seuefeito que se vai dialógica que se assenta sobre o segmental,
executar a fantástica sinfonia do um e do infinito, É assim que entendemosque esse movimento do
do singular e do disperso”, sentido, o desdobrar-se do sentido em sentido, in-
Não podemos deixar de observar, antes de con- definidamente, é função do silêncio,
tinuar, que essa é uma das contribuições mais im-
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lho (Orlandi, 1990), também a desorganização é
O silêncio e seus efeitos
constitutiva do sentido e da identidade.
Desse modo, podemos chegar a nossas conclusões. + Compreender o silêncio além da divisão explíci
Se algum ganho houve nesse percurso que fizemos, to/implícito ou pressuposto/subentendido nos
ele pode ser formulado em duasdireções: faz ver que a relação com o não-dizersc abre
para um espaço de recorrência de processos de
1. Compreender a censura além da idéia de interdi- significação muito mais complexos e que nãoes»
ção redutora, ouseja, aquela que só vê a censura tacionam apenas em um dizer que está à espera
na relação com o implícito (que não deve ser dito) de explicitação. Pelo estudo do silêncio tal como
quandonarealidade a censura é um processo que o encaminhamos, podemos dizer que, assim co-
não trabalha apenas a divisão entre dizer e não- mo o efeito de sentidos institui uma sobra que é
dizer mas aquela que impede o sujeito de traba- o sentido “literal”, há um efeito produzido pela
lhar o movimento de sua identidade e elaborar a relação do silêncio com o não-dito cuja sobraé
sua história de sentidos; a censura é então enten- o “implícito”, Sentido literal e implícito são, em
dida como o processo pelo qual se procura não nossa perspectiva,efeitos. O que fizemos foi ir ao
deixar o sentido ser elaborado historicamente lugar teórico da produção desses efeitos.
para ele não adquirir força identitária, realidade
social etc. Isso só pode ser apreciado pensan- Se o efeito daliteralidade dá ao sujeito a impres-
do-se a relação com o silêncio. Por outro lado, são de que o sentido é “um” (ou pelo menos estável,
a censura, cla mesma, funciona como um simu- permanente), o efeito do implícito produz a im-
lacro do silêncio e dessa forma ela o “objetifica” pressão de que a incompletude é relativa (no jogo
(coisifica-o), impedindo gue ele exerça sua força do dito e não-dito) e, portanto, remediável,
desorganizadora. Assim, ao conduzir o silêncio Ambos os efeitos jogam na impressão da reali-
às outras palavras (que não podemser ditas), a dade do pensamento (domesticação da relação da
censura o faz de forma a defini-lo, circunscrevê- linguagem com a exterioridade) e na de que o su-
lo; mas, pelo próprio gesto de fazê-lo, devolve- jeito pode sempre ter acesso ao indizível (estabili-
lhesua fluidez; ondeele produz seus desligamen- zação da história pela “vontade”, pela “intenção”.
tos, descontinuidades em seu modo de significar Em todas essas impressões prevalece a idéia de
c ressignificar, perdendo seu caráter organizador, que o sujeito podeatravessar as fronteiras do saber
caudatário de seu atrelamentoàs palavras. Como e do poderpela sua força de vontade (onipotência
já tivemos a ocasião de afirmar em outro traba- cristã, voluntarismo), e completar o dito.
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Com silêncio, ultrapassa-se o sentido do não- regras (ilusão do linguista). O real discursivo, por
dito comoaquilo quese pode dizer mas nãoé preci- sua vez, incide sobre a matéria significante, que é
so, ou o não-dito que exclui, para se atingir o fun- lingiiística e histórica, e seu efeito, que advém do
cionamento da significação em que estão em jogo silêncio, é o de que sempre há sentido. Ilusão his-
a constituição mesma do processo designificar e o tórica do jogo das formações discursivas, da rela-
ponto de efeito discursivo de onde falamas “outras” ção do discurso coma exterioridade. Efeito de um
palavras. imaginário quese assenta na necessidade que tem
Podemos então pensar o funcionamento do si- o sujeito de sempre “dar” e “ter sentido”, já que,
lêncio nadistinção entre: a) a realidade que é o que como animal simbólico, ele está condenadoa sig-
se chamade contexto de situação; b) do real do dis- nificar, a interpretar, Difícil lhe é suportar o não-
curso que é o silêncio e que nos indica que o sentido sentido.
