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O encontro impossível de

J O S É J O R G E D E C A R V A L H O

JOSÉ JORGE DE
CARVALHO
é professor do
Departamento
de Antropologia
da Universidade de
Brasília.
ECO e
I. PRIMÓRDIOS DA HISTÓRIA “Estamos assim na
Algo de críptico, de irredutivelmente
misterioso e fundante parece condensar-se situação daquele que vê seu
por trás do diálogo curto e simples – ele-
mentar, por que não? – construído por
Ovídio ao narrar a fábula de Eco e Narciso.
próprio reflexo e ao não
A alta compressão lógica e lingüística, ali-
ada à intensidade emocional da história, saber de onde vem, corre em
convida o leitor a intervir no texto, a permeá-
lo de interpolações – frases, palavras, ad-
vérbios, adjetivos – que o ajudem a sua direção” (Plotino).
compreendê-lo, se não por inteiro, pelo
menos como um todo. Exercício aparente-
mente inevitável esse, pois o texto ovidiano
é por demais aberto e a ele se acrescentam
coisas para fechá-lo por algum lado, im-
por-lhe um novo sentido provisório; enfim,
para fazer dessa narrativa sem tempo um
texto em que possamos nos espelhar e ou- “…até que tenha entrado
vir o nosso próprio eco (1).
Quase todos os comentários à fábula,
desde os primeiros séculos da nossa era, em suas faces recatadas
têm se concentrado na história de Narciso
e de seu amor por si mesmo. Pensemos por
o claro Narciso libertado”
exemplo na meditação metafísica, quando
não diretamente mística, de Plotino, ao
comentar o amor de Narciso por sua pró- (R. M. Rilke).

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pria imagem como uma alegoria da alma próprio corpo, se não que, como Narciso,
que se identifica errônea e fatalmente com seduzido pela forma corporal, que é a ima-
sua beleza corpórea, em vez de seguir sua gem da sua formosura, deseja a sua própria
marcha ascensional de fusão com o Uno: beleza. E como não se dá conta desse erro,
desejando uma coisa e perseguindo outra,
“Ao ver as belezas corpóreas, em modo não pode jamais realizar seu desejo” (3).
algum se deve correr atrás delas; pelo con-
trário, sabendo que são imagens e rastos e Na atualidade, essa mesma história pas-
sombras, há que fugir em direção àquela de sa igualmente por um processo acentuado
que estas são imagens. Porque, se alguém de assimilação por parte da literatura de
correr na direção delas querendo tomá-las divulgação, que reduz seus elementos nar-
como coisa real, sucederá com ele o que rativos e simplifica bastante seus planos de
aconteceu com aquele que quis agarrar uma significado, concentrando-se quase exclu-
imagem bela que flutuava sobre a água tal sivamente num mitema específico, qual seja
como, com misterioso sentido a meu ver, o do tão comumente chamado narcisismo.
1 Muito me inspiraram as várias
relata certo mito: que mergulhou na A fonte difusora dessa leitura unilateral é discussões sobre o destino
de Eco e Narciso que manti-
profundeza da corrente e desapareceu” indubitavelmente o ensaio de Sigmund ve com as psicanalistas Dirce
(Enéada I, I, 6) (2). Freud, de cunho realista, Introdução ao França, Nilza Mendes Cam-
pos, Teresa Cristina e Zalex
Narcisismo (4). Uma continuadora recente Süffert. Agradeço também os
comentários e sugestões de
Plotino conseguiu captar, a meu ver, de sua teoria é Júlia Kristeva, que dedicou Rita Segato e Ondina Perei-
uma das mensagens realmente profundas dois capítulos de seu livro Histórias de ra. Sou especialmente grato
a minha colega e mestra de
da história e sua leitura é ainda um modelo Amor à interpretação psicanalítica do dra- latim, Janete Melasso Garcia,
impecável de exercício de captação da di- ma de Narciso. por ajudar-me a penetrar nas
sutilezas do original de
mensão espiritual em narrativas míticas. Dois poetas posteriores a Freud reto- Ovídio.
Continuando essa trajetória de fixação maram a inflexão metafísica do mito: Paul 2 Para uma excelente interpre-
em apenas um dos personagens dessa rela- Valéry, que em três poemas retomou a voz tação dessa criativa leitura de
Plotino, ver P. Hadot (1976).
ção mítica, a fábula foi retomada no de Narciso e Rainer Maria Rilke, que no
Renascimento pelo influente neoplatônico enigmático Soneto a Orfeu II, 3, inquiriu 3 Marsilio Ficino, De Amore, cap.
XVII (1986, p. 179).
Marsilio Ficino, que a utilizou em seu De sobre a essência do espelho e imaginou um
4 Vale ressaltar que Freud não
Amore, no contexto de uma teoria do amor deles tão incontaminado como a fonte des- se dedicou a formular uma
que, ao servir de complemento à intuição crita no poema de Ovídio, capaz de refletir interpretação textual do
mito, tendo herdado o ter-
plotiniana, também visava conjugar paga- toda a beleza de Narciso. No campo da crí- mo de Paul Näcke. Eis como
o define: “o termo narcisismo
nismo e transcendência: tica literária, duas análises textuais recen-
designa aqueles casos em que
tes da fábula são ainda dignas de nota: a de o indivíduo toma como ob-
jeto sexual o seu próprio cor-
“Porque o espírito, seguindo o corpo, des- John Brenkman, baseada nas abordagens po e o contempla com pra-
preza a si mesmo e não se sacia com o uso do críticas de Northrop Frye e Jacques Derrida, zer, acaricia-o e beija-o até
chegar a uma satisfação com-
corpo. Pois ele não apetece em realidade o bastante exaustiva e minuciosa; e pleta” (Freud, 1996, p. 2.017).