pode sempre ser outro; c) da noção de exterioridade É questão crucial, para a análise de discurso, a
tal comoela funciona na análise de discurso e que diferença (e a relação) entre o não-dito e o não-sen-
se representa, no trabalho dosilêncio, na produção tido. O não-dito é o que pode (ou não) significar.
do interdiscurso, que é o efeito da relação da mate- O non sense, para Pêécheux, é fundamental para a
rialidade histórica com a da língua, resultando na ruptura, o novo, o outro sentido: “de modo que o
“memória” do discurso, seu “saber”; a relação do irrealizado advenha formando sentido do interior
discurso com o real, do não-sentido” (Pêcheux, 1982). À análise de dis-
O interdiscurso, como sabemos, resulta do jogo curso se ocupa dessa passagem do não-sentido ao
das formações discursivas à dominante e representa sentido. E aí, percebida na relação como silêncio,
na análise de discurso o fato de que ça parte, avant a ideologia aparece como o imaginário necessário
et aillenrs. É aí que se podem compreender tanto que, pelas sua falhas, permite o deslocamento.
o silêncio (fundante) que torna possível o signifi- Assim, aqui se afigura necessário distinguir isso
car quanto a incompletude enquanto condição do que estamos chamando de efeito que sc produz so-
múltiplo: “falamos tudo e ainda há o quesilenciar” bre o não-sentido e o que dissemos sobre o efeito
(C. Vogt, 1982). que se constitui sobre o não-dito.
Seo rcal da línguaé o sistema significante e o do Comojá dissemos anteriormente, pode-se fazer
discurso é o siléficio como constitutivo da sigaifi- coincidir, ilusoriamente, o silêncio com o não-dito
cação, é preciso ainda acrescentar que não se pode enquanto filiação necessária ao interdiscurso e aí
deixar de distinguir, em consequência, que o real o que não se diz aparece identificado ao já-dito,
formal produz o efeito imaginário do sistema de portanto desnecessário de dizer; mas se pode con-
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do ideológica. É isso que Pêcheux diz (1975) quando
zer que toda palavra, para significar, tira seu senti
ente. afirma: “O discursivo só pode ser concebido como
de formulações que se sedimentam historicam
um processo social cuja especificidade reside no
Todapalavrarefere ao discurso no qual significa ou
tipo de materialidade de sua base,a saber, a mate-
significou. Dito de forma mais incisiva: toda pala- rialidade linguística”.
vra é atestação do interdiscurso, Uma palavra por No entanto, a compreensão desse fato me pa-
,
outra, que é próprio dofuncionamento discursivo
seja, ideo- rece vir acompanhada de outra, necessariamente,
significa assim um discurso por outro. Ou
da quando se pensao silêncio: a de que a análise de
logia. Se é essa a condição de funcionamento
nossa s palav ras; discurso não pode se inscrever entre as disciplinas
linguagem — não falamos só com
que exercem irrestritamente (violência da?) inter-
habitamos o equivoco necessário —, a relação do
pretação, O silêncio indica o limite da interpreta-
silêncio é com outro(s) discurso(s) inscrito(s) nas
ção e acompanha a concepção do movimento dos
palavras. Porisso, a proposta que bem define a aná-
sentidos e dos sujeitos: incompletos e abertos para
lise de discurso é a que a pensa como um programa
se tornarem outros. A interpretação — comoa ilu-
de leitura particular: a que vê em todo texto à pre-
são da unidade e da completude — tem sua função,
sença de um outro texto necessariamente excluído
mas é apenas parte do funcionamento darelação do
mas que o constitui. Princípio discursivo de base
homem com o simbólico: se sentido e sujeito estão
que coloca como seu fundamento à articulação en-
em constante movimento, a interpretação é parte
tre unicidade c duplicidade. Aí está a ideologia em
desse movimento, não algo exterior a cle, não po-
pleno funcionamento: no que necessariamente se
u- dendo,pois, regulá-lo de fora. A análisc de discurso
silencia. Diríamos, em consegiiência, que a “leit
de mostra assim um seu aspecto paradoxal: ela é uma
ra” em análise de discurso, não pode prescindir
disciplina interpretativa mas reconhece os limites
um lugar teórico para o funcionamento do silêncio.