NARCISO R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 8 ) : 1 5 0 - 1 6 5 , J U N H O / A G O S T O 1 9 9 8 151
a de Claire Nouvet que se propôs da que fatal (ou justamente por isso), essa
dessubstancializar radicalmente tanto a relação perturbadora foi construída por
história como todos os seus personagens. Ovídio num modo discursivo perfeito e se
Nenhuma delas, contudo, privilegiou a re- dirige, então, alegoricamente, a todos que
lação entre Eco e Narciso tal como me pro- amam, ou que pensam que amam.
ponho fazer. No Brasil, Junito Brandão
ofereceu uma detalhada interpretação, de
cunho clássico, do mito de Narciso em sua II. OS PREDICAMENTOS DO
Mitologia Grega, vol. II, incluindo em seu DESEJO
texto a leitura, de corte junguiano, realiza-
da por Carlos Byington, além da versão A história abre com uma disputa sobre
poética da fábula proposta por Fernando experiência sexual, iniciada por Júpiter. A
Pessoa. questão concreta é decidir quem sente mais
Como disse, investigar o processo de prazer, se o homem ou a mulher. Júpiter
fragmentação de uma história que é, certa- sustenta que é sua consorte Juno quem goza
mente, mais complexa e mais rica em per- mais e ela o nega com veemência. Tirésias
sonagens do que normalmente se julga, já é então chamado a opinar e, com base em
seria, em si mesmo, assunto do maior inte- sua experiência bissexual – por duas vezes
resse, pois revelaria algo sobre a recepção, apartou com um cajado um par de serpen-
ao longo de vinte séculos, de um mito em tes em conluio sexual: da primeira vez foi
que suas primeiras versões discorriam fun- magicamente transformado em mulher e
damentalmente sobre os dilemas da dialogia por sete anos conheceu o prazer sob o seu
amorosa. Mas não é sobre isso que me in- ponto de vista; da segunda vez, apartou
teressa discorrer. O texto de Ovídio conta aqueles amantes de novo e foi devolvido à
a relação entre dois seres, duas naturezas sua condição original de homem –, opta
distintas que se encontram, se desejam e pelas mulheres. Juno, ofendida com a deci-
buscam realizar a atração que os une. E se são de Tirésias, condena-o à cegueira; e
a estrutura do narcisismo já nos parece agora Júpiter, para compensá-lo da desgraça,
clara ou pelo menos familiar, a relação de concede-lhe o dom da profecia.
Eco e Narciso, entendida como expressão É difícil deduzir com precisão quais
de um encontro em planos múltiplos – foram as motivações de Juno. Uma das
amoroso, lingüístico, filosófico, psicológi- interpretações mais comuns seria a de que
co –, continua ainda bastante enigmática e o excesso de prazer sexual (de acordo com
pouco compreendida. Até onde conheço, o cego adivinho, se o coito tivesse dez par-
então, esta que faço é possivelmente a pri- tes, às mulheres tocariam nove) indicaria
meira leitura textual completa brasileira da falta de controle, desmesura e dependência
relação dialógica entre Eco e Narciso tal da disposição masculina para o jogo amo-
como narrada por Ovídio. roso. Por isso, a esposa-irmã de Júpiter,
Regresso então ao belo texto ovidiano como representante do sexo feminino, en-
e dele solicito que me fale, que nos fale, tende que isso colocaria as mulheres numa
que seja mais uma vez oráculo – aberto, posição inferior, no contexto de uma ideo-
impreciso, inspirador, surpreendente, ca- logia que privilegia, em primeiro lugar, não
paz de tornar próximo e atual um tema que o desejo, mas o domínio sobre ele; nem o
parece distante e arcaico; enfim, que seja excesso nem a ausência de atividade sexu-
pessoal e intransferível apesar do marco al, mas a moderação, o cuidado de si atra-
genérico em que se sustenta. Quero que ele vés do autocontrole. Configura-se, em tem-
me fale da história de Eco e Narciso, desses pos recentes, a possibilidade de uma outra
desiguais que parecem se encontrar, mas leitura, afim com a revolução feminista e
que de fato não se encontram nunca. Expe- com a inversão de poder preconizada por
riência singular, talvez, anomalia da hu- algumas de suas vertentes: o homem não
manidade, ou vivência de todos? Pois, ain- deveria saber que sua pretensa capacidade

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de sujeitar as mulheres através do gozo do, porque aceitou transformar-se em ins-
sexual de que elas parecem carecer é, na trumento discursivo de Júpiter para afir-
realidade, ilusório. Trata-se, então, de um mar a visão masculina do mundo, que pre-
segredo sobre a condição masculina e cabe tende quantificar aquilo que é exclusiva-
à astúcia feminina prover as condições mente qualitativo.
necessárias para a continuidade dessa ilu- Justamente quando aprende, pelo me-
são dos homens sobre sua natureza. É daí nos como observadora, o prazer do amor,
que surge a resposta de Tirésias, quando Eco perde o dom da fala autônoma, o que
lhe perguntam se Narciso viverá muito: “Si pode ser interpretado como uma regressão.
non se noverit” (“Se não se conhecer”). E Mais tarde perderá também o próprio cor-
assim como Tirésias, mestre em sexo, Eco po, tornando-se pura réplica de vozes que
também foi castigada por Juno por prote- não são a sua. Em termos do que acima
ger Júpiter da ira da esposa, quando ele comentamos sobre a psicologia clássica,
fazia amor com as ninfas, suas irmãs. Essa Juno condena-a a se comportar como um
leitura traz luz também sobre a atitude in- ser ainda mais feminino – mais passivo e
tolerante de Juno: seu ciúme pelas aman- mais dependente – do que já era. Narciso,
tes de Zeus não se refere necessariamente por sua vez, peca por orgulho e recebe tam-
ao prazer que seu marido retira do encon- bém uma praga, de amar sem ser capaz de
tro com essas mulheres, mas talvez reflita possuir o objeto amado. Em perfeito para-
o seu despeito pelo gozo que ele propicia lelo ao destino de Eco, sofrerá também, no
a todas elas. final desse encontro-desencontro, uma re-
Um bom exemplo que sintetiza essa gressão existencial radical.
dupla inversão de poderes de sedução e Concentremo-nos no encontro de Eco e
prazer nos narra Homero no cap. XIV da Narciso. Eco é mais madura sexualmente
Ilíada, quando Juno se embeleza, toma que Narciso: já presenciou os jogos amoro-
emprestado de Afrodite o cinto em que esta sos de Zeus com suas irmãs e aí aprendeu
guarda os feitiços de amor, e consegue se- a linguagem do desejo. Na verdade, Eco
duzir eroticamente a Zeus, distraindo-o encarna a cadeia do desejo mimético, ela é
assim para levar a cabo seus projetos de a sua realização plena: onde há um
poder. Completando o vaticínio de Tirésias, desejante, lá está Eco, confirmando-o, fa-
poderíamos argumentar que – na perspec- zendo seu o desejo alheio. Apaixona-se,
tiva do homem, da qual o cego adivinho se então, como tantos outros, por Narciso, a
tornou porta-voz a mando de Zeus – a quem ensinará, inevitavelmente, essa mes-
mulher, não somente goza mais, como tam- ma estrutura da paixão mimética tão ele-
bém seduz mais que o homem. gantemente teorizada por René Girard. Ao
Proponho uma leitura alternativa dessa comentar o famoso episódio de Paolo e
controvérsia. O pecado de Tirésias, do ponto Francesca da Rimini, contado por Dante no
de vista feminino, não é haver revelado Canto V do Inferno, Girard argumenta,
necessariamente qualquer verdade sobre o convincentemente, que esses cunhados
gozo amoroso mas, após haver experimen- cometem adultério no momento em que
5 Ver Girard (1988). Dante o
tado as suas duas encarnações, optar pela imitam o desejo, igualmente interdito, de expressa com toda clareza
linguagem da quantidade e instituí-la na Lancelot e Guinevere, contado num livro quando Francesca explica
como seu amor eclodiu no
civilização a partir daí. É nesse sentido que de cavalaria. René Girard pode assim de- momento em que ela e Paolo
liam juntos a história de
ele se torna porta-voz de Júpiter (e, é claro, nominar Francesca – com propriedade de Lancelot e Guinevere: no
porta-voz de Ovídio enquanto homem nar- exegeta, ainda que não isento de uma pita- momento em que se beija-
ram a esposa de Artur e seu
rador), que foi quem iniciou a comparação, da de ironia – de “imitadora de imitado- (in)fiel cavaleiro, eles também
se beijaram. Francesca pôde
transformando o jogo amoroso numa com- res”. É essa cadeia perene de imitação do afirmar então, com tardia lu-
petição entre amantes. Juno possui, então, desejo de outrem que ele chama de desejo cidez: “Galeotto achamos nós
no livro e autor: /e nunca mais
pelo menos dois bons motivos para punir o mimético (5). Francesca da Rimini imitou foi a leitura adiante” (A Divi-
velho: primeiro, por falar daquilo que ela Thomas Malory que imitou Guinevere que na Comédia, Canto V, pp.
127-38; trad. de Cristiano
se negava a colocar em palavras; e segun- imitou Galeotto que imitou alguém até Martins).

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chegar a Eco que, se não foi o ponto zero da foges de mim?
corrente mimética do desejo amoroso (ques- ECO (ouvindo exatamente o que sempre quis
tão certamente insolúvel), pode pelo me- ouvir e dizendo o que sempre quis dizer):
nos ser tratada miticamente como a primei- Quid me fugis? – Por que foges de mim?
ra imitadora, na medida em que imitar é NARCISO (ardendo, entregando todas as re-
coisa de palavra. No nosso caso, podemos sistências): Huc coeamus – Unamo-nos
dizer que a corrente mimética passa das aqui.
ninfas a Eco, que a transmite a Narciso. ECO (saindo exultante de seu esconderijo):
Como a todas as outras, o desejo chega a Coeamus – Unamo-nos!
Eco de fora, porém, devido a seu lugar
dependente de fala, ela não consegue trans- O amor já se instalou, aqui, completo,
ferir a Narciso esse mesmo desejo de absoluto, ainda que momentâneo e mutua-
alteridade. O que nos conduz a pensar que mente não correspondido. O desejo de fu-
a dificuldade do narcisismo talvez não es- são se acendeu em ambos e agora se prepa-
teja em entrar na corrente mimética, mas ram para realizá-lo mutuamente. O acordo
na presença dominante do duplo interno, é total e – pena das penas! –, o mal-enten-
que transforma essa corrente num círculo dido é igualmente total. Mal sabe Eco que
vicioso. Narciso não quer fundir-se com ela. E mal
Duas coisas marcam o primeiro encon- sabe Narciso que Eco quer fundir-se com
tro desses seres díspares: Eco se apaixona ele porque pensa que ele a deseja tanto
pela imagem bela de Narciso e Narciso se quanto ela o deseja. A natureza oposta dos
deixa seduzir pela bela voz de Eco, que na dois se revela, transparente, nesse diálogo.
verdade é a sua própria. Intercambiando Narciso o inicia e quando diz “Vem!” fala
assim, já de entrada, suas duas naturezas como quem possui autonomia. Já a respos-
irredutíveis, é uma imagem que retira Eco ta de Eco é também fala de autônomo, po-
de sua introversão e é um som que retira – rém na boca de um ser dependente, o que já
ainda que ilusoriamente – Narciso de sua indica um mal-entendido. Ao ouvir a con-
indiferença diante do mundo. tra-ordem de Eco, Narciso entende-a como
uma recusa: ele, ser autônomo, nunca se
deparou com uma voz de autônomo. Por
III. O ENCONTRO DE ECO isso pergunta: “Por que foges de mim?”.
E NARCISO Eco repete essa mesma frase que soa, nela,
contraditória; afinal, Narciso não está fu-
Reconstruamos esse diálogo, tão inten- gindo dela. Contudo, ao pronunciá-la, con-
so e tão pobre ao mesmo tempo, tão perfei- firma seu interesse a Narciso, estimulan-
to e tão trivial. do-o a formular o convite amoroso:
É Narciso quem fala primeiro. Perdeu- “Unamo-nos”. Note-se que Ovídio sutil-
se dos colegas e busca retornar ao seu con- mente eliminou os dois “aquis” proferidos
vívio. Eco, sabemos nós, observa-o escon- por Narciso, para sublinhar que o diálogo
dida, extasiada. Narciso, nesse momento, se passa no lugar onde ele se encontra.
está onde não quer; Eco, pelo contrário, O mal-entendido entre os dois é total,
escolheu esse lugar de onde pode admirá- dissemos; porém, fixe-se bem, não é simé-
lo em sua beleza. trico. Aqui é Eco que conhece a alteridade
(ao amar o corpo de Narciso) e é Narciso
NARCISO: Ecquis adest? – Há alguém por que pela primeira vez começa a conhecer-
perto? se (ao amar sua própria voz). Aquilo que se
ECO: Adest. – Há alguém. instalara como entendimento completo é
NARCISO: Veni! – Vem! agora desentendimento absoluto; Eco se dá
ECO: Veni! – Vem! inteira, enquanto Narciso manifesta abso-
NARCISO (já aprendendo a linguagem-mira- luta recusa.
gem da paixão): Quid me fugis? – Por que No momento mesmo em que esse amor

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se instala, ele rui aos pedaços. Amor suici- ninguém? Em princípio, foi decidido pelos
da, ele só existe para negar-se. O susto de deuses que assim seria: era pois seu desti-
Narciso é máximo ao ver Eco aproximar- no. Uma vez perguntado se Narciso viveria
se. Ela é tudo que ele não deseja e rejeita- até a velhice, Tirésias, que se sabe homem
a com veemência mortal: e se sabe mulher, vaticina: “Si se non
noverit” (“Se não se conhecer”). Talvez
NARCISO: Manus complexibus aufer! ante conhecer-se para Narciso fosse descobrir a
emoriar, quam sit tibi copia nostri – Retira violação sexual inicial de que surgiu: o rio
tuas mãos que me abraçam. Antes morrer Cefiso enlaçou e aprisionou em suas águas
que entregar-me inteiro a ti. a ninfa Liríope. Quando Narciso se olha na
ECO (com a intensidade da paixão amorosa fonte vê, aprisionada na água, uma bela
que só conhece o caminho da morte): Sit figura que se parece à das ninfas – enfim,
tibi copia nostri – Entrego-me inteira a ti. vê Liríope cativa de Cefiso! Deter-se-á para
sempre nessa cena primordial que é o se-
Aqui se realiza o ciclo completo de um gredo sobre si mesmo: é este o conheci-
amor entre dois desconhecidos – nasce, mento sobre si que devia evitar a todo cus-
cresce, manifesta-se e fracassa, porque ilu- to, segundo Tirésias, e que se consuma no
sório, equivocado, deixando, ambos os momento em que Narciso proclama: “Esse
amantes, de coração despedaçado. Um sou eu!”
morre por entregar-se; o outro morre por Narciso é um ser claramente incapaz
não se entregar. Fracassa o amor, mas há de de estabelecer contato afetivo com os ou-
cumprir-se o que disse cada um. tros e é por esse lado que seu arquétipo
Eco, que com as irmãs havia aprendido parece tão relevante hoje em dia. Narciso
a amar, definha e se petrifica, mas é fiel à se transforma numa flor: tanto vem simbo-
sua natureza de ser desejante: a distância se lizar um produto da relação dos dois (o que
pôs, tão solícita e apaixonada como nunca. quer dizer que em algum nível a relação se
Narciso, conhecedor afinal da intensidade realizou), como o fato de que ele falhou no
do desejo do outro de que sempre fugiu, seu processo de humanização. Como não
marchará agora na direção de um outro saiu realmente de si e não pôde alcançar a
desejo de que não poderá mais fugir. dialogia, tornou-se uma planta, um ser
vegetativo, que se encontra numa escala
inferior à humana.
IV. A PAIXÃO DE NARCISO Ele aprende com Eco a sentir o desejo;
POR SUA IMAGEM aprende a apaixonar-se, tanto que a certa
altura do diálogo ele propõe, como se co-
Na fonte-espelho, local incontaminado, nhecesse de que se trata amar: “Unamo-
Narciso se apaixona pela própria imagem. nos”. Há, aqui, uma positividade de sua
Virgem ele, diante do espelho virgem, toma parte (se pensamos que até aquele momen-
por corpo o que é apenas sombra, ele que to ele não se relacionara amorosamente com
antes rejeitara o corpo real de Eco, haven- ninguém). Também Eco, que era uma inca-
do aceito sua voz. Será essa a loucura de paz verbal, cuja fala era puramente
Narciso? Deseja a si mesmo após (e não tautológica, infértil, consegue finalmente
antes) do encontro com Eco. Como Eco, um uso afirmativo e coerente da palavra.
definha em desespero. Fala com a floresta Há um breve momento, então, de perfeita
e, no final da fala, entende o que aconteceu: comunicação lógica e lingüística entre os
“Iste ego sum!” (“Esse sou eu!”). Chega dois, ainda que não de real complemen-
então a superar a inconsciência do chama- taridade. É claro, esse momento mágico não
do círculo narcísico, mas tarde demais. Tal vinga e quando Eco vem abraçá-lo ele foge
auto-amor é impossível, e admitir sua pre- e a relação colapsa, enquanto uma relação
sença é decretar-se à auto-extinção. explícita.
Por que Narciso não se relaciona com Frisemos, mais uma vez, que é depois