da interpretação e procura desmanchar o caráter li-
Esselugar, por suavez, implica reconhecer o estatu-
near dela. Isto é, a análise de discurso é um exercício
to do que chamamos “materialidade” (dossentidos)
permanente das bordas da interpretação” Por isso
na análise que propomos (seja da linguagem, seja
se propõe não a interpretar masa compreender os
dosilêncio). Poisé pela noção de materialidade que
odemosintervir nãilusão de transparência (efeito s Os limites, suas contradições e seus deslocamentos, essa matéria de re-
um
de literalidade), pensando então a língua como flexão é constante na análise de discurso c isso está muito presente no seu
sistema não de formas abstratas, mas material, ou
autor mais expressivo, do qual cito aqui um fragmento do seu livro Semán-
sica e discurso (1989); “ninguém pode pensar do lugar de quem quer que
seja, espaço de manifestação das relações de força e seja: primado prárico do inconsciente que significa que é preciso suportar
de sentidos que refletem os confrontos de natureza o que venha a ser pensado, isto é, é preciso ousar pensar por si mesmo”,
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o.
e que
siva, pois é o funcionamento da paráfras
processos de significação que sustentam à interpre- configura o espaço da formação discursiva
como
tação e que mostram seus contornos instáveis. o espaço do “mesmo” no processo deidentifica
ção
Eudiria mesmomais do queisso, É essa concep- do sentido, já que, ao identificar o sujei to, o me-
ção discursiva da interpretação e suas bordas que canismo da paráfrase lhe dá, ao mesmo temp
o,à
nos permite compreender tendências diferentes impressão da estabilidade do sent ido, da perm a-
em teorias como a psicanalítica, a da história das nência de seu “conteúdo”, À própria iden tida de
mentalidades, a da crítica genética etc. Em suma, é é função do eterno movimento entre pres
ença €
umaconcepção discursiva da interpretação que tOr- ausência, entre o um e o múltiplo, em cuja
base,
na possíveis essas diferentes tendências. Aqui no- como vimos, está o silêncio significan te.
vamente intervém a afirmação de Pêcheux (1969) A análise de discurso é enfim uma relação com
a
de que “a teoria do discurso não pode de nenhum linguagem: relação em que não se mantém a disti
n-
modo se substituir a umateoria da ideologia, assim ção forma/conteúdo mas antes se pensa à ques tão
como não pode se substituir a uma teoria do in- da sua materialidade que é linguística e histó
rica e
consciente, mas ela pode intervir no campo dessas na qual se pode pensaro silêncio em sua impo rtân -
teorias”, r, nesse
cia fundamental. E se assim é, vamos deixa
Retornando, agora, ao que a reflexão sobre o si- ponto, que os sentidos da reflexão que ela nos
pro-
lêncio nos permite compreender do discurso e da põe façam seu percurso, acolham o tempo de
sua
produção dos sentidos, podemos entender melhor proveniência,e se devolvam a seu silên
cio. Porque é
fora
o fato de que, na perspectiva discursiva, a metá nele que estão os outros sentidos.
(etimologicamente “transferência”) é a condição de
existência do sentido:
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9 O)