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que Narciso teve a experiência amorosa por admirar Narciso, e Narciso, por admi-
com Eco que ele se apaixona por si mesmo. rar a si mesmo.
Essa cronologia demonstra que Narciso foi
capaz de aprender a iniciar uma relação – a
relação consigo mesmo. E apesar de falhar, V. ECO, PRISIONEIRA DA
ao tentar amar-se a si mesmo, Eco está pre- PRÓPRIA VOZ
sente e o consola. Com o seu único atribu-
to, ajuda-o a sentir, a ouvir sua imagem na Eco esteve várias vezes envolvida num
água dizer que também o ama e sofre por clima de excesso sexual. De um lado, dava
ele, na mesma medida em que ele a ama e apoio logístico aos amores ilícitos das ir-
sofre por ela. É a compaixão (outra mani- mãs com Júpiter; de outro, conforme nos
festação do que chamamos de amor) de Eco conta o “Hino Órfico XI”, era também
que lhe permite essa redenção. Enfim, a amiga de Pã, o Zeus cornudo, divindade
história concreta de Eco e Narciso parece hiper-sexualizada que adorava deitar-se
negar a estrutura que dela retiramos quan- com as irmãs da ninfa (6). A praga de Juno,
do passamos a analisar o mito. Não é a fá- portanto, teve um efeito mimético profun-
bula de dois autistas, como tem sido muitas damente negativo sobre seu destino: jamais
vezes entendido, mas de dois seres conde- realizará as estrepolias amorosas que pre-
nados ao autismo devido ao fracasso de seu senciou, protegeu e tão bem reproduziu e
encontro amoroso. Afinal, todo encontro que agora deseja. Quando pôde falar, Eco
entre duas pessoas é sempre um encontro não participou da ação; e quando quis par-
de tipo amoroso e a cada fracasso comuni- ticipar, já não pôde falar.
cativo nos damos conta, ainda que fugaz- O verdadeiro amor, Eco o possui, pois,
mente, de nossa natureza profundamente apesar de haver sido rejeitada por Narciso,
paradoxal de autistas apaixonados; sensí- ainda é capaz de dar, de ajudá-lo a realizar
veis, mas incapacitados para o encontro a relação com ele mesmo. Ajuda-o a cons-
pleno. truir a ilusão de que consegue relacionar-se
A admiração não permite que haja uma com sua imagem, permite que sua imagem
igualdade dos desiguais. E as relações só lhe fale, que pelo menos ela expresse as
perduram entre seres desiguais que buscam incapacidades que ele também sente.
se igualar. Na verdade, toda relação é a Num outro plano, a personalidade de
tentativa de construção de uma igualdade – Eco é de todo incompatível com a de Nar-
enfrentada, assumida, ainda que sempre ciso e sua influência sobre ele é convertê-
apenas assintótica – entre desiguais. Quan- lo num ser cada vez mais auto-referente. A
do Eco se apaixona, admira Narciso e essa relação entre os dois é de um paralelismo
admiração só dificulta a existência da rela- euclidiano absoluto, isento, porém, de
ção (ou desigualdade positiva) entre eles. complementaridade. Ela é um Outro por
Não percebe, por exemplo, a limitação de demais radical – na verdade, ela é justa-
Narciso, sua incapacidade comunicativa mente o seu antípoda, que, em vez de con-
herdada; ela o vê perfeito, sem perceber seguir arrancá-lo de sua cápsula autista,
que está excluída dessa perfeição e que essa reforça ainda mais o círculo vicioso a que
exclusão torna imperfeita essa natureza. Eco ele, por destino, se dirige. Quando Narciso
vem significar também o feminino passi- foge dela, está fadado a encontrar-se con-
vo, da espera infinita e da entrega total: a sigo mesmo. E encontrar-se consigo mes-
6 Eis o trecho do “Hino a Pã”, única coisa que sabe fazer é admirar o mo, sem saber tudo sobre tudo, é perder-se.
na transcrição moderna de R.
C. Hogart: “Tu amas a caça,/ masculino, ainda que seja na sua forma Claro que Eco é também uma outra for-
a canção solitária de Eco/ e as
ninfas erotizadas” (1993, p. meramente potencial, como é o caso de ma de manifestação da própria natureza do
57). Eis o original da tradução Narciso. Quem não está preparado para espelho de Narciso: ela apenas reflete as
clássica de Thomas Taylor:
“Thou lov’st the chase and conhecer o outro também não está prepara- palavras ditas por uma outra pessoa, da
Echo’s secret voice…/ The
do para se conhecer e é por isso que o en- mesma forma que o espelho só reflete a
sportive Nymphs thy ev’ry step
attend” (1824, p. 34). contro entre os dois acaba em morte: Eco, imagem colocada diante dele por um outro

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distinto de si mesmo. Por razões opostas, Eco se apaixona pela imagem de Narciso;
nem Eco nem Narciso são aptos a torna- Narciso se apaixona pela voz de Eco, que é
rem-se reais objetos de desejo; são sujeitos a sua voz.
absolutos que rejeitam o destino dos co- Narciso derreteu como cera;
muns de se converterem em sujeitos em Eco ardeu como enxofre.
relação. Contudo, Eco consegue expressar Narciso representa a limitação da imagem;
conteúdos não-redundantes e essa talvez Eco representa a limitação da palavra.
seja a conclusão mais importante a se tirar Narciso quer a si mesmo e não o pode obter.
de uma leitura que não fracione a história a Eco quer o outro e também não o pode al-
um de seus mitemas exclusivos. cançar;
Sobre a natureza do eco, lembremos que Narciso não aceita dar nada que é seu a
ele não é redundante na comunicação. Eco- Eco;
ar é uma das formas de se comunicar. A Eco se propõe a dar tudo que é seu a
questão, insistamos, coloca-se na ordem do Narciso.
mal-entendido e não da tautologia. A O que um possui é fatal para o outro.
incomunicação se dá muito mais pela or- Eco é compassiva,
dem do silêncio, não do eco. E é bom lem- Narciso é cruel.
brar que ninguém consegue ser eco perfei- Em Eco, a passividade absoluta;
to de outra voz. Ecoar é também interferir, em Narciso, a autonomia absoluta;
alterar a ordem autista que pretende insta- O movimento de Eco é da imagem à fala;
lar-se em cada enunciado. É provável, in- o movimento de Narciso é da fala à imagem.
clusive, que o mesmo Narciso haja sele- Eco falou quando não devia e por isso foi
cionado as palavras de Eco de modo a ou- castigada.
vir o que desejava ouvir. Talvez a condição Narciso viu o que não devia e por isso foi
ecóica (de repetidor despersonalizado) seja castigado.
hoje tão ou mais freqüente que a condição Eco foi amaldiçoada por uma mulher;
egóica, ou narcísica. Narciso foi amaldiçoado por um homem.
Cada um deles, isoladamente, seria o Eco seria a interlocutora perfeita;
amante perfeito. Eco encarna a resposta Narciso, o corpo perfeito.
perfeita em busca de uma pergunta e é por Eco só pode dirigir-se à alteridade;
Eco que Narciso se sente finalmente ex- Narciso só pode dirigir-se à ipseidade.
pressado, comunicado. A dor maior do
amante é duvidar de ser amado; e aqui Eco, Do que se depreende: Eco e Narciso são
involuntariamente, causa a Narciso, objeto duas naturezas de uma simetria centrífuga,
de sua paixão, um dano máximo: constran- anti-relacionais. Só pode haver relação
ge-o a apaixonar-se por si mesmo ao repro- duradoura quando não há nem autonomia
duzir, de um modo conveniente, suas pró- completa, nem dependência completa, tan-
prias palavras, o que lhe transmite a garan- to de imagem como de palavra.
tia de ser amado. Lembremo-nos, além dis-
so, que, ao contrário do que geralmente se
diz, o autoconhecimento fatal de Narciso VII. COPIA NOSTRI: NARCISO E
não foi primeiro especular, mas ecoante. SEU DUPLO

Regresso agora à frase central do diálo-


VI. ECO E NARCISO: O go entre os dois: a expressão aberta da re-
FRACASSO DE UMA PERFEITA cusa de Narciso e a afirmação de entrega
SIMETRIA total de Eco: “ante emoriar quam sit tibi
copia nostri”. A efeito de evocar o seu sig-
Narciso reage a uma voz que lhe responde; nificado mais comum, segundo a maioria
Eco só pode reagir a uma voz que lhe dos tradutores de Ovídio, optamos pela
pergunta; expressão “antes morrer que entregar-me

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inteiro a ti”. Contudo, há no original latino Independentemente do valor poético
dois significantes ainda bastante obscuros: de cada um, o curioso é que a maioria dos
copia e nostri. Vejamos, primeiramente, tradutores optou por oferecer apenas uma
como o entenderam vários tradutores do paráfrase do texto. Atenhamo-nos primei-
texto ao longo dos últimos dois séculos. ramente ao termo copia. Somente Frank
Miller e John Brenkman se fixaram de fato
Almeno (1805): N. – Não me agarres; no significante cujo sentido aqui, admita-
acabarei primeiro, que me gozes. E. – Me mos, não é fácil de precisar. Miller sugere
gozes. poder, o que é uma boa interpretação da
M. Desaintange (1808): N. – Fuis; je veux personalidade autônoma de Narciso, e
me detester moi-même si quelque jour je Brenkman opta por uma das acepções mais
t’aime. E. – Je t’aime. comuns de copia: riquezas, bens – logo,
M. Cabaret-Dupaty (1866): N. – Plutôt abundância. Fica porém a pergunta: que
mourir, que de m’abandonner à tes désirs. abundância é essa?
E. – M’abandonner à tes désirs. Copia quer dizer também recursos, ta-
Castilho (1841): N. – Antes morrerei que lentos, habilidades, dons, de vários tipos;
amor nos una. E. – Que amor nos una. entre eles, riqueza de palavras, abundância
Anônimo, ed. Flammarion (séc. XIX): N. – de expressões, eloqüência verbal, oratória.
Je veux mourir, si je m’abandonne à tes Narciso se recusa a entregar a Eco tudo que
désirs. E. – Je m’abandonne à tes désirs. de bom ele possui, inclusive sua habilidade
Rolfe Humphries (1955): N. – I would die discursiva, justamente o que falta a Eco, o
before I give you a chance at me. E. – I give que a completaria. Já Eco se dispõe a entre-
you a chance at me. gar-lhe seu repertório de repetição interes-
Horace Gregory (1960): N. – May I be dead sada, sua capacidade de inverter e reverter
before you throw your fearful chains sentidos efetuando uma seleção do que
around me. E. – O fearful chains around devolve de tudo que ouve. E isso ela faz,
me. realmente.
Frank Miller (1960): N. – May I die before Outro significante que nos desafia de
I give you power o’er me. E. – I give you um modo ainda mais radical é nostri. Antes
power o’er me. de tudo, haveria que perguntar: por que
Clássicos Maucci (1961): N. – Antes la todos os tradutores utilizam a primeira
muerte me deshaga que tu goces de mí. pessoa do singular (“eu não me entrego a ti,
E. – Que goces de mí. eu não me dou”) quando Ovídio optou
Vicente López Soto (1972): N. – Antes deliberadamente pela primeira pessoa do
moriré que entregarme a tí. E. – Entregarme plural? Afinal, ele utilizou me em todas as
a tí. outras falas de Narciso, exceto essa – “Quid
Pierre Hadot (1976): N. – Plutôt mourir me fugis?” (verso 384); “sensi, nec me mea
que de me donner à toi. [ou: Plutôt mourir fallit imago” (v. 463); “Quo refugis?
que d’être possedé pour toi]. E. – Me donner remane nec me” (v. 477). Obviamente, não
à toi. seria a métrica a impedir um artífice do
John Brenkman (1976): N. – May I die first verso como Ovídio de escrever copia mei –
before my abundance is yours. E. – My minhas riquezas, meus poderes, minha fala
abundance is yours. – se essa fosse sua intenção. É por fidelida-
David Jardim Júnior (1983): N. – Prefiro de a esses significantes que coloco uma
morrer, não me entrego a ti. E. – Me entre- questão que foi eludida por todos os co-
go a ti. mentaristas a que tive acesso. Claire
Claire Nouvet (1991): N. – I would rather Nouvet, comentadora que se inspira nos
die than give myself to you. E. – I give myself diáfanos espaços transliterários e
to you. translingüísticos de Blanchot e Lévinas,
Allen Mandelbaum (1993): N. – I’d sooner também aceita que o plural não está apenas
die than say I’m yours. E. – I’m yours. retoricamente no lugar do singular: “De fato

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não há nenhum ‘eu’, ou ‘um’ sujeito, mas nha riqueza faz de mim um mendigo”),
um copia nostri, ‘todos nós’, um processo Ovídio utiliza esse termo copia na “notá-
prolífico de alteração que extravasa o ‘eu’ vel” acepção de “posse, por parte de um
que pretende contê-lo” (1991, p. 112). dos amantes, do outro” (1945, p. 215) (7).
Todavia, opta por seguir a desconstrução Já Pierre Hadot, o grande exegeta de Plotino,
da idéia de um texto onde a história esteja oferece uma paráfrase que expõe o parado-
inscrita, sem derivar conseqüências desse xo do desejo andrógino de autopossessão:
plural para o sentido da relação entre os “Minha possessão de mim mesmo faz com
dois personagens. que não seja capaz de possuir-me” (8). Ou
Se traduzimos copia nostri por “nossos na feliz transcriação de Haroldo de Cam-
bens, nossa fala, ou nossos dons”, fica uma pos: “A mim cobiço e tenho: pobre e rico
decisão a ser tomada: quem são os dois (no de mim” (Campos, 1994).
mínimo) a que Narciso se refere? Uma pri- Se nos apoiamos no aceno lingüístico
meira resposta, simples, seria de que ele se para essa posse mútua, fica, a meu ver, uma
refere apenas a si mesmo; utilizou o plural única possibilidade plausível: a de que
como uma mera licença de estilo. Isso não Ovídio tenha querido antecipar o episódio
me soa convincente, pois não explica o seu da fonte, em que os dois Narcisos se encon-
uso excepcional. Além disso, esse recurso tram. “Nossos bens” seriam então suas
foi utilizado pelos grandes estilistas lati- imagens e não suas palavras. Narciso diria:
nos, como Cícero e Virgílio, sobretudo “Prefiro morrer a deixar que possuas de
como um artifício gramatical para envol- uma só vez minha fala e meu eco, minha
ver aqueles a quem se dirigiam; enquanto bela imagem e a do meu reflexo na água”;
Narciso o estaria utilizando aqui no sentido enfim, que te aposses de mim e de meu
exatamente oposto, isto é, para repelir o duplo (9). De qualquer modo, o nostri in-
outro com quem se depara. Restam ainda troduz claramente, por um lado, o ingredi-
duas alternativas, ambas admitindo que ente de auto-reflexão, de pluralidade inter-
Narciso fala de verdade no plural – enfim, na do eu de Narciso; e, por outro, qualifica 7 Fränkel chega a supor que
Ovídio cunhou esse uso for-
se acreditamos que houve uma intenção o seu movimento autista absoluto. Quanto te do termo “especificamen-
precisa de sentido por parte de Ovídio. Em a Eco, sua resposta continua perfeita se te para expressar a idéia cen-
tral da história” (1945, p.
uma delas, ele inclui Eco em sua realidade pensamos no plural: “Que nosso rico diálo- 215).
e afirma: antes morrer que deixar que te go seja agora teu”. A pura verdade, pois ela 8 “Ma possession de moit fait
apoderes do diálogo que juntos construí- não fez mais que repetir o que foi produzi- que je ne puis me posseder”
(Hadot, 1976, p. 94).
mos. Essa hipótese não parece provável, do por ele.
pois copia é um termo carregado de Outra sutil conseqüência da escolha do 9 É esse motivo do duplo que
levou o grego Pausânias, con-
positividade e o fato de Narciso repelir Eco nostri nesse lugar é que se torna um modo temporâneo de Ovídio, a ta-
char de “boba” a presente
justamente quando pronuncia essas pala- de Narciso envolver Eco em sua fala: a versão da história – da pai-
vras exclui logicamente a possibilidade de última palavra que lhe dirige é “nosso”, o xão de Narciso por seu pró-
prio reflexo – e oferecer a
que avalie positivamente o que juntos (ou que aumenta o mal-entendido, a ilusão de variante do mito que intro-
duz uma irmã gêmea sua, por
não) construíram. um contato que não existiu essencialmen- quem ele se apaixonou e,
A leitura, já clássica, que Hermann te. Na verdade, Narciso se dirige a Eco no quando ela morreu, passou
a visitar a fonte. O Ceticismo
Fränkel propõe dessa frase crucial da his- plural porque está convencido de que se de Pausânias se veste de um
tória coincide inteiramente com a minha: basta – quer ter o idem e o alter dentro de realismo constrangedora-
mente prosaico ao interpre-
“Narciso e Eco trocam entre si a cláusula si, conforme o diz o mesmo Ovídio n’“Os tar essa história: “Ele sabia
que o que via era seu pró-
sit tibi copia nostri, negativamente do lado Fastos”, V, 226: “Infelix, quod non alter et prio reflexo, porém mesmo
dele e positivamente do lado dela” (1945, alter eras” (“Infeliz, porque não eras um e assim se consolava ao dizer a
si mesmo que se tratava da
p. 214). Fränkel considera que somente outro”) (10). Pode-se pensar numa outra imagem de sua irmã”
(Pausânias, Guide to Greece,
nessa passagem e numa outra mais adiante, motivação para o plural, coerente com essa vol. I, 1979, p. 376).
no verso 466, em que Narciso exclama economia libidinal essencialmente autista:
10 Os Fastos, vol. 3, trad. de
“Inopem me copia fecit” (expressão que Narciso lança mão do “nós” – isto é, aciona Antonio Feliciano de
desafia uma tradução precisa, segundo ele, o seu duplo – para resistir à demanda inten- Castilho. O português de
Castilho reza: “O triste, que
mas que poderíamos entender como: “Mi- sa formulada por Eco; quando se depara a ser dois fora ditoso”.

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com um desejo de alteridade deveras ame- or é o espelho: o espelho-brinquedo de
açador, mobiliza em igual e contrária me- Dioniso e o espelho d’água de Narciso. Há
dida o desejo de ipseidade. uma evidente simetria entre as duas histó-
E ainda outro sentido para esse copia rias, que o sábio de Alexandria preferiu
nostri. É por meio dessa expressão que deixar implícita. Dioniso Zagreu se vê re-
Narciso fala dos seus recursos verbais no fletido num espelho facetado e o
plural, ao que Eco responde: “Que fique desmembramento da sua imagem prenun-
contigo nossa abundância verbal”. E é exa- cia o real desmembramento do seu corpo
tamente isso que sucede mais tarde, no di- levado a cabo pelos Titãs, que o persegui-
álogo de Narciso consigo próprio. Enquan- ram a mando de Hera (11). Quanto a Nar-
to toda a conversa com Eco não ocupa mais ciso, ele primeiro se vê num espelho plano
que uns cinco versos do poema de Ovídio, e perfeito para logo autodilacerar-se cor-
o monólogo diante da fonte-espelho mais a poralmente diante dele.
despedida final do duplo se estendem por Narciso, diante do espelho do lago, re-
trinta e cinco versos inteiros: Eco de fato aliza um movimento alternado de prazer e
transferiu para Narciso o dom da palavra dor: reconhece-se apenas para não querer
rica. reconhecer-se. É essa a natureza da sua
estranha insânia, anunciada por Ovídio no
início da história: Eco lhe ensinou a reco-
VIII. AMOR E MORTE DE ECO E nhecer e amar a voz de seu duplo; e a super-
NARCISO fície incontaminada do lago lhe permitiu
vivenciar a intensidade desse desejo ao
O extraordinário do texto de Ovídio é refletir-lhe a sua imagem perfeita. Apaixo-
que o diálogo entre os dois amantes é da nar-se intensamente pelo duplo é promo-
ordem do entendimento, enquanto o encon- ver uma inversão na cadeia platônica do
tro é da ordem do desentendimento. Sob desejo e entregar-se ao mais baixo e louco
esse ponto de vista, o poeta foi capaz de dos amores, segundo Marsilio Ficino: aque-
construir uma das narrativas mais perfeitas le que imita falsamente o amor divino (De
jamais tentadas, com um arcabouço lógico Divino Furore) (12).
infalível e um desfecho necessariamente Após a fala do autor-espelho, Narciso
inspirador. Quando, no meio do drama de clama suas dores, grita seus lamentos, ana-
Narciso cativo de sua própria imagem, ele lisa os sinais de sua paixão insana e deduz,
lança mão do recurso de dirigir-se, como finalmente, que seu amor é por ele mesmo.
autor, ao seu personagem (“Crédulo! Não É Nêmese, deusa da justiça, vingadora da
existe o que procuras” – “Credule, quod desmesura, que lhe pune mortalmente com
11 Esse rico episódio é contado petis, est nusquam”), Ovídio fala para si e essa triste lucidez: reconhece-se nos dois
por Nono de Panópolis nas também para e por todos nós, impossibili- lados da membrana vazia da água escura e
Dionysiacas, vol. I, Livro VI
(Nonnos, 1940, p. 228). A tados que somos de mirar o outro em sua profunda e se prepara para a morte. Eco, na
hermenêutica plotiniana do
espelho é apresentada com diferença irredutível e desafiadora e igual- rocha, consegue reunir os fragmentos sol-
competência por Jean Pépin mente despreparados para o ato radicalmen- tos de uma fala sem direção e fazer com
(1970).
te místico de pertencermos a nós mesmos eles uma totalidade. Narciso, no lago, frag-
12 Em suas palavras: “De tudo
isso se desprende com clare-
por inteiro. Esse terceiro – o autor, o ho- menta e dissolve agora uma imagem que já
za que são quatro as catego- mem Ovídio, ou cada um de nós – que busca nasceu perfeita.
rias de furor divino: o amor, a
poesia, os mistérios e a pro- desesperadamente alertar Narciso para as Eco, fixe-se bem, permaneceu muda
fecia. Aquele amor materno, consequências fatais da tentativa de encon- durante toda a longa fala de Narciso consi-
popular e completamente
louco, imita falsamente o tro com seu duplo é na verdade o próprio go mesmo. Paradoxalmente, é a inconsis-
amor divino; a música ligeira,
como já dissemos, imita a espelho, pois só ele sabe ao certo que não tência da sua natureza (um eco que se abs-
poesia; a superstição, os mis- existe, nesse plano sublunar, isso que em tém de responder) que propicia os eventos
térios; e a conjetura, a profe-
cia” (De Divino Furore, pp. 28- vão procuramos. conduzentes ao cumprimento da profecia
9). A fonte de Ficino é
indubitavelmente o Fedro de
Plotino, nas Enéadas, utilizou duas nar- de Tirésias: ser vítima da sedução de sua
Platão, 265b. rativas míticas cujo foco especulativo mai- própria imagem. E é somente a partir daí

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que Eco resolve intervir, apoiando esse ção pela imagem é maior que a fixação pela
desfecho que também lhe diz respeito. Uma palavra, apesar de ser posterior a ela em
vez aceito seu irreversível aniquilamento, posição estrutural. Daí a admiração de Eco
Narciso passa a obter resposta sonora para por Narciso e não o oposto.
sua autoflagelação. Os diálogos finais se A beleza que incrementa vida deve pos-
intensificam em dramaticidade e seu senti- suir uma dose de imperfeição; a fala que
do se comprime ao máximo. sugere conversa deve ser carente de algum
termo, à espera de alguma completude.
Narciso, gemendo para sua imagem: Eheu! Talvez seja a flor o estado de adoles-
– Ai! cência perene da beleza sensível; a rocha,
A imagem lhe responde, auxiliada por Eco: a segurança e a inflexibilidade da palavra
Eheu! – Ai! definitiva.
Narciso, moribundo: Heu frustre dilecte Ambos transmutam, em essência e vi-
puer! – Ai, moço em vão amado! gor: a mulher, frágil, vira pedra; o moço,
A imagem-espelho-fonte confirma, com forte, vira flor.
Eco: Heu frustre dilecte puer! – Ai, moço Amor, mútua morte, é o tema explora-
em vão amado! do na história de Eco e Narciso.

Aqui, finalmente, o mal-entendido foi


extremo e a coerência discursiva, XIX. EM BUSCA DO
inigualável. Falam nesta frase, em total ENCONTRO POSSÍVEL:
acordo e em total desentendimento, não O DUPLO, O OUTRO, O UNO
somente os dois, porém os três persona-
gens dessa história que se amaram e que Ouvir o próprio canto é tão fatal quanto
não se amaram. Narciso diz, com toda cer- ouvir o canto das sereias. De fato, as sereias
teza, à sua própria imagem: em vão te amei. são, em última instância, uma outra expres-
A sua imagem lhe responde, corretamente, são da mesma auto-imagem ou do
agora que se (re)conheceram: em vão te autodiscurso. A sereia é Eco e é Narciso a
amei. E Eco pode finalmente declarar a um só tempo: sua voz é perfeita, sua ima-
Narciso, através de uma imagem, que não gem também. O processo de individuação
é a sua, mas que é a única possível (a de de Ulisses está dado por uma dissociação
Narciso) a verdade da sua paixão: em vão desgarradora e consciente entre reconhe-
te amei. cer uma proposta de sedução como exter-
na, plausível, e as conseqüências de
Narciso, morrendo: Vale! – Adeus! extinção inevitável do ego que adviriam da
Eco e a imagem de Narciso: Vale! – Adeus! realização dessa entrega.
Ulisses, o ardiloso, herói de uma civili-
Eis que se encontraram – para logo se zação que privilegiou o logos por sobre o
desencontrarem – pela primeira e última eros, conhece o segredo de Eco e Narciso.
vez, imagem e palavra, Eco e Narciso, re- Como Eco, sabe que são as sereias de uma
petição e duplo, idem e alter. Os dois se beleza irresistível, e, como Narciso, sabe
uniram, equivocadamente comunicados, que seu canto é tudo que o coração mascu-
em suas dores paralelas. Sofreram, cada um lino pode desejar. Homem adulto, renun-
por seu lado, pelo mesmo fracasso: Narci- cia ao prazer fatal que se esconde por trás
so necessitou de Eco para enunciar o amor dessa possibilidade de realização plena do
que sentiu por ele mesmo; Eco necessitou desejo amoroso.
de Narciso para dar expressão à sua própria O teste do amor parece ser a passagem
condição de amante. do momento da enunciação para o momen-
Imagem e palavra se amam, perigosa- to do reconhecimento: enunciar é amar o
mente, porém se confrontam sem tréguas. amor, mas ainda não é amar o outro. Quan-
Segundo a versão ovidiana do mito, a fixa- to a falar na hora do ato amoroso – fala que

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Na outra página, desfez o ato, tanto para Eco quanto para o diálogo dos amantes deve ser sempre
“Narciso” de Narciso – talvez seja um recurso de imperfeito, deslocado, adiado, ansioso de
Caravaggio distanciamento temporário frente à amea- completude, irresoluto, carente, sentido. O
ça de fusão com a imagem do outro (ou do que destrói a alma e o corpo é a resposta
duplo) – recurso este que nada mais faz que que não é nada mais além de perfeita para
intensificar, como nos lembra Shakespeare um terceiro, porém que paralisa todo im-
ao valorizar a ausência, o próprio movi- pulso sentimental por favorecer plenamen-
mento magnético de atração. E ainda que te as condições do encontro do ser amado
falemos, como sabemos que de fato entra- com seu duplo e não com o outro que o
mos em diálogo? Onde está o terceiro que ama. Tentarei explicar essas diferenças.
nos conheça e nos garanta como seres em O refúgio no duplo demarca a solução
relação? regressiva para o desafio apresentado pelo
Conhecer-se em isolamento é possuir- diálogo amoroso. Seguindo as interpreta-
se e possuir-se é alcançar a morte pelo cír- ções mais comuns para o desmembramento
culo vicioso do desejo. Quando falamos de imagético de Dioniso, podemos dizer que,
autoconhecimento, referimo-nos ao saber através da imagem, o espelho captura a alma
sobre aspectos de nós mesmos; nunca se do refletido e a transporta, como diz Ovídio,
deve entendê-lo como o autoconhecimento para o outro lado da escura lagoa-espelho:
total. Neste mundo, eu não devo estar onde a Estígia, onde Narciso continuou se olhan-
está a gnose acabada sobre mim. Enquanto do e não se encontrando até ser transforma-
ser desejante, não sou eu a saber do sucesso do em flor. O que nos conduz, nessa cor-
de meu diálogo. rente sempre aberta de associações míticas
Enquanto não há interação cara a cara, e semânticas, a outro episódio, igualmente
a relação entre Eco e Narciso é perfeita, de de caráter iniciático, em que comparece o
complementaridade: Narciso é acariciado significante Narciso: a jovem Perséfone,
e confirmado por sua própria voz e Eco filha de Deméter, foi raptada por Hades e
está feliz porque seu amado puxa conversa. conduzida aos Infernos – à lagoa-Estígia –
Assim poderiam ter ficado por uma eterni- quando se deteve, a olhar extasiada, a blanca
dade, não fosse todo diálogo um propulsor flor de Narciso. Narciso, a flor-narcótico
do encontro corporal. O que Ovídio nos (narké, entorpecimento, sonho induzido,
convida a considerar é a hipótese terrível raiz de narkissos, conforme o sugere
de que o predicamento dos dois ocorra tam- Plutarco), tornou-se um marco do mergu-
bém conosco: que sejamos coerentes se- lho sem regresso no sombrio mundo da
manticamente sem nos entendermos exis- eterna repetição.
tencialmente. A história de Eco e Narciso Foi esse mergulho na Estígia, a um só
não é pois assunto de comunicação semân- tempo tão distante e tão próxima (o outro
tica, unicamente, mas sobretudo uma ques- lado da película aquosa da fonte) que ins-
tão de incomunicação fatal. pirou Gaston Bachelard a privilegiar o es-
Somos tomados, hodiernamente, pela pelho d’água por sobre os demais espelhos
vã ilusão do primado da intensidade, da (cristalinos ou metálicos), incapazes, pen-
economia quantificada do desejo. O encon- sava ele, de propiciar a profundidade
tro amoroso real, sem mal-entendidos catabática experimentada nos mistérios
ecóicos ou narcísicos, não requer em pri- (13). Uma bela reintegração desse imagi-
meiro lugar intensidade, desejo cego ou nário especular bifurcado foi antecipada na
surdo, mas acordo comunicativo ancorado alegoria medieval O Romance da Rosa, de
no plano transcendente dos sentimentos Guillaume de Loris e Jean de Meun: ao
pelo outro. E o seu oposto também vige contemplar a fonte de Narciso, o narrador
entre nós: há uma intensidade – letal, ainda vê, no seu fundo, dois perfeitos cristais (seus
que experienciada, verdadeira – que se olhos) que tudo refletem sem distorção al-
consegue justamente em troca do encon- guma. Até aí unimos espelho-cristal e es-
13 Ver Bachelard (1989). tro. O que nos conduz ao oposto do oposto: pelho-água. Todavia, a originalidade mai-

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or dessa alegoria-sonho, como é conhecida duplo do outro e reconhecê-lo como o ou-
na literatura, consistiu em ressaltar o olhar tro do nosso duplo; assim poderíamos ver
enviesado de quem se ama, mas que já co- a beleza do ser amado como cópia legítima
nhece o destino terrível de Narciso: o aman- da beleza transcendente para a qual ele
te vê, através dos cristais, metade do jardim aponta. Se o Narciso insano de Ovídio toma
que circunda a fonte; quando inverte o olhar, por corpo o que é apenas sombra, o erro
vê a outra metade (isto é, vê o mundo real, comum do amante sublunar é, ignorando a
fora do espelho). Os autores do Romance da dimensão transcendente, tomar o que já é
Rosa advertem claramente para o perigo do sombra como se fosse apenas corpo. Ati-
olhar frontal, que captura a alma através do var, na relação com o outro, o que ele tem
encanto absoluto exercido pelo duplo. Eis de corpo e o que tem de duplo é ser capaz
por que a iluminura francesa quinhentista de ouvir e ver o outro sem perder de vista
que ilustra a narrativa mostra o jovem deita- que ele nada é sem o Uno de onde surgiu.
do ao lado da fonte de Narciso, de modo a Aqui poderíamos mover-nos, quem sabe,
ver, além da imagem de si mesmo, parte da num espaço real – ainda que fugaz e de
bela folhagem que o envolve. Como é pró- difícil acesso – entre o silêncio da fusão
prio das alegorias de amor cortês, propõe com o Uno (privilégio de poucos) e o diá-
uma justa combinação de narcisismo e im- logo perfeito da antifusão de Eco e Narci-
pulso de sedução externa. so, fracasso de tantos.
A outra solução, mística e perfeita, for- Afinal, que diálogo absoluto e fatal é
mulou-a Plotino no final das Enéadas, após esse que aqui se encerra? Nossa terrena
haver passado por todos os espelhos, refle- filosofia nos garante que ninguém jamais
xos e imagens de todo grau de distorção e detém a última palavra em um diálogo.
beleza. Reconhecendo a incompletude es- Podemos imaginar esse Adeus de Eco e
sencial do outro e a ameaça fatal do refúgio Narciso repetindo-se por uma eternidade,
autista no duplo, haveria de dirigir a con- como o sugere Ovídio nos versos finais de
versão da cadeia da criação para o sentido sua tragédia amorosa. E assim caberá, a
ascendente e, rejeitando os prazeres e os cada um, de acordo com sua sina, identifi-
sofrimentos do mundo, caminhar, feliz e car o sentido preciso desse Adeus: a cada
só, até aquele que é só (En. VI. 9, 11). vez que Narciso o pronunciar, será redun-
Porém, não haverá uma terceira via, dante e ilusório, porém sábio para os que
possível existencialmente, ainda que im- buscam, como Plotino, a transcendência
pura logicamente, entre a insânia letal e a própria do amor extralunar; e a cada vez
mística unitiva? Refazendo a solução pro- que Eco o repetir, será real e inútil, porém
posta pelo sábio de Alexandria (e pensan- dramaticamente esperançoso para os que
do em algo que ele não se preocupou em ainda insistem na perigosa prática do amor
pensar), talvez seja preciso lembrar-se do entre os mortais.

BIBLIOGRAFIA

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